I ■y X . Cl n ■ ""v HÍSTORIA DA REVOLUÇÃO DE SETEMBRO HISTORIA DA REVOLUÇÃO DE SETEIBBO JOSÉ D'ARRIAGA LISBOA ^VP. DA COMPANHIA XACKíNAL l^:i)rn)RA .=•0 --l.AKtio 1>0 (A)MiF. l'.AR.\i> - '::• DUAS PALAVRAS Algumas pessoas dirigivam-se a nós, pedindo informações da Historia da Re%'olu- çÀo DE Setembro, />rome///íía na Historia da Revolução Portugueza de 1820. Respondemos que estávamos resolvido 'a publicar aquelle trabalho no estrangeiro e em lingua estrangeira. Tentámos, com effeilo,, estabelecer a nossa residência em Paris, e estudar a lingua francesa afundo, para escrevermos as nossas obras. A pátria não dd de comer a quem se intrega ao estudo. Quijcmos ir e.vercer fora a nossa actividade intellectual, porque ahi tem futuro quem cultiva as lettras e as saencias. Duas ve^es seguiítios viagem para Paris; e duas ve-^es tivemos que retroceder po- falta de saúde. Os frios húmidos do norte são mui nocivos para os nossos padecimentos. Estava prova.' o que não pociamos sahir do sul d.i Eiiropa. Resignado cem a nossa sorte., regre.- sán os no inverno passado a Lisboa, disposto a abandonar as lettras e a voltar de novo para o estrargeiro. O acaso fe^^-nos encontrar 3^ 1 INTRODUCÇÀO A Revolução de Setembro não é completa, como a de 1820, toda ins- pirada em o seniiniento nacional. Entre uma e outra épocha medeia a Sa)ita Alliança e as invasões de seus poderosos exércitos em Nápoles, Piemonte c na Hespanha, para destruirem as liberdades conquistadas por estes povos. Interpõe-se tam- bém a dementada e desanimadora conira-revoluçao de iS23, e o violento reinado miguelino, capaz de bestificar o povo mais culto do mundo. Os iíovernos reaccionários sobrevindos á \'illafrancada, a politica mes- quinha e contraproducente dos cartistas de 1826 a 1828, que prepararam a victoria do absolutismo puro, e o terror bi\inc() do reinado apostólico de D. Miguel, tudo isto interrompeu a corrente de idéas crcada pela re- volução de 20. Esse grandioso e fecundo movimento nacional perdeu-se e desviou-se na torrente dos acontecimentos posteriores, que desgraçaram o reino. A emigração para França trouxe o preJominio das idcas deste paiz. que influiu poderosamente em os nossos estadistas e legisladores, tanto realistas constitucionaes, como democratas. Quando estes regressaram á pátria, vieram todos embebidos nas theo- rias francezas. Ao cahir o regimen absoluto miguelino, não havia em Portugal essa uniformidade de pensar e de sentimeTitos que existiu em 20, proveniente do grande movimento intellectual iniciado pelo notável ministro de D. íosé. Os cartistas, ou realistas constitucionaes, inspiraram-se, evidentemente, na Sa7ila Alliança, na eschola politica de Benjamim Constant e na eschola doutrinaria. Os outros emigrados deixaram-se influir pela historia e pelas tradições da democracia franceza. Umd grande parte dos vinthtas passou-se, ora para D. Miguel, ora para D. Pedro, então mais poderosos que o povo, por ella d'antes cor- tejado. As tradições da nossa primeira revolução liberal conservaram-se, porém, na massa do povo, ou no coração do paiz, d'onde ella sahiu. A Revolução de Setembro é filha de todas essas influencias; não tem um movimento intellectual próprio, autómato e independente, como a de 20. A França começa a exercer em o nosso paiz a mesma preponderância que ella já então exercia em toda a Europa;, a revolução de 3o acabou de nos impor essa preponderância. E a datar d'essa épocha que as theorias e as tradições francezas inva- dem Portugal, que até 1820 obedeceu e um movimento intellectual seu e próprio, d'onde sahiu a grandiosa revolução, honra de nome portuguez. A revolução portugueza de 1820 é o mais bello e importante movi- mento nacional da nossa historia contemporânea, e o inicio mais brilhante das idéas e instituições liberaes. Todas as mais revoluções democráticas de Portugal filiam-se n'essa cpocha memorável, que iniciou reformas em todos os ramos da inteliigen- cia e da actividade nacional-, e filiam-se também nas revoluções demo- cráticas da França. São essas as duas fontes originarias da Revolução de Setembro. l'.m i82«> estavam em pleno domínio as idéas politicas filhas da me- thaphysica e do romantismo, que a França levara a todos os povos latinos. A democracia da épocha é toda romântica e metaphysica sob a direc- ção da França, tornada o ponto central da Europa. Devem nossos leitores recorrer, não somente á historia d'aquelle paiz, como também á historia da nossa revolução de 1820, para conhece- rem os principios que dominaram na épocha da Revolução de Setembro. O curto período do realismo constitucional de 1826 a 1828 foi estéril; e não podia deixar de o ser. Foi uma situação hybrida. Pela presente obra os nossos leitores vão conhecer o que foi o consti- tucionalismo de 34, cópia fiel do de 26. A liberdade, sophismada e embaraçada por todos os modos, não po- dia produzir fructos benéficos, como no periodo de 20, em que ella teve a sua expressão mais pura e ingénua. Também não tratamos da influencia da revolução de i836 nas idéas e costumes do paiz : porque ella deixou de existir desde o pacto de Al- cântara e a sabida de Passos Manuel do ministério. A sua existência foi apenas de mezes. Como mostraremos no decurso da nossa obra, os vencidos em Belém e Ruivães tornaram-se logo vencedores com o auxilio da coroa e do estrangeiro. Nos fins do anno de 1887 já a rainha cantava victoria e impunha-se aos revolucionários. Os primeiros dias de março de i838 foram a morte da Revolução de Setembro, que recebeu de seus próprios chefes os primeiros golpes fataes. Desde então por deante, a revolução popular esteve nas agonias da morte até 1840. O anno de 1841 é como os funeraes da liberdade, que a pró- pria coroa de novo sepultou. A restauração da carta, em 1842, restabele- ceu esse realismo constitucional, contra que se fez a Revolução de Setem- bro, ou contra que se levantou de novo o partido democrático portu- guez. Desvirtuada a revolução nacional, logo em seu começo, não pedia deixar resultados tão sensíveis, como a revolução de 20 nos seus quasi três annos de existência. Alem d"isso, a épocha de 'M') marca jd a decadência dos nossos costu- mes políticos e a corrupção dos nossos homens de estado. As nossas sociedades contemporâneas vêem dahi. Já a coroa procurou attrahir os chefes do partido popular por m.cio da seducção e da venalidade; e já começaram as cynicas deserções poli- ticas para os campos mais oppostos e contrários. Se por este lado a revolução de 36 não é tão nobre, levantada e gran- diosa, como a de 20. tem, por outro, mais interesse para a épocha actual, por isso que está mais ligada a ella e tem com ella mais pontos de conta- cto. As creanças não eram tão profundas e arraigadas como em 1820", as virtudes civicas tão enérgicas e puras, o heroismo tão sublime, e o amor da pátria tão levado ao fanatismo. Em i83(3, já se levantam no meio dos partidos as rivalidades, as vai- dades de cada um e as ambições pessoaes, antepondo-se aos interesses geraes e da pátria. A corrupção que surgiu da Villafrancada, a que imperou desenfreada- mente no reinado de D. Miguel, e a que immediatamente se seguiu ao regimen cartista, não podiam deixar de influir nos homens que figuram na Revolução de Setembro. Esta foi victima do pouco caracter e da pouca firmeza de principios de grande parte dos seus chefes, e dos seus falsos alliados. E verdade que a rainha S3^stematicamente oppoz-se a entregar os pri- meiros cargos do estado e a direcção politica a pessoas da confiança do povo. EUe teve sempre o máximo cuidado de os afastar dos conselhos da coroa, ou dos ministérios, para os confiar a pessoas de caracter duvidoso. Foi por este meio que ella conseguiu supplantar a situação setembrista e derribal-a. Não se pode negar, no emtanto, fraqueza, desleixo e incúria, nos mais decididos campeões da Revolução de Setembro, que até se tornaram cúmplices nos attentados da coroa contra ella. A alliança dos revolucionários com aristocratas de caracter duvidoso, e com pessoas que d'antes se tinham envolvido nas questões sujas da politica cartista, foi-lhes bem fatal. Os condes da Taipa, os Macarios, os Bomfins e os Silva Sanches foram os que atraiçoaram a causa do povo. A historia da nossa revolução de 1S20 é sublime exemplo de amor da pátria; a de 36 accusa já a degeneração d'essa raça de heroes que não mais voltou. Extinguiu-se para sempre. Os homens novos é que verdadeiramente fizeram a Revolução de Setembro; mas faltou-lhes a experiência e o tacto politico! Deixaramse vencer pelos contrários, mais práticos nas artimanhas da politica. José Estevam e outros foram trahidos em suas aspirações, e confia- ram demasiadamente nos que os abandonaram com tanta má fé. Os hábeis e astutos diplomatas da Grã-Bretanha e da Bélgica e os politicos manhosos da camarilha, conseguiram lograr os inexperientes setembristas puros. Estes não tiveram habilidade para conduzir a Revolu- ção no meio das tempestades que levantaram contra ella adversários de dentro e de fora. Passos Mannel mostrou-se fraco e pusillanime em Belém e no parla- mento. Alli amedrontou-se ante as resistências do throno alliado com o estrangeiro; aqui desejou impor a sua inepta politica de conciliação e as suas promessas á rainha lacrimosa, ao vcl-a entregar-se á sua generosi- dade. Era novo, pouco experimentado nas lides politicas, sincero e hon- rado, mas fraco de coração e incoherente com seus princípios. Passos Manuel contrahiu compromissos, que seriam uma traição, se não fossem, realmente, filhos dos seus poucos annos e da sua demasiada sinceridade. Era mais poeta e romântico, que estadista. As condescendências d'aquelle revolucionário em Belém e Alcântara collocaram-n'o em posição falsa, tanto perante a coroa, como perante a Revolução. Ao sahir dos paços reaes, elle já não sabia se era pelo throno, ou pelo povo. Foi isto o que o perdeu no parlamento. Os seus actos de dictadura não contentaram ninguém, nem amigos nem inimigos. E sempre o qne acontece, quando se não é lógico e coherente. Depois da queda do ministério setembrista, a Revolução andou como navio sem governo, nem piloto, no meio das tempestades que se despe- nharam sobre ella. Os que d'ahi por deante tomaram o leme dessa em- barcação perdida conduziram-n'a de caso pensado ao naufrágio. Receberam por isso altas recompensas da coroa! Sá da Bandeira não era democrata ; serviu a Revolução contra suas convicções politicas, como elle próprio confessa. Forçou-o a isso a coroa e as circumstancias especiaes cm que se viu coUocado. Como podia elle, pois, ollcrecer enérgica resistência aos que trahiam a causa do povo, para agradarem á rainha, por quem elle mesmo sentia fanatismo ? Sá da Bandeira fatalmente devia ser arrastado pelas suas convicções intimas; e estas eram bem contrarias á Revolução de Setembro, que per- filhou contra sua vontade. Á frente d"ella, era mais uma garantia para o throno, do que para o povo. Por isto o paço não cessou de instar com elle, para que ficasse, emquanto repelliu energicamente todos os setem- bristas puros. Passos Manuel não mais se sentou nos bancos dos minis- tros, nem a rainha, em tempo algum do seu reinado, chamou aos conce- lhos da coroa setembristas, apesar de estes se confessarem sempre monarchicos ! A historia da Revolução de Setembro é um bello ensinamento para as gerações modernas. Chamamos a attenção dos nossos leitores para o methodo por nós adoptado. Difficilmente esta nossa historia será bem comprehendida, se a leitura não for seguida, e se não se attendcr á ligação intima que existe entre as matérias dos livros e capitulos. Não estão collocados ao acaso, e ao arbítrio do auctor; occupam o logar que lhes destina a lógica dos factos e dos principios. Esta obra constitue um todo completo, homogéneo e unido entre si, e tem um pensamento dominante, como actualmente devem ter as obras scientificas, cujo objecto são os factos e os phenomenos. A Historia da Revolução de Setembro é o seguimento da nossa — Historia da Revolução portugue-a de 1820 — bem como a Historia da Patuléa e a Historia da Regeneração seriam o seguimento d'aquellas duas. Todas as obras da natureza partem de um gérmen ; todas as obras scientificas devem partir de uma idéa mãe, filha da inducção. As obras da intelligencia precisam de ser fiel cópia das da creação, que lhes ser- vem de modelos. A Historia não é mais do que a manifestação da humanidade e dos povos através do tempo e das edades. Faz parte da vida universal a que o homem está ligado com todos os mais seres, formando com elles um todo, ou um systema só, o da Terra. O mundo mineral, o mundo vegetal e o mundo animal, estão relacio- nados c dependentes uns dos outros-, constituem um todo. As difterentes partes d"este grande todo obedecem á mesma lei de unidade, de relação e de harmonia. As sciencias, que teem por objecto os phenomenos da natureza e os factos da historia da vida humana, não podem esquecer essa grande lei a que está sujeito tudo quanto existe no globo. A Historia, como a Geologia, a 2^ologia, a Physica, a Ghimica, a Anthropologia e mais sciencias, deve manter a unidade do assumpto e mostrar a ligação intima, não somente dos factos entre si, como também dos factos com as leis geraes da creação, a que pertence a humanidade. E preciso que exista a mesma unidade e relação intima dos factos e acontecimentos na historia particular de um povo, ou de uma épocha. Não se julgue, porém, que pretendemos confundir a historia univer- sal com as historias geraes e particulares. Áquella é que compete rela- cionar a vida da humanidade com as leis universaes a que está sujeita. Tanto mais particular é uma historia, quanto mais se afasta d'essas leis, que nella não teem cabimento. O seu objecto é mais restricto; o seu campo menos vasto; limita-se á vida humana, que é o seu assumpto pró- prio. As historias particulares não podem ascender a essas questões mais altas e genéricas, que verdadeiranftnte pertencem á historia universal. O que, porém, o historiador nunca deve perder de vista é a unidade do assumpto e as relações intimas dos factos, formando com elle» um só todo completo e homogéneo, como se se tratasse de uma obra de Zoolo- gia, ou de quelquer outro ramo de sciencia natural. Quer a historia de de um povo, ou quer a historia de uma épocha, devem constituir um todo caracteristico d'es5e povo e d'essa épocha. A unidade de concepção é que dá força e vigor a todas as obras. Não se veja n'este systema, todo objectivo e inJuctivo. o dos histo- riadores que partem de uma idéa preconcebida e tudo vêem através d'ella. Estes são os metaphysicos da historia. O methodo e o systema que seguimos são filhos do estudo e obser- vação attenta dos factos, dos homens e da épocha. A nossa obra é a synthese de todo este estudo concreto; não tem nada de subjectivo e de abstracto. A historia que escrevemos é fructo de muitos annos de investigações assiduas, e a refundição em nossa mente de todos os materiaes adqui- ridos. Uma obra de sciencia c uma nova creaçao pelo homem das cousas creadas pela natureza. O verdadeiro historiador não faz mais do que reconstituir a vida humana passada, segundo as leis naturaes que a regem. E uma das primeiras d'essas leis é, como dissemos, a da unidade, e da harmonia de todos os phenomenos e de todas as coisas existentes. Os factos por si só nada significam. Um mesmo facto pode ter signita- ções differentes e até oppostas. Um homicidio, por exemplo, ou é um acto criminoso, ou um acto de virtude e de heroismo, conforme a causa que lhe deu origem. A explicação dos factos e dos acontecimentos é que é tudo. Urge remontar ás suas causas, para que elles tenham valor real, ou a sua verdadeira significação. Os acontecimentos históricos não são actos pessoaes, ou individuaes, mas a expressão das idéas e princípios que lhes deram origem. Os factos não se podem, portanto, desligar dos seus princípios, ou das theorias que os occasionaram. Uma historia deve exprimir ao mesmo tempo a lógica dos factos e a lógica das idéas. D'aqui a necessidade de se combinar o methodo chro- nologico com o methodo lógico. É o que fizemos na Historia da Revolu- ção portupie^a de 1820 e o que fazemos na presente historia. O segredo da nossa obra está, por assim dizer, na distribuição da matéria, ou dos factos, dos livros e capítulos, obedecendo á lógica das idéas e dos acontecimentos. Essa distribuição não é arbitraria, como dissemos. Muitos historiadores caem no erro de juntar no mesmo capitulo factos heterogéneos, produzindo assim verdadeira desordem e confusão nas idéas e acontecimentos. Parece-nos que o historiador moderno deve ter o máximo cuidado em não juntar senão os factos que tenham entre si relações intimas de paren- tesco, e em separar os que tiverem relações remotas. Só assim s'e formará da historia de um povo, ou de uma épocha, um todo homogéneo e com- pleto, ou um todo característico d'esse povo e d'essa épocha. Repetimos : para que este nosso trabalho seja bem comprehendido, e para que a historia da épocha tenha a sua verdadeira significação, é pre- ciso não perder de vista as relações íntimas que prendem os aconteci- mentos, os livros e capítulos da obra. Cada livro e capitulo d'esta é um livro e capítulo da própria historia que escrevemos. Não se devem ler isoladamente e sem se relacionarem entre si. Qualquer dos capítulos é reforçado pelo antecedente, e prepara o que se lhe segue. Ninguém ficará conhecendo o corpo humano, se se limitar a estudar apenas um ou outro órgão. K preciso conhecel-os todos, ou todo o sys- tema, para que se tenha idéa exacta d'esse todo completo e harmónico. Todas as nossas obras até hoje publicadas constituem um corpo só de factos e doutrinas. Os livros e capitulos formam um todo complexo, har- mónico e ligado entre si. Esta nossa historia é uma obra synthetica e analytica ao mesmo tempo. Não ha synthese sem analyse. Para que os leitores conheçam cada uma das suas partes é preciso que conheçam o todo, e para que conheçam bem o todo synthetico, é preciso que tenham conhecimento detalhado de cada uma das suas partes. A idéa mãe, ou prodominante, c como a synthese de todos os factos, e cada um dos factos, ou ordem de factos, devem ser encarados sob esse ponto de vista synthetico. Toda a leitura deve ser feita sob os pontos de vista geraes, ou synthe- ses dos factos, afim de que tenham a sua verdadeira significação histórica. Não pertencemos á eschola dos litteratos; somos cultor da sciencia. Escrevemos historia e não romances; narramos e criticamos com sinceri- dade, e não fazemos estylo. O nosso estylo é o da sciencia : sóbrio, des- pretencioso e claro. O litterato não investiga, nem estuda; faz estylo; nós preferimos faíer historia, sendo consciencioso, fiel no trabalho e sincero nas idéas e na critica. Nunca pretendemos especular com o publico e com os editores. O nosso único desejo é sermos útil á sciencia e á pátria. Bem sabemos que se não é tão feliz, quando se procede com honra e probidade; mas cada um é como o fez a Natureza. O nosso feitio é esse, e com elle morreremos. Esta obra é filha de muitos annos de investigação nas bibliothecas publicas e particulares, e de um estudo profundo dos factos e dos homens. Ou se hão de escrever obras úteis e instructivas; e não ha tempo para fazer estylo; ou se ha de fazer estylo; e não ha tempo para obras de estudo c para investigações demoradas e fatigantes. Faz estvio quem deseja occultar ignorância. E este um dos meios de os ociosos entrarem no campo da sciencia e de se imporem ao publico, de preferencia aos estudiosos e probos. A probidade litteraria não aproveita hoje ao escri- ptor; nem é condão que mereça premio. Ao contrario, tanto menos probo e consciencioso, quanto maior successo obtém o auctor. E no campo das lettras o que succede no campo da politica e da vida social. O homem honrado não serve*, nem tem acceitação em parte nenhu- ma. E um visionário e maçador. Aquelle que, para obter successo litterario, explora o escândalo e até insulta a própria pátria, conquista grande numero de leitores e admira- dores ! O que escreve com honestidade, e por isso é nobre e sincero no estylo, é posto á margem e fica esquecido! A épocha actual é a verdadeira tortura do homem de bem, quer no mundo social, quer no mundo litterario. Se não transige, arrisca- se a ficar só e abandonado por todos! Confessamos o nosso peccado: A nossa obra, filha de uma consciên- cia recta e de sinceras e puras intenções, não é obra de estylo. Temos em vista, sobre tudo, fazer historia, investigar bem os factos, estudar os homens e reconstituir a épocha histórica que desejamos tornar conhecida do publico. Todo o nosso empenho é instruir o paiz acerca da sua historia revo- lucionaria com o modesto fructo dos nossos trabalhos e das nossas inves- tigações de muitos annos. A nossa única preoccupação é precisar bem os factos e as idéas, ado- ptando para isso estylo, claro e preciso. Se é peccado venial, paciência. Acceitamos resignado a sentença condemnatoria. Sirvam, ao menos, de cir- cumstancia attenuante os nossos bons desejos e intenções puras e sinceras. Abandonámos o methodo exclusivamente synihetico, ou de generali- dades vagas; não somente porque a épocha é completamente ignorada, como também porque se tem abusado d'aquelle methodo, para falsear a historia e occultarem-se os factos. Inclinamo-nos para o methodo das sciencias positivas modernas, todas baseadas na experiência e observação dos phenomenos. Em historia os factos é que é tudo-, por isso nunca abandonamos esse terreno e o das provas das nossas asserç(jes. Todo o nosso traba- lho c inspirado nos factos que procuramos precisar bem, embora para isso lhes déssemos maior desenvolvimento. LIVRO PRIMEIRO O REALISMO CONSTITUCIONAL CAPITULO I OUTORGA DA CARTA CONSTITUCIONAL A carta conslituoional abre um periodo ditfcrciitc, cm opposio, ao de 1820. — As cartas são divinas c fcudaes; as constituições democráticas, ou filhas da soberania nacional. — Os realistas dividem-se, depjois da Villafran- cada. — Os realistas puros exigem o extermínio de todos os liberaes; os realistas moderados, ou con^titu- cionaes, oppóem-se á demagogia branca, de que seriam as primeiras viciimas. — Tentativas para a depo- sição do rei. — D Miguel deportado para Vienna d'Austria — A politica reaccionária de Falmella atirãe as potencias á causa de D. João VI.— Morte do rei.— Decreto da regência. — Carlota Joaquina nitenta .in- nullar o decreto da regência.— Deputação enviada ao Rio. — A regrncia declara D. Pedro legitimo successor do throno.— D. Pedro em lucta com o partido liberal brazileiro — K forçado a dcclarar-se monarclia cons- titucional entre os Portuguezes. — Entrevista de l). Pedro com lord Stwart.— Resolve D. Pedro outorgar uma carta aos Portuguezes. — Decreto da abdicação. —Todos os partidos liberaes acceitam a carta como uma necessidade politica de occasião. — O regimen politico da carta comparado com o da constituição de 1820.— A Carta Constitucional tem comsigo o cunho do direito divino e feudal de onde derivou. — O equilíbrio dos poderes.— O poder moderador e o pc)der executivo da carta — Estes tendem a suppaníar o poder legislativo. — Sophisma do voto líacional. — O poder judicial e o direito administrativo da c.ina.— As garantias individuaes. Grande é a distancia que vae dos regimens das cartas, feudacs e outorgadas pelos reis, para os regimens das constituições, demo- cráticas e promulgadas em nome do povo e pelo povo. O periodo que se abre em í^ortugal com a outorga da carta constitucional é essencialmente diverso, se não opposto ao de 20. K preciso que os nossos leitores tenham completo conhecimento d'esta impc^rtante revolução nacional, para formarem idéa exacta do quanto ella con- trasta com a épocha de 26 a 28 e a de 84 a 36. N'aquella impera o povo e a nação, ou a democracia, nVstas impera a reale/a. <> principio monarchico e o feudalismo. A revolução de 20 e a pura alfirmação da soberania nacional, sendo a C(jròa despojada dos L privilégios da realeza, e convertida n'un]a delegação d'essa sobera- nia, única e indivisivel. O direito divino desapparece deante da von- tade nacional. O novo periodo da carta constitucional é o opposto a tudo isso. A soberania popular deixa de existir, para dar logar á antiga soberania dos reis de origem divina e feudal. Emquanto em 20 foi a nação que, representada em cortes soberanas, fez e decretou o código politico, e constituiu os poderes do estado, em 26 foi o rei que a seu arbítrio outorgou a lei fundamental do estado e consti- tuiu aquelles poderes, de que elle mesmo se proclamou chefe supremo ! Nos regimens das constituições só a nação é soberana ; nos re- gimens das cartas outorgadas soberano só é o rei, a nação é vas- salla. Como no tempo do feudalismo, os reis por si mesmos outor- gam cartas, concedendo aos povos avassallados certas garantias e direitos e certas liberdades. Eis o que é o regimen cartista, que nós denominamos o realismo constitucional, que pouca ou nenhuma diííerença faz do realismo puro, ou do regimen absoluto. Luiz o Gordo, e Luiz XI, pelo facto de concederem ao povo as suas cartas, nem por isso deixaram de ser reis absolutos e reis de origem divina e feudal. E o que poucos teem comprehendido até hoje. Essa difterença é importante e capital para a historia contem- porânea da Europa, e, portanto, para a historia da Revolução de Setembro, este novo appello do povo portuguez para a democracia c seu regimen politico. A historia do constitucionalismo europeu não é mais do que a permanente lucta da democracia com o realismo constitucional, es- tabelecido pelas coroas. Depois da campaulia da poeira, ou da \'illafrancada, dividiram- ^e '<,rKi dj Rcv(>htçan r'i,rt:ii;uc-.i de iSj^,. vol 4.", por Jobé d'Arriay;!. Aquelle primeiro partido, auxiliado pela França, Rússia, Áus- tria e Hespanha, sobretudo por estas duas, pretendia, em nome da religião aggravada, que em Portugal e no reino vizinho se inaugu- rasse o terror branco, aíim de se exterminarem nas fogueiras da In- quisição restaurada todos os malditos revolucionários de 20, os pedreiros livre^ e mações. Os da Congregação, os apostólicos e jesuítas, começaram a fa- zer enérgica propaganda a favor do antigo regimen absoluto e do catholicismo, como seu esteio principal. Elles tornaram a advogar a idéa de se restabelecer o tribunal do Santo Officio, as fogueiras e os autos cie fc% como indispensáveis para se salvar a religião e des- truir-se o espirito do século. Na imprensa e no púlpito pediam a cada momento a cabeça dos liberaes e revolucionários, e pregavam uma matança geral, como a dos christãos novos no tempo de D. xManuel, como a dos albigenses^ a da noite de S. Bartholomeu e a das Dragonadas. Os pedreiros livres illiuninados, os mações e revolucionários, são agentes de Satanaz ; forca e fogueira com elles ! Era uma expurgação geral o que pediam os realistas puros e o que não cessaram de pedir até o reinado de D. Miguel. Este foi o reinado d'elles. Pretenderam expurgar o paiz e a egreja até o ultimo liberal e livre pensador. Não devia escapar nem um só, para que o absolutismo e o catholicismo readquirissem todo o seu primitivo vi- gor. P^lle podia ser semente de onde germinassem novos inimigos do throno e do altar, sempre perigosos e nocivos. Nos paços reaes, nos paços episcopaes, nos conventos, nos quar- téis e nos conciliábulos secretos, os chamados defensores do throno e do altar, da ordem e da moderação, aguçavam os punhaes e pre- paravam as armas com que deviam iniciar a cruzada santa a ía- vor de Deus e dos reis. As quadrilhas de salteadores já estavam faladas; os sicários já andavam de punhal á cinta; nas cidades, villas e aldeias, já esta- vam organisadas essas sociedades de malfeitores que devastaram a F^rança a ferro e fogo. e a inundaram de sangue de tantas victimas. Parte da tropa também já estava falada para a obra de extcrmi- nio. Deus assim o ordenava. Maldição eterna sobre os /'^<^mro5 //- vres illuminados, e sobre os mações, sabidos todos das cavernas do inferno, e auctores da execranda revolução de 1820! O throno e o altar não podiam firmar-se, emquanto existisse um só d'esses ini- migos. Taes eram as idéas e' disposições dos realistas puros, quando o infante sahiu de Lisboa para Villa Franca. O rei, e seus amigos e conselheiros, deviam ser as primeiras victimas. Depois seguir-se- hia o terror branco, a morte e extermínio de todos os revolucioná- rios e liberaes. E eram esses os que mais salientes se mostravam nas accusa- ções contra os excessos dos revolucionários francezes, com os quaes pretenderam desacreditar o regimen liberai e a Revolução ! Carlota Joaquina e o infante D. Miguel exasperaram-se, quando souberam que D. João VI, prevendo o perigo, resolvera collocar-se á frente da contra-revolução. Mais desesperados ficaram, quando viram o rei cercado de Mousinho da Silveira, de Palmella, do conde de Loulé e dos mode- rados. Desde logo perceberam que estes o aconselhariam a oppôr- se aos seus projectos terroristas. A maior parte da tropa que desertou de Lisboa foi na idéa de que se ia estabelecer no paiz o constitucionalismo de Luiz XVIII, ou o realismo constitucional, com a outorga promettida de uma carta. Desde que D. João VI entrou em Villa Franca, pronunciaram-se as divergências entre os realistas puros e os realistas constitucio- naes. Aquelles impelliam o infante a proseguir na sua obra de ter- ror e de expurgação, estes aconselhavam a D. João VI que, por todos os modos, evitasse as scenas de sangue, ou a demagogia do throno e do altar. E preciso advertir que todos os que se viam ao lado do rei e a maioria do exercito pertenciam á maçonaria, que os realistas pu- ros queriam anniquilar, não deixando escapar nem um só de seus membros. D'aqui a natural opposição que elles fizeram ao terror branco, de que seriam as primeiras victimas. No ultimo volume da nossa Historia da Revolução Portugueia de 1820 mostrámos a cruzada que os apostólicos e feotas levanta- ram contra a maçonaria e os mações. D. Miguel e a mãe juraram vingar-se de todos os que abando- naram aquelle em Santarém, e se passaram para D. João \'l. As tropas entraram em Lisboa com ramos de oliveira em signal de paz e de concórdia. Isto obstou á realisação dos projectos terroristas, para a qual estavam organisadas as sociedades e phalanges de ca- ceteiros e de sicários. Bernardo da Silveira, Saldanha e mais com- mandantes das tropas, estavam resolvidos a oppôr-se a quaesquer tumultos, desordens e violências. A entrada do rei em Lisboa realisou-se sem derramamento de sangue, devido ás providencias que os commandantes das forças tomaram, de accôrdo com as auctoridades e camará municipal. A primeira victima do furor dos apostólicos e realistas puros loi o conde de Loulé, assassinado covardemente nos f>aços de Sal- vaterra. D. Miguel e a mãe planearam depois novas revoltas e conspi- rações militares, para deporem D. João VI, que era o maior empe- cilho dos seus projectos terroristas. Foram novamente logrados n'esta tentativa. A policia teve conhecimento dos seus tramas : e quando D. Miguel chegou a Lisboa estavam tomadas todas as me- didas e presos os cabeças da conspiração planeada. Não desanima- ram por isso. D. Miguel inventa uma conspiração da maçonaria contra o throno e o altar; allicia parte das tropas mercenárias; colloca-se á frente d'ellas; prende o pae no paço da Bemposta, bem como os seus conselheiros e amigos Íntimos; dá-o por idiota; e proclama a regência da mãe. Installada que fosse esta começar-sc-hia enião a santa expurgação da egreja e da monarchia. O resultado da Abrilada foi o desterro do turbulento D. .Mi;.,-iicl para Xienna dWustria, o centro das con^j^iraçõcs contra as ideas liberaes e o foco do abscjlutismo e da reacção! Ainda não se deu passo mais incjMo. 1). .Miguel, vcndo-se ao lado de Mcttcrnich c perlo dos sobcra- nos da Santa Alliança, encontrou-se á vontade e podendo de lá au- xiliar a mãe e os apostólicos contra o pae e Palmella. Na Áustria aquelle infante adquiriu poderosos alliados, para res- taurar em Portugal o realismo puro com a extirpação dos liberaes e mações. Assim foi-lhe mais fácil convencer Metternich de que a comedia por elle representada em abril fora um acto sério, e de que em Portugal as lojas maçónicas trabalhavam, realmente, para re- porem as coisas no estado em que estavam em 1820. A corte de Vienna recebeu D. Miguel com todas as demonstra- ções de svmpathia, e reconheceu n'elle o verdadeiro chefe da legi- timidade., em que Metternich queria assentar a Europa e o mundo inteiro, se possível fosse. O infante portuguez poz-se logo em relações com os apostóli- cos da França, da Hespanha e Portugal, e com elles combinou o meio de levar por deante os planos d'essa seita sanguinária. Palmella fez calar os apostólicos efeotas., lançando o paiz na politica abertamente reaccionária, e declarando guerra sem tréguas aos vintistas. Elle proclamou-se acérrimo partidário da legitimida- de, e com isto desconcertou os planos de Metternich a favor da de- posição do fraco e pusilânime D. João VL As potencias estrangeiras começaram a dividir-se na marcha a seguir com respeito aos negó- cios de Portugal. A Inglaterra auxiliava Palmella, seu querido ami- go, por intermédio do qual tornou a dictar leis em nossa casa, de- pois da revolução de 20. A França, ou Luiz XVIII, vendo que D. João VI se pronunciara energicamente contra os vintistas., hesi- tou. EUa nem auxiliou, nem contrariou, os apostólicos efeotas; re- trahiu-se. Só a Hespanha se pronunciou claramente por Carlota Joaquina e D. Miguel ; ella desejava ver a península assolada pelo terror tranco, onde cahissem as cabeças de todos os revolucionários e ma- ções. Em Portugal a opinião publica era pelo partido da moderação, ou do rei. N'este estado de coisas, que enfraqueceu o partido dos apostó- licos, morreu 1). João \'I. Ficava resolvida a questão da deposição que dividia as potencias estrangeiras, á mercê das quaes andou Portugal depois da contra-revolução de i823. D. Pedro era rei estrangeiro, e como tal não podia succeder na coroa de Portugal, segundo o principio puro da Icf^itimidade. O le- gitimo herdeiro era D. Miguel. Os poderosos exércitos da Santa Alliança derogaram o direito que teem os povos para elegerem quem os deva governar. O direito divino e íeudal foi imposto a to- das as nações da Europa. Negando-se ao povo portuguez o direito de eleger o chefe do estado e de decidir a questão da successão de D. João VI, restava só o direito da leí^itunidade pura. E segundo este principio o reino pertencia a D. Miguel. Não tem interesse para nós a ridicula questão de D. Pedro e de D. Miguel. Legitimo é só quem a nação elege. Tão usurpador foi D. Miguel, atraiçoando D. Pedro, que lhe confiou a regência, como 1). Pedro, apoderando-se do throno portuguez, abdicando e no- meando regência, sem a nação ser ouvida nem consentida. E uma nota altamente cómica o direito divino em Portugal, cujas dynastias teem todas uma origem essencialmente revolucio- naria e foram todas levantadas por a vontade nacional. Im descendente de D. João IV, eleito por a nação, com preten- ções a direito divino ! Ainda mesmo no caso de duvida sobre quem era o legitimo herdeiro de D. João \'I, só a nação era competente para a resolver. As coroas estrangeiras não quizeram. porem, isso; cheirava a jo. A ellas sós competia a solução d'esse pleito de família. D^aqui o caracter internacional que tomou a questão entre 1). Pe- dro e n. Miízuel. Os apostólicos e realistas puros tinham a certeza de que os ua- bineies europeus se pronunciariam pelo intante. que na cC)\'W de \'icnna trabalhava n'esse sentido com pn^lcrosos auxiliarei. A morte do rei D. João \'l. não podia \ ir mai^ a proposilo. 1-^ra um dia de março: o frio abria o ap}^eiiie. D. João \ 1. uu- lutãi) como um frade o com os frades educado, ^elo deli:ad i^uaria^. 'lirilia jM^edilecção pelos pratos mai.s gro.sseiro> ; um pum p^ r'.u-:i:e/ dn x-- culo passado, sujo, abandonado, e ordinário nos gostos e maneiras. Sua magestade bonacheirona ria-se muito com as chalaças frescas ; ella mesma tinha seus dictos picantes á maneira de Bocage. A mesa sentia-se bem e conversava animadamente com todos. Era bondoso e aífavel. Foi a Belém merendar, com o mesmo appetite com que os profanos vão hoje ao António das Caldeiradas. O ar do mar abre a vontade de comer. D. João VI sahiu replecto; comeu e bebeu bem. A noite come- çou a sentir-se afflicto ; sobrevieram repentinamente vómitos, caim- bras, diarrhéa e convulsões nervosas. Os médicos classificaram a doença de indigestão ; pelo povo e cidade correu logo que fora en- venenado. Isto passou-se no dia 4. No dia 5 peorou, por cujo mo- tivo confessou-se e sacramentou-se. Palmella, e todos os que eram partidários do rei, conheceram a sorte que os esperava, se a regência passasse para as mãos da vingativa Carlota Joaquina. A desforra do seu desterro para a quinta do Ramalhão, do desfecho da Villafrancada e do desterro do filho, seria cruel. Por isso aquelles não descançaram, emquanto não ar- rancaram do rei enfermo o decreto da regência. Este foi assignado no dia 6, em que foi administrada ao doente a Extrema-Uncção, depois de um violento ataque ás quatro horas e um quarto da tarde. No dia 7 appareceu na folha official o decreto para a regência, que foi confiada á infanta D. Izabel Maria, com um conselho com- posto do patriarcha eleito, do duque de Cadaval, do marquez de Vallada, e do conde dos Arcos, com a presidência da infanta. Esta regência teria vigor ainda depois da morte do rei, «em- quanto, diz este, o legitimo herdeiro e successor d'esta coroa não der as suas providencias». Além d'aquelles membros da regência, haveria secretários de estado. Foram nomeados : conde de Bar- bacena (Francisco) para a pasta da guerra ; conde de Murça, fazen- da: Joaquim Monteiro Torr.es, marinha; José Joaquim d'Almeida Araújo de Lacerda, reino ; Fernando Luiz Pereira de Sousa Barra- das, justiça. N'estc dia os boletins médicos annunciaram sensíveis melhoras do rei, as quaes continuaram até ao dia g. em que foi novamente accommettido por anciãs, vómitos e convulsões nervosas ; tornou a melhorar; mas no dia seguinte voltaram os mesmos symptomas com mais violência ; e não cederam aos medicamentos. Eram 4 horas e 40 minutos da tarde quando o rei expirou. O cozinheiro Caetano cahiu de repente e íalleceu ; em seguida o medico, o barão de Alvaiázere, e após este o cirurgião Aguiar, que trataram do rei. Dizem uns que este ultimo fora assassinado, e ou- tros que se suicidara com remorsos de ter propinado o veneno ao seu bemfeitor. É provável que fosse também outra victima. O medico e o cirurgião podiam ter occultado a causa verda- deira da doença, por considerações politicas, o que acontece tantas vezes nos paços reaes. Seria perigosa a existência dos dois. As lu- ctas politicas iam ser bem acesas d'ahi por deante. Que segurança havia em que qualquer d'aquellas três victimas não desse á lingua ? Quem assassinou á traição o conde de Loulé, tinha bastante bojo e expediente para mandar dar cabo d'aquellas três existências perigosas. O que é certo é que o rei falleceu no meio de symptomas de envenenamento, e que com elle mysteriosamente desceram á se- pultura mais três victimas. Os auctores do bárbaro terror branco do reinado miguelino eram capazes de tudo; nunca recuaram deante do crime. Os seus prece- dentes, os seus actos futuros, e toda a sua vida, justificam as sus- peitas de crime na morte do rei, tão a propósito dos seus planos. Não conspiraram tantas vezes contra elle!* não tentaram desthro- nal-o tantas vezes!' não o prenderam brutalmente na Bemposta!' e não quizeram dal-o por idiota !' Quem faz isto, é capaz de muito mais. Muitos aííirmaram que leram cartas cm que de Lisboa partici- pavam a doença e a morte do rei dias antes da merenda de Be- lém ! Muitos factos indicam que a rainha já por essa occasião tinha comprado alguns regimentos da guarnição de Lisboa c das provín- cias, para proclamar rei o lilho D. Mi-^uel, entrando cila na rc- i;encia. Carlota Joaquina, que não cspera\a qvie o rei tives.se tempo de 10 dispor da sua vontade, ficou furiosa, quando teve conliecimento dos decretos do dia 6. Bateu o pé; injuriou o marido, ainda depois de morto, e ficou mais sedenta de sangue dos seus contrários. Nunca mandara saber da saúde do marido, nem d'elle se despediu ! Essa defensora da religião fez espalhar que o rei já no dia 4 es- tava morto, sendo por isso o decreto para a nomeação da regência um documento falso e, portanto, illegal. É provável que ella espe- rasse que o marido fallecesse n'esse mesmo dia. Não deixa de ser digna de reparo essa aííirmativa de Carlota Joaquina. Devemos dizer que tanto a regência, como os secretários de estado nomeados, compunham-se de homens de differentes parcia- lidades, até alguns eram partidários do infante. O partido liberal é que não figura ahi. Apesar d'isto, a rainha desesperou-se e protes- tou contra as ultimas vontades do marido, que tentou annullar. Queria a regência para si. A morte do rei veiu exacerbar ainda mais os partidos, sobre- tudo por causa da questão da successão, que logo se levantou e com ella a da regência. Realistas puros, realistas constitucionaes e liberaes, preparavam-se para virem ás mãos. O paiz agitou-se e al- voroçou-se ao ultimo extremo. Os realistas puros queriam que D. Miguel fosse logo acclamado como legitimo herdeiro ; os realistas constitucionaes que se aguar- dassem as ordens de D. Pedro, e os liberaes puros que se convo- cassem as cortes geraes de 20, para decidirem a questão. A regência e os ministros resolveram enviar uma deputação ao Brazil, para dar os pezames a D. Pedro e felicital-o pela sua eleva- ção ao throno. Partiu no dia 16. \o dia 20 a regência publicou um decreto, ordenando que a administração da justiça e a expedição dos negócios se fizessem d'ora avante em nome de D. Pedro, rei de Portugal, e que a moeda se cunhasse com a eííigie d'elle. Ao mesmo tempo, regulou o formulário que se devia usar nas leis e nos actos públicos, de accordo com o novo soberano. Eram as conse- quências necessárias da nomeação da regência por D. João VI, que cvideniemente desejou afastar do throno e da regência o filho D. Mi- uuei e a esposa, apesar de não ter declarado claramente quem era 11 o legitimo herdeiro. Todos os factos comprovam que o rei se incli- nara para D. Pedro. Esperava-se de um momento para outro algum passo audacioso da parte do partido realista, que não descançava. A rainha viuva entabolou negociações com a Hespanha e mais paizes, para se an- nullarem os decretos do marido. D. Miguel, em Vienna d'Austria, trabalhava n'esse sentido. Os realistas constitucionaes e os liberaes contiveram-se ante a altitude ameaçadora do inimigo commum, ou dos realistas puros. A deputação chegou ao Rio no dia 24 de abril. D. Pedro, déspota e auctoritario, andava envolvido na lucta contra os liberaes, que não queriam sujeitar-se ao seu jugo, nem d'elle receber leis e imposições. Os brazileiros breve reconheceram que o partido realista levan- tou a questão da independência, para lhes impor o regimen abso- luto e o direito divino, contra a democracia das cortes de Lisboa. Mal se separaram de Portugal, viram perdidas todas as suas liber- dades. Foram governados a cacete e trabuco pelos Bonifacios e ou- tros auctores da independência ! D. Pedro e seus conselheiros e amigos Íntimos não quizeram ver no Brazil a democracia. Esta era n'elle tão guerreada como na Europa. Já SC achava acesa a lucta da democracia brazileira contra o monarchismo de D. Pedro e suas tendências naiuraes para o abso- lutismo, quando chegaram ao Rio as noticias de Portugal. D. Pedro, arrogante, soberbo e senhor da sua vontade, mais uma vez experimentou as consequências dos seus erros e desman- dos. Era alto, esguio, sOcco de corpo e de espirito. Testa alta, rosto moreno e picado das bexigas, barba grande e preta, aspecto arro- gante e altivo. Não era destituido de intelligencia, como os outros filhos de D. João VI ; tinha pouca instrucção e escrevia mal. O seu estylo in- correcto e rude caracterisa-o bem. D. Pedro herdara da mãe os maus instinctos. l->a duro Je co- ração. Desde creanca deleitara-se com as touradas e corridas de 12 cavallos, em que maltratava os pobres animaes. Com o mano D. Miguel corria a chicote quem nas ruas do Rio de Janeiro lhe não tirava o chapéo, ou se não apeava, quando elle passava. Me- díocre, julgava-se com talento; ignorante, suppunha que tudo sabia e que a sua opinião devia prevalecer sobre as mais. Tinha o defeito de todos os reis : acreditava-se indispensável. Poucos príncipes tiveram, como D. Pedro, uma corte de tantos sabujos e aduladores. O partido realista do Rio cercou-se logo d'elle ; e por meio de incensos e lisonjas arrastaram-n'o para a causa da independência contra a pátria e o pae. Bonifácio e seu partido de ambiciosos é que fizeram de D. Pe- dro um déspota e ambicioso. Conquistaram-n'o e lançaram-n'o no caminho da traição por meio do elogio, e despertando -lhe, quer a ambição do poder, e quer as suas tendências despóticas. D. Pedro não era homem de affeiçóes; nunca amou, nem, as mu- lheres com quem casou, nem os próprios filhos. Era tão despegado da familia, como da pátria. Uma só ambição o dominava : a do po- der e do mando. Governar era a sua paixão. Também não era de generosidades, como o pae. Foi ingrato a todos os que o servi- ram e o adularam. Duro e rispido nos modos, na physionomia e no trato intimo, não foi dedicado a ninguém, nem accessivel ao sentimento da ami- sade. Via a todos como vassallos, e julgava que toda a dedicação que lhe consagravam os seus admiradores era um dever de súbditos, um dever de vassallagem. Por isso pagou mal a quem o serviu com dedicação. Para reinar e mandar, D. Pedro não recuava deante dos meios ; saltava por cima de tudo. No Brazil mandou assassinar milhares de portuguezes ; confiscou-lhes os bens : e correu a chicote os sol- dados que não quizeram, como elle. atraiçoar a pátria. Para adu- lar a Grã-Bretanha e os brazileiros, maltratou e humilhou o pobre do pae no tratado para a independência do Brazil. Negociou com o> agentes de D. João VI, como se negociasse com uma potencia inimiga I 13 E para assentar na sua cabeça de 20 annos a coroa imperial e tomar o sceptro do grande império, que os seus admiradores equi- pararam ao império romano, chamando ao Rio a Roma da Ame- rica, não duvidou atraiçoar a pátria e pegar em armas contra ella ! Tal é este novo personagem que d'aqui por deante vae entrar na scena da politica portugueza. D. Pedro conheceu logo a situação em que o coUocaram os seus próprios actos irregulares, e as suas desmedidas ambições. Subi- tamente viu-se successor da coroa portugueza, a quem atraiçoara e a quem humilhara ; e subitamente foi chamado a vir governar os portuguezes, a quem maltratara e a quem insultara em procla- mações, cartas e manifestos ! A sua posição era realmente me- lindrosa. Se D. Pedro vinha para Portugal, perdia o Brazil ; se ficava no Brazil, perdia Portugal. Ainda outra ditíiculdade se lhe apresentou. Como devia assumir a realeza entre portuguezes ? Se a coroa pas- sasse para elle sob o regimen absoluto, mostrava claramente aos brazileiros que elles tinham rasão, quando o accusavam da sua ten- dência para o absolutismo. Seria conveniente e possível que reu- nisse em si as duas coroas? Os brazileiros e portuguezes consentil- o-hiam ? Restava o recurso da abdicação. Em quem'.' No filho D. Pedro, e vir para Portugal, ou na filha D. .Maria 11, e ficar no Brazil? Mas n"este caso, ainda subsistia a duvida, se a abdicação devia, ou não ser com os direitos absolutos que herdara do pae. Se D. Pedro abdicasse n'estas condições, mostrava da mesma maneira aos brazileiros que não amava o constitucionalismo, e que só o aceitava forçado pelas circumstancias. Não se podia ser ao mesmo tempo constitucional no Brazil e déspota em Portugal. A abdicação simples e pura, e sem o regimen constitucional, era um passo imprudente e perigoso para D. Pedro, que não que- ria perder o Brazil, nem aggravar a lucta com o partido liberal e democrático. Esse passo seria a mais completa justilicação d'esle partido, l^ara o dar, só restava a 1). Pedro um unico meio : abdi- car da coroa brazileira e vir para Portugal. 14 Já vêem nossos leitores que o regimen constitucional impunha- se fortemente a D. Pedro, que ainda esperava conquistar a estima dos brazileiros. D. Pedro não fazia nada sem consultar os 'seus amigos ingle- zes, a quem devia a coroa imperial. Mandou chamar lord Stwart para o ouvir acerca da sua conducta e com elle resolver a sua si- tuação dirticil e complicada. — Vossa Majestade, lhe disse o ministro inglez, não pode reunir as duas coroas. Tem a escolher, ou ser imperador do Brazil, ou rei de Portugal. — Se Portugal, lhe respondeu o príncipe, é minha mãe, o Bra- zil é meu filho, prefiro ficar braiileiro. — N'esse caso, não resta a Vossa Majestade senão abdicar. E para fazer valida a sua abdicação é precisa a convocação das anti- gas cortes do reino. Por este modo resolvem-se as difficuldades. — Prefiro, lord, dar uma carta constitucional aos portuguezes, a fim de lhes reconquistar a estima e amisade, para, no caso de a guerra do sul se encaminhar mal, obter soccorros militares de Por- tugal. — Os portuguezes, senhor, são um povo ignorante, atrazado, e um povo de escravos. Não merecem a liberdade, nem a compre- hendem. A Inquisição bestificou-os. Attenda Vossa Majestade a que, se a convocação dos três estados já excita a desconfiança da França e da Hespanha, uma carta liberal vae irrital-as ao ultimo ponto. Sou contrario a essa idéa. — Veja, lord, que não posso deixar de mostrar aos brazileiros que sou monarcha constitucional. Não devo abdicar direitos abso- lutos, nem acceital-os ; porque isso é denunciar-me perante o Bra- zil. Darei novos protestos ao partido revolucionário, para me accu- sar de tender para o absolutismo. — Mas Vossa Majestade dá mostras de querer subordinar-se á vontade nacional convocando as antigas cortes. — Não obstante, replicou-Ihc D. Pedro, dar muito peso ao vosso alvitre, não acho prudente adoptal-o, por uma razão bem simples : Quem impedirá que os estados, como na França, se con- 15 vertam em cortes soberanas e constituintes? N'este caso, disse em tom altivo, prefiro dar a carta aos portuguezes, do que expor-me á humilhação d'elles m'a darem, como fizeram a meu pae em 1820. Stwart confessou-se vencido ante estas razões de D. Pedro. Elle convenceu-se de que a outorga de uma carta constitucional se impunha fortemente, e que não podia deixar de ser condição essencial da abdicação. O mesmo lord, porque D. Pedro lhe falou na maldicta épocha de 20, achou bem fundados os receios d'elle ; e não insistiu na convocação das antigas cortes. Com eífeito, depois de 20, a reunião dos três estados em Por- tugal era fóssil. Não havia senão dois meios : ou D. Pedro outorgar a carta á moda de Luiz XVIII, ou convocarem-se as cortes de 20, para reconhecerem D. Pedro e darem ao paiz nova constituição. D. Pedro, como príncipe de raça, não queria ouvir falar em cortes constituintes ou soberanas ; não soífria que a nação lhe im- pozesse a constituição politica e lhe desse leis. Isto era humilhante. São bem conhecidas as cartas insultantes que dirigiu ás cortes de 20 e o ódio que sempre lhes votou. Também é bem conhecida a guerra que D. Pedro fez sempre á soberania nacional, a qual o manteve em permanente lucta com os brazileiros. Não podendo abdicar sem se mostrar rei constitucional, prefe- riu, como elle disse, outorgar a carta, a que a nação portugueza lh'a imposesse com ofTensa dos direitos da coroa, ou da soberania regia. Stwart cedeu, e Canning apoiou muito as palavras do impera- dor. Nada de se voltar a 20. Ficou resolvido que D. Pedro se conservasse brazileiro e no F)razil; que abdicasse em sua lilha O. Maria II, e que outorgasse uma car- ta, não somente para ganhar a estima dos portuguezes, e d'el!es re- ceber apoio para a guerra contra o sul ; mas também para signilicar aos brazileiros que era monarcha constitucional e não tinha predi- lecção pelo regimen absoluto, como era accusado justamente. A 2() de abril, já a carta con.slilucional eslava concluída e ou- torgada I Foi dictada sob as vistam Je lord Siwarl I 1] em cin^o dias .se reconstilue uma nação; dá-se-lhe nova f(')rma politica: estabele- 16 cem-se os poderes do estado e regulam-se direitos importantes de um povo! No dia seguinte á outorga da carta, o imperador constitue a ca- mará dos pares com a alta aristocracia e o alto clero. O duque de Cadaval é nomeado presidente e o patriarcha eleito vice-presiden- te. Os próprios amigos e partidários intransigentes do infante D. Mi- guel são feitos pares, o duque de Cadaval, o marquez de Chaves, o marquez de Abrantes, o conde de Barbacena, o visconde de Bal- semão, etc. ! E queria D. Pedro que estes se não pronunciassem pela causa do irmão! Desejava ganhal-os".* Demência. A 26 de abril abdica o imperador do Brazil da coroa de Portu- gal na íilha D. Maria II. N'esse decreto serve-se de uma linguagem própria de rei abso- luto. Diz elle que abdica de todos os seus indisputáveis e inaiiferi- j'eis direitos á coroa portugueza e da soberania doestes reinos na pessoa de sua filha. Eram as pretenções de Luiz XVIII, que declarou terminante- mente aos francezes que em si residia a soberania inteira da nação, e que não devia o throno ao povo francez, mas aos seus antepas- sados, aos seus avós. No mesmo decreto, declara, no emtanto, o imperador que a ri- lha não sahirá do Brazil, sem que lhe conste officialmente o jura- mento da carta, e que os esponsaes do casamento d'ella com D. Mi- guel estejam feitos e concluídos. Tudo uma serie de disparates. D. Miguel, a quem assistiam ra- sões poderosas para ser o legitimo successor, sujeitava-se a ser sim- ples esposo da sobrinha, declarada rainha de Portugal? O pleito de família não se resolvia com um simples casamento, em que um dos contendores tomava logar secundário. Esse casa- mento era humilhante para D. Miguel. A questão da successão não podia ser resolvida senão, ou por as mais famílias reinantes da Europa, ou pelas armas, ou por meio de ci'»rtes, ou por meio da traição, como o foi. D. Pedro, até a usurpação do irmão, desejou conquistal-o por 17 meios bem pouco conducentes a isso. Nem o casamento com a rai- nha, nem a regência, resolviam por si um direito contestado. Em- quanto D. Miguel não se convencesse de que não era o legitimo herdeiro, todos os expedientes eram inetíicazes. O casamento nada resolvia ; a regência foi um passo inepto. Diz muito bem José Liberato Freire de Carvalho que, em vista dos factos succedidos e das circumstancias em que se viu collocado D. Pedro, toda a pessoa desapaixonada e sem prevenção ha de con- cordar que, se D. Pedro outorgou a carta, não foi para dar aos por- tuguezes um certo grau de liberdade, despido do poder absoluto em que elle/ôra educado^ mas por uma necessidade politica. D. Pedro com a outorga da carta não somente esperava obter tropas de Portugal para a guerra contra o sul e o partido revolu- cionário ; mas com isso creava também em. Portugal um partido contra o irmão, e conquistava a classe media, em que imperavam as idéas liberaes. Os vintistas^ ou democratas, soífreram atroz desillusão com a intervenção das coroas europêas em os negócios da peninsula. A invasão dos 100:000 francezes na Hespanha desanimou-os. A con- tra-revolução mostrou que os thronos eram mais fortes que os po- vos. Por este motivo, não deixariam de aceitar de bom grado a carta constitucional, que já D. João VI tinha promettido. O realis- mo constitucional era sempre preferível ao terror branco, com que sonhavam os realistas puros. Do mal o menor. Agora vejamos o que é esse código politico feito em poucos dias, por um rei estrangeiro, n'um paiz estrangeiro, e dictado por um estrangeiro, inimigo eterno de Portugal. A carta constitucional de D. Pedro tem o cunho do absolutis- mo de onde emanou. I.' filha da Santa Alliauça. da IcLiitiinidadc. do direito divino e feudal, ou do rei oonsidcrando residente em si a soberania inteira da nação. F]ssa carta foi modellada pela de Luiz X\'lll, que D. Pedro quer imitar em tudo, e cujas expressões não cessa de repetir c de reproduzir quasi ipsis rcrbis. O direito politico franccz e a ligura de Luiz XVIII quadravam mais ao caracter altivo e soberbo de O. Pedro. 18 O imperador do Brazil julgou-se senhor absoluto do reino de Portugal, ou que a soberania d'este toda inteira lhe pertencia de di- reito e de facto, ou por direito divino e senhorial. Imitando os anti- gos reis absolutos e feudaes, por si só exerceu o direito de sobe- rania, e, sem conhecer Portugal, de onde se ausentara tão novo, creou todos os poderes do estado ; regulou-os ; deu-lhes, a seu ca- pricho, as suas attribuições próprias, e marcou-lhes os limites ! O poder legislativo, o executivo, o moderador, o judicial e a organi- sação dos municípios, tudo emana da pessoa do rei, que se arvora em chefe supremo do estado e da nação! Em 1820 a constituição dos poderes políticos, as suas attribui- ções, os seus limites, as suas relações mutuas, a organisação dos municípios e os direitos dos cidadãos, tudo foi obra das cortes so- beranas, filhas de eleição popular e nacional. Terminada a sua obra, as cortes dissolveram-se. D. Pedro estabelece por si só a organisação politica do paiz e, como rei e chefe do estado, fica senhor absoluto de todos os mais poderes que emanaram da sua própria pessoa! O preambulo da carta imprime-lhe perfeitamente o cunho do direito divino e feudal, ou do regimen absoluto que n'ella se con- tém occultamente. E uma imitação do preambulo da carta de Luiz XVIII. Diz elle : «Z). Pedro, por graça de Deus, rei de Portugal e dos Algarves^ ctc. Faço saber a todos os meus súbditos portugueies que sou servido decretar, dar e mandar Jurar immediatamente pelas três ordens do estado, a Carta Constitucional abaixo transcripta, a qual d'ora em deante regerá esses meus reinos e dominios f» Compare-se esse preambulo com o da constituição de 20. O contraste não pode ser mais frisante. Conhece-se immediatamente os dois systemas políticos tão oppostos ; um filho do direito divino c ícudal e do puro monarchismo, e outro filho da democracia, ou da soberania nacional. 19 Em 20 foi a nação que decretou por si mesma a constituição politica e regulou os poderes do estado; o rei jurou perante a mesma nação, como delegado d'ella. Em 1826 o rei foi quem decre- tou a lei fundamental do estado, regulou todos os poderes políticos c mandou jurar immediatamente a carta de alforria, que foi servido decretar e dar aos povos dos seus reinos e dominios. No primeiro regimen politico a nação outorga; o rei jura; no segundo a nação jura e o rei outorga. E que n'este ultimo a nação não é realmente soberana. Soberano só é o rei, de facto e de direi- to. São consequências legitimas do direito divino e feudal, que os reis de Portugal arrogaram a si. Nos systemas das constituições só a nação c soberana, nos sys- temas das cartas feudaes a soberania reside toda inteira nos reis. Dois systemas inteiramente oppostos. As cartas, dictadas por soberanos absolutos e exercendo elles sós o direito augusto da soberania, hão de fatalmente ser absolutas no fundo. E o que acontece e o que tem acontecido em toda a par- te em que ellas se pozeram em pratica. O reinado de Luiz X\'III c caracteristico. O poder legislativo, o poder moderador, o poder executivo, o poder judicial, e a organisação administrativa, incluindo os muni- cípios, partem da pessoa do rei, a quem de facto e de direito per- tence a soberania da nação, como se realmente fosse um rei abso- luto. Cada um dos poderes do estado tem as attribuições que os reis querem, e lhes concedem por sua alta recreação ! Na constituição de 20 todos os poderes derivam da soberania nacional una e indivisivcl, e a nação não é património de ninguém e de nenhuma família, como ella mesma diz no artigo 2 0." Na carta constitucional a soberania e a nação são património dos reis e da família reinante, tal e qual como no antigo regímen. A carta constituiu quatro poderes : o legislativo, o moderador, o executivo e o judicial; quatro poderes, de que o rei c a cabeça única. Diz ingenuamente o artigo 71." da carta que o poder moderador c a cJiarc de Ioda a oi-iumisaçdo poliiica. c coniydc ao )\'i. conio chefe 20 supremo da nação, para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência^ eqidlibrio e harmonia dos mais poderes politicou 1 Levantou-se a ponta do véu com que o dador da carta occul- tou o regimen absoluto, a que ella se reduz no fundo e na essência. O rei é a chave de todo o systema ; quer dizer : este está todo nas mãos d'elle. E realmente assim acontece, e nem podia deixar de acontecer. Não é elle a soberania inteira da nação ? O rei está collocado tão acima dos mais poderes, que é elle o fiel da balança, aquelle que vela incessantemente pela manutenção, equilíbrio e harmonia de todos elles ! Querem-n'o mais claro ? Agora perguntaremos nós : Sendo inherentes a todos os reis e á sua alta gerarchia as ten- dências para o abuso do poder, como a historia universalmente o confirma, quem ha de impedir que elles se intromettam nas attri- buições dos mais poderes, rompam a harmonia e equilíbrio de to- dos? E quem ha de impedir que elles com sua auctoridade queiram exercer pressão sobre os mesmos poderes? Esquecíamos de que Benjamin Constant sustenta que os reis não podem prevaricar, que são todos rectos, justos e de puras in- tenções, uns anjos; Kant é também da mesma opinião. Luiz XI, Fernando e Izabel, os catholicos, Catharina de Medí- eis, Filippe II, Fernando VII de Hespanha, Izabel II, Luiz XVIII, Carlos X, Luiz Filippe, Napoleão III, Affonso VI, D. João V, D. João VI, Carlota Joaquina, etc, etc , todos estes reis foram mo- delos de virtude, espíritos rectos, pessoas justíssimas e sãs, almas cândidas e reis exemplares. L'm rei não abusa. Isso pode lá ser? Quem. o diz? Os perver- sos e mal intencionados dos republicanos. São todos muito boas pessoas e não são capazes de abusar da sua alta gerarchia e posi- ção. Entregue-se-lhe a chave de toda a organisação politica ; sejam o fiel da balança, e velem incessantemente pela harmonia e equilí- brio dos mais poderes do estado, que tudo irá muito bem. Os reis são a imagem de Deus na terra. 21 Quem diz que Fernando VII de Hespanha conspirou tantas ve- zes em palácio contra os poderes constituídos pela constituição de Cadix? São falsidades dos republicanos. E D. Maria II conspirou, porventura, em Belém, e em 6 de outubro de 1846, no seu palá- cio? São historias ; nada d'isso aconteceu. Napoleão I e Napoleão III também não fizeram e desfizeram parlamentos á sua feição. Nunca se impozeram aos mais poderes, nem tiveram o vicio do mando. Os reis não abusam. O poder moderador com attribuições legislativas, executivas e judiciaes, e estando acima dos mais poderes, assoberba-os e do- mina-os fatalmente. O rei c tudo, reina e governa de facto e de di- reito. O contrario é uma falsidade, com que se tem enganado os tolos e os ingénuos. O rei nomeia a camará alta, a suprema magistratura do poder legislativo, com a qual reage á camará popular; o rei nomeia os ministros e todas as auctoridades do poder executivo, de que é che- fe; o rei nomeia os juizes de i.', 2.', e 3.' instancia, o rei nomeia todas as auctoridades administrativas, suas delegadas e pertencen- tes ao poder central, que invade a cada instante as attribuições dos municípios, sem independência e autonomia; o rei nomeia os commandantes das forças de mar e terra, o corpo diplomático, as auctoridades ecclesiasticas, todos os funcclonarios públicos e do es- tado. As sentenças judiciaes são dadas em nome d'elle. Que mais querem ? O rei nas cartas é a suprema auctoridade, em que se reforçam todas as leis e todos os actos da vida publica. Diz muito bem Luiz Wlll, no preambulo da sua carta, que a auctoridade real é que dá d lei e instituições a força, permanência e majestade de que se devem revestir, para serem solidas e está- veis. \l o que acontece com a carta de D. Pedro. Tudo c^tá disposto para que essa auctoridade, como a soberania única da nação, esteja presente em tudo e a ludo assista na \ida politica, para ilie dar for- ça, energia e vigor. É a alma do .sxstcma. o ponto central em volta 22 do qual giram todos os poderes do estado, e o centro de reunião de todos os súbditos, ou vassallos. A carta estabeleceu um conselho de estado, para ser ouvido em todos os actos mais graves do poder moderador. Na constitui- ção de 20 esse conselho é electivo, e muitos deputados foram ainda assim contra elle ; na carta quem o nomeia é o próprio poder mo- derador! O rei não é tão idiota que nomeie para seus conselheiros pes- soas que lhe contrariem as vontades. Elle tem o cuidado de esco- lher quem lhe seja mais affeiçoado e obediente. Não se pode espe- rar que elle não se opponha a nomear homens independentes e mesmo aífectos ao principio democrático. O conselho de estado, constituído como é pel-a carta, ha de ser sempre composto da elite dos monarchistas. E^ssa instituição fóssil é um ridículo e contra-senso ; não tem razão de ser, sobretudo sendo nomeada pelo próprio a quem deve aconselhar. Que independência pode ter um conselheiro de estado nomea- do pelo rei, deante da vontade do mesmo rei ? Além d'isso, este não é obrigado a seguir as deliberações do conselho de estado; procede como entende. A carta começa pelo poder legislativo, quando devia acabar por elle. Esse poder é o ultimo segundo o regimen cartista, em- quanto é o primeiro na constituição de 20 e nas mais constituições essencialmente democráticas. Os principaes e mais importantes poderes da carta monarchista são o moderador e o executivo. O rei, como vimos, exerce elle só a soberania nacional, que n'elle reside toda inteira. E elle que tem direito de fazer a lei fun- damental do estado e de constituir os poderes políticos. A nação nada tem com isso; não é soberana. No exercício do poder moderador, que lhe compete privativa- mente, o rei nomeia os pares, ou a segunda e ultima instancia do poder legislativo; convoca as cortes extraordinariamente; impõe o seu veto absoluto ás decisões das cortes; proroga estas; addia-as. 23 e dissolve a camará baixa ; nomeia e demitte livremente os minis- tros, ou o poder executivo, suspende os magistrados, ou auctorida- des do poder judicial ; perdoa e minora as penas impostas por este poder e concede amnistias ! Como chefe do poder executivo, e por meio dos seus ministros, convoca as cortes ordinárias ; nomeia bispos, e provê os benefícios ecclesiasticos ; nomeia as auctoridades do poder judicial, os com- mandanies da força de terra e mar, os embaixadores e agentes di- plomáticos ; provê os empregos civis e politicos ; faz tratados de alliança, de subsidio e commercio; declara guerra e faz a paz ; concede titulos, honras e mercês ; expede os decretos, instrucções e regulamentos das leis; e provê a tudo quanto for concernente á segurança interna e externa do estado. Também exerce o bene- plácito régio. Já vêem os nossos leitores quanto o poder moderador e o exe- cutivo pesam esmagadoramente sobre a nação è os mais poderes politicos. A carta não o diz, mas de facto cria um quinto poder, o mi- nisterial. Os ministros de estado são revestidos do alto poder que exerce o rei, de quem são os secretários. Os ministros da confiança da coroa ficam com o rei na barriga, como se diz vulgarmente. E teem razão. O rei é tudo ; é a per- sonificação da soberania nacional, ou mais do que isso, porque a soberania é para elle um direito feudal e de origem divina. Os ministros da coroa teem a consciência de que só o rei tem força. E como são elles que a exercem, como delegados da con')a, fazem-n'a sentir em todos os seus actos e sobre todos os mais po- deres. Ninguém mais arrogante, altivo e intromcttido, do que um ministro de estado nos regimens das cartas. Quer ser tudo como o rei. que n'elle depositou confiança. Os ministros são reis pe- quenos. Elles desejam impôr-se aos parlamentos, ao poder judicial, aos municípios, ás escholas do reino, finalmente, a todos os poderes do estado, a todas as auctoridades e em tudo. 24 E como não pode deixar de assim acontecer, se elles são, de fa- cto, os delegados da única soberania da nação, ou da coroa? O poder e arrogância d'esta transmittem-se naturalmente aos seus mi- nistros. Estes dictam as leis aos parlamentos, aos tribunaes, aos cor- pos administrativos, inclusivamente aos de eleição popular, ás es- cholas publicas, aos hospitaes, mizericordias, azylos, que sei eu ? Em tudo mettp.m o nariz e em tudo se intromettem. Esses ministros de estado não soffrem resignados a menor op- posição aos seus actos. Temos a confiança da coroa, respondem el- les muitas vezes. Ninguém tem mais tendências para o abuso do po- der nem para os desmandos. Os ministros, como delegados do rei, ou da soberania, querem ter nas suas mãos a chave de toda a organisação politica ; é fatal. A responsabilidade ministerial é uma burla da carta ; não existe de facto, nem jamais existiu em paiz algum. Essa responsabilidade é incompatível com o regimen monarchico, ou de um só. O rei reina e governa; e de facto só elle governa. Os processos contra os mi- nistros não fariam mais do que pôr bem a descoberto a interferên- cia do monarcha em todos os actos da vida politica. As accusaçôes contra os ministros iriam cahir immediatamente sobre o rei. Por esta razão, ainda até hoje, se não publicaram em paiz algum leis de responsabilidade ministerial. A carta constitucional portugueza tem 65 annos de existência. E ainda se está á espera da tal lei ! Os processos contra os ministros da coroa viriam denunciar es- cândalos, que se tem pretendido evitar, até hoje. São perigosos; não conveem. Por este motivo não se tem tornado eífectiva a res- ponsabilidade ministerial. O rei é irresponsável, os ministros são irresponsáveis e todos os delegados de confiança dos ministros, são portanto, egualmente irresponsáveis. E o verdadeiro regimen das irresponsabilidades. D'aqui os escândalos, os abusos, a immoralidade, o desleixo e a péssima administração dos regimens cartistas. Não ha a quem pedir contas. Todos estão sob a capa da irresponsabilidade do rei c dos seus ministros. 25 E note-se que, no dizer capcioso dos constitucionalistas, o segredo do seu systema está exactamente na responsabilidade dos minis- tros. Dizem elles : O rei reina, mas não governa ; governam por elle os ministros, que são os responsáveis por seus actos. Ora se esta responsabilidade não se torna, nem se pode tornar effectiva, que peso tem similhante argumento ? Quem governa e reina ? Os rei scom os seus ministros irresponsáveis de facto! Se a base do systema está, com effeito, na responsabilidade mi- nisterial, pela qual o rei reina, mas não governa, elle cáe por terra, logo que essa responsabilidade se torna uma ficção. São tantos os sophismas das cartas outorgadas que dariam margem a um grosso volume. Agora entremos no poder legislativo. É aqui que saltam as con- tradicçóes, os absurdos e as incoherencias. Como vimos, toda a soberania da nação reside na pessoa do rei, gosando de todos os privilégios do direito divino e feudal. É n'essa auctoridade suprema, e constituída por graça de Deus, que se reforçam todas as leis e instituições, e todo systema poli- tico. Se elle é o único soberano, como o pode ser ao mesmo tempo a nação? Duas soberanias é que não podem coexistir; a soberania do es- tado é uma só. Nas constituições só a nação é soberana, e o rei delegado d'ella ; nas cartas são os reis que exercem de direito e de facto a soberania do estado, que elles consideram emanada do céo e não da terra, e um direito feudal, ou inherente ao que elles cha- mam seus reinos, dominios e senhorios. Estes reinos, dominios e se- nhorios são os povos e as nações ! Politicamente falando, os povos são vassallos dos reis, segundo os regimens das cartas essencialmente monarchicas. Nunca os reis constitucionaes se consideraram delegados do povo. É por causa d'isso que todos, sem excepção, teem derribado, até hoje, as constituições feitas pelos povos, essencialmente de- mocráticas. Elles entendem que a elles somente compete o exer- cício augusto da soberania do estado, esse direito originário de to- das as leis e instituições. E sem isso não se comprehende a realeza 26 e as dynastias, o direito divino e os privilégios do feudalismo, que não foram abolidos para as casas reinantes. Nos regimens genui- namente monarchicos os reis não podem deixar de ter o privile- gio do direito mais augusto e elevado de um estado, ou de um povo. Sendo isso uma verdade incontestável, e confirmada por toda a historia contemporânea da Europa, que ridiculo e absurdo ad- mittir-se que a nação exerce a soberania conjunctamente com o rei! Monarchia representativa é um absurdo e contrasenso. Representativa de quem ? Os reis são, porventura, representan- tes do povo? Nunca o foram, nem hão de sel-o. Os regimens monarchicos não comportam senão cortes consul- tivas. Portanto forçoso é que as cartas reduzam os parlamentos a essas mesquinhas condições. Vejamos como. E certo que os reis se viram embaraçados com a concessão dos parlamentos. Elles não podiam apparentemente tornal-os cor- pos meramente consultivos, porque isso era irritar o espirito li- beral do século. Urgia, portanto, sophismar por todos os modos a representação nacional, de maneira que ella não fosse uma reali- dade. E eis o que acontece, effectivamente, nos regimens das car- tas outorgadas. Em primeiro logar, o rei entendeu muito bem que devia exer- cer funcções legislativas. Para isso creou a camará dos pares por elle nomeada, e a seu arbítrio. A essa camará entregou as mais im- portantes funcções do poder legislativo. Basta dizer que é a segun- da instancia d'ebte. Sendo este corpo filho da auctoridade real, divina e feudal, exi- gia que fosse constituído só pelo alto clero e a alta nobreza. Re- presenta fielmente a soberania augusta dothrono; por este motivo foi revestido de privilégios, de honras, de dignidades, de insígnias e de titulos pomposos. Tem o quer que seja da majestade real. Com este corpo legislativo, todo inspirado no throno, no altar e nas classes aristocráticas, os reis annullam o espirito popular da ca- mará chamada baixa, e tolhem todos os seus movimentos. No manifesto a bordo da fragata Prmce{a Real, disse D. Pedro 27 que na formação da camará dos pares teve em vista reunir n*um corpo só as duas primeiras ordens do estado, clero e nobreza. E assim foi, com a differença de que antigamente estas duas clas- ses eram soberanas de facto e de direito, emquanto que nas cartas não passam de simples delegadas da soberania regia ! A camará dos pares representa as duas velhas ordens do estado, ou o espirito reaccionário d'essas classes retrogradas. Se a camará popular quer avançar, a camará alta diz-lhe — para traz ! Tal é o pensamento reaccionário da segunda camará, primeiro sophisma da representação nacional. Temos a camará baixa de eleição popular. Que alta come- dia ! Os nossos leitores estão fartos de saber que são os ministros da coroa que fazem as eleições. Em primeiro logar, as cartas não toleram senão o systema administrativo centralisador. Os ministros intromettem-se nas elei- ções das camarás municipaes, como nas eleições para deputados. Elles teem ao seu dispor um exercito enorme de auctoridades e func- cionarios, que esmagam com seu peso e pressão o voto do povo. Em segundo logar, a carta não se contentou só com isso. A fim de que o voto não fosse a expressão da vontade nacional, teve o cuidado de estabelecer o censo, com o qual excluiu as classes ver- dadeiramente populares; e estabeleceu a eleição em dois graus, que são origem de escândalos e de corrupção, e permittem toda a pressão ministerial sobre aquelles que absurdamente foram elei- tos para elegerem. Um expediente grosseiro, para embaraçar o voto nacional. A carta tem mesmo a ousadia de estabelecera distincção de ci- dadãos activos e passivos! Isto basta para a definir bem. A mesma carta de D. Pedro deixou as eleições na dependên- cia de leis regulamentares, feitas a capricho dos ministros da co- roa ! Não quiz tornar constitucionaes as garantias do voto. \\ra. me- lhor dependel-as de leis posteriores, para que os ministros podes- sem inventar, a seu prazer, novos expedientes, com que embara- çassem ainda mais o voto da nação. E, na verdade, assim aconte- ceu. São bem conhecidas as celebres leis eleitoraes, filhas da carta 28 de D. Pedro e das mais cartas outorgadas. Em França, Portugal e Hespanha, abundam os exemplos d'essas leis oppressoras. Sophismado por mil maneiras o voto nacional, embaraçado por outros tantos expedientes, os ministros da coroa, delegados da regia soberania, conseguem impor ás povoações as chamadas can- didaturas oííiciaes, ou do poder executivo. Os povos não elegem qiiem elles querem, mas os que querem os ministros da coroa. Não ha pressões que estes não exerçam sobre elles, para fazerem vingar as suas candidaturas. Sobem ao parlamento os chamados representantes do povo. Não julguem, porém, nossos leitores que a camará popular tem amplos poderes legislativos. Estes estão tão sophismados, como o exercício do voto. A carta constitucional consagra á misera e mesquinha camará chamada baixa cinco artigos apenas! E diz terminantemente que são da sua privativa iniciativa apenas duas attribuições : a dos im- postos e a do recrutamento ! A presidência, a cabeça directora d'esse corpo, é de nomeação régia 1 As propostas de lei são privativas da iniciativa ministerial, ou da coroa, exactamente como nas cortes consultivas. Se a camará dos deputados, por ventura, não quizer acceitar as propostas dos ministros da coroa, nomeará uma deputação que vá humildemente supplicar ao rei que tome em ulterior considera- ção essas propostas do seu governo. Recusando-se p rei a prestar o seu consentimento, responderá : «O rei quer meditar sobre o projecto de lei, para a seu tempo se resolver». Ao que, diz a mesma carta, a camará responderá: «Agradece a Sua Magestade o interesse que toma pela nação!» Diz o artigo 58.° que a recusa do rei tem etfeito absoluto! É exa- ctamente o que aconteceu no antigo regimen, quando as cortes ti- veram um caracter consultivo ! Mas o rei não tem necessidade de lançar mão do veio absoluto, que é sempre violento. A carta concede o direito de dissolução, que 29 é uma espada constantemente desembainhada sobre os parlamen- tos e nas mãos da soberania régia. A camará popular não quer acceitar as propostas dos ministros da coroa? seja dissolvida. E como os governos teem sempre a certeza de ganhar as eleições, con^^eguem um novo parlamento dócil e submisso. No systema das cartas outorgadas é sempre violento o conOicto das camarás com os governos; porque de facto é um conflicto com a coroa; por isso trazem sempre consequências funestas. Aqui teem os nossos leitores como a cana constitucional con- segue que a soberania régia dome e subjugue a vontade nacional. Os parlamentos tornam-se simples chancellas dos ministros da co- roa. Diremos mais; as antigas cortes consultivas tinham muito mais independência, do que os parlamentos filhos das cartas outor- gadas, eleitos pelos ministros, sujeitos ao veto absoluto e ameaça- dos constantemente de dissolução, quando se não queiram sujeitar e disciplinar, O poder judicial já os nossos leitores sabem onde se inspira. As cartas são inimigas das magistraturas electivas, emquanto as constituições propendem para ellas. Os juizes de direito, os desembargadores das relações e os con- selheiros do supremo tribunal, são de nomeação régia. A lei con- cede aos magistrados superiores titulos- e honras, para que sejam bem monarchicos e porque estão mais pertos da régia soberania. As sentenças são dadas em nome do rei, também como vimos. Os tribunaes de primeira instancia são individuaes, para que os juizes sejam mais facilmente dominados pelas altas influencias, que não cessam de trabalhar perante elles, principalmente em pe- ríodos de agitação politica. A historia da França, da Hespanha e Portugal, dá-nos sutíicien- tes exemplos do quanto os juizes teem auxiliado o poder executivo nas perseguições politicas. As cartas deixam também na dependência das' leis regulamenta- res, ou dos códigos, filhos da iniciativa dos ministros da coroa, a organisação de todos os tribunaes e a ordem do processo. E nada 30 mais violento do que os códigos, ou leis judiciaes, que se publica- ram no paiz de accordo com o regimen da carta e filhas legitimas d'ella. É o systema ; fatalmente a organisação dos tribunaes e a ordem do processo judiciário devem ter o cunho auctoritario e absoluto da carta feudal. Os juizes de direito, revestidos com a auctoridade real, neces- seriamente hão de tender para o regimen absoluto, como os minis- tros da coroa E de facto foi o que aconteceu e o que tem acontecido sempre. A carta instituio o jury, mas deixou egualmente a sua organi- sação e o modo da sua eleição na dependência de leis regulamen- res posteriores, emanadas do poder executivo, e por este impostas aos parlamentos ! As eleições para jurados devem ser de accordo com o regimen das eleições para deputados, ou com o regimen da carta. Emquanto á organisação administrativa, a carta limita-se a dizer que as províncias ficarão existindo como estavam, emquanto por lei não fôr alterada a sua actual organisação. E dar toda a latitude aos ministros, para organisarem a administração do reino ao sabor e caprichos do poder executivo, ou ministerial, intromet- tido e arrogante. E incompatível com o regimen das cartas outorgadas o syste- ma descentralisador, essencialmente democrático e próprio das constituições. Todo o segredo d'estas está nas autonomias locaes ; o segredo das cartas consiste em centralisar no poder ministerial toda a administracção publica. As autonomias locaes são tão con- trarias ao regimen das cartas, como os parlamentos nacionaes, o voto livre, e as magistraturas electivas. As cartas monarchicas são essencialmente centralisadoras e auctoritarias. E para que os municípios ficassem na sujeição do poder exe- cutivo, ou poder central, a carta dispõe que o exercício das suas funcções, a formação de suas posturas, a applicação de suas rendas e todas as suas particularidades e úteis attribuições, serão decretadas por outra lei regulamentar, filha do poder executivo, por eile inspi- rada e por elle imposta aos parlamenstos, dóceis e obedientes ! 31 A constituição de 20 presta a maior attenção á organisação dos municipios, e regula até o modo da sua eleição o mais livre que é possivel. Emquanto ás garantias individuaes, a carta concede por um lado, e tira por outro. Os direitos e garantias individuaes não podem subsistir deante da auctoridade real, que urge reforçar por todos os modos. Esta auctoridade não se reforça, senão á custa dos direitos do cidadão, ou de cada individuo. As cartas outorgadas fatalmente reduzem este a simples vassallo, porque não c soberano, como nas consti- tuições. O único cidadão soberano é o rei. Nem cidadão é, porque é a auctoridade suprema e augusta da nação estabelecida por Deus e pelo direito feudal. A carta diz que todos os cidadãos são eguaes; e ella mesmo estabelece a distincção odiosa de cidadãos activos e passivos, se- melhante á de senhores e escravos. Ha cidadãos sem direitos poli- . ticos ! Os portuguezes são todos eguaes, mas subsistem, e ainda hoje, as antigas três ordens do estado, clero, nobreza e povo, sobre as quaes se funda a monarchia. Não ha monarchia sem classes distinctas e privilegiadas E isto o que a sustenta. A nobreza e o clero conservaram-se com honras e privilégios, apesar de terem sido abolidos os direitos senhoriaes. Os grandes morgados só modernamente é que foram abolidos. Mas nem por isso deixaram de existir em volta do throno as classes fidalgas e aristocráticas, que formam a cauda da realeza. As monarchias constitucionacs ainda fizeram mais. Vendo-se sem o apoio da velha nobreza, realista pura, crearam a moderna nobreza, tirando-a da alta e rica burguezia, tão ávida de privilégios e distincções ! É assim que o realismo constitucional estabelece a eguaidade das classes e dos cidadãos! A carta diz que garante a liberdade de pensamento, mas fica dependente da tal lei regulamentar; a casa do cidadão ê inviolável. 32 mas a mesma lei regulamentar determinará os casos em que essa garantia tem logar. Os ministros da coroa podem reduzir esses ca- sos de tal modo, que a casa do cidadão seja invadida a cada mo- mento pelas auctoridades, e pela força publica ! E se desejam armar á popularidade, podem estabelecer muitos casos, mas por modo tal que sejam completamente sophismados. Uma garantia á maneira da tal responsabilidade ministerial, que nunca existiu até hoje! E, com eífeito, a historia da carta é uma serie de attentados contra a liberdade do pensamento e a casa do cidadão. A carta tem o cuidado de deixar ampla latitude aos ministros, para annullarem completamente, ou para não tornarem reaes, essas duas importantes garantias! Ninguém pode ser preso sem culpa formada, mas também só nos casos que o poder executivo determinar em lei regulamentar posterior! Fmalmente, todas as garantias e direitos individuaes estão consignados na carta por maneira que se não tornem effe- ctivos e reaes, quando assim o queira o poder executivo, que é tudo segundo a mesma carta! A tolerância de cultos é egualmente estabelecida, mas em ter- mos tão vagos e confusos, que ainda até hoje não se tornou effe- ctiva! A reacção catholica tem-se até acobertado com o próprio artigo 6.° da carta ! Com a carta constitucional tanto pode reinar o mais desenfrea- do absolutismo, como o regimen liberal, á mercê dos governos, ou do poder executivo. E como todo o systema e regimen d'ella é o absoluto, na essência e no fundo, segue-se que este é o que predomi- na e o que predominou sempre, dando origem a três importantes revoluções nacionaes. Ainda um outro defeito das cartas outorgadas : estas são filhas da eschola doutrinaria e auctoritaria, e da Santa Alliança; perten- cem a uma seita politica, que exclue todas as escholas contrarias. Debalde o partido democrático ahi tentará assestar os seus arraiaes, e levantar a sua bandeira. E completamente repellido por todo o systema, essencialmente monarchico na forma e no fundo. 33 Esse partido está excluído da rotação dos partidos politicos dentro da monarchia. Elle não pode ascender ao poder, sem rasgar com- pletamente a carta. D'aqui a guerra que todas as monarchias con- stitucionaes teem feito ao partido popular e democrático; e d'a- qui as revoluções politicas a que ellas teem dado origem em todas as nações da Europa. Os partidos democráticos são fatalmente impellidos para as revoluções pelas cartas constitucionaes, que os não comportam em seu systema e nos seus regimens ; por isso que assentam nas bases da eschola doutrinaria, auctoritaria e centralisadora. O regimen das cartas exclue o regimen das constituições; aquelle é essencialmente monarchico; este essencialmente demo- crático. A analyse completa da carta constitucional outorgada por D. Pedro levar-nos-hia a mui longe. Aqui deixamos bem salientes os pontos principaes que ella pretende e pretendeu occultar ao publi- co. Não passa do regimen absoluto disfarçado. E foi isto o que desejou a Santa Alliança^ onde se inspiram todas as cartas outor- gadas pelos reis. CAPITULO II O JURAMENTO DA CARTA As opiniões dividem-se, em quanto não chegam as noticias do Rio — Chegada de lord Stuart a Lisboa com os decretos de D. Pedro — Dirige-se primeiro á embaixada britannica — A regência e o governo hesitam — O governo manda prender quem ousa dar publicidade ás noticias vindas do Rio. — Stuart dirige-se ás Caldas da Rainha. —A infanta regressa a Lisboa. — O governo oppóe-se á execução da carta. — A rainha viuva e os clubs apostólicos animam se. — Insultam e aggridem os liberaes nas ruas de Lisboa. — O governo protege- os. — Quando Stuart reggressa das Caldas, o povo no theatro acclama D. Pedro e a carta.— O i'orto segue a cidade de Lisboa. — A archótada. — Saldanha escreve á infanta, dando-lhe parte do occorrido na cidade, e pedindo se cumpram os decretos de D. Pedro. — Na cidade de Lisboa prepara-se um levantamento popular a favor da carta e de D. Pedro. — A regente resolve mandar publicar os decretos. — Proclamação da regente. — A regente manda depois jurar a carta. — Os vintistas unem-se aos realistas constitucionaes — Os realistas puros tentam obstar ao juramento da carta. — Todos os liberaes se unem para celebrarem em todo o paiz o juramento da carta com muitos festejos, — O juramento da carta em Lisboa e Porto.— Saldanha é chamado a Lisboa-— E demittido o conselho Ja regência.— Novo ministério. — A lei eleitoral. - Os miguelistas insur- gem-se. — A questão portugueza ventilada nos gabinetes das potencias extrangeiras.— A Áustria e a Hespa- nha auxiliam os miguelistas. — Intervenção da Grá-Bretaniia perante as cortes da Europa.— Os miguelis- tas são por estas abandonados. Emquanto não vieram as noticias do Rio de Janeiro, esteve-se em Portugal n'uma incerteza angustiosa ácêrca do futuro. Ninguém sabia o que viria. O partido realista trabalhava, no emtanto, acti- vamente dentro e fora do paiz. As opiniões divergiam mais e mais. Diziam uns: — Se o imperador do Brazil acceita a coroa portu- gueza e regressa a Portugal, perde o Brazil. Outros diziam : — Se elle acceita e lá fica, ficamos como antes da revolução de 20, longe do poder central e da corte. — Se elle não acceita, diziam os liberaes, deve-se convocar cortes, para a nação eleger rei. — Não é preciso, acudiam os realistas puros: Cá temos o se- nhor infante D. Miguel. No meio d'esta incerteza chegaram, no dia 3o de junho, a Lis- 36 boa noticias telegraphicas vindas por via da França, em que se dava parte da abdicação de D. Pedro ; mas sem se dizer em quem. A regência e os ministros tentaram acclamar logo D. Miguel! Obstaram a isso os mais prudentes, e o corpo diplomático, que pon- deraram a conveniência de se aguardarem as noticias officiaes, an- tes de se dar qualquer passo. Em 7 de julho entrou no Tejo a fragata ingleza Diamond , trazendo a seu bordo Carlos Stuart com os despachos e decre- tos de D. Pedro: isto é com o da outorga da carta, com o que manda jural-a immediatamente, com o da nomeação dos pares do reino, e da constituição da camará alta, com o decreto da abdica- ção e com o que confirma a regência nomeada por D. João VI, emquanto o mesmo imperador não nomeia a que determina a carta constitucional. A mesma fragata trouxe o tratado addicional da independência do Brazil, de que foi negociador o mesmo lord inglez, que levantou os brazileiros contra os portuguezes ! Notável sina a da carta ! Dada por um monarcha estrangeiro ; feita em paiz estrangeiro, dictada por um estrangeiro, trazida a Portugal por este mesmo estrangeiro, e em navio de guerra estran- geiro, e mais tarde sustentada por um exercito estrangeiro! Stuart desembarcou no cães do Sodré, onde o esperava o côn- sul geral do Brazil. Em vez de se dirigir ao governo portuguez, seguiu em direcção da embaixada britannica, onde teve longa con- ferencia com o ministro e representante d'esta nação, sahindo d'ali ás 5 horas da tarde ! Só depois d'esta entrevista, é que se dirigiu ao governo, para lhe entregar os decretos de que era portador ! O governo reuniu immediatamente. Discutiu-se muito, e repetiram-se os conselhos a miúdo; mas sem nada resolverem. A infanta estava nas Caldas da Rainha. Tanto o governo, como a folha oííicial, guardaram absoluto silencio, quer a respeito da chegada de Stuart, e quer a respeito dos decretos que trouxe comsigo! Por via da delegação britannica con- staram as noticias chegadas do Rio, mas o governo mandou pren- 36 der arbitrariamente os primeiros que deram publicidade a essas noticias ! A maioria dos regentes e a dos ministros ficaram estupefactas deante das resoluções de D. Pedro. . Lord Stuart, vendo essa hesitação dos membros da regência e do governo, que pareciam dispostos a reagirem aos decretos do imperador, resolveu ir ás Caldas da Rainha expor á regente a gra- vidade da situação, A infanta regressou logo a Lisboa, cremos que no dia lo. Man- dou reunir em conselho todos os ministros. O conde do Porto Santo, ministro dos negócios estrangeiros, de- clarou cathegoricamente que o ministro da Hespanha se oppunha ao juramento da carta ; e que elle daria a sua demissão, se fosse re- conhecido esse código, dom funesto, disse elle, que só serviria para despertar as paixões que o rei D. João VI conseguira acalmar, e para augmentar as discórdias no paiz. A maioria decidiu que se não publicasse, nem jurasse, a carta constitucional ! A rainha e os clubs apostólicos animaram-se com essa attitude da maioria da regência e dos ministros. Elles quizeram mostrar á Europa que o paiz não desejava o regimen da carta, mas o do cacete, e quizeram, ao mesmo tempo, confirmar as razões no con- selho de ministros expandidas pelos seus partidários. Elles espalharam por toda a cidade de Lisboa e pelas provin- cias que D. Pedro abdicara em D. Miguel, e que este estava, de facto, rei de Portugal. E quem sabe se o governo, de accordo com elles, não queria publicar os decretos, para dar vulto a essas noticias? Os clubs secretos dos apostólicos e feotas resolveram provocar tumultos na cidade de Lisboa. Espalharam-se pelas ruas e sitios mais frequentados ; e come- çaram a desancar nos que se mostraram mais adversários da Abri- lada^ e nos liberaes de 20. No Passeio Publico, e n'outras partes da cidade, esses defensores do throno e do altar insultaram e espan- caram quantos liberaes encontraram pelo caminho ; o governo dei- xou-os á vontade ! 37 Havia gáudio nos conventos, nas egrejas, nas casas dos fidal- gos e dos commendadores. D. Miguel estava rei de Portugal. Breve ir-se-hia começar a santa expurgação. Todas as cabeças dos liberaes e mações rolariam aos pés do carrasco, e nenhum escaparia ao furor apostólico. Quando Stuart voltou das Caldas, isto é, no dia lo, já em Lis- boa se sabia tudo. Apesar das prohibições do governo, que prendia quem dava noticias ácêrca dos decretos, e deixava, ao mesmo tempo, espan- car e insultar os liberaes pelos apostólicos; apesar das medidas de rigor adoptadas contra as manifestações publicas, o povo não poude conter-se. N'esse dia afíluiu muita gente ao theatro de S. Carlos. No meio do espectáculo a platea rompeu com vivas a D. Pedro e á carta. Pediu-se o hymno imperial e todos se levantaram n'este momento dominados por um só impulso. E começaram a cantar em coro o mesmo hymno executado pela orchestra. A noite pas- sou-se no meio de incessantes acclamações a D. Pedro, á carta e á Grã- Bretanha, a medianeira. Ao sahirem do theatro, os espectadores dirigiram-se em grande multidão á embaixada britannica; e aqui deram vivas ao rei de In- glaterra, a Stuart e á nação ingleza. O ministro appareceu á janella e agradeceu. Foi a desforra dos insultos e espancamentos dos liberaes e ami- gos de D. Pedro IV pelos apostólicos, ou realistas puros, que o go- verno evidentemente protegia. O Porto tomou o exemplo de Lisboa. Assim que no dia 1 3 se soube das manifestações feitas n'esta ultima cidade, tratou-se immediatamente de se preparar grandes festejos para o dia se- guinte. Compoz-se, á pressa, um hymno novo, com musica também nova; e já em a noite do dia 14 estava escripta, composta e en- saiada, para ser executada pela orchestra e coros. O theatro de S. João teve enchente real. Antes de começar o espectáculo, tocou-se e cantou-se o hymno, que foi coberto de sal- vas de palmas prolongadas. Os espectadores pozeram-se de pé, bem como as senhoras dos camarotes. Klectrisados todos pelo hymno, 38 romperam em enthusiasticos vivas a D. Pedro, a D. Maria ÍI, á in- fanta Izabel Maria, á carta constitucional e a Saldanha, governador general das armas do Porto. Estes vivas eram acompanhados do acenar dos lenços das se- nhoras e dos espectadores da platea. No intervallo do i.° para o 2.° acto, repetiram-se os mesmos vivas e as manifestações de regosijo. Cantou-se novamente o hymno e recitaram-se varias poesias allusivas aos acontecimentos do dia, as quaes produziram geral enthusiasmo na platéa e nos camarotes. E no momento da maior exaltação dos ânimos, Saldanha do seu camarote mostrou o retrato de D. Pedro e de D. Maria II, os quaes foram acolhidos com uma prolongada salva de palmas, seguida de ruidosas ovações e acclamaçóes, que duraram por muito tempo. O povo bondoso, ingénuo e bom, desfez-se alli em demonstrações de reconhecimento por esse que elle suppunha ter-lhe dado a liberdade! Em todos os entre-actos repetiram-se as mesmas scenas e reci- taram-se poesias. No fim do espectáculo, os espectadores formaram alas, fora da porta de sahida do theatro, e com archotes accesos acompanharam Saldanha até a sua residência. Ia adiante a orchestra tocando o hymno, que o povo e todos cantavam em coro. As familias encorporaram-se ao cortejo, e as senhoras, como no theatro, foram cantando juntamente com a mul- tidão. O coro era, de intervallo a intervallo, intercallado com vivas a D. Pedro e D. xMaria II, á carta e ao general. Assim seguiu o cortejo até a casa da residência de Saldanha, que appareceu á janella e agradeceu as provas de sympathia de que tinha sido alvo, e pediu socego e moderação. Eram duas horas da noite, quando todos se retiraram para suas casas. O mesmo enthusiasmo continuou em as noites de i5, 16 e 17. N'esta ultima os espectadores quizeram repetir o cortejo da pri- meira, mas Saldanha desculpou-se, dizendo que negócios de ser- viço o impediam de recolher ainda. O povo pediu permissão de o acompanhar até á Praça Nova, onde estava a guarda prin- 39 cipal ; e d'ahi recolheram todos a suas casas em boa ordem e socego. Não racharam as cabeças dos realistas puros, dos apostólicos efeotaSj ou defensores do throno e do altar, como estes costuma- vam sempre nas manifestações do seu feroz regosijo contra os li- beraes. As festas do povo são pacificas e generosas, quando o não provocam. Saldanha escreveu uma carta notável á infanta, mostrando-lhe a importância politica dos decretos e medidas de D. Pedro, e a influencia que logo tiveram na segunda cidade do reino, que geral- mente proclamou a carta com vivo enthusiasmo, mal teve conhe- cimento d'ella. Saldanha informa a regente de que o povo está decidido a exi- gir o cumprimento das ordens vindas do Rio de Janeiro, e de que as tropas estão conformes com essa resolução, e unidas ao povo nos mesmos sentimentos. Elle diz que, se se mantém o estado de incerteza e de desconfiança em que está todo o paiz, e se o primeiro correio não traz o decreto para o juramento da carta, elle não res- ponde pela tranquillidade publica. Affirma que as tropas e o povo da cidade reclamam altamente o inteiro cumprimento dos decretos de D. Pedro, e que todos reconhecem este como rei legitimo. «A sorte, diz Saldanha, de Portugal, depende unicamente de V. A., e é a V. A. só que a carta constitucional confia a regência e governo d'estes reinos. E toda a demora posta ao juramento e execução d'esta carta parece ao povo eífeitos dos esforços das pes- soas interessadas em perpetuar-se no poder, e em deferir a epocha do estabelecimento da paternal regência de V. A.» Na regência e no governo continuavam, no entretanto, as diver- gências de opiniões. Os mais prudentes hesitavam ante a attitude aggressiva e turbulenta do partido realista, que trabalhava activa- mente para uma nova insurreição; outros esperavam a resolução das potencias, para se pronunciarem n'esse sentido, e outros apoia- vam de dentro os apostólicos e feotas. O duque de Cadaval, o visconde do Porto Santo e outros, espe- ravam que D. Miguel em Vianna d'Auslria conseguisse que as 40 potencias da Santa Alliança se opposessem á outorga da carta, á confirmação da regência e ao reconhecimento de D. Pedro. Havemos de vêr adeante como as cortes europeas se activaram n'este momento, para tratarem por si dos negócios relativos a Por- tugal. Os miguelistas aproveitaram-se da hesitação e do silencio obsti- nado do governo, para espalharem noticias falsas a favor da sua causa, ao mesmo tempo que se preparavam para pegarem em ar- mas e resistirem. Tinham o apoio da maioria da regência e do governo. N'estas circumstancias, os liberaes de todas as feições colliga- ram-se em Lisboa, e combinaram um levantamento popular, para obrigarem o governo a pôr em execução os decretos de D. Pedro. Parte das tropas da guarnição estava do lado do povo e prompta a auxilial-o. A infanta, receiosa da attitude das duas primeiras cidades do reino, e das consequências da resistência por mais tempo aos de- cretos do Rio, resolveu por si publicar esses decretos e mandar jurar a carta. Antes, porém, de mandar publicar o decreto que designava o dia 3 I para o juramento da carta, a infanta quiz mostrar ao paiz o que era esta e a differença que ia d'ella para a de 20. Ella publicou em 12, uma proclamação, em que se atira furiosa a esta ultima re- volução, que cobre de epithetos injuriosos, todas as vezes que se refere a ella e á maldicta democracia, ou soberania nacional. A infanta entendeu que devia primeiro esclarecer o paiz ácêrca do novo regimen, para que elle se não persuadisse de que no regi- men da carta tinha algum direito a tomar parte em os negócios d'estado, como annunciavam as suas tendências nas duas primei- ras cidades do reinei. A proclamação da regente é como uma resposta cathegorica á representação de Saldanha e ás manifestações populares de Lisboa e Porto. O povo nada tem com a politica do paiz ; compete-lhe aguar- dar resignado e silencioso as régias determinações, e não se intro- 41 metter n'ellas. Não é soberano como em 20. Esta epocha execranda não volta mais. Só a coroa é soberana, e só a vontade d'ella deve ser obedecida e acatada pelo povo avassallado. A infanta e todos os que a cercavam viram surgir nas mani- festações populares das duas cidades a epocha de 20. E desde logo quizeram obstar a essas altivas pretençóes do povo e da nação. «... esta carta, diz a infanta na sua proclamação, é essencial- mente differente d'aquella constituição que abortou do seio de uma facção revolucionaria em 1822 . . . Não é uma concessão arrancada pelo espirito revolucionário, é um dom espontâneo do poder legitimo de sua majestade^ meditado em sua profunda sabedoria. «N'esta carta se procura terminar a lucta dos principios extre- mos que teem agitado todo o universo ; a ella são chamados todos os portuguezes, para se reunirem, como se teem reconciliado ou- tros povos por similhante meio. «^5 antigas instituições são adaptadas e aconmwdadas a esta edade, tanto quanto o intervallo de quasi séculos, e, finalmente, esta carta tem modelos nas actuaes instituições d'outras nações que se dizem as mais conhecidas e prosperas.» Eis perfeitamente caracterisada a carta constitucional meditada na profunda sabedoria do soberano, em contraste ás constituições, feitas e discutidas em assembléa nacional, representante de todas as classes do paiz. E um dom espontâneo do poder legitimo, ou da soberania divina e feudal, em opposição aos códigos politicos filhos da soberania popular e nacional. E mui provável que essa proclamação fosse dictada por Stuart, de accõrdo com as instrucções que trouxe do Rio. Ahi está bem marcado o caracter altivo e soberano de D. Pedro. É a sua própria linguagem, e a de que se serviu, ao inaugurar as sessões das primeiras cortes constituintes do Brazil. D. Pedro e todos os mais soberanos consideram as lonstitui- ções filhas de facções revolucionarias, porque não reconhecem a soberania nacional. O poder legitimo da soberania, segundo elles, está na coroa. As cortes constituintes, ou nacionaes, são usurpações odiosas dos direi- 42 tos augustos do throno, ou dos reis. E tudo quanto fazem e fize- ram é illegal e nullo. Depois d'essa advertência e prevenção ao paiz, a regente mandou publicar, em 1 9 de julho, o decreto para o juramento da carta. A este respeito José Liberato Freire de Carvalho escreve as seguintes linhas, tão judiciosas como verdadeiras. Diz elle: «A carta foi recebida não só com muita alegria, mas com geral enthusiasmo, tão fácil é o povo de contentar. Sim, o povo portuguez, tão dócil como generoso, esqueceu-se da violência com que se lhe tinha roubado a sua querida constituição. E só olhava para a mão benéfica que o acabava de o livrar de um absolutismo duro e demente, setn lhe importar, nem indagar os mo- tivos porque se lhe faiia esta dadiva. » O povo portuguez n^este momento estava bem convencido de que os exércitos que invadiram a Hespanha marchariam promptos contra elle, se quizesse voltar a 20, ou recuperar seus legítimos direitos. Qualquer tentativa n'esse sentido seria lançar as potencias nos braços dos realistas puros. Com esse passo arriscava-se a per- der o pouco que lhe davam, para ser entregue ao regimen do terror que lhe preparavam os apostólicos efeotas, ou realistas puros. O povo portuguez, e os povos de toda a Europa, estavam sob a pressão das bayonetas da Santa Alliança e da colligação das coroas ; não podiam reivindicar n'este periodo os seus direitos, de- rogados pelo direito da força. Os exemplos de Nápoles, Piemonte, da Hespanha e de Portugal, em 1823, eram de hontem, pode-se dizer. As circunstancias politicas da Europa conservavam-se as mes- mas em 1826. Mediavam apenas três annos. Por isso D. Pedro e a infanta fallaram com tanta arrogância. Tinham a seu lado os po- derosos exércitos da colligação dos thronos contra os povos. O direito da força era por elles. N'estas condições, seria imprudência qualquer tentativa dos vintistas a favor dos seus princípios, ou a favor dos direitos nacio- naes calcados aos pés. 43 Por essa razão, aquelle partido pôz de parte as suas bandeiras, e não pensou um só momento em fazer valer seus principies. Uniu-se aos realistas constitucionaes, para com elles fazer frente ao inimigo commum, ou aos realistas puros. Apesar d^essa attitude nobre e patriótica, não deixou um só momento de ser atacado e injuriado por aquelle partido, que sem- pre lhe votou ódio eterno! Os realistas constitucionaes, ou cartistas, ainda fizeram mais : Aproveitaram-se da fraqueza dos vintistas e da sua attitude resi- gnada, para os desacreditarem e injuriarem, não obstante elles col- locaremse do seu lado, para os auxiliarem a pôr em pratica o regimen cartista, ou a chamada legitimidade. O partido realista puro, ou miguelista, não ficou satisfeito com a publicação dos decretos, que elle esperava sustar com a sua at- titude, e com a influencia do estrangeiro. O passo dado pela in- fanta desconcertou-lhe os planos e fez cahir por terra todas as suas esperanças e illusões. Elle desfez, n'um só momento, todos os boa- tos falsos que espalharam pelo paiz, para o convencerem de que D. Pedro abdicara no irmão, e de que este estava rei de Portugal. Depois de estarem oííicialmente confirmadas as noticias vindas do Rio, os apostólicos efeotas mudaram de táctica. Carlota Joaquina e os seus, zelosos defensores da religião, es- palharam pelas aldeias rudes e ignorantes, e por todo o paiz, que a carta era uma invenção e embustice dos pedreiros livres e da maçonaria. Fizeram circular que D. Pedro tora victima de uma in- fame cilada da pedreirada incorrigivel. Na doença do rei D. João VI, os conselheiros e amigos Íntimos d'este abriram uns cadernos, para assignarem seus nomes os que fossem saber da saúde do mo- narcha. D'essas assignaturas se serviram os maldictos mações, para com ellas dirigirem a D. Pedro uma representação, pedindo-lhe uma carta constitucional, e dizendo-Ihe que ella era desejada por todas as classes do paiz, como o comprovavam as assignaturas apresentadas ! Esses defensores do throno e do altar chegaram mesmo a publi- car proclamações, em que repetiam essa calumnia dos seus clubs, e 44 em que aconselhavam aos povos a que não jurassem a carta, al- cançada subrepticiamente pelos liberaes, auxiliados pela herética Grã-Bretanha ! Essas proclamações, imitando D. Miguel na Abrilada^ acaba- vam por chamar o povo e o exercito ás armas, para se opporem ás novas machinações das lojas maçónicas. Os padres nos púlpitos e os frades nos conventos começaram a fazer propaganda contra a carta constitucional, obra, diziam el- les, da maçonaria e dos jacobinos de 20, de horrenda memoria. O governo e a regência, no seu ódio aos liberaes, ou vintistas, olhavam indiíferentes para aquella propaganda, que até lhes não desagradava. A revolução de 20 era também o maior e mais terrí- vel phantasma dos cartistas, ou realistas constitucionaes. Os mesmos zelosos defensores da religião não se contentaram só com o forjar calumnias, em que sempre foram insignes, e noti- cias falsas. Não podendo já negar a carta, valeram-se da falta da sua publicação ofíicial, para mandarem imprimir e publicar parte d'ella, alterando os artigos a favor da sua causa. O intendente geral da policia de Lisboa mandou, em i3 de ju- lho, cassar esses impressos clandestinos, afim de evitar suas funes- tas consequências no publico illudido. Diz o edital que se inventa- ram, aduheraram e falsificaram artigos da carta em sentido op- posto ao d'ella, com o fim de semear a discórdia e de perturbar a ordem. Xo dia 20 o chanceller da relação do Porto mandou afixar ou- tro edital no mesmo sentido. Por decreto de 14, o governo ordenou que a impressão e venda da carta fossem privativas e exclusivas da regia officina typogra- phica de Lisboa, e que em todas as edições se estampasse, depois da integra da carta, aquelle decreto. Ainda o governo tomou outras providencias, afim de evitar que os artigos da carta fossem alterados, para darem rasão ao partido rea- lista puro. Este queria mostrar ao povo que, segundo a própria carta, quem tinha verdadeiro direito á coroa portugueza era D. Miguel. 45 E redigio os artigos d'ella a seu modo e feição! Os vintistas^ apesar de calumniados, agredidos e guerreados, tanto pelos realistas puros, como pelos realistas constitucionaes, trabalharam de alma e coração, para que a carta fosse bem rece- bida por toda a parte. Elles quizeram mostrar ao governo, á regên- cia, e ás potencias da Europa, que n'esta occasião não havia dis- tincção, nem divergência alguma, no partido liberal, e que todos formavam então um partido só, o da carta. A elles se deve o ter-se jurado a carta, e a elles se devem as manifestações de regosijo com que em todo o paiz foi celebrado o seu juramento. A carta constitucional era accusada pelos realistas puros de ser filha da maçonaria e da constituição de 20; os homens d'esta época entenderam por isso que a deviam defender. Pertencia á eschola mais retrograda do partido liberal, isto bastou para que os vintistas n'este momento a defendessem contra as tentativas do partido abso- lutista, auxiliado pelas potencias estrangeiras. A cidade de Lisboa, no dia 3i, appareceu com vistosos monu- mentos artísticos, arcos de triumpho no Loreto, rua Augusta, rua do Ouro, rua da Prata, e rua dos Fanqueiros. No cães do Sodré foi erigida uma grande pyramide para ser illuminada á noile. A maioria das casas particulares estava enfeitada de bandeiras e de ricas colchas; as ruas juncadas de flores. Logo de manhã appareceram todas as embarcações surtas no Tejo e todos os navios de guerra, nacionaes e estrangeiros, com- pletamente enfeitados de flâmulas e bandeiras. Uma salva real, dada nos fortes e castellos e pelos navios de guerra, annunciou á cidade a solemnidade do dia. Esta salva foi repetida ás i i horas, quando na sala do beijamão do palácio da Ajuda a regente, o conselho da regência, os ministros, conselheiros da coroa, otliciaes mores da casa real, os generaes e commandan- tes das forças do mar c terra, os presidentes dos tribunaes. o colle- gio da Patriarchal, os arcebispos, bispos e prelados maiores, reuni- dos prestaram o juramente na forma prescripta. N'este momento, subiram ao ar e por todos os pontos da cidade, innumeras gírandolas de foguetes; repicaram (\s sinos das egrejas; 46 romperam muitas bandas de musica, tocando o hymno, e fenderam os ares milhares de vivas a D. Pedro, a D. Maria II, á carta, e á infanta regente, os quaes eram soltados em quasi todas as janellas e em quasi todas as ruas, praças e sitios mais frequentados da cidade. Foi um dia de verdadeira festa nacional. O regosijo manifestava-se em todos os rostos e por toda a parte. Á noite, a cidade de Lisboa parecia transportada á época de 20. A illuminação do arco da rua Augusta, as das ruas do Ouro, da Pra- ta e dos Fanqueiros, e a do largo do Loreto, foram brilhantes e visto- sas. Ahi concorreu grande numero de familias e de povo. Toca- ram-se os hymnos da carta e de D. Pedro; deram-se vivas; recita- ram-se poesias; finalmente, a população deu provas da sua alegria e do seu reconhecimento a D. Pedro, pela outorga da carta, que ella considerava o symbolo da liberdade, ainda que mal a conhe- cesse, nem ainda tivesse experimentado o seu regimen. Os theatros tiveram enchentes reaes, e ahi reinou a mesma ale- gria e a mesma animação, que nas ruas, praças publicas e nas casas particulares. Foi uma noite passada em festas e em ruidosas manifestações de regosijo publico. As bandas de musica não cessavam de tocar os hymnos libe- raes, acompanhados em coro pelo povo enthusiasmado. A cidade do Porto não ficou atraz da de Lisboa. Por toda ella se construíram innumeros monumentos e arcos de triumpho. As janellas das casas foram guarnecidas de capellas de flores e murta, e as ruas, como as de Lisboa, juncadas de flores e de plantas aro- máticas. O Campo de Santo Ovidio, onde devia ter logar a parada, e a rua do Almada, por onde deviam passar as tropas e Saldanha, fo- ram ricamente enfeitados. Na rua da Chã, e em muitas outras ruas os visinhos cotisa- ram-se entre si para uma illuminação geral. Levantaram-se muitos monumentos, em cima dos quaes foi collocado o retrato de D. Pedro. Villa Nova de Gaia distinguiu-se pelas suas illuminações e pe- las suas construcções artísticas. 47 Foi aberta uma subscripção publica, para se soccorrerem 12 familias pobres de cada uma das freguezias da cidade. Logo de maniiã Saldanha publicou tres proclamações, duas aos habitantes e uma ás tropas da guarnição. A alvoroda foi annunciada por uma salva de artilheria, por muitas girandolas de foguetes e pelo repicar de sinos das egrejas. Prestado o juramento por todas as auctoridades da cidade, as tropas reuniram-se em parada no Campo de Santo Ovidio. Quando Saldanha, á frente das forças, passou pela rua do Al- mada, esta apresentou um bello espectáculo. As janellas todas guar- necidas e enfeitadas de bandeiras, de flores e de murtha ; immensas damas portuenses vestidas de galla e algumas de azul e branco, os- tentando, quer seus rostos formosos e quer suas variadas toillettes por entre as flores que guarneciam as janellas e saccadas, e no meio das ricas colchas de setim e seda, de diversas cores. Do principio ao fim, não se viam senão grupos de familias por todas as janellas e saccadas patenteando no rosto a mais viva alegria e satisfação. Quando Saldanha appareceu, foi coberto de salvas de palmas e de vivas continuados que resoaram em toda a vasta rua. Umas senhoras acenavam com os lenços, outras lançavam sobre o ge- neral flores, que dos açafates cabiam em chuva sobre elle e as tropas. Uma scena da revolução de 20, que despertava na população, ao aclamar de novo a liberdade, succumbida tres annos antes. A parada em Santo Ovidio deu logar a novas e ruidosas mani- festações do povo enthusiasmado, que inundara o campo todo. Ahi reuniram-se pessoas de todas as classes sociaes. A praça estava toda em redor vistosamente adornada. O enthusiasmo popular chegou alli ao mais subido grau, no meio de vivas incessantes a D. Pedro, a D. Maria li, á carta, a Saldanha e ao exercito, acompanhados do tremular dos lenços, que se agitavam em todas as janellas e em baixo na multidão; um de- lírio. .■\s bandas rcLMmcntaes tocavam o hvmno constitucional. Termmada a parada, o general, acompanhado do seu estado 48 maior e das tropas, dirigiu-se á Praça Nova seguido de immenso povo, que atraz o ia acclamando e victoriando constantemente. Tan- to elle como as tropas eram cobertos de flores lançadas das janellas. Ao chegarem á Praça Nova, os regimentos desfilaram a quar- téis, e o general e ofiicialidade dirigiram-se á cathedral, para assis- tirem ao Te-Deiim^ em que officiou o bispo. Á noite a cidade do Porto reassumiu a feição dos grandes dias de festa nacional da revolução de 20. Por toda a cidade se fizeram brilhantes illuminações nos monumentos expressamente construí- dos. Alli repetiram-se as mesmas scenas que poucos annos antes se realisaram, para commemorarem os grandes feitos da revolução nacional. Junto a esses monumentos commemorativos, cantou-se em coro o hymno da carta ; deram-se vivas ; e recitaram-se poesias allusivas ao dia. Até se erigiu um novo Templo da Memoria com arcadas e columnas, tendo no cimo da cúpula o retrato de D. Pedro. Era illu- minado por 3:ooo luzes. Nos theatros reinou o mesmo enthusiasmo, a mesma alegria e a mesma animação. Pantenteou-se novamente o retrato de D. Pe- dro, que foi alvo das maiores ovações, bem como Saldanha. No dia seguinte os oííiciaes inferiores do regimento de artilhe- ria deram um baile popular nas ruas da cidade. Precedidos de uma banda de musica, dirigiram-se ao quartel-gene- ral, e aqui executaram uma dansa com grinaldas e arcos de flores. Depois percorreram todas as ruas acompanhados de muito povo, cantando o hymno da carta, e acclamando esta e D. Pedro. E assim despertaram no povo portuense as recordações da sua heróica revolução, que lhe parecia reviver com a carta constitucio- nal, agora outorgada pela coroa. O governo de Lisboa e a regência assustaram-se com essas manifestações populares. O povo ia deitando muito as mãos de fora, não obstante as advertências da proclamação da regente. Saldanha foi logo chamado a Lisboa, por ter animado e auxiliado com a sua presença os festejos e as manifestações em favor da liberdade! 49 A cidade do Porto, no dia 3 d'agosto, pantenteou, de um modo bem significativo, ao general o seu vivo reconhecimento e o seu pesar pela sabida d^elle. Foram tantas as pessoas que desejaram acompanhar a bordo aquelle general, que não chegaram as embarcações do Douro, sen- do preciso pedirem-se aos navios ancorados. E ainda assim não chegaram. Foi acompanhado até á barra por mais de 3:ooo pessoas, em completo silencio A sabida, Saldanha dirigiu á população uma proclamação, pro- mettendo que faria conhecer á infanta os votos de toda a cidade, e a sua fidelidade ; e dizendo que tinha toda a confiança em que a regente, ou o conservaria no seu logar, ou lhe daria um successor digno do Porto e dos seus habitantes. Foi um dia de pesar para estes. É aqui que principia a popularidade de Saldanha, que o par- tido liberal escolheu logo para seu chefe, afim de que, com o seu prestigio, pudesse resistir ás influencias retrogadas que se manifes- tavam nas regiões do poder. Todos os historiadores estão de accôrdo em que o juramento da carta se realisou em todo o paiz com as mais vivas demonstra- ções de regosijo. O povo não festejava a coroa; festejava a sua liberdade, que julgava recuperada com o novo código politico. No mesmo dia do juramento, foi dissolvido o celebre e reaccio- nário conselho da regência, assumindo a infanta este encargo; e nomeou-se novo ministério. Foi composto da seguinte maneira i D. Francisco d'AImeida, extrangeiros ; Trigoso, reino; Pedro de Mello Hreyner, justiça, sendo Barradas encarregado d'esta pasta emquanto aquelle não chegava de Paris; barão do Sobral, Herma- no, fazenda ; João Carlos de Saldanha, guerra; Ignacio da (losta Quintella, marinha. Breyner não chegou a tomar posse da sua pasta, sendo esta dada a José António Guerreiro. Foi um ministério chamado de conciliação; mas em que a 50 maioria era conservadora, ou cartista. Guerreiro renegou do seu passado vintista e tornou-se até ardente defensor do realismo con- stitucional da carta. Saldanha era também cartista, mas queria as máximas liberda- des compatíveis com a carta constitucional. Filiou-se na extrema esquerda d'este partido. Os vintistas estavam anniquilados e retira- dos da scena politica. A conciliação dava-se somente entre as par- cialidades do partido cartista. A 7 d'agosto, foi publicada a lei eleitoral de accôrdo com o regimen centralisador da carta, isto é com a odiosa distincção de cidadãos activos e passivos, com o censo eleitoral, com eleição em dois graus e concentrando nas mãos do governo todo o movimento eleitoral, para elle o dominar. A carta estabelece o censo de 20o;ií'Ooo réis; a lei eleitoral achou pouco, e elevou- o nada menos do que a 400^000 réis; o do- bro ! Com esta medida do governo, a quem a carta concede direi- tos de regular o exercício do voto, foram excluídos d'este grande numero de escriptores públicos, jornalistas, professores, a classe artística e todas as mais que eram influenciadas pelas idéas liberaes e democráticas! A commissão de recenseamento é feita a aprazimento do paro- cho da freguezia. Este convoca o qfficial civil, e ambos elegem um outro. Todos três elegem ainda um outro, para escrever perante elles. Procedem depois ao recenseamento das pessoas que nos ter- mos da lei podem votar e ser votadas ! Os 1 3 maiores contribuintes é que elegem a mesa eleitoral de parochia. As eleições provinciaes obedecem ao mesmo pensamento. O partido realista puro, despeitado pela maneira com que fo^ recebida e jurada a carta, e para mostrar ás potencias que esta não era desejada pelo paiz, resolveu, mais uma vez, levantar a bandeira da insurreição. Os vintistas é que eram demagogos, jacobinos, exal- tados, revolucionários, facciosos, que sei eu? Esses defensores do throno e do altar, da ordem e da modera- ção, espalharam por todo o paiz proclamações incendiarias. N'estas dizem elles que D. Pedro é um renovo da facção anti-religiosa e 61 regicida, que pretende derrubar os thronos e o altar; que elle está em poder da maçonaria e da perversa seita dos pedreiros livres Hliiminados, e que perdeu a coroa de Portugal pela separação do Brazil. Frades armados de clavinas, paus e fouces, pozeram-se á frente dos rudes povos de Traz-os-Montes, e com elles levantaram o grito. Os padres do púlpito pregavam em sermões fulminantes a guerra contra D. Pedro e excitavam o povo a pegar em armas a favor da religiáo e do throno ameaçados. D. Pedro era coberto por esses ministros do Senhor de todos os epithetos grosseiros, por ter cedido á infame pedreirada. Por este modo conseguiram levan- tar na provincia guerrilhas commandadas por frades, padres e ca- pitães-móres. Os apostólicos efeotas tornam a representar, á face do mundo e da historia, a mesma comedia que em i823. Elles, os demagogos mais exaltados, sanguinários e turbulentos, e que não cessavam de conspirar e de fazer revoltas, accusam de demagogos e jacobinicos os liberaes portuguezes, que sempre se mostraram cordatos, gene- rosos e pacificos ! E, tornando a citar os excessos da Revolução fran- ceza, pretendem desacreditar o systema liberal e o regimen do povo! Elles não praticam, nem jamais praticaram excessos ! O que pregaram em i823 e o que agora pregam são tudo dou- trinas mui evangélicas, santas e de paz ! O general José Correia de Mello fez marchar contra a provín- cia de Traz-os-Mentcs algumas forças, que chegaram a 2 1 de julho, e restabeleceram por momento a ordem, prendendo os che- fes da revolta apostólica e miguelista. Em a noite de 26 para 27, o visconde de Monte Alegre insu- bordinou o regimento d'infanleria n. " 24 da guarnição de Bragança. No meio de gritos e de morras a D. Pedro e á carta, prenderam o bispo, o governador e todos os oíliciaes que os não quizcram se- guir. Foi proclamado D. Miguel rei absoluto. O regimento de cavallaria 12 mantcve-sc liei, c rompeu o fogo contra os insurreccionados. lestes, sabendo que o general Correia 52 se dirigia contra elles, fugiram para Hespanha, onde foram recebi- dos com todas as deferências e provas de sympathia ! A revolta miguelista rebentou, em seguida, no Alerotejo. Depois de ter prestado juramento á carta, o brigadeiro Magessi, em 2 d^agosto, msubordinou o regimento d'infanteria 17 na villa de Estremoz. O povo sublevou-se contra a tropa, e obrigou-a a refugiar-se em Hespanha, onde teve o mesmo acolhimento e agasalho que as tropas de Bragança. Magessi levou comsigo 80 cavallos do segundo regimento de cavallaria. Carlota Joaquina não descançava em Lisboa. Ella seduziu o corpo de policia da cidade. Este, em a noite de 21 para 22 d'a- gosto, devia dirigir-se para o Campo Pequeno, onde esperava encontrar contingentes de diíferentes corpos da guarnição da cida- de. D'alli dirigir-se-hiam a Ajuda, para prenderem a infanta e pro- clamarem D. Miguel com a suspirada regência da mãe. O governo teve conhecimento da conspiração planeada ; e na mesma noite em que esta devia rebentar, quatro companhias de policia a cavallo cercavam os sediciosos, e prendiam-n'os. A maior parte foi en- viada para os Açores, e os officiaes mettidos em conselho de guerra. No dia 5 d'outubro, o marquez de Chaves, seguido de 5oo pai- sanos armados, de soldados e officiaes aventureiros, proclamou em Villa Real D. Miguel I. As tropas que guarneciam a villa, em vez de auxiliarem esse turbulento defensor do throno e do altar, carre- garam sobre os amotinados, e dispersaram-n'os. O marquez de Chaves foi obrigado a refugiar-se, com toda a familia, em Orense, onde teve enthusiastica recepção. Esta tentativa foi para embaraçar as eleições que então se realisavam. N'aquelle mesmo di&, rebentou a revolução miguelista em Villa Real de Santo António, no Algarve. O tenente coronel Martins Mestre, auxiliado por um capitão Cabreira, sublevou o regimento d'infanteria 14, com 200 homens, e 84 praças de caçadores 4. Dirigiram-se todos a Tavira, e aqui instalaram um governo 63 provisório, em nome de D. Miguel I com a regência de Carlota Joaquina. O presidente era o desembargador Manuel Chrisiovam de Mascarenhas, que acabava de ser eleito deputado. De Tavira os revoltosos marcharam sobre Faro. Á sua approxi- mação, o conde d'Alva, governador das armas, e bem assim o bis- po, retiraram-se para Mertola. Aquelle mandou a todas- as auctori- dades da província que não obedecessem á junta miguelista. Em seguida, participou para Lisboa, pedindo soccorros. De accôrdo com o governador do Alemtejo, tomou algumas providen- cias e medidas de resistência. Foi n'este momento que Saldanha deu as primeiras provas do Seu arrojo, energia e intelligencia. Elle rompeu com os ridículos e mesquinhos escrúpulos das regiões officíaes e da maioria dos seus collegas do ministério. Fez pacto com os vintistas^ os únicos since- ros liberaes; chamou ás fileiras grande numero de officiaes demit- tidos pela sua aíTeição áquelles princípios, e com elles marchou para o Algarve. Formou uma divisão composta de duas brigadas de infanteria e cavallaria, sob o seu commando. Ao mesmo tempo, organisou uma esquadrilha para ir bloquear os portos d'aquella província. Saldanha cahiu de improviso sobre o Algarve. N'este comenos, o conde de Alva conseguira reunir uma força de tropas de linha e de milícias, Os miguelistas, vendo-se perdidos, abandonaram, a 1 2 d'outubro, a cidade de Faro, depois de saquearem todos os cofres públicos; e dirigiram-se a Tavira, que deixaram no dia 20, fugindo pre- cipitadamente para Ayamonte. N'esta fuga muitos morreram afogados no Guadiana pelo ter- ror que d'elles se apoderou, ao terem conhecimento da marcha de Saldanha. O conde de Alva, quando entrou em Tavira, ainda aprisionou uns 3oo revoltosos. Saldanha foi recebido em Lisboa no meio de um verdadeiro triumpho, pelo bem que dirigiu as operações, e por se ter unido aos verdadeiros liberaes, que o auxiliaram com enthusiasmo e 54 dedicação. E assim os vintistas^ sempre insultados e injuriados, mais uma vez ajudaram a vencer a causa cartista. Ainda no norte houve nova tentativa dos miguelistas, ou rea- listas puros. Umas duzentas e tantas praças de caçadores, que sahiram do Porto sobre Chaves, ao chegarem a Villa Pouca, revoltaram-se e tentaram matar os officiaes que lhes resistiram. Desertaram depois para Hespanha, onde se uniram á divisão do marquez de Chaves. Por essa forma abortaram todas as tentativas dos apostólicos, ou realistas puros, para derribarem a carta e obstarem ás eleições para deputados. E aqui teem os nossos leitores uma prova de como o paiz desejava o regimen absoluto e aborrecia a liberdade. Agora cumpre-nos saber o que se passava, no entretanto, nas cortes estrangeiras, em quem os realistas puros depositavam toda a confiança e de quem esperavam apoio. A questão portugueza passou para os gabinetes europeus, como se estes fossem realmente os árbitros dos nossos destinos. A França e Áustria protestaram logo contra a intervenção de Stuart e contra a sua missão a Lisboa. Canning apressou-se a declarar a Metternich que aquella mis- são nada tinha de oííicial. Stuart foi apenas portador particular das medidas e decretos de D. Pedro, o que, na verdade, não era assim. O mesmo ministro britannico disse que tinha dado ordens para que Stuart regressasse, logo que tivesse concluído a sua missão. A França exigiu ao gabinete de Londres que se convocassem em Portugal as três ordens do reino, a fim de decidirem as ques- tões pendentes. Canning fez ver a lord Greenville o perigo de tal convocação, dizendo-lhe que em Portugal aquellas assembléas tiveram, por vezes, faculdades illimitadas, e que a sua actual convocação apre- sentava diííiculdades e duvidas insuperáveis. Lord Greenville assim o fez constar ao gabinete francez. Em Londres, continuaram a haver frequentes reuniões dos 56 ministros, para ti'atarem dos negócios de Portugal. Ahi resolveu-se dirigir circulares a todas as cortes, declarando-lhes que a Ingla- terra nada influirá nas determinações de D. Pedro, e que não pre- tendia ingerir-se nas questões da politica interna portugueza! De Londres informou Palmella ao conde do Porto Santo o seguinte : «Consta-me que por este mesmo paquete vae um correio prus- siano expedido de Berlim para Mr. Voyer. «E provável que seja portador de instrucções relativas ao nosso estado de coisas em Portugal. Na embaixada austriaca, em Lon- dres, tem havido n'estes dias passados muita actividade, receben- do-se e expedindo-se correios para Vienna e Paris. Devo dizer que a linguagem dos empregados d'essa embaixada denota bastante desapprovação e desgosto pelas medidas adoptadas a respeito de Portugal, sobretudo pelo apoio indirecto que o ministério inglez mostra prestar a estas medidas. uEm geral todos os agentes diplomáticos das principaes potencias se' occupam ferverosamente em indagar quaes sejam os sentimentos e intenções d'este gabinete^ no caso de se manifestar alguma resistên- cia as disposições do soberano^ ou de haver demora na sua execução. Todos aguardam também com impaciência as primeiras noticias de Lisboa, na esperança de que lhes forneçam pretexto para mani- festarem uma espécie de opposição (i).» Em Londres, Paris, Vienna, S. Petersburgo, Berlim e Madrid, succediam-se a miúdo os conselhos de ministros, e activava-se a correspondência entre esses gabinetes. O povo portuguez não era soberano, e, portanto, nada tinha com as questões pendentes; per- tenciam ás coroas ! Fernando VII oppunha-se obstinadamente a que em Portugal se proclamasse a carta. E citava o exemplo do duque de Angou- leme, para invadir o nosso paiz. e oppòr-se a mão armada áquelle acto, que ia influir immediatamente em Hespanha, e animar o par- tido liberal. (i) Despachos e correspondências do duque de Palmella Tomo 11, pa:;. 40j). 56 O governo hespanhol, mal teve conhecimeríto do juramento da carta e dos festejos com que foi celebrado em todo o paiz, enviou uma circular aos intendentes, ordenando-lhes que vigiassem pela ordem publica e tomassem medidas enérgicas, para obstarem a quaesquer tentativas do partido liberal. Recommenda-lhes a maior vigilância sobre os espíritos turbulentos, que desejam, diz o governo, precipitar o paiz na desordem e anarchia, especulando com as noticias que circulam a respeito de Portugal. Diz a mesma circular que os intendentes vigiem por que «o espirito publico e a opinião geral sejam de amor e obediência^ e morrer pelo rei.» Fernando VII convocou a conselho todos os ministros e propoz- Ihes um exercito de observação na raia de Portugal, á imitação da França em 1822. O conselho achou perigosa essa medida, que podia provocar a immediata intervenção da Grã-Bretanha em Portugal. Decidiu que se rompessem todas as relações com o governo portuguez; que se publicasse um manifesto ao paiz, fazendo-lhe constar que nenhuma mudança na forma legal do governo seria jamais con- sentida, e que se empregassem todos os meios, para se provocar a anarchia e a guerra civil em Portugal 1 O nosso ministro em Madrid recusou- se a jurar a carta consti- tucional, por cuja motivo foi demittido e substituído pelo conde de Villa Real. E emquanto este não chegava ao seu destino, foi encar- regado da mesma embaixada o ministro da Grã Bretanha! Este protestou immediatamente contra a escandalosa protecção dada ao visconde de Monte Alegre e a Magessi. O governo hespanhol recusou-se, por muito tempo, a reconhe- cer o conde de Villa Real! Muitos liberaes hespanhoes fugiram para Portugal, para oífere- cerem ao governo os seus serviços generosos; com elles vieram muitos officiaes do exercito. O governo hespanhol ousou reclamar ao nosso a entrega de todos esses emigrados, afim de os mandar fusilar! O governo portuguez mandou-os para Borba, o que serviu de pretexto para o governo visinho auxiliar escandalosamente a en- trada e sahida dos miguelistas pela raia. 57 Canning abriu negociações com o governo francez, para este re- conhecer o novo estado de coisas em Portugal. Elle foi expressa- mente a Paris, e facilmente convenceu Carlos X, e seu governo, de que o regimen da carta de D. Pedro em nada ditfcria do da carta d'aquelle monarcha. Não se tratava de uma conquista do povo, mas de um dom espontâneo da coroa ; não era a liberdade a dictada pela nação, ou pela soberania popular, mas a de uma carta de alforria dada por um senhor feudal a seus vassallos, ou uma con- cessão do {sl\ poder legitimo. A liberdade era regulada cautelosamente pela coroa, de modo a não dar largas ao povo, nem a conceder-lhe direitos de soberania. Por este modo Canning conseguiu a adhesão da França á poli- tica de D. Pedro e a todos os seus actos. Por influencia do mesmo ministro, as potencias do norte entra- ram no caminho da conciliação, depois de terem verdadeiro conhe- cimento do que era a carta constitucional, toda filha da Santa Al- liança. Metternich é que não esteve mui disposto a abandonar a causa de D. Miguel, tutellado do imperador e protegido por toda a aristo- cracia de Vienna. Era contrario á carta e seu regimen. Em presença da attitude da França e da Grã-Bretanha, aquelle astuto diplomata mais uma vez mudou de táctica. Resolveu auxiliar occultamente D. Miguel e Fernando VII, para promoverem a guerra civil em Portugal, para diííicultarem o novo regimen estabelecido, e darem com elle em terra. Os mesmos planos executados contra a revolução de 20. Metternich procedeu d'ahi por deante com a máxima dissimu- lação, para occultar o seu decidido apoio ao partido realista puro de Portugal, ou á causa de D. Miguel, protegida claramente por Fer- nando VII. Aconselhou D. Miguel a que procedesse com a mesma dissi- mulação, até obter para si a regência, para o que elle empregaria todos os esforços. Obtida e regência, ou o poder, D. Miguel facilmente podia pnj- clamar-se legitimo successor do pae. 58 É para nós ponto de fé que foi aquelle astuto estadista que acon- selhou D. Miguel a que reconhecesse o irmão, acceitasse os es- ponsaes com a sobrinha, jurasse a carta e fingisse transigir com a nova ordem de coisas, afim de facilmente obter para si a regência. Aqui teem os nossos leitores as poderosas influencias estrangei- ras que determinaram a attitude da regência e do ministério no- meado por D. João VI ante os decretos de D. Pedro, e que anima- ram a insurreição miguelista, que esperava ser protegida pela diplo- macia europea. A intervenção de Canning, e a nova attitude da França obsta- ram a que a Áustria e a Hespanha interviessem directamente a favor dos realistas puros portuguezes. Estes viram -se abandonados pelas potencias e succumbiram na lucta. O novo governo portuguez, apoiado pelo exercito e pela maio- ria da nação, poude vencer a insurreição dos apostólicos e feotas, ou defensores do throno e do altar. Essa insurreição não encontrou ecco no paiz, que evidentemente era pelo regimen liberal da carta, o único n'este momento possível deante da Santa Alliança e da at- titude das coroas. CAPITULO III O PAPÃO DE 1820 Influencia dji revolução de 1820 em toda a Europa. — Os realistas constitucionaes receiam que a carta leve o paiz a 1820.— Elles eeforçam-se por deliminarem bem a época de 20, que insultam e injuriam. — A soberania na- cional é todo o pesadolio dos cartistas. — Estos antepõem a cila os direitos absolutos do throno.— Cannmg insta com o governo portuguoz para que extreme bem a carta emanada do throno da constituição de 20, ema' nada do povo. — A Inglaterra não quer que Portugal volte a 20.— O governo portugiicz obedcccihc — Novas instancias de Canning com o novo ministério, para que faça constarão paiz que elle não volta a 20, e que está sob o regimen do throno.- O novo ministério, procede n'esta conformidade. — Circular do ministério da justiça. — Pastoral do patriarcha e dos bispos. — Os cartistas exaltam os direitos do throno, como os vintis- tas outr'ora os direitos do povo. — Reconstituição do ministério sahindo do Guerreiro. — Lei contra a im* prensa. — A Inglaterra exige que o governo intervenha nas ele çócs, para evitar que saiam eleitos os homens de 20.— I*almella aconselha o mesmo ao govenio — As povoações do reino elegem, não obs, ante isso, a maior parte dos homens de 20. — l'almella, por conselho de Canning, insta com o governo, para que torne as ses- sões do parlamento secretas.— Palmella envia obras moderadas para convencerem os deputados eleitos. — Abertura do parlamento.— O governo quer impor ás duas casas do parlamento os regimentos aconselhado» pela Inglaterra. — As duas casas do parlamento defendem a sua independência. — Nomeação do conselho de estado. — Propostas dos vintistas a favor de D. Pedro. — Proposta de Pereira do Carmo — Rejeição d'essa proposta.— A camará popular sae da espliera da sua iniciativa própria. - O governo reage.- - Encerramento das cortes. Como os nossos leitores teem visto, a revolução de 20, esse grito de liberdade e independência soltado pelo povo. fez profunda sen- sação, tanto dentro, como fora da peninsula, ou em toda a I-^uropa. Elle abalou profundamente todos os thronos, que logo se encosta- ram uns aos outros, para se firmarem; e entre si fizeram pactos contra os povos. Agora que se trata de firmar os direitos inauferivcis do throno portuguez contra os da nação, pronuncia-se immediatamente a ri- validade mesquinha dos defensores da carta com os que, em 20, defenderam a soberania nacional, ou os direitos do povo. Apode- rou-se d'elles o mesmo susto, que n'aquella época se apoderou das coroas e dos realistas puros. A carta concedia certas liberdades ao paiz ; e apesar de ellas 60 estarem completamente sophismadas, os cartistas receiaram que o povo se pudesse escapar por essas pequenas portas abertas no re- cinto apertado em que o encerraram. Foi esta a principal e pri- meira preoccupação das administrações cartistas d'esta época. Tudo menos que o povo proclamasse os seus direitos e se decla- rasse livre. Os cartistas, ou realistas constitucionaes, concentraram toda a sua acção em fortalecer bem os direitos do throno, ou do chamado poder legitimo. O poder legitimo era a soberania do rei, como a única soberania do estado, á similhança do regimen abso- luto anterior. As apparencias da carta podiam fazer convencer ao povo que elle era realmente livre e também soberano. Urgia contel-o dentro dos estreitos limites da mesma carta, e reduzil-o ás condições an- tigas de vassallo. E no periodo de 26 que o regimen da carta outorgada se de- finiu melhor; por isso que havia empenho, quer nas regiões ofiiciaes e quer nas cortes estrangeiras, em que isso se fizesse bem clara- mente. Desejou-se mostrar ao povo que elle realmente não gover- nava, nem participava dos negócios do estado. O estado era o rei, único soberano de facto e de direito. Se o povo ficava com algumas liberdades, era isso por um di- reito e dom exclusivo do throno. Não se tratava de um direito nato a elle; mas de uma graça regia, por que devia manifestar-se grato e reconhecido ao immortal dador. A representação nacional foi, no entanto, um perigo para o re- gimen da carta, e o direito de eleição uma concessão imprudente. A carta, dada por um rei estrangeiro e inimigo de Portugal, es- cripta em paiz estrangeiro, e dictada por este estrangeiro, trouxe comsigo fatalmente a influencia do mesmo estrangeiro em Por- tugal. O concelho de regência e os ministros nomeados por D. João VI nada quizeram resolver, sem saberem o que pensavam e deli- beravam as potencias com respeito aos nossos negócios. O novo ministério nomeado pela regente Izabel Maria tornon-se egualmente instrumento da politica estrangeira. Era das cortes europeas. e so- 61 bre tudo da Grã-Bretanha, que vinham as ordens e as inspirações para o governo portuguez. Não se estava, como em 20, em um regimen nacional, mas sob os regimens das coroas. Em 1 2 d'agosto, escrevia Palmella ao conde de Barbacena o se- guinte: «O ponto essencial, na opinião de Mr. Canning, é que a atiitude do nosso governo seja firme e moderada e sua marcha sincera e comedida, de modo que se reconheçam os effeitos de uma constitui- ção legitimamente emanada do throno, e não de um transtorno seme- lhante ao de 20. Por este motivo desejaria Mr. Canning que pudesse continuar a exercer o seu emprego o sr. conde do Porto Santo, como já em outro oííicio manifestei mais largamente. E não dissimula a sir Wiliam A" Court os graves inconvenientes que na sua opinião teria a nomeação do ministério que as gavetas franceias annunciam, pelo receio que existiria 7ios gabinetes continentaes, pela lembrança do tempo passado que recordaria. » Refere-se a Trigoso e a Guerreiro, homens de 20! Em 20 d'agosto, informa o mesmo Palmella ao ministro dos negócios estrangeiros, D. Francisco d'Almeida, do seguinte: «Verá V. ex.'"* que .Mr. Canning se explica de um modo mui ami- gável e satisfatório com sir Wiliam A Court acerca das relaç(3es que o mesmo embaixador deverá manter com o ministério nova- mente escolhido pela senhora infanta regente; ao mesmo *cnipo que repete as exhortaçóes já varias vc^cs feitas, para que se proceda ao estabelecimento do novo systema com toda aquella moderação e pru- dência., que uma tal mudança exige, c para que se mantenham illcsas as prerog atiras do throno. manietada a revolução de 20! >^ Que ódio á patriótica revolução de 1820I Almeida Araújo, ex ministro da regência nomeado por D. João VI, define muito bem a politica seguida pelo novo ministério, de accordo com as ordens de Londres. São tão caracierisiicas as pa- lavras d'aquelle escripior, que pedimos licença a nossos leitores para as transcrever. Diz elle : «Era forçoso, portanto, nV\stas circumstancias, fazer conliccer 62 á Europa que o governo portuguez conservava a força e dignidade competente a uma monarchia, e não fornecer pretexto aos mal inten- cionados^ para convencer o povo e os gabinetes estrangeiros de que se voltava á revolução de 1820^ senão com as mesmas formas^ de certo com os mesmos fins. Era preciso que o governo se cobrisse com tal escudo de realismo e de legitimidade^ que satisfizesse os verdadei^ ros realistas e tirasse aos falsos qualquer pretexto de agressão.» (i) Os falsos são os vintistas; as aggressões ao throno. Eis ali perfeitamente definido o programma politico de todos os ministérios cartistas, recebendo ordens e inspirações do gabi- nete de Londres. Os realistas constitucionaes entenderam, coherentemente com os seus principios, que era preciso cobrir o novo systema politico com o escudo de realismo e de legitimidade, para o fortalecer bem, para definil-o claramente, e para atrahir a si os realistas puros. Elles qui- zeram dar ao governo, ou ao poder executivo, a força e dignidade competentes a uma monarchia. E para conseguir isso, não tinham senão um meio: guerrear sem tréguas a revolução de 20 e sua cons- tituição, o genuino e verdadeiro systema da liberdade dentro da monarchia. De accordo com as instrucções do governo britannico, e para o satisfazer, o novo governo portuguez surge com circulares ás auctoridades, esclarecendo-as acerca do novo regimen politico, inteiramente opposto ao de 20, e injuriando esta nobre e patriótica revolução nacional! E' o mesmo José António Guerreiro, actualmente elevado aos conselhos da coroa, que se encarrega de desacreditar a sua obra própria! Na circular que aquelle ministro dirigiu ás auctoridades judicia- rias, diz elle que são precisas garantias solidas e indestructiveis, que defendam o throno das revoluções e dos seus abusos; e diz que a carta é o maior penhor, não só nente d'essas garantias, como tam- bém da paz e estabilidade das instituições. E accresct;nta : (i) Chronica da rainha D. Maria II. (Tomo I, pag. 1)7). 63 «O que distingue essencialmente as instituições dadas livre- mente pelo soberano legitimo das que são dictadas pela força, ou ar- rancadas pela revolução^ é que estas começam destruindo tudo, para reedificarem em tempo incerto^ e aquelles conservam quanto foi legi- timamente estabelecido^ para reformar a pouco e pouco. A revolução ameaça todas as existências e todos os interesses ; a legitimidade pro- tege todos os direitos e todos os indivíduos !» Compare-se aquella linguagem de Guerreiro, ministro da coroa em 1826, com a usada em seus discursos nas cortes de 20, como representante do povo. Quando era sincero e falia va a verdade !* A circular do intendente geral da policia, Bastos, afina pelo mesmo tom. Das auctoridades ecclesiasticas surgem pastoraes egualmente hostis ao tal maldito regimen de 20, a que ellas dão todos os no- mes feios e injuriosos. Se o throno se mostra indignado com essa conquista do povo para o povo, a egreja excede-o, se é possivel, no seu furor contra ella, filha da maçonaria e da pedreirada. Não é para admirar. A carta, como o absolutismo, ou a monar- chia divina, é também o regimen do throno e do altar, unidos con- tra a liberdade e a democracia. Diz o patriarcha em sua pastoral. «A constituição de 1822 foi obra, como sabeis, de uma facção rebelde que usurpou o poder soberano c se arrogou o direito de dis- por da nação e de seus destinos; as cortes coujutcadas. sem auctori- dade legitima., não a podia receber de quem a fuío tinha, para Uia dar. L sem esta todas as suas leis tra\iam comsigo a sua intriseca nullidade. Pelo contrario^ a carta constitucional de -jC) de abril bai- xou do throno; dictada expontaiwaiucutc pela auctoridade suberana do nosso augusto iiionarcluu em que reside o poder legisla/iro que vi- gorisa todas as leis. Aquelle, pelo choque dos elementos de que se compunha, des- organisou a monarchia até aos seus fundamentos: Ivausliniinu to- das as suas antigas i)is!iluições: despojou Je seus fnms c prwiie- i'7o.s- as classes e é^erarchias mais Jisíiiictjs: inraJin ns sj:jrados 64 direitos da propriedade^ que tinha promettido defender; aviltou o throno de nossos reis^ roubando-lhe a soberania, e foi o que exacta- mente se podia esperar de uma constituição revolucionaria. » E são, na verdade, esses os aggravos da democrática e liberal constituição de 20, sem rodeios, nem sophismas. A pastoral do bispo de Bragança também se esforça por marcar bem os limites que se- param a carta outorgada, baseada no realismo constitucional, da constituição de 20, baseada na liberdade e na soberania do povo. Diz aquelle prelado aos seus diocesanos o seguinte. «Tendes um penhor na palavra da sereníssima infanta regente, que na sua proclamação nos assegura que não é a carta constitucio- nal, que agora se vos apresenta e manda jurar, aquella antiga cons- tituição que era assim pasto da rebellião, como fecunda origem das maiores fatalidades; que ella é essencialmente diíferente da que no anno de 1822 abortou do seio de uma facção revolucionaria, e que encerrava em si princípios destruidores dos vínculos sociaes ; trans- tornava os alicerces do throno; espoliava as diversas ordens do estado e estabelecia uma democracia grosseiramente disfarçada; mas que, pelo contrario, é um dom expontâneo do poder legitimo, em que a nossa santa religião., e só ella., é respeitada, as ordens do estado conservadas e a dignidade da monarchia mantida com todo o esplendor e com todos os seus direitos. » Esta é que é a verdade pura. E aqui teem os nossos leitores os realistas constitucionaes co- piando exactamente as proclamações e escriptos dos realistas puros em 1823, e n'esta mesma época de 1826! O marquez de Chaves, em suas proclamações, não se mostrava mais irritado contra os re- volucionários de 20 e a sua constituição, do que os cartistas! Os manifestos e proclamações d'aquelle caudilho do absolo- tismo, de Alagessi e do visconde de Monte Alegre, também atacam de egual modo os vintistas e a sua obra democrática. A constituição de 20 foi tão guerreada pelos realistas puros, como pelos realistas constitucionaes! Todo o empenho d'estes foi lançar o descrédito sobre o regimen de 20, e tornal-o odioso ao povo ! G5 Realistas constitucionaes e realistas puros juntos andaram em- penhados n'essa tarefa. Não só os documentos ofliciaes levantaram essa cruzada ingrata, mas a própria imprensa cartista, que não cessou de accusar e injuriar os homens de 20 e com elles o regimen liberal 1 A soberania nacio- nal era todo o seu pesadello, e o que mais a assustava. Ao mesmo tempo que amesquinham e procuram tornar odiosa a Revolução de .20, os cartistas exaltam o throno e os seus inaufe- riveis, e sustentam ardentemente a soberania real, como os vintistas outr'ora defenderam a soberania nacional! E, na verdade, foi na regia soberania, proveniente do direito divino e feudal, que elles d'ahi por diante procuraram vigorar todas as leis e instituições do paiz. O mesmo que os realistas puros, defen- sores do puro legitimismo, ou do puro absolutismo. Os realistas constitucionaes, ou cartistas, faziam lembrar o in- consequente Napoleão I, que, batendo na Revolução que o elevara, batia em si mesmo. Os realistas puros aproveitaram-se habilmente da cruzada que os realistas constitucionaes levantaram contra a Revolução de 20 e sua constituição libérrima, para d'ahi tirarem argumentos contra elles. Em suas proclamações e escriptos não cessaram de mostrar que a carta constitucional era filha da mesma liberdade e da Revo- lução, que os defensores d^ella procuravam tornar odiosa. Diziam elles muito bem que a carta era egualmente filha da maçonaria e do espirito revolucionário do século, que todos es- tavam empenhados em debellar. D. Pedro com a carta constitucio- nal cedeu á maldita Revolução; e se esta era odiosa e um crime para os constitucionaes, esse ódio e crime recaiam immediatamcntc sobre elles mesmos. Não faziam senão propaganda contra si. A carta, diziam os legitimistas puros, é filha da Re\'oIução; c se esta é o transtorno geral da ordem social, se e a anarchia, v, ruina dos thronos e um ataque á religião, aquella não pode deixa: de participar dos mesmos males e inconvenientes. Os realistas puros lançavam muito bem sobre a carta o odioso 66 que os cartistas lançavam sobre a Revolução de 2«. E d'isso tiraram, na verdade, grande partido. De nada valeu a circular, vergonhosamente assignada por José António Guerreiro. Este foi despedido ; porque a Inglaterra lhe não perdoou a cooperação d'elle na maldita Revolução de 20. Foi dos mais salientes na defesa da pátria e dos princípios d'aquella época ; não convinha no ministério cartista. E para se agradar á Gran-Bre- tanha, Guerreiro teve que sahir. Trigoso era dos moderados, sabujo da realeza e adulador dos thronos. Como mostrámos na Historia da Revolução de 20^ cons- pirou sempre ás occultas contra ella. Ficou por isso no ministério. Apenas Saldanha representava, em o ministério reconstituído, o partido liberal, mas não era vintista. Elle entrou em 1823 á frente das tropas que desertaram com elle mesmo para Villafranca. Per- tencia á esquerda dos realistas constitucionaes. A Grã-Bretanha ficou satisfeita com a recomposição ministrial. Procedeu-se ás eleições para deputados ; o governo tratou im- mediatamente de comprimir a opinião publica, afim de que se não fizesse propaganda a favor dos princípios liberaes e dos homens de 20. Assim que a carta foi publicada ofificialmente, começaram a apparecer jornaes políticos em defesa do regimen liberal. Não convinha que dos prelos sahissem escriptos que despertassem o povo. Como dissemos, a concessão do voto foi das mais perigosas para o regimen cartista, com o qual está em aberta opposião. To- dos os sophismas da carta são poucos, para tornarem as cortes me- ramente consultivas. Os dadores das cartas não conseguiram, nem podiam conseguir totalmente, os seus desejos. Com receio de es- tabelecerem claramente essas cortes dos velhos regimens, lançaram mão de mil expedientes e rodeios, para embaraçarem o voto e do- minarem os parlamentos. Alas sempre ficaram portas abertas á Re- volução, por onde o povo podia escapar-se. A propaganda pela imprensa podia excitar no povo desejos de en\iar ao parlamento homens independentes; isto não convinha. 67 Urgia evitar, por todos os modos, sobre tudo que viessem os ho- mens de 20. Nas vésperas das eleições o governo, valendo-se do vago e ge- nérico das garantias da carta, publicou, em i8 d'agosto, uma lei de imprensa vexatória e oppressora. Basta dizer que restaura a velha censura prévia! Diz o próprio preambulo que o decreto tem em vista evitar os geraes inconvenientes que de uma demasiada licença se tem já expe- rimentado. Refere-se aos festejos de Lisboa e Porto e aos artigos publicados nos jornaes recentemente creados em defesa dos princi- pios da Revolução! O governo quiz, com essa lei, dominar a corrente que logo se estabeleceu no paiz no sentido das idéas liberaes, que todos inge- nuamente suppunham, filha legitima da carta. E para que essa propaganda pela imprensa não ultrapassasse os limites do código politico, o governo apressou-se a restabelecer a censura previa, e a reprimir a opinião publica! Convinha disciplinar o paiz, para que elle se não desviasse do caminho traçado pela carta, ou pelo soberano que a outorgou. Essa lei de imprensa não é tão filha da occasião, como affir- mam os que tratam d'esta época. V. obra de Trigoso, que nunca foi realista puro enão pertenceu ao ministério anterior, e é filha le- gitima da carta. Todas as leis de imprensa do constitucionalismo teem sido até hoje da mesma Índole e natureza. Novas instrucções vieram da corte de Londres n'este momento. Em 9 de setembro Palmella informa o nosso ministro dos ne- gócios estrangeiros do seguinte : "Sobre tudo conviria não perder de vista um ponto bem essen- cial que Mr. Canuiu^ não se atreveu a tocar por cscripto: c vem a a ser o empregar o governo., com reserva e decoro, a iuflucucia ju- cessaria., para que as eleições não recaiam mais do que sobre empre- gados públicos e membros da nobre\a, seja de Lisboa, ou das pru- rincias., em proprietários, ou capitalistas, para que se cri/e especial- mente a eleição, n'esta primeira legislatura, dos que em iS 20 repre- sentaram papeis Conspícuos. 68 ii Embora não appareçãjii muitos talentos brilhantes^ contanto que haja pessoas honestas eque oífereçam garantias de tranquillidade.» Não eram pessoas honestas que desejava Palmella e os seus amigos inglezes. Isso foi um meio diplomático de disfarçar o seu verdadeiro pensamento. O que se não queria eram homens de ta- lento brilhante^ mas mediocridades, dóceis e fáceis de serem enga- nadas. O que se não queria eram os homens conspicuos de 20, que mostraram independência e patriotismo, seja contra o throno, seja contra a Grã-Bretanha. Esta exigia que o governo portuguez usasse da sua influencia, para que as eleições recahissem sobre tudo em empregados públicos, dependentes do mesmo governo, em nobres e morgados, idiotas e ignorantes, e na alta burguezia, ávida de honras e distincções, e sempre inimiga das classes populares. No mesmo ofíicio, Palmella informa que Mr. Canning mani- festa desejos de que os debates das duas casas do parlamento por- tuguez não sejam públicos, e que sejam o mais coarctados e res- tringidos que se possa, para se evitarem opiniões radicaes. Ap- plaude muito a lei de imprensa publicada, a qual, diz elle, produziu em Londres bom efFeito e foi mencionada com elogios pelos agentes das potencias continentaes, dissipando-se n'ellas os primeiros receio f do abuso que já d' essa liberdade se tinha feito em Portugal. Aconse- lha, ao mesmo tempo, medidas de rigor contra as sociedades secre- tas, o foco, diz elle, de todas as Revoluções! E vejam nossos leitores o ódio que sempre votou ao regimen liberal em Portugal a Grã-Bretanha, que d'elle tirou óptimas van- tagens e com elle se regenerou ! Essa egoista nação queria a liberdade só para si. Não convinha a Portugal, porque lhe despertava, como em 20, os seus brios patrió- ticos, e os desejos da sua regeneração. Essa usurária promoveu sempre a nossa desgraça, para nos poder espoliar mais á vontade. No despacho de 27 de setembro, Palmella diz que os últimos despachos recebidos do nosso ministro dos negócios estrangeiros confirmam a justa inquietação que havia acerca da crise das elei- ções, de cujo acerto, diz elle, dependerá em grande parte o bom, ou máu êxito da causa «em que estamos empenhados.» 69 Diz que o governo tem de lactar contra dois partidos extremos, egualmente perigosos, o dos rintistas e o dos realistas puros; mas que estes são mais para temer, do que aquelles, no momento dado, por- que teem mais apoio e meios, para subverterem a carta. E accres- centa. «O melhor recurso contra esse perigo não é, na minha opi- nião, procurar apoio no pari Uo contrario; mas^ sim, mostrar que os revolucionários de 1S20 não triumpham : n'uma palavra, convém fa- zer o que vejo que a senhora infanta regente e seu ministério já teem começado a fazer, o que o cardeal patriarcha excellentemente disse na sua pastoral e o que Mr. Canuing tem aamselhado : deve- mos cobrir-nos com tal escudo de realismo e de ligitimidade, que satisfaça os verdadeiros realistas^ e que tire aos falsos qualquer pre- texto de aggressáo. » Ninguém dirá que íalla um miguelista, ou realista puro, como se diz a respeito da pastoral do patriarcha, para se tirar de cima da responsabilidade dos cartistas as suas expessões, que são realmente as verdadeiras, e as que mais se harmonisam com o regimen da carta. Se melhor aconselhou o governo britânico, melhor o fez o go- verno portuguez. Este não se contentou só com o regimen absoluto da carta, com a lei eleitoral publicada e com a lei contra a im- prensa ; elle empregou, alem d'isso, todos os meios para fazer vin- gar as candidaturas officiaes. Não obstante a guerra tenaz, declarada, tanto pela Grã-Breta- nha, como pelo throno, aos homens de 20, agora de armas en- sarilhadas e inotfensivos. as povoações do reino não deram ou- vidos ás intrigas. Falias elegeram a maior parte dos homens que mais se distinguiram n'essa época, e que, ou não morreram, ou se não retiraram da politica desanimadí^s. Kntre os eleitos fi- guram Borges Carneiro, Soares Franco, Bento Pereira d(^ Carmo, Pessanha, F>Lirreto Feio, Serpa Machad<), Gonçalves Je .Miranda. Guerreiro e muitos deputados das cortes legislati\as. As eleições terminaram a S d'outubr(). Assim que nas folhas estrangeiras appareccram aquelL-s nv^mes horrendos, levantaram-se de nov(j os surtos das cortes eiiropea^. 70 A Grã-Bretanha ficou furiosa. É possível que viessem para Lisboa novas instrucções, para se annullarem os resultados d'aquellas eleições. O governo, no entanto, obteve maioria, ainda que muito fraca. Em 4 d'outubro, Palmella enviou ao nosso ministro dos negó- cios estrangeiros um regulamento das camarás dos pares e dos de- putados de França, o qual achou preferível aos regulamentos da Inglaterra, em que a discussão é mais livre. Era melhor que Portu- gal, seguindo os conselhos de Canning, adoptasse as sessões secre- tas da camará dos pares franceza, e o regimen disciplinario que os governos de Luiz XVIII impozeram á camará baixa. Palmella não se farta de enviar para a biblotheca das camará* obras dos jurisconsultos e publicistas moderados, e para moderar a exaltação dos deputados e das idéas vintistas. Em i6 d'outubro, envia um opúsculo escripto por Sir Samuel Romilly, e destinado a servir de norma á assembléa constituinte de França, quando no principio se suppunha que esta adoptasse o direito publico inglez. Foi traduzido em 1812 para hespanhol, afim de ver se as cortes o adoptavam. Tanto a França como a Hespanha rejeitaram esse regulamento, incompatível com o regi- men democrático adoptado por aquellas duas nações. Palmella accrescenta: «Deus permitta que sejamos agora mais felizes, e que as nossas camarás, em vésperas de se reunirem, sigam em tudo di- recção differente da que seguiram as assembleas de França e Hes- panha.» Aconselha a adopção do opúsculo, em que vê claramente indicadas as cautellas que a experiência fez adoptar. E accrescenta depois. «Julgo que poderá utilmente ser lido pelos nossos pares e deputados.» Moderação, muita moderação. Remette as obras de Blackstone e de Delome, as quaes, diz elle, conveem para as bibliothecas das cortes, e uma lista de outras que julga úteis para o mesmo fim. Urgia espurgar da cabeça dos deputados vintistas os seus princípios democráticos e nacionaes, e radicar n'elles os sentimentos monarchicos do povo inglez. A sempre maldita revolução de 20 abalou nos povos da península 71 O antigo monarchismo, que muito convinha despertar n'este mo- mento. No dia 3o d'outubro, realisou-se a abertura das cortes extraor- dinárias, proferindo a própria infanta o discurso da coroa. Este co- meça por copiar as phrases de Luiz XVIII, quando, no preambulo da sua carta constitucional affirma que os seus avós concederam outr'ora a seus povos cartas idênticas. A infanta diz que a monarchia portugueza, desde a sua origem, foi representativa, cedendo sempre os reis aos povos importantes di- reitos. Foi em virtude d'essa tradição dos reis de Portugal que D. João VI prometteu uma carta, que ora D. Pedro tem a gloria de conceder a seus vassallos. Em virtude d'isso, a infanta cxhorta os portuguezes a amarem muito os seus reis. E diz que espera que el- les continuarão a manter esse amor, não obstantes os funestos exemplos de 20 e da presente e outras rebelli(jes dos realistas puros, ou miguelistas. Aííirma a infanta as boas relações com as potencias estrangei- ras, e que estas hão de reconhecer que o actual regimen de Portu- gal é justo e moderado. Os factos acabarão por desvanecer as apre- hensões do governo de Fernando VII. Annuncia o casamento do infante D. Miguel com a rainha, sua sobrinha. Diz que as leis so- bre os municípios, sobre a divisão territorial e os códigos civis e penaes, cujos projectos apresentará o governo, consolidarão o novo systema. A instrucção do povo merecerá especial cuidado. .Mas não diz que esses projectos serão apresentados na presente sessão : falia genericamente. Accrescenta a infanta que a camará dos deputados Jerc /ixtir a sua at tenção cxclusivaiuciitL' fios Jois objectos da sua compete Jicia. isto é o do recrutamento e o dos impostos! Termina pedindo aos deputados que sejam o mais seifuro apoio Jo íhrouo. Este discurso, calculadamente feito, teve em vista, como a pro- clamação da mesma infanta, iniciar os deputados e o pai/, cm o novo regimen parlamentar, inteiramente oposto ao Jc 20. Desc- jou-se evitar que os deputados voltassem a esta cpoca internai, e que proferissem no parlamento discursos eguaes em favor Jo povo 72 e contra os direitos do throno. Foi outra advertência, para que a linguagem das novas camarás não afinasse pela de 20, de exe- cranda memoria, e para que o throno fosse sempre acatado em seus inauferiveis pelos novos representantes do povo. N'esse acatamento estava a alma do novo systema politico. De accordo com o discurso do throno, com a proclamação da regente, com a lei de imprensa, com os desejos de Canning e as instrucções de Palmella, o governo apressou-se a apresentar os re- gulamentos internos das duas casas do parlamento. Inspiram-se nas obras que aquelle nosso diplomata de Londres enviou para Lisboa. O governo desejou adoptar as caiitellas que a experiência tinha indicado aos modernos estados. Os novos regimentos, bem ao contrario do que foi adoptado pelas cortes de 20, procuram disciplinar, tanto os pares, como os deputados, para que não se excedam em seus discursos. O ministério, ou o poder executivo, entendeu que devia inter- vir na constituição das duas casas do parlamento, e regular a or- dem da discussão, afim de que esta não ultrapassasse certos limi- tes, ou os limites traçados por Canning. Aquelles regimentos foram recebidos hostilmente, tanto pela camará dos pares, como pela dos deputados. Estabeleceu-se assim o primeiro conflicto do poder legislativo com o executivo, que- rendo intervir em tudo, para em tudo dar ordens, em nome do throno. Na camará dos pares disse muito bem o conde de Linhares o seguinte: «Busca-se impor á camará um regulamento que, debaixo de aparências de ordem e regularidade, pôde, na realidade, ter um fim mui diverso, isto é, tolher a liberdade da mesma camará, e estabe- lecer, sem contestação alguma, precedentes, que possam convir para o futuro a um ministério previdente, e que desde já se mostra inclinado a cobrir-se de um prudente véo por meio de sessões se- cretas obrigadas» Assim o pedia e queria Canning; assim convinha aos direitos da coroa soberana. 73 O ministro dos negócios estrangeiros levantou-se com o rei na barriga; e em linguagem altiva e arrogante sustentou que o go- verno, ou os ministros da coroa, podiam, e deviam fazer os regi- mentos das camarás; por isso que eram a auctoridade legitima. Trigoso, em linguagem mais comedida e moderada, apresen- tou a mesma doutrina. Replicou energicamente o conde da Taipa, dizendo que o re- gulamento da camará alta era da exclusiva jurisdicção d'ella, e não do governo, que esse poder era inalienável, e que o não podi^ ella delegar em ninguém. A camará dos pares resolveu enviar o projecto á commissão respectiva, que foi de parecer que elle fosse approvado, mas não como decretado pelo governo. Foi acceite. A camará dos deputados é que não esteve por isso. Enviou o projecto a uma commissão, para o alterar na essência, e eliminar as suas disposições odiosas e attentatorias das liberdades parlamen- tares. Lá se foram os planos de Canning, e de Palmella. Malditos revolucionários de 20! A camará alta installou-se no palácio do governo, ao Rocio, e a camará baixa no Terreiro do Paço. No mesmo dia da abertura do parlamento, a regente nomeou o concelho d'estado de accordo com a carta. Foi composto, já se entende, de conservadores reaccionários e de moderados : o cardeal patriarcha, o duque de Cadaval, Pedro de Mello Breyner, Ignacio da Costa Quintella e o marechal de campo Carlos Frederico de Caula, todos puritanos. A egreja constitucional não queria senão gente orthodoxa e fiel á doutrina. O duque de Cadaval, realista puro, regeitou a sua nomeação e foi substituído pelo marquez de Olhão. ; Para mostrarem á Europa que a carta era acceite, por necessi- dade politica de occasião, por todos os partidos liberaes, e que os vintistas depunham n'este momento as armas, Boriícs Carnein^ e Pereira do Carmo proposeram medidas de reconhecimento e gra- 74 tidão a D. Pedro pela outorga da carta. Era dar-lhe força contra as tentativas dos partidários do irmão, ou dos realistas puros. Compáre-se aquelle procedimento nobre e generoso dos vintis- tas com o seguido até aqui pelos cartistas contra elles. Pereira do Carmo, depois de ter mostrado por aquella forma que n'este momento náo pretendia voltar a 20, e que estava dis- posto a defender D. Pedro contra D. Miguel, apresenta a sensata proposta para que aquelle seja reconhecido como legitimo rei de Portugal em um acto solemne assignado por todos os membros das cortes. Era cortar por uma só vez a questão da successão. As duvidas existentes ficavam definitivamente resolvidas pelo tribunal supremo do voto nacional, expressado pelas cortes do reino. Aquella proposta foi, porém, como bomba explosiva que reben- tou nas altas regiões do poder, onde provocou geral indignação. O que foi propor o vintista ! A infanta, os ministros da coroa, e os conselheiros d'estado, pro- testaram contra essa proposta, que era um ultrage e oífensa á co- roa, e um reconhecimento da execranda soberania nacional, que a carta não reconhecia, nem admittia. Pereira do Carmo apresentou aquella idéa mesmo na occasião em que mais se trabalhava, para que o paiz se convencesse de que não era soberano. D. Pedro era legitimo rei por graça de Deus e não do povo ; devia o throno aos seus antepassados e não á na- ção. Só elle era soberano e mais ninguém. A nação não passava de um património da coroa, ou da familia reinante. A proposta do ousado vintista mostrava que elle não queria en- trar na egreja politica da carta, e queria permanecer rebelde. A sua approvação seria o reconhecimenio do direito soberano concedido pela constituição de 20 ao paiz e ao povo, e seria uma humilhação afrontosa para a coroa. Por esse motivo foi recebida hostilmente por todos os realistas constitucionaes e peio ministério. Estes cahiram com furor sobre o ousado representante do povo que a tanto se abalançou. Estava provado que os homens de 20 não tinham emenda, e 76 que não queriam abdicar das suas idéas e princípios. A proposta de Pereira do Carmo causou geral alvoroço e susto entre os cartis- tas, que se suppuseram em plena época de 20! Levantou-se tal opposiçáo áquella medida, de alcance politico transcendental, que a camará repelliu-a como perigosa e contraria ao novo regimen estabelecido ! E por esta forma foi regeitado o único meio de se acabar com a questão de D. Pedro e D. Miguel, que tanto sangue custou ao paiz! Depois d'aquelle reconhecimento de D. Pedro, que direitos ti- nha D. Miguel á coroa portugueza? tantos quantos os filhos de Ignez de Castro contra os de D. João I, tantos quantos os Filippes contra os de D. João IV. Ante essa solemne manifestação da vontade nacional, as cortes estrangeiras não podiam oíferecer duvidas aos direitos de D. Pedro, nem proteger, portanto, a causa de D. Miguel. A insensata, systematica e mesquinha opposição da ciumenta realeza e dos cartistas a tudo quanto recordasse a soberania nacio- nal, mais uma vez, se voltou contra elles mesmos e prejudicou a causa da liberdade. N'este ponto D. Miguel foi mais intelligente e menos mesqui- nho, fazendo-se acclamar pelas três ordens do estado. Foi isto o que lhe deu toda a força perante a Europa. Mas como a proposta partisse de um vintista^ foi regeitada ! Essa regeição não fez senão enfraquecer os direitos de D. Pedro e fortalecer a causa de D. Miguel. Os realistas puros habilmente deduziram d'ahi que os representantes do povo e da nação tinham duvidas sobre os direitos de D. Pedro, e que por isso não ousaram pronunciar-se. Não param ainda por aqui as consequências funestas da mes- quinha politica dos cartistas contra os vintistas. O governo, todo preoccupado com o papão da revolução de 20, e attento só em debelal-a, limitou-se a apresentar projectos sobre a regularisação da fazenda publica e dos impostos, sobre a segurança da ordem publica, sobre a organisação das guardas cívicas, e a pe- dir um empréstimo e a suspensão das garantias, em presença da 76 insurreição miguelista, que deixava progredir com a maior indiffe- rença! Em vista d'isso, a camará dos deputados entendeu que devia tomar a iniciativa de projectos importantes, tendentes a consolidar o novo systema. Nomeou uma commissão para estudar as leis re- gulamentares da carta e apresentar as que eram mais urgentes. No dia 17 de novembro, a commissão nomeada apresentou o resultado dos seus trabalhos com uma longa lista d'essas leis, taes como a da divisão territorial, a da organisação dos municípios, de que fallou o discurso da coroa, mas que os ministros cautellosa- mente poseram de parte, um projecto de código administrativo, a divisão judicial e organisação dos tribunaes de 1 .^ instancia, das re- lações e do supremo tribunal de justiça, regimento da camará dos pares como tribunal criminal, organisação do conselho de estado, lei da imprensa, da inviolabilidade da casa do cidadão, lei deter- minando os casos em que o cidadão não pôde ser preso sem culpa formada, lei do processo criminal, e lei da responsabilidade dos funccionarios do estado. A camará dos deputados, ou dos representantes do povo, mais uma vez pretendera deitar as mãos de fora. O discurso da coroa advertiu-a, por mansas palavras, de que se devia occupar e tomar iniciativa só nos assumptos da sua exclusiva competência. Com aquella attitude a camará, não somente dava um cheque no go- verno, mas também tomava iniciativa em matérias da exclusiva competência d'este. Leis de imprensa, sobre a organisação dos municípios, sobre a inviolabilidade da casa do cidadão, de processo criminal, sobre a organisação dos tribunaes e sobre a divisão territorial, isto é, leis sobre todo o systema da carta emanadas da camará popular não convinham; eram perigosas. Essas leis importantes e graves deviam ser meditadas na alta sabedoria do monarcha^ e partir da iniciativa d'elle, ou dos seus mi- nistros, pessoas da sua inteira confiança. Partidas da camará po- pular, podiam levar a liberdade alem dos limites da carta, e con- verterem-se em democracia. 77 Para traz ! A camará baixa segundo a carta, não tem iniciativa n'esses importantes assumptos. Não estávamos em 20, de odiosa memoria. O governo oppoz-se a que entrassem em discussão aquelles projectos de lei, e impoz os que tinha apresentado. Era preciso mostrar á camará dos deputados que ella devia ser dócil ás von- tades dos ministros da coroa, e que devia circunscrever a sua ac- ção somente aos projectos de lei emanados do poder executivo. O governo, assim que obteve a approvação do empréstimo de dois mil contos de réis, e a suspensão das garantias, apres- sou-se a encerrar as cortes, sem que estas tivessem votado uma só lei regulamentar da carta ! A primeira sessão legislativa de 1826 foi completamente estéril; todas as leis da iniciativa da camará popular ficaram na gaveta ! As- sim convinha, para que ellas não levassem o paiz ao regimen de 20. O governo, ou os ministros da coroa, também com receio da intervenção do paiz em os negócios d'estado, não quiz acceitar o offerecimento dos estudantes de Coimbra, e mandou-os estudar; repelliu o offerecimento dos emigrados hespanhoes, estes patifes da constituição de Cadix. Por egual motivo, as milícias não foram chamadas, nem as guardas nacionaes foram organisadas! Nada de fortalecer o povo. O que urgia era fortalecer bem, e muito bem, a coroa, e levar a sua acção a todos os actos da vida politica, ou cobrir esta com o escudo da realeza, ou da legitimidade, de modo a tirar aos democratas, ou vintistas^ pretexto de aggressão aos direi- tos do throno. Todo o empenho dos ministérios cartistas d'este periodo foi desarmar o povo e o paiz diante da insurreição dos realistas puros! Queriam acabar a lucta só com a intervenção do throno e dos seus alliados do estrangeiro ; isto bastava. A coroa linha sufticiente torça e prestigio para vencer os seus contrários. E se a não tivesse, o povo vassallo podia mais que ella!' Isto podia lá ser? Se a coroa, que era toda a alma e energia do novo systema politico, não era capaz de vencer os realistas puros, tudo estava perdido para os cartistas, ou realistas constitucionaes. 78 E se O povo se levantasse n^este momento para resolver por si só o conflicto, seria elle que adquiriria toda a força e prestigio. A carta estava por terra. Foi este receio que levou os cartistas a guerrearem systemati- camente os vintistas e a empregarem os últimos esforços, para for- talecerem bem os direitos do throno, ou o principio da legitimi- dade e da realesa, em que fundaram todas as suas esperanças. CAPITULO IV O REALISMO CONSTITUCIONAL E O REALISMO PURO Posição falsa dos realistas constitiicionacs entre os realistas puros e os wn/zx/aí.— Communidadc de idéas entre os cartistas e os miguelistas. — Entre a soberania popular ou a democracia c o realismo puro, os realistas con- stitucionaes preferiam este. — Cannini! aconselha moderação* condescendência com os absolutistas puros — O partido miguelista aproveita-se d'isso, para se sublevar. — O marqucz de Chaves combina com os mais chefes do partido miguelista uma invasão simultânea desde a Gali/a até ao Algarve. — Entrada do marqucz de Chaves em Bragança.— -\ marqucza entra em Villa Real.— .Magessi invade o Alemtejo.— E obrigado a retirar-se para o norte pelo conde de Villa Flor.— Marquez de Chaves intenta cahir sobre o Porto— O gene- ral Claudino obsta a sua passagem pelo Douro —Relatório apresentado ás Cortes pelo ministro dos ncgo- gios estrangeiros.— Sessão do dia 4 de dezembro.— suspensão das garantias.— Resposta do ministro dos ne- gócios estrangeiros ao conde de Linhares na camará alta. -Tumultos no dia ó.— Queda do ministério — Intrigas para a formação do novo ministério.— Recomposição ministerial. — Abre-se devassa sobre os tumul- tos.— Medidas de repressão da opinião publica. — E annuni.iada pelo governo a vinda de uma divisão inglc- za. — O governo encerra o parlamento. Os cartistas viam-se entre a cruz e a caldeirinha. Se davam lar- gas á liberdade e ao povo, cabiam na democracia, ou no regimen de 20, que era a ruina do systema opposto da carta ; se compri- miam a liberdade e o povo, davam razão aos absolutistas, ou rea- listas puros, e fortaleciam a causa d'clles. Eram dois inimigos egual- mente temiveis. Verdade é que o perigo da democracia não era immediato. Os vintistas não sonhavam com o reivindicar n'este momento o.s direi- tos do povo; queriam vèr o ensaio do regimen da carta. Os mais temiveis inimigos eram os realistas puros. Estes, nem queriam o regimen de 20, nem o regimen da carta. Eram, ao menos, lógicos e cohcrentes. Eilntre a tão odiada democracia, ou governei do povo pelo povo. e o realismo dos absolutistas puro>. os realistas consiitucionacs preferiam este. 80 ** Uns e outros eram partidários do throno; pouca ou nenhuma differença de principios separava aquelles dois partidos. Ambos ti- nham uma origem commum : a chamada legitimidade, ou os direi- tos inauferiveis das coroas, contra os do povo; e tinham egual- mente um inimigo commum, a democracia, ou a revolução de 20. Prendiam-n'os laços Íntimos de sympathia e de principios ; a differença era apenas na forma. Na essência, tão absoluto é o realismo constitucional, como o realismo puro, ou a pura legiti- midade. Ambos os partidos odiavam de morte a soberania nacional, base de todo o regimen liberal. Para a evitarem, os realistas con- stitucionaes, ou cartistas, não duvidavam entregar-se aos realistas puros, que militavam sob as mesmas bandeiras, e eram quasi como irmãos. Os legitimistas puros, fazendo guerra á revolução de 20, aju- davam os cartistas ; os cartistas, fazendo a mesma guerra, ajuda- vam a causa dos legitimistas puros. Havia de vencer fatalmente quem tivesse por si a lógica dos principios e dos factos. Palmella, sob as instancias repetidas de Canning, diz Almeida Araújo, não cessava de recommendar toda a moderação e ainda mesmo condescendência com os realistas puros, não somente para os attrahir á causa de D. Pedro, como também para não irritar a Áustria e a Hespanha. Dizia Canning que o ponto essencial era que a attitude do go- verno portuguez fosse firme e moderada, e a sua marcha sincera e commedida para com o partido absolutista, de modo que todos os realistas reconhecessem os effeitos de uma constituição emanada do poder legitimo do throno, e não, dizia elle, de um transtorno egual ao de 20, ou da democracia. Almeida Araújo, um dos ex-ministros da regência, accrescenta cynicamente o seguinte : «Da nossa parte assim o fizemos, e o nosso procedimento com os hespanhoes, que n'essa época procuraram asylo no reino, os qiiacs desarmámos e internámos, para evitar correrias em Hespa- nha. ou dar incremento á emigração do partido liberal do reino visi- 81 nho^ devia convencer aquelle governo (britânico) da nossa since- ridade e boa fé. (i) Com effeito, toda a politica do governo cartista d'esta época foi cobrir-se com tal escudo de realismo e legitimidade, que satisfizes- sem todos os realistas, quer de dentro e quer de lóra do paiz. E para isso guerrearam inclementemente a democracia de 20. O que elles não viram, no cego furor contra os direitos do po- vo, foi que em lógica não ha meias idéas, nem meios principios. A lógica é uma só. Ou se havia de alentar o regimen liberal com a soberania na- cional, toda a sua força e energia, ou se havia de alentar o princi- pio da legetimidade, e cair no absolutismo, que é a sua consequên- cia immediata. A base da liberdade pura c a democracia ; a base da legitimi- dade são os direitos absolutos do throno. Não havia meio termo; ou sacrificar a liberdade ao absolutismo, ou o absolutismo á liberdade. Os cartistas preferiam aquella primeira alternativa ; era na- tural. Para seguirem os conselhos da Inglaterra, os governos cartistas não ousaram combater vigorosamente o partido absolutista, em- quanto que se preoccuparam com o debellar as pretensões dos ;•///- íistas, que não cessaram de hostilisar por todos os modos. I->a para agradar á higlaterra, á Áustria e á Hespanha. O partido da legitimidade pura, vendo-se com o apoio das po- tencias, e aproveitando a guerra que os seus contrários faziam ao le- gitimo regimen da liberdade, e bem assim aproveitando-sc da ímu- xidão e fraqueza do governo cartista, levantaram novamente cabe- ça. Tinham a lógica por si. Elles diziam muito bem que eram elles os puros defensores do throno e da legitimidade. A carta transigira com a liberdade, e a liberdade conduz fatalmente á época de jo, qtie os propri- >> c\ir- tisias combatiam, e sobre ^]ue lançavam toJo o oJío.m» e Jes^reJito. Para se fortalecer a legitimidade [Hira. não ha\ia >enão uiii nieii> (i)(^hronica da rainha 1). NL.;..! 11. 'lUni'! i. ;\il:. '.. ■ 82 eííicaz : voltar-se ao regimen antigo. A pura legitimidade é o go- verno do throno e do altar. O direito divino e feudal, base da car- ta, não se sustenta sem as antigas ordens do estado como estavam organisadas. O throno precisa da nobreza, o direito divino da reli- gião e do dominio do clero. O regimen absoluto é o único compa- tivel com o verdadeiro regimen monarchico e a legitimidade. A carta não fazia senão levantar conflictos constantes entre po- deres essencialmente hostis e irreconciliáveis. A soberania régia não podia supplantar o voto nacional, estabelecido pela carta, se- não com muitas violências e luctas graves. O primeiro ensaio da carta assim o estava provando. Os governos empregaram esforços inauditos, para evitarem que a camará popular quizesse usurpar os direitos absolutos concedidos por aquelle código á realesa. As eleições fizeram-se á custa de muitas pressões e de abusos do go- verno; difíicil era conter as duas casas do parlamento dentro dos estreitos limites da carta constitucional. Os nobres julgavam que lhes assistia o direito soberano das velhas cortes do reino; os representantes do povo julgavam que não eram eleitos só para servirem de chancella á coroa e aos ministros. Queriam legislar sobre tudo, e não se resignavam ao triste papel de se occuparem somente de assumptos relativos aos impostos e recrutamento. Nada mais absurdo, illogico e contradictorio, do que o syste- ma politico das cartas, ou do realismo constitucional. Os realistas puros ufanavam-se, com todo o direito, com o serem a única garantia do throno e do altar. Elles m.ostravam, não só as contradicções do constitucionalismo, como também os perigos e conflictos que elle trazia para a verdadeira legitimidade, ou direi- tos soberanos da realesa, que logicamente conduzem ao abso- lutismo puro. N'este não ha hesitações, contradicções, fraquezas e condescendências perigosas. O systema é único, unido, e forte; ha n'elle coherencia, lógica e uniformidade de vistas. Recusando-se os cartistas a sujeitar os direitos de D. Pedro á sancção da soberania nacional, lançaram a questão para o campo da ligitimidade. Deram aos miguelistas direito para se sublevarem. 83 CoUocada a questão n^esse campo, os miguelistas não podiam ficar inermes. A razão era por elles Ainda por este lado, a causa do legitimismo puro ganhou terreno, graças á politica inepta dos cartistas. Mui tolos seriam os miguelistas, se não se aproveitassem do campo que lhes iam abrindo os pedristas, ou realistas constitucio- naes. A occasião não podia ser mais propicia á sua causa. A Hespa- nha e a Áustria auxiliavam-n'os ; o clero e a nobreza em Portu- gal eram devotados, não somente ao regimen absoluto antigo, mas também á causa de D. Miguel. Os realistas constitucionaes, além das suas flagrantes contra- dições, das suas hesitações naturaes, e do seu realismo, por suas próprias mãos preparavam a victoria aos seus rivaes. Os vintistas^ ou verdadeiros defensores da liberdade, estavam completamente anniquilados pela opposição de todas as potencias, e pela guerra que lhes faziam os realistas constitucionaes e realistas puros. N'este periodo incerto não havia partido que pudesse defender a causa da liberdade. Esta estava irremediavelmente perdida; e, de certo, que não era em beneficio dos incoherentes cartistas, ou realistas consti- tucionaes. As condescendências e a moderação para com os realistas pu- ros, aconselhadas por Canning, não fizeram senão animal-os. E elles tomaram as hesitações do governo por fraqueza ; por isso resolveram levantar-se de novo. No dia 29 d'outubro, o marquez de Chaves dirigiu de Alcaniças uma proclamação aos transmontanos. N'ella diz que a Providen- cia lhe confiou a defesa da religião e do throno, ameaçados com a carta, filha das seitas maçónicas, inimigas de Deus. dos reis e dos homens. Annuncia que as suas tropas já estão em armas e próxi- mas a entrar em Portugal contra a facção tenebrosa dos constitu- cionaes, que accusa de mal intencionados. No mesmo dia proclamou ás suas tropas, desmentindo o boato de que ellas iam a ser desarmadas. Diz-lhes que recebeu uma carta preciosa de Fernando Xll, a quem chama «meu amo e senhor e 84 protector dos realistas portuguezes. » Pede-lhes que se tranquilesem e que n'elle confiem, por quanto não descansará, emquanto as não conduzir victoriosas ao seio de suas famílias. E este dia está a che- gar. Diz que elle e os seus é que são os honrados portuguezes amantes da religião e da legitimidade. E dizia a verdade. No dia 22 de novembro, tornou a proclamar aos portuguezes, annunciando-lhes que passava a entrar em Portugal, para o fazer voltar ás suas antigas épocas gloriosas e ás suas antigas leis. Sus- tenta que o Brazil e a America são incompatíveis com Portugal e a Europa. Por toda a província de Traz-os-Montes, circulavam proclama- ções em favor de D. Miguel. Diziam essas proclamações : Do throno dos lusos Legitimo herdeiro Só é e será D. Miguel primeiro. Por vós, pela pátria O sangue daremos. Para mal da causa cartista, pronunciaram-se graves desintelli- gencias entre o ministério e Saldanha, por este insistir em rodear- se de vintistas e apoiar todos os liberaes. Como desforço da politica seguida por Saldanha, os outros mi- nistros redobraram de vigilância e de medidas contra os vintistas e todos os que se mostravam mais affeiçoados aos princípios da Re- volução. O ministério tornou-se claramente reaccionário. Saldanha, vendo-se só e sem poder resistir aos collegas, em maior numero, afastou-se dos negócios, fingindo- se doente. N'estas criticas circumstancias, a Inglaterra conseguiu que a França interviesse com o gabinete de Madrid, para que cessasse a sua escandalosa protecção aos emigrados portuguezes. Foi dada ordem para que os soldados do marquez de Chaves depuzessem as armas com que entraram. O falso Fernando VII illudiu. porém, aquella ordem, aconselhando o contrario ás aucto- ridades. Foi exactamente n'esta occasião que o marquez de Chaves de- 85 cediu-se invadir Portugal ! Elle combinou com os mais chefes da insurreição uma invasão simultânea desde a Galliza até ao Algarve com diffirentes divisões. O marquez de Chaves entraria pelos lados de Samora, Magessj^ por Badajoz, lançando-se de improviso sobre Lisboa; e o visconde de Monte-Alegre invadiria o Algarve. Assim que o marquez de Chaves appareceu, sublevou-se toda a provincia de Traz-os-Montes, preparada pelos agentes da familia Silveira, pelos frades, pelo clero e pelos capitães-móres. O governo, todo attento em vigiar os malditos vintistas^ e que- rendo mostrar-se moderado e até condescendente com os realistas puros, deixou que se fizesse n'aquella provincia a propaganda mi- guelista, e não lhe oppoz a menor resistência ! Queria tirar partido, em proveito próprio, d'essa propaganda a favor da legitimidade e do realismo contra os princípios de 20! Emquanto o clero e os nobres excita /am os povos ignorantes das nossas províncias, os generaes miguelistas formavam em Hes- panha seus planos de invasão! No dia 2 5 de novembro, appareceu uma força do marquez de Chaves diante de Bragança. Foi batida e destroçado. Juntou-se então o grosso da divisão, que estava a pequena distancia; e auxi- liada por muitos paisanos armados, atacou o regimento de infante- ria n." 3, commandado pelo coronel Valdez. Este bateu-se valoro- samente; mas teve que ceder ao maior numero. Retirou-se para a cidade e refugiou-se no castello, onde foi cercado. Teve de se ren- der por falta de viveres, e por terem desertado alguns officiaes em quem depositava confiança. Depois de em auto de camará ter-se acclamado D. Miguel I rei absoluto de Portugal, a cidade foi saqueada por esses chama- dos defensores da religião e do throno. Praticaram horrores c cruel- dades. As pessoas mais affectas á carta e todos os que não quizeram adherir á causa miguelista, uns foram assassinados e outros perse- guidos, presos e maltratados. Uma parte da divisão lançou-se sobre (>haves e outra parte 86 sobre Villa Real. Para se formar uma idéa do modo como os âni- mos estavam preparados em toda a provinda pelos agentes realis- tas, vamos narrar o que se passou n'esta villa. Os acontecimentos caracterisam muito muito bem a insurreição miguelista e a época, bem como exprimem a grande influencia de que na província dis- punha a familia Silveira. A marqueza de Chaves andava por todas as povoações monta- da a cavallo, e alliciando, quer as tropas de linha e milícias, e quer a gente do campo, dizendo-lhes que era preciso correr em defeza da religião e do throno, ameaçados pela maçonaria, em poder de quem estava D. Pedro. No dia 9, a mesma marqueza retirara -se para duas legoas dis- tantes de Villa Real. Depois da retirada do destacamento de caça- dores 9 e dos hespanhoes ahi refugiados, enviou ao coronel de mi- lícias, com quem estava de accôrdo, uma ordem do dia, mandando acclamar D. Miguel, rei absoluto, sob pena de ser demettido. Ella mesma, por sua conta, mandou soltar todos os presos políticos e tornou responsável o mesmo coronel por tudo quanto podesse suc- ceder. Para fazer sahir os milicianos mais affectos á causa constitucio- nal, aquelle ofiicial combinou com o juiz de fora o reunirem duas companhias de milícias, que ficariam fora da villa, para não provo- carem, dizia elle, excessos, O juiz de fora deixou-se cahir no laço. No dia 28 rebentou dentro da villa o movimento inssurrecio- nista com auxilio das milícias que ficaram e do povo fallado para esse movimento. O juiz de fora sahiu com alguns amigos ; e foi unir-se ás forças fieis. Emqúanto se preparavam para irem atacar a villa, a marque- za e seus agentes levantaram todas as povoações vizinhas, que se precipitaram sobre aquellas forças e as desbarataram. O juiz de fora fugiu para as fraldas de Marão; mas, sendo per- seguido, foi atacado em Campeã, onde cahiu ferido e prisioneiro. O resto das forças poude fugir e escapar-se. No dia seguinte, de madrugada, a marqueza sahiu de Galafura montada n'um cavallo ricamente ajaezado e seguida de muitos 87 camponezes armados de chuços, paus e espingardas. Entre elles vinham muitos curas, frades e capitães-móres. Esse bando de fanáticos dirigidos por frades e curas armados, e tendo á sua frente a illustre fidalga da provincia.. seguiu estrada fora, dando consecutivos vivas a D. Miguel I, rei absoluto, a Fer- nando VII e á santa religião, e morras a D. Pedro, aos liberaes, aos maçons e á carta, obra d'estes. Imagine-se a impressão que isso fez por as povoações por onde passaram. A marqueza, acompanhada da sua gente, afigurava-se a essas povoações uma verdadeira heroina, inspirada por Deus para salvar a religião e o throno ameaçados. Ao verem-n'a animada e corajosa commandando toda essa gente, homens e mulheres, velhos e mo- ços, corriam ás suas habitações, e apresentavam-se armados de chuços e paus para se encorporarem ao bando, que assim foi en- grossando. Quando a marqueza chegou a Villa Real, vinha acom- panhada por mais de 2:000 pessoas! Ao chegar á ponte de Santa Margarida, um alferes Teixeira apresentou-lhe o estandarte da ca- mará, que ella tomou, e tornou a entregar-lh'o, ordenando-lhe que a acompanhasse. A marqueza foi recebida com repiques de sinos, foguetes, c com muitos vivas a D. Miguel, rei absoluto, a Fernando \'II, impe- rado?' da península, á religião e á mesma marqueza. Esta dirigiu-se immediatamente á casa da camará, onde já es- tavam reunidas as pessoas falladas. clero, nobreza, povo e aucto- ridades principaes da terra. Passaram a prestar juramento e a es- crever e assignar um auto de acclamação de D. Miguel I rei abso- luto de Portugal. A mesma marqueza mandou chamar o juiz dos orphãos de Santa Martha, e nomeou-o corregedor; depois nomeou para juiz de fora o que fora demittido pelo governo da infanta regente. Mandou dar quartéis a todos os que a acompanharam, assignando ella mes- mo os bilhetes de abolotamento! As armas reaes, cobertas de lucto, foram descobertas e pinta- das de vermelho. Pelas ruas da villa andavam magotes de povo dos campos ras- gando as folhas da carta; e houve quem afíirmasse que dentro da camará municipal foi queimado em um acto solemne o exemplar que fora remettido para o archivo. Toda a provincia de Traz-os-Montes cahiu em poder da divi- são do marquez de Chaves; estava completamente desguarnecida de tropas! Magessi, antes de entrar no Alemtejo, dirigiu uma proclamação aos habitantes, querendo tirar hábil partido da guerra que os car- tistas faziam á revolução de 20. Diz essa proclamação : «Quem são os deputados actuaes d'estas cortes, senão os mes- mos facciosos que n'essa época para sempre execravel lançaram sobre este reino tantas calamidades irreparáveis? Quem são os commandantes das tropas da regente? os mesmos que n'essa mes- ma época foram os instrumentos empregados, para se nos impor aquella funesta constituição, homens que, sem a clemência do sr. D. João VI, teriam perecido sobre o cadafalso em espiação de suas crueldades, dignas de um Nero e de seus abominareis crimes.)^ A mesma proclamação annuncia as victorias alcançadas pelo marquez de Chaves em Traz-os-Montes. E não tinha Magessi toda a razão para lançar sobre o regimen da carta o odioso que os defensores d'esta pretendiam lançar sobre o regimen de 20? A mesma proclamação tem em vista estabelecer ainda mais profunda scissão entre os cartistas e ]'iníistas, para que se não unissem contra a insurreição miguelista. Queria animar o governo a afastar de si os vintistas^ ou os verdadeiros liberaes. Magessi entrou no Alemtejo no dia 26; elle penetrou logo em Villa Viçosa com 2:000 homens bem armados e equipados, que aprisionaram um destacamento de cavallaria 7, que lhes resistiu. O conde de Mlla Flor marchou contra VIagessi, e atacou-o com tal denodo, que obrigou-o a passar o Guadiana. Magessi en- trou em Mourão, afim de se juntar á divisão do Algarve; mas foi obrii^ado a retirar-se para o norte, afim de se reunir ás tropas do marquez de Chaves. As províncias do sul não eram as do norte. 89 O marquez de Chaves, animado com a inércia do governo, cada vez mais desanimado com o progresso das idéas liberaes, passou o Douro defronte de Lamego, com o fim de cahir rápido sobre o Porto. N'aquella cidade estabeleceu uma regência em nome de D. Miguel 1. Ao tentar passar o rio Tâmega, foi repellido pelo general Clau- dino, e por isso não poude avaoçar. Dirigiu-se então a Vizeu, onde entrou, para marchar sobre Coimbra. Aqui alguns estudantes rea- listas puros tentaram sublevar-se, mas foram batidos pelas tropas de Claudino e de Azeredo. Magessi entrou na Beira e tomou Almeida; foi destroçado nova- mente pelo conde de Villa Flor. Por aquella marcha rápida do exercito miguelista podem nos- sos leitores julgar do abadono em que deixaram o paiz os go- vernos cartistas, que não quizeram o apoio dos pintistas; que re- geiíaram o offerecimento dos estudantes de Coimbra ; que desar- maram os emigrados hespanhoes, com medo de que viessem en- grossar o partido liberal e as idéas de 20; que não quizeram orga- nisar as guardas nacionaes, com o mesmo receio; que regeitaram todas as propostas dos vintistas a bem da causa de D. Pedro; e que se opposeram a que se votassem as leis regularmentares da carta propostas pelos deputados. No dia 4 de dezembro, o ministro dos negócios estrengeiros apresentou ás camarás um relatório, em que mostra á evidencia a coadjuvação que a Hespanha estava dando aos miguelistas, e em que elle mesmo confessa, e ate apresenta documentos d'isso, que antecipadamente conhecera todos os planos dos sediciosos! Disse que, tendo feito conhecer ao gabinete de Madrid tudo quanto se passava, este, em vez de dispersar os rebeldes, os protegeu escan- dalosamente ! O governo conhecera todos os planos e todas as manobras dos invasores; e não mandou tropas sutíicientes para os pontos por onde deviam entrar! Deixou Valdez sem recursos, nem munições de de guerra, para fazer frente á divisão do marquez de Chaves! Traz-os-Montes, Alemlejo e Algarve, foram ao me^mo tempo \2 90 invadidos, chegando o exercito invasor quasi ás portas de Lisboa e Porto ! O governo estava todo attento em conter a corrente das idéas liberaes, e em vigiar os vintistas de execranda memoria. Nada de contrariar e desgostar os miguelistas ; que estes eram egualmente pelo realismo e pela legitimidade. O mais temivel adversário era o partido democrático, ou vintista^ que pretendia deslocar esses direitos absolutos dos thronos para a soberania nacional, e subver- ter assim todo o systema da carta. Quando as noticias das três invasões simultâneas chegaram a Lisboa, houve um momento de terror; todos os sinceros liberaes estremeceram. As duas primeiras cidades do reino estavam amea- çadas ; o perigo não podia ser maior. No dia 4, sabendo-se que alguns deputados pretendiam inter- pellar o governo, concorreu immenso povo ás cortes. As galerias encheram-se de tal modo, que não havia logar para mais ninguém. O Terreiro do Paço inundou-se completamente de pessoas de todas as classes e gerarchias, desejosas de assistir á sessão. Compareceram os ministros. O deputado Girão propoz que se invertesse a ordem do dia e se discutisse immediatamente o proje- cto da organisação das guardas nacionaes ; assim se resolveu. O visconde de Fonte de Arcada leu um projecto de lei com o fim de preencher os corpos de i."" e 2^ linha necessários para a defesa da pátria ; e reclamou urgência. Miranda propoz uma commissão de segurança publica, e que a camará se constituísse em sessão per- manente, emquanto se dessem as providencias que reclamavam as circumstancias. Foi approvado. O ministro áos negócios estrangei- ros pediu a palavra para ler o seu relatório. Foi Guerreiro, demittido da sua pasta, por ter sido vintista e não agradar á Inglaterra, o primeiro que rompeu fogo contra o ministério. Elle accusou-o de ter, dez dias antes, recusado reconhe- cer a nação em perigo, e de ter despresado a organisação das guar- das nacionaes e o oíferecimento dos emigrados hespanhoes. Elle concluiu, pedindo uma lei de responsabilidade ministerial, «para 91 m que não succeda, disse elle, como actualmente, em que parece que ha dois ministérios, um animado dos melhores desejos de salvar a pátria, tendo para isso empregado já toda a energia, de que podia dispor; e outro cheio de indolência, frouxidão, se não de ineptidão.» Respondendo a Soares Franco e a respeito dos estudantes de Coimbra, o mesmo deputado fez um quadro verdadeiro do paiz abandonado pelo governo, que nada tinha feito até ahi, para o sal- var do perigo. E terminou «O céo pede vingança contra quem é responsável por semelhantes acontecimentos.» (Apoiado^ apoiado.) O próprio Mousinho da Silveira atacou o ministério e accusou-o de ter recusado o offerecimento dos estudantes de Coimbra, man- dando-os estudar, resposta, disse elle, singular, quando se tratava de defender a pátria. Gonçalves de Miranda disse que desgraçadamente o ministro da guerra adoecera e com elle todo o ministério. O correspondente do Imparcial., de 9 de dezembro, diz que houve longos debates; o ministro da guerra interino foi atacado fortemente pelos condes de S. Paio; o ministro Trigoso foi arguido por Guer- reiro e Mousinho, a quem respondeu por monosylabos, parecendo acabar-se-lhe a lógica. Diz que Guerreiro acabou com uma reticencia, que parecia ir a declarar grandes coisas, porém a prudência o deteve. O presi- dente chamou-o á ordem algumas vezes c n'uma d'estas exclamou Miranda : A ordem da assembléa é simplesmente, a salvação da pátria. Estes i'iuiistas eram levados do diabo! Ficaram com esse vicio das malditas constituintes. O ministro da justiça entrou quasi no rim da sessão. Pediu a palavra, c propoz a suspensão das garantias constituicionaes, o que foi concedido por trcs mezes. Na camará dos pares o conde de Linhares, vendo a inditferença com que o governo olhava para o incremento Ja insurreição mi- guelista, e vendo também o abandono em que estavam todas as provincias, perguntou-lhe quaes os meios com que contava, para resistir. 92 O ministro dos negócios estrangeiros, todo debaixo da influen- cia de Palmella, declarou que exercito estava por tal forma desor- ganisado, que o governo se lembrou de chamar as milicias; mas que não julgou ainda esta medida conveniente, por cujo motivo re- solvera pedir o auxilio da Grã-Bretanha ! O ministério viu com ciúme o resultado da expedição ao Al- garve, auxiliada pelos vintistas; afastou por isso Saldanha dos ne- gócios, para entregar a pasta da guerra a Quintella, que nada fez. O mesmo ministério, com medo da democracia, ou da influencia do povo em os negócios do estado, não quiz organisar as guardas nacionaes, e nem mesmo achou conveniente chamar as próprias milicias. Comprimia a opinião publica e a imprensa, para que as idéas liberaes não avançassem além de certos limites, emquanto deixava progredir a causa dos absolutistas puros ; não enviara tro- pas para os pontos por onde sabia entrariam as divisões do mar- quez de Chaves; tinha á sua disposição generaes insignes, como Saldanha, o conde de Villa Flor, Sttubs, Claudino e outros ; e em pleno parlamento e á face da Europa, teve o cynismo de declarar que não contava com o exercito, que o paiz não tinha forças para resistir á invasão dos absolutistas puros, e que, por isso, viu-se na necessidade de recorrer ao auxilio de fora, ou do estrangeiro ! O go- verno não confiava no povo e no exercito portuguez ! Que prova mais evidente dava o governo cartista á Europa de que o povo portuguez era todo pelo regimen absoluto e não queria o regimen da carta ? Sempre o ódio á Revolução de 20, ou á democracia, levando os cartistas para actos contra-producentes e contradictorios ! A impopularidade do ministério não podia ser maior. A tempestade, que principiou nas duas casas do parlamento contra elle, seguiu seu curso natural, e passou para fora. As noticias chegadas das províncias aterraram a população de Lisboa ; e as declarações do ministério não fizeram senão irritar a opinião publica, sobresaltada com os últimos acontecimentos. A cumplicidade do governo era bem evidente. Entre a victoria da democracia, ou da soberania nacional e a 93 victoria do realismo puro, elle preferia esta ultima; e por isso cru- zou os braços ante a invasão dos miguelistas. Antes estes, que os riutistas, inimigos dos thronos e usurpado- res dos seus direitos absolutos e soberanos. No dia 6 de dezembro, o povo amutinou-se na cidade de Lis- boa ; o Terreiro do Paço e o Rocio inundaram-se de populares, que ahi correram com ares ameaçadores e dispostos a desfeitearem os ministros. Quando Ignacio da Costa Quintella sahia do ministério da guerra, no Terreiro do Paço, a multidão precipitou-se sobre elle, gritando: «Traidor! traidor! Morra! morra!» E tel-o-hia assassinado, se lhe não accudissem alguns cidadãos mais prudentes, que intercederam a favor d'elle. Ao mesmo tempo, Trigoso era insultado, ao sahir do seu mi- nistério, ao Rocio. O ministério, vendo-se atacado nas duas casas do parlamento, e desconccituado na opinião publica, dirigiu-se ao paço a pedir a sua demissão. As embaixadas estrangeiras ficaram aterradas ante aquella at- titude do povo, que não queria submetter-se ás vontades da coroa, c mais uma vez mostrava tendências para se impor aos governos. A Revolução de 20 estava novamente ás portas de Lisboa. O ministro da Grã-Bretanha immediatamente correu ao palá- cio da regente, para a aconselhar a resistir, e a não ceder á opi- nião publica. A regente acceitou a demissão do ministério, mas começaram immediatamente a ferver as intrigas, para a formaçã»^ do que o de- via substituir. A Inglaterra não queria que se transigisse com o partido libe- ral, e persistia em que a infanta se não afastasse do seu primitive programma : cobrir a politica com o escudei de realismo e de legi- timidade, de modo a tirar ao partido avançad(^ pretexto para usur- par os direitos do throno. I^lla queria ver a Revolução de jo ma- nietada, bem manietada. Houve frequentes conselho> de mini,Ntro> com as,>istcncia do 94 representante da Grã-Bretanha, para se combinar a formação do novo ministério. Três dias depois dos tumultos em Lisboa, isto é, no dia 9, vem na folha official um decreto nomeando o marquez de Valença mi- nistro interino da guerra. No dia seguinte aparece outro decreto, dizendo que a infanta, por aitendiveis motivos, ordena que o ba- rão do Sobral torne a occupar a sua pasta, bem como D. Francisco d'Almeida, o pupillo de Canning e de Palmella! Só no dia 14, é que a folha official trouxe os decretos substituindo Trigoso por Luiz de Moura Cabral e Ignacio da Costa Quintella por António Ma- nuel de Noronha. No dia 16, Breyner foi exonerado da pasta da justiça, passando esta para Moura Cabral, e sendo nomeado mi- nistro do reino o bispo de Vizeu. No entretanto, para se serenar as potencias, e para satisfazer á Grã-Bretanha, procurava-se comprimir de novo a opinião publica, e reprimir as manifestações populares. Era preciso mostrar que se não voltava a 20, e que o povo devia raanter-se no seu posto de vassallo, acatando as ordens do throno, que podia mais que elle. Na folha official de 1 1 vem o decreto de 9, assignado por Brey- ner, ordenando ao intendente geral da policia que mande abrir de- vassa sobre os tumultos e acontecimentos do dia 6. No dia seguinte, o intendente geral da policia publicou um edi- tal, em que diz o seguinte : «Considerando o abuso que em diversos pontos do reino ulti- mamente se tem feito de reuniões populares, e a necessidade que ha de renovar antigas medidas e regulamentos de policia^ para man- ter o socego publico, que a exaltação dos partidos^ caminhando em oppostas direcções, tem repetidamente alterado» Prohibe os ajuntamentos populares nas ruas e praças, que não sejam presididos pelas auctoridades. «O governo constitucional, diz o intendente, é o governo da or- dem, da moderação e da justiça; e não são só seus inimigos os que o atacam com as armas na mão ; mas também os que erigindo- se em seus frenéticos delactores, ou inculcando-se os seus mais ^elosos defensores, espalham a desconfiança e o descontentamento, pertur- 95 bam a tranquilidade dos cidadãos e destroem a união de que tanto se precisa nas grandes crises. » Isto é com os vintistas e os saldanhistas. Em 9, Mello Breyner ordena que o chanceller da relação do Porto e encarregado da policia vigie mais attentamente, lhe diz elle, os seus empregados, para que procedam a devassas contra todas as publicações sedeciosas e de opiniões subversivas, as quaes teem deixado circular com evidente frouxidão. Recommenda-lhe que se harmonise com o governador das armas, afim de obter d'elle tor- ças sufficientes, para proceder contra os culpados. O mesmo chanceller, por um edital, prohibe os fogos do ar, os repiques dos sinos depois das Ave-Marias e os cantos populares. Ordena que impetrivelmente se fechem, ás oito horas da noite, as lojas de bebidas, tabernas, casas de pasto e estalagens ! A Grã-Bretanha apressou-se a auxiliar o novo ministério or- ganisado segundo as indicações d'ella, para que a situação não fosse defendida pelos liberaes e os homens de 20, ou pelo paiz. Essa situação criada por um rei estrangeiro, em paiz estrangeiro e de combinação com o ministro da Grã-Bretanha, devia ser egual- mente defendida por esta, ou pelo estrangeiro ! A 19 de dezembro o ministro dos negócios estrangeiros annun- ciou ás camarás que o governo britânico resolvera enviar uma divi- são a Portugal, para apoiar o novo governo contra os seus ini- migos. Pensou-se, a principio, cm entregar o commando d'essa divisão ao assassino de Gomes P>cire de Andrade; mas Saldanha oppoz-sc energicamente. Por este motivo foi dado o commando ao general Cliton. O novo governo, forte com o auxilio da coroa e do estran^cin\ com a divisão ingleza, com a suspensão das garantias e com o em- préstimo approvado, dispensou o auxilio do parlamento; e mandou em continente os deputados para suas casas, encerrando a^ c<^rtes n*esta occasião. Não precisava do apoio dos representante^ da na- ção, bem como não precisava do apoio do exercito, na sua maioria liberal, das guardas nacionaes e das milícias. O pre^tigi(j do throno 96 e o apoio da Inglaterra bastavam para confundirem os vintistas e os absolutistas puros. A representação nacional toi considerada como inútil e dispen- sável n'esta grave crise. O systema constitucional da carta refôrça- va-se somente com o prestigio do throno e com o poder executivo. A chamada representação nacional era um torpeço e uma roda encravada no systema politico, que o embaraçava, em vez de auxi- liar o seu mechanismo. O governo apressou-se, por isso, a encerrar as cortes mais uma vez. O que se precisava era de um forte poder executivo, como nos regimens absolutos. Foi o que succedeu com a nova situação que surgiu com os últimos acontecimentos. CAPITULO V REFORCAMENTO DO REALISMO CONSTITUCIONAL o ministério bispo de Vizeu pretende reforçar o systema da carta com o reforçametito do poder executivo. — O novo ministério toi creado sobretudo para reagir aos princípios de 20. — Para isso contemporisa com os absolutistas puros. — O novo ministério conservador une a França á Inglaterra. — Nota dirigida por esta á Hespanha. — Os absolutistas puros tiram novo partido da politica conservadora dos cartistas.— O bispo de Vizeu vê na causa do absolutismo puro um meio de fortalecer o realismo constitucional da carta. — Os mi- guelistas recusam-se a passar para os realistas constitiicionaes. — O marquez de Chaves lança-se sobre Coimbra, para proclamar o absolutismo na Beira. — Batalha de Coruche. — Abrem-se as cortes ordinárias. — Discurso da coroa. — Formação dos partidos da direita, centro direito e da esquerda. — O ministério encontra viva opposiçáo na camará popular. — O governo, com auxilio da inlluencia estrangeira, adhere a si a direita e o centro direito, para reagir á esquerda. — São regeitadas as propostas e projectos de lei d'esta fracção da camará. —A lei da imprensa e a da organisação dos municípios naufragam. — Estado do paiz. — O marquez de Chaves penetra em Traz os-Montes e invade o .Minho. — Chega ás portas do Porto. —Combate na ponte do Prado.— O exercito absolutista entra novamente na Hespanha. — Telles Jordão invade o .Minho. — É destroçado pelo general Corrêa de Mello. — O deputado .Magalhães propõe que se peça á regente a demissão do ministério. — Os ministros negam ao parlamento o direito de lhe pedir contas pelos seus actos. — A direita e o centro direito reconhecem essa doutrina anti-parlamentar. — As mesmas duas fracções da camará unem-se para protestarem contra a proposta .Magalhães. — Discurso de .Mousinho da Silveira. — M approvadoo pare- cer da commissáo que não dá ás camarás o direito de pedir a demissão dos ministérios. —O governo mais uma vez dispensa a representação nacional. — O mesmo governo pretende attra'iir os absolutistas puros, concedendo lhes annistia. — Etteito d'esta medida. — Doutrinas reaccionárias defoiídidas pela gazeta otTicial — Saldanha reassume a pasta da guerra e derrota os sublevados de Elvas.— Popularidade d'este ministro.— Os mas ministros, auxiliados pelo representante da Inglaterra reagem ;i politica de Sa!d;ui!ia. — Chega a Lisboa o Dr. Abrantes.— D. Pedro approva a politica de Saldanha. —O conselho d'estado regeita os decre- tos mandados por D. í^edro. — A infanta demitte o ministério. — Nomeij outro do iue?mo gcuero do aiiie- rior. Em presença dos dois inimigos, um de principies e outro quasi pessoal, e por isso mais apaixonado e audaz, o novo governo, no- meado de accordo com a Grã-Bretanha, pretendeu avigorar o puro regimen cartista. O ministério bispo de Vizeu inspirou-se, como os anteriores, nos conselhos de Canning. Animado com a divisão inglc/a, encetou nova campanha contra a opinião publica, e esperou vencer os mi- guelistas. Elle intentou reforçar toda a politica no throno e no es- trangeiro, e concentrar a direcção dos negócios nas mãos dos mi- 13 98 nistros, como delegados da regia soberania. O pusilânime Trigoso foi substituído pelo enérgico bispo de Vizeu. Hsta figura é a personificação real do constitucionalismo e da nova situação creada depois dos successos de dezembro. Todo o ódio á democracia e aos princípios de 20 concentra-se n'este pre- lado de celebre memoria. Filho da egreja e educado sob os princí- pios e preceitos da theologia, desejou ser lógico e coherente com os princípios da carta que foi chamado a defender. Por isso levou esses princípios até ás suas ultimas consequências, e não hesitou um só momento. Trigoso não era ousado, nem enérgico; o bispo de Vizeu era o homem preciso. A carta e a Grã-Bretanha encon- traram o seu homem. O bispo de Vizeu no ministério do reino e D. Francisco d'Al- meida no dos estrangeiros estavam mesmo a calhar para a politica de Canning e de Palmella. Fez-se um ministério de feição. Para o bispo de Vizeu não havia D. Pedro, nem D. Miguel; mas a causa dos thronos contra os princípios da Revolução, que urgia combater por todos os meios. Esses princípios eram, com effeito, a annulação do realismo e da legitimidade, em que assentava a carta O novo ministério não foi creado, tanto para combater os mi- guelistas, como para mostrar á Europa que a infanta regente tinha força para conter os ânimos e obstar a que os terríveis symptomas de dezembro levassem o paiz a 20. Foi este novo ministério que, para avigorar o systema da carta, accentuou bem a politica aconse- lhada por Canning : transigência e moderação com os absolutistas puros, e guerra tenaz aos vintistas e liberaes sinceros. Canning e Carlos X exuharam com a formação d'aquelle mi- nistério accentuadamente cartista, ou conservador. A Áustria man- teve-se na reserva. Os gabinetes de Londres e Paris aproximaram-se immediata- mente, e dirigiram ao de Madrid uma nota collectiva ameaçando-o, se não reconhecesse o de Portugal e lhe não desse satisfação pelos seus actos hostis, contrários á lealdade e aos princípios do direito internacional. 99 O governo hespanhol promelteu não accolher mais os emigra- dos portuguezes, e obrigal-os a sahir do território vizinho, condu- zindo-os até ás nossas fronteiras. Elle respondeu que estava prom- pto a reconhecer o governo portuguez, comtanto que este reinte- grasse no seu posto o conde de Casa Flor, que foi mandado sahir de Lisboa por suas intrigas e protecção aos miguelistas. O partido miguelista, vendo a scisão profunda que o novo mi- nistério creou no partido liberal, contra quem levantara enérgica cruzada, vendo que o mesmo governo não queria aceitar o apoio d'este partido e do exercito, influenciado por Saldanha, vendo tam- bém o estado de desorganisação em que estava todo o paiz, resol- veu investir de novo, antes que chegasse a divisão ingleza. A compressão das idéas liberaes não fazia senão reanimar o absolutismo puro. Este era o meio mais efficaz para se não voltar a 20 e obstar-se aos princípios da Revolução, ou da democracia. Ninguém, como os miguelistas, podia otferecer garantias mais soli- das contra os medos e sustos revelados em dezembro ultimo. O mais terrível inimigo da Revolução era o regimen absoluto puro, em que o throno e o altar se firmam. N'elle está a verdadeira legi- timidade. A Áustria e a Hespanha assim o entendiam. Sendo a politica do novo ministério a mesma dos anteriores, ou ainda mais accentuada, devia compellir os acontecimentos para as mesmas consequências, ou dar os mesmos resultados. P^ernando VII e o seu governo quizeram novamente tirar par- tido do reforçamento do realismo e da legitimidade pelo novo go- verno cartista, e por isso incitaram o marquez de Chaves a prose- guir com mais desassombro na causa da pura e leal legitimidade e do realismo. O governo hespanhol, mais uma vez, illudiu os governos da In^late^^a e da Franca; mandou formar em Talavedra de la Reina um exercito de observação, composto de io:Soo homens, para coadjuvar o marquez de Chaves I N'esta occasião, as nossas auctoridades interceptaram uma carta do visconde de Monte Alegre para (Carlota Joaquina, communican- 100 do-lhe que Fernando VII lhe pedira que se sujeitasse ao commando do marquez de Chaves. E diz que deve muitas obrigações ao rei de Hespanha pela protecção que dispensou á organisação da sua divisão. «Além d'esta carta, diz Sousa Monteiro, outras communicações obteve o governo, com a ajuda das quaes poderia dar golpe deci- sivo á facção, tirando-lhe todos os recursos com que ella contava para a realisação de seus planos ; porém o governo estulta, ou pru- dentemente, d'ellas não fez uso nenhum, ao passo que os revolto- sos não perdiam occasião de comprometter mais na sua causa a população das duas províncias, Beira e Traz-os-Montes, que já lhes eram affeiçoadas. » O bispo de Vizeu queria também reforçar o realismo constitucio- nal da carta com o progresso do realismo puro, e atrahir depois a si os partidários de D. Miguel. Para elle a revolução de 20 e o avanço perigoso das idéas liberaes, não podiam ser comprimidos senão com o despertar do fanatismo monarchico e das idéas absolutistas. Elle julgava, como Canning, que a propaganda do puro monar- chismo feita pelos miguelistas era favorável á causa da carta. Re- ceiou dar golpe decisivo no partido absoluto puro, com receio de bater em si mesmo. O essencial era manietar a revolução de 20, e conter os saldanhistas, ou cartistas avançados, que se aproximavam dos vintistas. O novo ministério foi impellido fatalmente para a politica dos dois ministérios anteriores. Preferiu reforçar o regimen da carta com o reforçamento das idéas absolutistas puras, do que com o re- forçamento dos princípios liberaes. Os miguelistas é que não quizeram desertar das suas bandeiras. Tinham por si a lógica dos factos e dos princípios. A victoria era por elles; o reforçamento do regimen da carta reforçou immediatamente a causa dos absolutistas. Estes, animados com o terreno que lhes preparara o próprio governo cartista, com o apoio da Áustria e da Hespanha, partidárias do absolutismo puro, e animados com as circumstancias favoráveis da Europa e da península, fizeram nova tentativa. 101 Nos princípios de janeiro de 1827, o marquez de Chaves con- seguiu reunir as divisões do visconde de Monte Alegre, de Magessi e de Telles Jordão, que não encontraram na sua frente forças suffi- cientes, para lhes embargarem os passos. O marquez de Chaves lançou-se sobre Coimbra, para penetrar na Beira e proclamar a re- volução n'ella, onde os seus agentes faziam á vontade propaganda ' activa e enérgica. O conde de Villa Flor, mais uma vez, mostrou a sua audácia e pericia militar. Com 7000 homens dirigiu-se á Beira ; no dia 9 de janeiro, tornou posição em Coruche; e travou-se renhido com- bate. A lucta começou á i hora da tarde; a principio a victoria foi incerta para as tropas d'aquelle general ; mas á noitinha os migue- listas foram atacados com tal vigor, que foram obrigados a aban- donar todas as suas melhores posições, e a fazerem uma retirada em completa desordem e indisciplina. Entregaram-se alguns soldados; os paisanos retiraram-se para suas casas e o resto da divisão fugiu em debandada para â Hes- panha. O conde de Villa Flor foi victoriado por todo o paiz. E não tinha o governo exercito para fazer frente ao do mar- quez de C ha vez! Saldanha, que se cobriu de gloria no Algarve, continuava a ser afastado dos negócios, com receio da sua influencia no exercito. O governo aguardava a chegada das tropas britannicas, afim de com ellas começar a campanha contra os absolutistas puros com mais energia. A infanta não assistiu a abertura das cortes, que teve logar no dia 2 de janeiro de 1827 no palácio d'Ajuda. Proferiu o discurso da coroa o celebre bispo de Vizeu. Este discurso não passa de uma simples formalidade em cumprimento da carta. N'elle expõe-sc a necessidade de as cortes se occuparem das leis regulamentares, mas sem os ministros apresentarem os respectivos projectos; cxpõe-se mais a necessidade de os portuguczes se conciliarem em volta do throno. E significa a regente a sua gratidão para com a Grã-Breta- nha, pelo auxilio que acabava de prestar á causa de D. Pedro. An- 102 nuncia que a maior parte das nações reconhecera as modernas instituições concedidas por D. Pedro, entrando no numero d'ellas a própria Hespanha. O discurso termina dando conselho ás camarás, dizendo-lhes que encetem os seus trabalhos com moderação e sem excessos. Sem excessos quer dizer : sem exigências a favor da liberdade e dos di- reitos do povo. Era uma nova advertência á esquerda. Os acontecimentos de dezembro e o progresso da causa dos absolutistas puros fraccionaram as camarás em três grupos: o da direita, o do centro direito e o da esquerda. Os saldanhistas reuni- ram-se aos piutistas^ augmentando assim o grupo da esquerda. Diz Sousa iMonteiro, nada suspeito, o seguinte: «Se o ministério anterior tinha encontrado antagonismo nas duas camarás, o nowo filho da intriga e de corrilhos de palácio^ não podia deixar de ter contra si, principalmente na dos deputados, ainda maior opposição, se era possível, que o seu antecessor.» (i) Tudo parece indicar que o governo conseguiu uma approxima- ção do centro direito com a direita, para fazer frente aos ataques dos liberaes cartistas e dos vintistas^ unidos contra as tendências reaccionárias manifestadas nas altas regiões da politica. Por esse meio o governo, ou os ministros da coroa, obtiveram maioria em reforço do regimen puro da carta. As camarás inauguraram seus trabalhos com a discussão do projecto de lei para a lista civil, interrompida com o encerramento das cortes extraordinárias. O governo propoz uma dotação para a rainha D. Maria II na importância de 36 5 :000.00o réis. Alguns deputados, mais indepen- dentes, propozeram o addiamento d'essa grande dotação até á época da maioridade da mesma rainha; mas a maioria, sob a influencia dos ministros da coroa, rejeitou essa proposta, sendo approvada a dotação conforme o projecto ministerial. A camará dos pares não só approvou aquella dotação, como augmentou a de Carlota Joaquina, por achal-a pequena e incom- (i) Historia de Portití^al. (Tomo III, pag. 323;. 103 pativel com a alta gerarchia d'ella. Voltou á camará dos deputados com esse augmento, que foi approvado pela maioria. A lista civil elevou-se a 56 1:000.000 réis. Entrou depois em discussão o projecto para a organisação do conselho d'estado vitalicio conforme a carta, o qual passou sem opposição. Em seguida, a camará dos deputados occupou-se do projecto do deputado Girão para a responsabilidade ministerial. Grande cam- panha. O governo, a direita e o centro direito, olfereceram taes at- trictos, diííiculdades e tantas emendas, que se consumiram mui- tas sessões, sem nada se resolver; houve successivos adiamentos, sendo, por fim, o projecto abandonado e posto á margem! A mesma sorte teve a proposta do general Claudino para que toda a provincia que se revoltasse contra D. Pedro fosse conside- rada fora da lei, e a outra do deputado Gama Lobo, pedindo puni- ção dos milicianos que engrossavam as fileiras do marquez de Cha- ves, e que depois da batalha de Coruche podiam novamente reunir-se a este! Contemporisação com os absolutistas puros e guerra sem tré- guas aos cartistas liberaes e aos vintistas. Dois factos esprimem muito bem os esforços que o governo, unido á direita e ao centro direito, empregou para esterilisar todas as tentativas dos liberaes no parlamento, onde se sentiam fortes. Os governos recusaram-se, até ahi, a pôr termo ao regimen ex- cepcional a que estava sujeita a imprensa, outro phantasma do re- gimen da carta. Passou-se a primeira sessão legislativa, sem que os ministros da coroa apresentassem um projecto de liberdade de imprensa. A commissão especial, nomeada pela camará para apresentar um projecto n'esse sentido, demorou o seu parecer, pelas duvidas e attrictos que lhe oppoz, não somente o governo, mas a politica estrangeira. Fizeram-se muitas e variadas propostas e emendas, ten- dentes a cercear o mais possivel a livre manifestação da opinião publica. O deputado Manuel Macedo Coutinho, vendo que a commissão 104 nada fazia, apresentou um projecto seu na sessão do dia 26. A com- missão, com receio de que fosse adoptado, apressou-se então a apresentar o resultado dos seus trabalhos, filhos das combinações em palácio, das embaixadas estrangeiras, e das pressões de cima. N'elle substitue-se a censura previa pelo systema das cauções, tão predilecto dos cartistas, ou conservadores. O projecto estabelece caução de um conto de réis; cria penas exorbitantes; multiplica os casos em que se infringe a liberdade de pensamento, de modo que esta fica annulada completamente; e prohibe a discussão em as- sumptos religiosos e nas mais altas questões da politica, como a da successão ao throno que prendia todas as attenções, e como a da regência ! Nem mesmo é permittida a menor discussão sobre o re- gimen da carta, que por todos devia ser acatado com respeito sa- grado, ou como dogma. Este projecto é o mais em harmonia com o espirito da mesma carta, e com o pensamento que presidiu a ella, quando fez depender de uma lei regulamentar a liberdade de pen- samento por ella consignada. No projecto estabelece-se uma garantia de 20, isto é o jury es- pecial para a imprensa. Três membros da commissão votaram em separado; foram de opinião que a lei devia assentar nas bases seguintes : i."* Constituir o máximo e o minimo das penas: ^ 2.'' Fixar três graus diversos de penas. 3.^ Determinar as penas correspondentes aos graus. 4."* Marcarem os membros do jury qual o grau de criminalidade incorrido, para o juiz applicar depois a pena correspondente. Com se vê, aquelles três deputados quizeram precisar bem os direitos e os deveres; isto, porem, não conveio á maioria da com- missão e ao governo. Só na sessão de i de fevereiro é que aquelle projecto entrou em discussão. O presidente da camará, para addiar a discussão, propoz que o projecto fosse para uma commissão central; mas a camará resol- veu que fosse impresso e examinado primeiro pelas sessões ge- raes. e que estas nomeassem então a tal commissão central. Feliz- 105 mente esta recahiu em pessoas de sãs doutrinas. O projecto foi refundido com outros apresentados por vários deputados. Este tra- balho foi tão lento e demorado, que somente a 14 de março é que a commissão central apresentou o seu parecer. Foi abolida a censura prévia e as odiosas cauções. O novo projecto estabeleceu o jury de pronuncia e outro para o julgamento final, e creou três graus de penalidade. O relatório combate a censura previa e o systema preventivo do primitivo pro- jecto. Diz elle; «Os legisladores prudentes nunca jamais se atreveram a assi- gnalar coisa tão absurda, como a de marcar e definir por uma re- gra previa os limites entre um libello famoso e aquillo que diz res- peito a factos históricos e objectos de discussão publica ; porque as mesmas palavras podem em certos casos ser inconvenientes e em outros muito maliciosas e injuriadoras.» O relator e mais dois membros da commissão assignaram ven- cidos; porque pediam unanimidade de votos para o jury da pro- nuncia. Aquelle projecto irritou as altas espheras politicas e as embai- xadas estrangeiras. O governo, para as satisfazer, apressou-se a encerrar, ainda mais uma vez o parlamento, antes que entrasse em discussão simi- Ihante projecto de lei^ que vinha dar largas á opinião publica e ani- mar as idéas iiberaes ! A mesma sorte teve o projecto de lei ácêrca da organisaçáo dos municipios. Foi apresentado na sessão de 5 de dezembro, e remettido a uma commissão especial. As camarás foram encerradas, e aquella commissão apresentou o seu parecer no dia i i de janeiro de 1827. Os mesmos receios e as mesmas combinações da lei de im- prensa, para se cercearem as garantias populares. O projecto obedece em tudo ao espirito centralisador da carta. Basta dizer que se estabelece o censo de loorooo reis, de modo que havia concelhos em que apenas votava um ou dois indiví- duos! Os mais eram ci\iaiiâ()s pdssiros. 14 106 O projecto foi ainda para uma commissão, onde morreu! A ses- são de 27 encerrou-se, sem que se desse organisação aos munici- pios do reino ! Estes continuaram a ficar sob a sujeição do poder centrai. Ouçamos ainda Sousa Monteiro, que não é nada suspeito. A respeito da sessão de 1827 diz aqaelle historiador o seguinte: «Quasi todo o tempo d'esta sessão foi dissipado em discussões, cujo resultado era nenhum, de sorte, que a não ser a posição criti- ca do paiz, estas cortes apenas seriam lembradas pela celebre lei do sello, de que custou muito ás opposições eximir os jornaes, e pela que auctorisava o governo a contrahir um empréstimo de 2 mil contos, ao qual foram hypothecados os direitos sobre os ce- reaes estrangeiros e o producto do imposto do sello» (i) E emquanto os governos cartistas se preoccupavam, dentro e fora do parlamento, com o progresso das idéas liberaes, de que tanto se temiam, deixavam o paiz em completa desordem e anarchia. Os impostos não se cobravam e nas províncias domina- vam auctoridades combinadas com os absolutistas puros, ou com a insurreição. N'ellas tudo corria á revellia e praticava- se toda a casta de abusos e arbitrariedades. Cada um fazia o que queria. Umas auctoridades obedeciam aos sublevados, outras ao governo, e nenhuma se mostrava zelosa do bem publico. Os cofres públicos estavam vazios; o exercito continuava desorganisado ; não havia policia em parte alguma, e os povos soífriam vexames inauditos. Prendia-se arbitraria e despoticamente. Umas vezes eram os cida- dãos pacíficos victimas dos vexames e perseguições dos realistas puros, ou dos sublevados ; outras vezes dos abusos e vexames das auctoridades do governo, ou dos realistas constitucionaes. O desalento e o desgosto eram por toda a parte. No meio d'este estado de anarchia e de desanimo e da crise politica e financeira por que passava o paiz, só a insurreição mi- guelista adquiria cada vez mais força e prestigio. Os absolutistas puros estavam unidos e apoiados por grandes Obra citada. (Torr.o III, pag 334). 107 potencias. Tudo lhes corria bem. A elles somente aproveitava a politica aconselhada por Canning e seguida até aqui por todos os ministérios cartistas. Elles quizeram novamente tirar partido das circumstancias do paiz, sem dinheiro, e sem recursos para lhe re- sistir. A divisão ingleza tardava. A 25 de janeiro, a divisão do marquez de Chaves penetrou na provincia de Traz-os-Montes; occupou a villa de Chaves, e mar- chou audaciosamente sobre o Minho. Entrou em Ruivães, tendo destroçado as forças do coronel Zagallo, que poude escapar-se e refugiar-se no Porto. Depois d'este successo, o marquez de Chaves dirigiu-se a Braga, destroçando outro pequeno corpo que encon- trara no caminho; e cahiu rapidamente sobre Guimarães, onde en- trou e concentrou todas as suas forças, emquanto Telles Jordão cobria o seu flanco em Murça. Aproveitando tempo e a victoria das suas armas, o chefe da insurreição miguelista cahiu rapidamente sobre o Porto, chegando a três legoas d'esta cidade, onde houve pânico geral. Felizmente o general Stubbs conseguiu encorajar os habitan- tes, que se armaram para resistirem. O marquez de Chaves diri- giu-lhes uma proclamação, ameaçando-os com uma segunda ca- tastrophe de 29 de março de 1809, se não se rendessem. Diz-lhes que o Porto não pode resistir ás duas provindas reu- nidas, Beira e Traz-os-Montes, e que elle vem para unir todos os portuguezes em torno do altar do Deus cathnlicn e em volta do thro- 110 de Affiouso Henriques^ contra um punhado de rebeldes ambicio- sos e Ímpios, sectários do atheismo mais monstruoso. O marquez de Chaves fazia muito bem em invocar a seu favor as antigas tradições da monarchia portugueza, que a carta preten- dia conservar e que os cartistas pretendiam avivar nas populações. para combaterem as tradições de 20. No dia 3 de fevereiro, chegaram ao Porto 1:200 homens, que o conde de Mlla Flor enviara em soccorro dV'sta cidade. Ao mes- mo tempo, entraram n'ella os destroços dos corpos que o marquez de Chaves derrotara em sua marcha. Estas forças, reunidas com um batalhão Jc \■olu^tario^ de D. Pe- 108 dro IV, organisado pelos cidadãos mais devotados á causa consti- tucional, animaram a população. O marquez de Angeja uniu-se com a divisão do conde de Villa Flor, e ambos reunidos marcharam sobre Guimarães. No dia 3 Angeja entrou n'esta cidade e dirigiu-se com todas as suas forças pa- ra as margens do rio Cavado, em que o marquez de Chaves tomou posição. N'este entretempo o conde de Villa Flor atacava com bra- vura a ponte do Prado. Os miguelistas cortaram um arco d'esta ponte; mas as forças de Villa Flor lançaram-se sobre as do mar- quez de Chaves com tal Ímpeto, que as levaram adiante de si até á Ponta da Barca. Cahiram prisioneiros 800 realistas puros, entre soldados e ofíiciaes, e foram-lhes tomadas 9 peças e i obuz. Houve muitos mortos e feridos. * No dia seguinte, o general Corrêa de Mello bateu a rectaguarda do exercito miguelista, pondo-a em desordem, e o marquez de An- geja obrigou-a a entrar novamente na Hespanha. D'aqui os migue- listas fizeram fogo á sombra de três companhias de milicias hespa- holas, que logo correram em defeza d'ells! Telles Jordão, com perto de i:5oo homens, marchou rápido sobre o Alinho ; passou o Tâmega em Amarante ; destroçou as mi- licias de Bastos ; apoderou-se de Canavezes e chegou quasi ás por- tas da cidade do Porto. Corrêa de Mello retrocedeu e partiu de Braga em defeza d'aquella cidade. Telles Jordão foi obrigado a pas- sar novamente o Tâmega e reíugiou-se na província de Traz-os- Montes. Ao entrar em Chaves, a divisão sublevou-se contra elle. Muitos ofíiciaes e soldados vieram apresentar-se ao general Corrêa de Mello, que se dirigiu áquella praça, que Telles Jordão aban- donou. Aquelle general entrou em Bragança no dia 5 de março. Os miguelistas ainda estiveram em Portugal uns i5 dias, á es- pera que o governo hespanhol rompesse as hostilidades; desenga- nados entraram no paiz vizinho. Se os governos cartistas não andassem sempre preoccupados com o progresso das idéas liberaes, se tivessem seguido o exemplo de Saldanha, unindo-se aos vintistas e a todos os constitucionaes. 109 se aproveitassem todas as forças disponíveis no paiz e os generaes devotados ao constitucionalismo, se por este meio tivessem organi- sado um respeitável exercito, os miguelistas não teriam sido com- pletamente derrotados, e de modo que não mais levantassem cabe- ça? Era preciso, porventura, o auxilio da Grã-Bretanha 1* Os miguelistas mostraram-se sempre animados e audazes, por- que os governos tiveram para com elles todas as considerações, para os ganharem á sua causa, que era egualmente a do throno e da legitimidade. Os últimos successos e o novo incremento da insurreição mi- guelista de novo fizeram romper as hostilidades dos vintistas, ou sinceros liberaes contra o governo, o único culpado de se não ter dado golpe decisivo n'aquella insurreição, que havia mais de um an- no mantinha o paiz em constantes sobresaltos, e estava ameaçando a causa da liberdade, de que ninguém cuidava. Foi o deputado Magalhães que levantou o grito de alarme na camará popular. Na sessão de 8 de março, a mais memorável d'esta sessão le- gislativa, aquelle deputado pediu a palavra, para interpellar o go- verno. Elle mostrou á evidencia a cumplicidade d'este no progresso da insurreição, e accusou-o por nada ter íeito, depois de ter conhe- cimento completo do plano dos insurrectos. Elle fez a historia ver- dadeira dos acontecimentos, desde que a carta foi proclamada ; mostrou os tramas urdidos nas altas regiões do poder contra os ho- mens aítectos aos princípios liberaes, emquanto se deixava á solta a insurreição dos apostólicos. Alludiu á guerra que se fez a Salda- nha e a todos os olíicíaes do exercito que lhe eram alfeiçoados. 7"o- cou na ultima crise ministerial provocada pelos erros e pela cum- plicidade dos ministros na insurreição. xQuem não esperaria, disse o orador, que uma nova ordem de coisas ia começar? Quem não esperaria que uma única c constante vontade ia dirigir o ministério? Quem não esperaria que esic, sin- ceramente unido ás camarás ia levar á execução as providencias dadas pelo poder legislativo a bem da pátria!' QLiem não esperaria que á sombra de um exercito alliado porlu;^ue/ ia a entrar na or- 110 dem e que a execução de medidas vigorosas ia apagar o facho da discórdia ? Mas quão frustradas foram taes esperanças ? O génio do mal collocado atraz da cortina compraz-se em continuar o systema de desharmonia nas medidas do ministério, de sorte que continua a apparecer dois ministérios.» E referindo-se Ss relações do governo com o parlamento, diz o orador : «Os ministros abandonaram as camarás, mesmo na discussão dos seus projectos, e os negócios correm á discripção. Nenhum in- teresse, nenhuma medida é calculada, ou proposta.» Disse que, emquanto o governo deixava progredir a revolta, só nos soccorros da nossa alliada collocava as suas esperanças, e que as queixas do povo não podiam chegar ao throno, pelas dificulda- des que a isso se oppunham. «... os chefes, continua o orador, dos rebeldes, conservam os seus titulos, as suas graduações. Aííirma-se que muitos d'elles rece- bem os rendimentos de suas casas e até ha quem diga, coisa incrí- vel, que alguns d'elles receberam os soldos militares corresponden- tes ao mez de novembro do anno pretérito. Os mais fortes incita- dores da rebellião passeiam tranquillos nos seus lares; a instrucção publica continua a ser confiada a homens que mais se distinguiram n'este género de maldades ! E grita-se que ha exaltação^ que ha propensão para a democracia ! Senhores, convém, por uma vez, fa- zer cahir a mascara á maldade e á inaptidão.» E conclue: «Que resuha de quanto tenho expendido? A devas- tação de algumas províncias, a animosidade dos reaccionários, o desalento de todos os fracos, o complemento dos abomináveis pro- jectos d'aquelles.)) E propoz que se enviasse á infanta uma representação, expon- do-lhe o estado do paiz, e pedindo-lhe providencias promptas e enérgicas, e que o poder fosse entregue a pessoas que não tivessem perdido a confiança publica. Este discurso foi a expressão da opinião geral, revoltada contra a politica inepta dos governos, querendo reforçar a causa do abso- lutismo, para reforçar a causa da carta. 111 o ministro dos negócios estrangeiros pediu logo a palavra, e observou que a proposta do deputado vintista era muito grave, e que a camará não podia sobre ella deliberar com precipitação. Le- vantou grande opposição a que ella fosse admiitida á discussão. A camará enviou-a a uma commissão, para dar o seu parecer. A queda do ministério feito de combinação com as embaixadas estrangeiras e com as intrigas palacianas, para se reforçar o regi- men do throno, era grave. Os representantes da Inglaterra e da França oppunham-se a isso. Nada de transigir com a vontade da camará. A proposta partia de um inutista, motivo bastante para ser rejeitada. As altas regiões ofíiciaes e os ministros estrangeiros começaram a mover-se, para que as camarás rejeitassem a proposta do mal- dito i'intista. E é mesmo possivel que empregassem a ameaça, para intimidarem a direita, o centro direito e alguns da esquerda. Aquella proposta mostrava que se pretendia voltar a 20, em que a vontade do parlamento era tudo. O governo empenhou-se por que as próprias camarás reconhe- cessem que não tinham a importância e a influencia que exer- ceram n'aquella época. Elle quiz mostrar que, assim como a coroa não devia ceder ás manifestações populares, assim também devia manter a sua completa independência perante o parlamento, e não receber leis d'elle, que no regimen da carta tinha importância politica secundaria. A influencia estrangeira conseguiu uma approximaçáo da direita e centro direito e a união d'estas duas fracções da camará com o governo, para resistirem á proposta de Magalhães. Quem sabe mesmo se o ministro da Grã-Bretanha ameaçou com a retirada da divisão, se a camará promovesse a queda do ministério, teito de accordo com elle, e que approximou as cortes de Londres e Paris? Empregaram-se taes diligencias e taes pressões sobro a com- missão da camará, que esta só em 3o de março, isio c. no fim da sessão, c que apresentou o seu parecer, declarando inacccitavel a proposta, por ser oífensiva á co^^a. uma interferência da camará nas attribuições d'esta e por ser contraria á carta I 112 Tres membros da commissão votaram em separado por diver- girem da maioria. Estava-se no fim da primeira sessão ordinária legislativa ; ape- zar d'isso o presidente da camará declarou que o parecer devia ficar para segunda leitura, conforme o regulamento, e que por isso não podia haver discussão sobre elle ! O auctor da proposta levantou-se justamente indignado, e pediu a palavra. Estranhou a demora que houve na apresentação do pare- cer e a grande opposição que se estava levantando contra elle. Disse, muito bem, que os ministros deveriam ser os primeiros a desejar a discussão dos seus actos e que sobre estes se derramasse plena luz. E terminou: «Eu sei mui bem que este tempo não tem corrido debalde; sei que se tem aproveitado muito bem; estou ao facto do escandalosissimo manejo que se tem posto em acção . . . « Foi chamado á ordem em nome das conveniências politicas ! O orador proseguiu, e declarou que, visto que o parecer da commissão não podia ser discutido, usaria em tempo conveniente do meio legal indicado pela mesma commissão, e que então accres- centaria ainda novos factos occorridos, e que occorriam diaria- mente. Como aquelle deputado dissesse que os ministros deveriam ser os primeiros a desejar a discussão do parecer, o ministro da fazen- da, com modos arrogantes e altivos, censurou-o por se servir da ex- pressão deveriam^ referindo-se, disse elle, aos ministros de sua alteia^ expressão que nem elle, nem a própria camará podiam usar 1 Pobre representação nacional! Mas ainda não é tudo. O ministro dos negócios estrangeiros, instrumento de Canning, levantou-se; e com modos provocantes disse: «Como a camará decidiu que se não fallasse mais sobre este objecto, cederei a palavra ; porém proponho que o deputado declare a accusação formal do ministério, ou de cada um dos ministros, quando não, declaro que hei de perseguil-o como calumniador.» A divisão ingleza estava a chegar. 113 E eis como n'esta época os ministros da corôa fallavam ao^ representantes do povo e da nação! A carta era o regimen do throno e não da representação nacio- nal. Terminado aquelle incidente, começou a leitura de vários pro- jectos e pareceres de differentes commissões. Entre elles apparecc um exactamente sobre uma queixa feita por D. Maria Ignez de Almeida e Castro contra o mesmo ministro dos negócios estran- geiros ! O intendente geral da policia e o juiz do bairro de Santa Iza- bel prenderam brutalmente o marido d'aquella senhora, João Cân- dido Baptista de Gouveia, que, tendo sido nomeado, dizem os documentos officiaes, para uma commissão secreta do real serviço em Londres, se recusou a partir ! Aquelle ministro da corôa não esteve com meias medidas, e mandou intimar o nomeado a embarcar no mesmo dia da intima- ção, ao que elle se recusou. Eram 8 horas e meia da noite do dia 1 5 de dezembro, quando foi preso no theatro de S. Carlos pelo referido juiz do crime, por ordem da intendência geral da policia e conduzido immediatamcníe para bordo de um navio inglez que estava a sahir, não lhe sendo permittido despedir-se da esposa e dos filhos! João Cândido tinha recebido 240.^000 réis de ajuda de custas mas, e segundo a queixa, o ministro recusou-se a dar lhe loo-rooo réis mensaes, conforme fora ajustado. Além d'isso, não tinha ainda recebido as instrucções relativas á sua commissão. Apesar de um tão grave attentado ás garantias constitucionaes, e de uma arbitrariedade, quasi sem exemplo, a commissão da ca- mará não achou o ministro culpado! Diz cila que a portaria que baixou para a intendência geral da policia era uma simples ordem de embarque e não de prisão ! E quando mesmo o ministro iòs^c culpado, não era a camará competente para o julgar! Tinha a confiança da coroa. O deputado Miranda, também }'iulista, pediu a palavra, c pro- testou contra a doutrina exposta c contra o parecer apresentado. 15 114 ... «trata-se, disse aquelle deputado, do procedimento do go- verno e do intendente geral de policia, a respeito de João Cândido ; trata-se de um facto ha muito tempo presente a esta camará, e que por demasiado tempo indeciso tem attrahido e fixado a espectação publica, assim como a de cada um dos illustres membros doesta ca- mará; trata-se, finalmente, de um caso, talvez o mais escandaloso que tem chegado ao nosso conhecimento. N'elle vemos um acto arbitrário contra a segurança individual, uma manifesta infracção do § 7.° do artigo 145.° da cana, e um manejo do poder com tal arte executado, que até em um governo absoluto seria por certo extranho.» E accrescentou o orador que, ou exorbitou o intendente, ou o ministro, e que um ou outro deve ser o responsável. Sustentou que, á vista da carta constitucional, ninguém podia duvidar de que a camará dos deputados tem direito de exigir ao governo os docu- mentos relativos aos factos em questão, para proceder como for de justiça. N'este momento levantou-se o ministro arguido, e declarou al- tivamente ao representante do povo que não lhe admittia censuras! Era um dos delegados da única soberania do facto, e do direito. Os representantes da nação vassalla não teem direito para censu- rar os actos dos ministros da coroa. Não se estava em 20, de execranda memoria. Levantou-se grande tumulto na camará e nas galerias, provo- cado pelas palavras insolentes do ministro querido de Canning e de Palmella. Seguiu-se vivo debate, diante do qual a maioria re- cuou, para apoiar, mais uma vez, o governo. O parecer da com- missão foi aprovado! Os ministros da coroa eram iresponsaveis; tinham poder para mandar prender quem muito bem quizessem; não tinham que dar contas dos seus actos ao reles parlamento, ou representantes do povo, e nem mesmo lhe admittiam censuras pelos seus actos. Eram da exclusiva confiança do throno; a este somente é que lhes competia dar explicações da sua conducta. A representação nacional nada valia para elles, que a- ella falla- vam com tanta arrogância, significando por este modo que estavam 115 acima do poder legislativo, pela auctoridade suprema que represen- tavam. A maioria curvou-se submissa ante o poder moderador! Ainda fez mais: quiz fazer uma manifestação contra as preten- ções da esquerda e dos vintistas^ zelosos defensores das prerogati- vas parlamentares. Como os nossos leitores viram, o presidente da camará declarou que a proposta Magalhães não podia entrar em discussão na pre- sente sessão, por ser isso contrario ao regulamento. A maioria con- cordou. O ministro da fazenda, de accôrdo com a direita e o centro direito, propoz que entrasse em discussão o parecer ácérca d'aquel- la proposta. A maioria e o presidente da camará mudaram subita- mente de opinião! Foi dispensada segunda leitura, e entrou logo em discussão o alludido parecer. Pediu a palavra o arrogante ministro dos negócios estrangeiros. Significando tédio e desprezo pelos representantes do povo e do paiz, declarou altisonantemente que não ligava importância ás ac- cusações feitas ao ministério no seio da representação nacional. Pe- diu a palavra somente para combatera segunda parte da proposta, isto é o pedido para a regente demittir os ministros. «A carta constitucional, disse elle, determina que em todos os negócios graves se consulte o conselho d'estado; mas o soberano, auctor da mesma, que tão generosamente limitou parte dos seus inau- feriveis direitos^ para beneficiar os seus súbditos, reservou, como pre- rogativa sua, a escolha de seus ministros. Se a camará pedisse a sua discussão, seguir-se-hia que arrogai 'a a si attribuiçóes que não tinha; infringia a mesma carta efa^ia um ataque ao poder mode- rador. » Os ministros não eram de confiança do parlamento, mas da co- roa; e emquanto esta os quizesse manter, áquelle competia acceital- os resignadamente. Borges Carneiro reconheceu que o ministro fallara com a carta na mão. Disse elle que se não pedisse embora a demissão dos mi- nistros; mas que estes tivessem, ao menos, prudência cm seus ac- 116 tos; vigiassem pela ordem publica; protegessem as liberdades con- cedidas e se inspirassem no amor da pátria. Levantou-se então o leader da maioria, Mousinho da Silveira. O discurso d'este deputado foi de combinação com o governo e com as altas regiões do poder, para a direita e o centro direito romperem as hostilidades com os vintistas, que tão alto pretendiam levantar as prerogativas do parlamento. Este chefe do centro direito investiu furioso contra a esquerda. Começou o seu discurso por esta forma : ((Talvez, sr. presidente, esta indicação, feita por um tão digno e tão distincto deputado, tenha nascido nas cavernas da infernal jun- ta, que, disfarçada no amor do bem, tenha apparecido ao sr. Maga- lhães, para ver se por este modo espalhava também n'esta camará a desunião e a desordem. E, de certo, se eu não houvesse adoecido, quando appareceu esta indicação, havia ter dito á camará ainda mais do que lhe digo actualmente ; e pode ser que esta indicação fosse desde logo rejeitada, e que esta camará houvesse mostrado ainda maior pressa defa{er conhecer a Lisboa, a Portugal e á Eu- ropa, que ella só quer a carta, e nada mais, nem menos, do que a mes- ma lhe outorga. E necessário., senhores., uma ve\ para sempre., fixar n'esta nação a differença infinita que separa a carta das ideas de 1822^ E necessário reflectir que na carta estão garantidos e distribuídos os quatro poderes. Na carta as prerogativas reaes são., como devem ser, mais extensas, que nas idéas passadas. «Temos, sr. presidente, exageração dos princípios llberaes, mais do que tudo; temos a divergência em nossos ânimos e as interpre- tações sinistras de partidos os mais oppostos e somente unidos, pa- ra nos destruirem, com a differença de que uns querem a nossa ruina, e outros cuidam que querem o bem, e a promovem ainda mais. ((Não trato dos factos, ainda repito; nem este é o meu ponto de questão; trato somente da conclusão da indicação, para também concluir, observando que sustento o parecer da commissão, porque não é a camará conselheira da escolha, ou demissão, dos ministros ; 117 porque náo tem a camará mais poder do que lhe dá a carta ; e final- mente, porque não encontro na carta o expediente da indicação. n Saiba o mundo inteiro que esta camará^ agradecida ao sr. D. Pe- dro /F, somente quer faier o que pode faier segundo a carta, e a quer como eíla t?', nem mais nem menos. » Este discurso decidiu a camará. O parecer da commissão foi approvado pela maioria, cartista da gemma ! E por essa forma os realistas constitucionaes pozeram a desco- berto o que os dadores das cartas tiveram o cuidado de occultar bem. O rei é que exercia de direito e de facto a soberania nacional; só perante elle é que os ministros respondiam por seus actos; podiam por isso estar á frente dos negócios, emquanto merecessem a sua confiança, embora não tivessem a dos parlamentos. Estes não eram soberanos, nem de facto nem de direito; deviam sujeitar-se ás von- tades da coroa. Os ministros não teem maioria no parlamento? não importa. Se a coroa os quer conservar, devem manter-se no poder, e não da- rem satisfações aos representantes da nação. Segundo a carta os ministérios não saem das maiorias parlamentares, mas dos conse- lhos da coroa. Os parlamentos não teem importância politica. Tal foi a doutrina que as próprias camarás de 1827 adoptaram com grande espanto de todos os liberaes. Desejaram mostrar á Europa que não queriam voltar a 20, ou á soberania nacional, e que, agradecidos a D. Pedro pela outorga da carta, não queriam menos do que a carta, nem mais do que foi concedido ao paiz pela mesma carta de alforria. E segundo esta os governos não eram obrigados a seguir as indicações das maiorias parlamentares, porque não eram soberanas. Soberano só era o rei. E porque os parlamentos não tinham importância alguma po- litica, segundo o regimen da carta, o governo, forte com aquella vo- tação e com a divisão ingleza que acabava de chegar, dispensou o concurso dos representantes do povo, encerrando, em acto conti- nuo, as camarás, que eram uma roda inútil, ou embaraçosa, do no- vo regimen. 118 O systema liberal foi ferido no próprio coração. Fechadas as camarás, a situação ficou entregue somente á co- roa e aos seus ministros, ou ao poder executivo, que se procurou fortalecer bem, como convinha a uma monarchia, no dizer de Al- meida Araújo, já citado. O ministério, da feição da Inglaterra e de Carlos X, ficou vi- ctorioso com a votação das camarás e com os princípios por ellas mesmas adoptados. Elle sentiu-se mais forte do que d'antes. Desde então por diante, marchou desassombradamente no caminho da reacção; e nunca se mostrou mais altivo, arrogante e desprezador de todas as liberdades e garantias constitucionaes. Com a foice na mão foi-as cortando uma a uma, para mostrar que só o rei tinha força e prestigio, e que só na coroa estava a salvação do paiz. O puro absolutismo encerrado na carta surgiu então claramente. Para reagir aos princípios liberaes e ás despertadas tradições de 20, o ministério bispo de Vizeu pretendeu lançar-se nos braços dos puros absolutistas, concedendo-lhes, em 1 3 d'abril, plena am- nistia ! Elle acabava de lhes mostrar que os realistas constitucionaes não queriam voltar a 20, e que a liberdade vigente era a concedi- da pelo throno e não a conquistada pelo povo e a nação. As dou- trinas expendidas pelas camarás e por ellas adoptadas eram solida garantia de que se estava em pleno regimen do throno e da legiti- midade. Não havia diíTerença entre realistas constitucionaes e realistas puros. Emquanto o ministério rompia com o partido liberal e o parti- do vintista^ procurava attrahir a si os absolutistas puros, conce- dendo-lhes amnistia! Mas todos esses passos não eram a plena justificação dos mi- guelistas? Eram estes que tinham por si a lógica dos princípios adoptados. Se se não queria voltar á soberania nacional, ou a 20, de odiosa memoria, e se os realistas constitucionaes, queriam o pu- ro regimen do throno e da legitimidade, a elles é que competia de- bandarem-se para os absolutistas puros, e não estes para elles. 119 A amnistia não fez senáo denunciar a falsa situação em que se achavam os cartistas diante da insurreição dos absolutistas puros. Além d'isso, veio mostrar que elles sentiam escapar-lhe o terreno debaixo dos pés, e que os acontecimentos os impelliam fatalmente para o regimen absoluto puro. A amnistia, como toda a politica dos cartistas moderados, ou conservadores, produziu eífeito contrario. O próprio Sousa Monteiro confessa que ella veiu confirmar os revoltosos na opinião de que o governo tinha medo d'elles; que os impelliu a novas commoçôes; e que fez arraigar entre os liberaes as suspeitas que pairavam sobre o governo de querer entrar em transacções com os absolutistas puros. Poucos foram os soldados que se apresentaram; e no dia 3o d'abril rebentou a sublevação miguelista na importante praça de Elvas! O partido liberal fora arredado do parlamento com o encerra- mento d'este. O governo poude assim livrar-se d'aquelle partido, que se refugiara n'esse forte reducto levantado pelo suífragio popu- lar. Era o único ponto de apoio que lhe restava. O governo, ou o poder executivo, poude facilmente desalojal-o d'essa posição, encer- rando as camarás. A imprensa continuava sob o regimen da censura. Um facto caracterisa o poder de que os ministros da coroa se julgavam investidos perante o paiz. O Portiigiie{ ousou condemnar a amnistia, por ver n'ella um passo funesto para a causa constitu- cional. A gazeta oííicial responde-lhe do seguinte modo. «Quem se anima a escrever de similhante modo contra as me- didas adoptadas pela excelsa regente, fiel depositaria do poder do nosso legitimo rei o sr. D. Pedro, pouco admira, por certo, que não guarde respeito, ou reverencia aos que assistem aos seus conselhos. Porém é já bem antiga e conhecida a táctica indigna de atacar os agentes inunediatos do poder em menoscabo da auctoridade augusta, cujas determinações seus ministi os e.\ecutam. " E sustenta que atacar os ministros da coma c atacar a mesma cor(")a. São consequências da votação da camará popular contra a 120 proposta de Magalhães e das doutrinas que então se expenderam na mesma camará. O poder moderador, o poder executivo e o ministerial, eram os primeiros e mais importantes poderes da carta constitucional. Nem o parlamento, nem a imprensa, nem pessoa alguma, tinham direito de accusar os ministros da coroa, de censurar os seus actos e até de os discutir. Isso era em menoscabo da auctoridade augusta^ cujas determinações executavatn. O mesmo Portiigiie{ escreyêra que, se o governo continuasse a comprimir o espirito publico, era muito de receiar o rompimento*da guerra civil. A mesma gazeta responde assim : «Ousando fallar em guerra civil, quer, porventura, similhante jornal ameaçar-nos com os horrores que enKictaram Roma nos dias de Catilina. Oit o que é talve^ peior, pretende, por ventura, ameaçar-nos com a renovação das calamitosas scenas que espalha- ram entre nós o pranto e a magua na luctiiosa época de 1820! Fe- lizmente os perversos^ de quem esse jornal é cego instrumento^ possuem pouca habilidade para conservarem longo tempo a mascara; e por si mesmo se dão a conhecer á face da nação toda.» E diz que esta quer a carta e nada mais que a carta (i). Não restava ao partido liberal senão Saldanha. Este reassumiu a pasta da guerra diante da revolta da praça d'Elvas. para satisfa- zer aos pedidos d'aquelle partido. Saldanha, ao tomar conta da sua pasta, começou a desenvol- ver extraordinária actividade, Demittiu os ofíiciaes suspeitos; encarregou os commandos a pessoas de confiança e reorganisou rápido o exercito, que elevou a 52:000 homens com as milícias e o batalhão do commercio. A entrada de Saldanha na pasta da guerra foi festejada por to- tós os liberaes sinceros A pretexto de o verem restabelecido da sua saúde, fôram-lhe dirigidas muitas cartas de felicitação. De quasi todos os corpos fôram-lhe endereçadas mensagens, felicitando-se 1 1 ) Gaveta de Lisboa de iáo de Saldanha e um golpe decisivo sobre o partido liberal e o vintista. — A regente muda de parecer, e declara a Saldanha que não assigna os decretos da demissão — Tumultos graves em Lisboa e Porto.— A regente nomeia um mi- nistério todo conservador e como tal reaccionário.— Demissão de todas as anctoridade-^ saldanhi>las e libe- raes.— Devassas geraes e perseguições de todos os liberaes e v/;?//.ç/j,í.— Guerra á imprensa — D. Pedro novamente desapprova a politica seguida pela irmã. — Esta demitte o novo ministério: mas nomeia outro também censervador. — Este prosegue nas perseguições politicas contra os liberaes e vintistas. A demissão do ministério dos moderados, ou conservadores cartistas, enthusiasmou todos os liberaes. N'o dia lo. o povo tez no theatro de S. Carlos ruidosa manifestação a Saldanha. Assim que este appareceu no camarote, todos se levantaram, e lhe deram re- petidos e successivos vivas. Vo\ alvo das mais fer\"entes ovações, por attribuirem a elle a queda do ministério, i^^r toda a cidade de Lisboa Saldanha recebeu provas significativas de reconhecimento pela sua enérgica attitude perante a maioria C()n^er^"ad()ra e mode- rada do ministério cahido. Houve geral contentamento. Todos csj^eravam que o novo go- 126 verno entrasse no verdadeiro caminho, e se collocasse do lado de Saldanha, auxiliando-o nos bons desejos de deixar avançar o re- gimen liberal. A conversação d'este no poder pelo menos assim o indicava. Ao mesmo tempo a segunda cidade do reino aproveitava a oc- casião, para manifestar a sua sympathia pelo general Stubbs, ami- go intimo de Saldanha. No dia 1 3 de junho, o juiz do povo foi encarregado, por parte dos habitantes da cidade, de entregar ao governador das armas a insígnia da Torre e Espada cravejada de brilhantes, e uma rica es- pada de oiro também guarnecida de brilhantes, em testemunho de gratidão pelos serviços prestados á causa da liberdade. O juiz do povo, ao entregar a Stubbs aquella oíferta da cidade, leu um ma- nifesto assignado por muitos cidadãos agradecendo-lhe os seus ser- viços, e signiíicando-lhe a sincera gratidão dos habitantes por esses serviços. Nos copos da espada lia-se a seguinte inscripção — Os portuen- ses ao tenente general Thomaz Guilherme Stubbs, 1827. — A mes- ma inscripção foi exarada no reverso da insígnia. Stubbs, em um pequeno discurso, agradeceu sensibilisado essa prova de estima e consideração com que o honrara a cidade. Saldanha quiz entrar em vida nova, e rompeu com os medos e hesitações dos cartistas moderados, impellindo o paiz para o ver- dadeiro regimen liberal. Elle tornou a chamar ás fileiras do exercito os ofíiciaes perseguidos em i823 pelo seu affecto ao regimen de 20, e rodeiou se de todos os verdadeiros liberaes. Em 27 de junho, rein- tegrou no seu posto o general Rego, demittido em 1824, e promo- veu-o ao posto de tenente general; ao mesmo tempo, fez com que o processo intentado contra o general Aviliez fosse revisto, para ser annulado. Elle nomeiou para governador das armas da província da Beira o marquez de Valença, para o da província do Minho o conde de Linhares, o chefe do partido liberal na camará dos pares, e para governador das armas da província do* Alemtejo o conde de Villa Flor, que tantas derrotas infligiu aos apostólicos, ou miguelistas. 127 Saldanha entregou todos os logares dependentes da sua pasta a pessoas sinceramente constitucionaes. A imprensa liberal dá prudentes conselhos á regente, para pro- seguir no caminho indicado por D. Pedro, e fazer entrar o paiz no verdadeiro systema da liberdade, a fim de que os povos conhtces- sem todas as suas vantagens. Ella»pede também a immedipta. con- vocação das cortes, para se discutirem as leis regulamentares da carta. E bem instructivo o artigo do Portuguei do dia 12 de junho. Elle elogia a infanta, por ter demittido o anterior ministério, que não tinha a confiança da opini^ publica, e portanto, força moral. Diz que a nação está dividida em duas opiniões que é preciso con- graçar : a dos constitucionaes moderados e a dos liberaes puros. E accrescenta: «Uma quer forte e decididamente a carta e suas con- sequências todas, e talvez seja um tanto excessiva no tirar d'estas consequências; a esta opinião chamamos liberal. Outra quer tam- bém a carta, mas acaso menos fortemente e decerto com menos enthusiasmo. Consente em suas naturaes consequências; muitas as deseja tanto como a outra ; de algumas receia, para algumas ou- tras, mostra, não diremos repugnância, mas um certo temor. Cha- mamos a esta opinião constitucional moderada.» Ima outra opinião ainda existe a dos apostólicos, que desejam o puro absolutismo. E diz que um dos estratagemas d'este partido é andar continuamente recordando os excessos de 20, quando todos praticaram excessos n'essa época, e sobre tudo os victoriosos em 1823. O mesmo jornal accrescenta mui sisudamente o seguinte: "Para que a massa geral ame a carta e esteja prompta a sacri- ficar a vida por ella, é necessário que boas leis regulamentares lhe façam sentir a sua excellencia e bondade. Então se consolidará o sys- tema. Mas quando se farão essas leis:' Três mezes de sessão ordi- nária para o anno que vem escassas esperanças dão. Ferverão as proposisões, os projectos; proirahir-se-ha a discussão c muitas ve- zes amare pompae. E ficaremos como d'anies. Uma convocação exlrordinaria de cortes para ccrir)s e determi- nados objectos, dos quaes não poJerãí^ divai^ar, porque obsta a 128 lei, seria a mais necessária medida que o governo actualmente po- deria tomar, e a que, senão nos enganam esperanças, provavel- mente tomará.» Pede essas cortes, para approvarem as leis regulamentares da carta mais urgentes, entre ellas a da liberdade de imprensa e a da organisação dos municípios. O Imparcial é também do mesmo aviso, e diz que o paiz não está dividido em três opiniões, mas em três partidos ; dois consti- tucionaes e um absolutista. Aquelles constituem a maioria da nação, e este uma pequena minoria. Um d'aquelles partidos constitucio- naes, pelo seu natural temperamento sanguíneo, e talvez por isso, conhece melhor as vantagens da carta ; anciosamente deseja que quanto antes se organisem as leis regulamentares d'ella. E este o o partido exaltado. O segundo, pela sua constituição pleugmatica, e porque timidos receiam as consequências de algumas d'essas leis, e não conhecem bem as vantagens da carta, esperam com indiíferença que o gover- no lhe dê o andamento preciso, quando lhe approuver. São estes os constitucionaes moderados. Para se fazer frente aos apostólicos, não havia senão um meio, entrar no caminho francamente liberal e estabelecer-se a harmonia e união entre os constitucionaes. Emquanto a opinião publica esperava que os outros ministros andassem de concerto com Saldanha, e seguissem por esta forma caminho diverso dos anteriores, romperam-se as hostilidades no seio do gabinete. O visconde de Santarém collocou-se á frente dos car- tistas moderados, e pretendeu reagir aos passos de Saldanha e ao seu partido. O primeiro signal da lucta foi a celebre lei de imprensa de 20 de junho. Diz essa lei o seguinte: «Não se achando ainda promulgada a lei repressiva dos abusos da liberdade de imprensa, sem a qual não pôde ter esta a latitude designada no ^ 3." no artigo 145 da carta; e sendo da mais urgente necessidade prover promptamente sobre este assumpto de tanta 129 importância e de que muito depende a consolidação das institui- ções, difj[nidade da coroa, harmonia e boa mtilligfmcia com as poten- cias alliadas, repouso publico e respeito devido ás attribuiçôes dos poderes politicos marcados na mesma carta constitucional^ hei por bem, em nome de el-rei, approvar as instruções que baixam com este. » Não é permittida a impressão de escripto algum em que se tra- tem, ou analysem assumptos, cuja interpretação pertença exclusiva- mente ao poder legislativo. Não é permittida, do mesmo modo, a impressão de qualquer escripto em que, diz o decreto, se contro- vertam as doutrinas estabelecidas no artigo 92." do capitulo v da carta constitucional, isto é as que se referem á regência do reino durante a menoridade do rei. A questão da regência não era da competência do publico e do paiz, que respeitoso devia aguardar as determinações da coroa a este respeito. Todos os actos dos ministros moderados, ou cartistas da gem- ma, tenderam a reprimir a opinião publica apoiada por Salda- nha e os cartistas avançados, ao lado de quem estavam os vintis- tas. Para oppôrem diques á corrente das idéas liberaes. quizeram, como os anteriores ministérios, apoiar a causa dos absolutistas puros. Kmquanto Saldanha demittia todos os que não eram bem fieis aos princípios constitucionaes, os outros ministros teimavam em conserval-os, de preferencia aos liberaes. O intendente geral era uma das auctoridades que mais se tor- naram salientes na guerra aos }'iiitistas, e nas contemplações com os apostólicos. O novo ministro do reino viu n'elle o seu braço di- reito, para reagir a Saldanha c ao seu partido. Conservou-o contra a opinião publica, que lhe era hostil, e apezar das muitas queixas que havia contra elle. A respeito da inteudciicia i:cral da policia, cm 10 de junho es- creve o Imparcial : ('Não ha correio de Lisboa que deixe de irazcr-nos noticias melancholicas d'csto repartição, .la o Poríui^iic; publicou que os 17 130 moradores de Biienos-Ayres viviam acastellados e em continuas vi- gilias, para resistirem á matilha de ladrões que infestam aquelle bairro ; porque a policia, em vez de cuidar n'este importante ramo, deixa impunemente vagar nas ruas da capital uma alluvião de sal- teadores ; e só cuida em examinar as acções domesticas de pacijicos cidadãos^ a ver se descobre as 40 lojas maçónicas que injluiram o de- putado Magalhães^ parafa^er nas ultimas sessões das camarás a sua justa proposição ; tem particular cuidado em que não venham de Lon- dres e Gibraltar honrados hespanhoes expatriados^ por adoptarem o mesmo systema de governo que felizmente nos rege; e para estes tran- sgridem as leis sagradas da hospitalidade. Os agentes apostólicos que machinam contra o rei e a lei podem impunemente continuar em suas perversidades^ que são objectos que pareecm não occupar a alta politica. . .» E exactamente mesmo n'esta occasião que os apostólicos acti- vam mais a sua propaganda contra a revolução de 20, e pretendem mostrar ao paiz que a carta constitucional, com suas naturaes consequências, vem a dar no regimen d'aquella época, hostilisada por todos os monarchicos intransigentes. Publicaram-se algumas brochuras n'esse sentido. A seita apos- tólica fundara um órgão seu com o jornal a Quotidiana. Tanto este jornal, como o Correio do Porto., distinguem-se n'essa propaganda contra a constituição de 20 e a carta, que dizem filha d'aquella. Com similhante propaganda quizeram os apostólicos assustar no- vamente os ministros moderados, ou conservadores, e impellil-os a reagirem ás exigências dos constitucionaes da esquerda. Elles julga- ram conveniente accirrar n'esta occasião a divisão do gabinete, para obstarem a que se realisassem os avisos do Portiiguei e Imparcial, e a que os liberaes se congraçassem com a formação do novo mi- nistério. Parece até que houve uma approximação dos absolutistas puros com os absolutistas constitucionaes que estavam no poder. Os fa- ctos assim o parecem indicar. Emquanto o novo ministro do reino concentrava todas as at- tenções em vigiar as 40 lojas maçónicas que inspiraram a exe- 131 cranda proposta do deputado vintista^ pouco caso fazia da insurrei- ção apostólica. A linguagem d'esta contra os homens de 20 agra- dava-lhe também. Cartistas liberaes e vintistas principiaram a ser fortemente hos- lilisados pelos cartistas moderados, ou conservadores, pela maioria do governo e pelos apostólicos; porque exigiam que se levasse o regimen da carta aos puros princípios da liberdade, convocando-se cortes extraordinárias, para tratarem, quanto antes, das leis regula- mentares propostas na camará popular, e entregando-se a adminis- tracção a pessoas aífectas á mesma liberdade. O partido de Saldanha ganhara muita força com a queda do anterior ministério; e tudo fazia prever que elle compelliria a regente a executar os decretos de D. Pedro. Os apostólicos comprehenderam o perigo. A victoria da liber- dade era a sua nK)rte. Por isso se pozeram do lado do governo, para o auxiliarem na guerra contra Saldanha e os vintistas^ e para obstarem a que se cumprissem os votos d'estes, convocando-se cortes extraordinárias, e demittindo-se as auctoridades suspeitas. Isto levava a 20 ; o throno e o altar estavam novamente em perigo. As malditas 40 lojas maçónicas trabalhavam n'esse sentido, e ma- chinavam nas trevas. Saldanha estava em poder d'ellas. Urgia accudir ao mal. Os vintistas e cartistas liberaes pediam perfidamente a união de todos os constitucionaes, para consegui- rem seus fins tenebrosos. Para se lhes resistir, não havia senão um meio, uma approximaçáo dos cartistas puros, ou conservadores, com os apostólicos. Em 19 de junho, escrevia o Correio do Porto o seguinte: ((Temos uma federação de puros liberaes, que desde o anno de 1820 teem arruinado a Hespanha; e o seu vandalismo revolucioná- rio, qual furiosa corrente, tem devastado todo o mundo á sombra das seductoras palavras, liberdade, egualdade, direitos do homem, philantropia, beneficência, e outras quejandas tabricadas nos cére- bros esquentados de phiiosophos sem juizo, sem Deus, sem moral interna e sem costumes.» E pretende mostrar que essa federação de puros liberaes ma- 132 china nas trevas seus planos contra os thronos, contra a religião, contra a moral e os bons costumes. Levantou-se viva polemica entre o Portugue\ o Imparcial e o Correio do Porto^ por causa d'essa cruzada, novamente levantada contra os homens de 20, para evitar a conciliação dos cartistas moderados com os cartistas avançados,- ou liberaes puros. A Gaveta de Lisboa^ respondendo á Quotidiana^ admira-se de que os apostólicos e legitimistas puros combatam a carta junta- mente com a constituição de 20, quando aquella é toda emanada do throno e da legitimidade, e não do povo e da nação, como esta, motivo só porque a condemnam e reprovam. A carta está exacta- mente nas mesmas condições exigidas pelos absolutistas, (i) Saldanha instou por que o governo demittisse as auctoridades, que, emquanto perseguiam os liberaes e vintistas, toleravam com a máxima benevolência os apostólicos, ou realistas puros. EUe exigiu também a immediata convocação extraordinária das cortes, para se fazer sentir aos povos todos os benefícios da liberdade, publi- cando-se as leis regulamentares da carta. A maioria do governo, em presença d'essa attitude de Saldanha, cerra fileiras e oppõe-se energicamente a satisfazer aquellas exigên- cias dos liberaes. Ella dá ouvidos ás intrigas e manobras dos rea- listas puros. Saldanha era instrumento das lojas maçónicas e dos exaltados ; nada de transigir com elle. Em vez de se estabelecer a harmonia entre os cartistas conservadores e os progressistas, conforme pediam todos os liberaes puros, aggravou-se ainda mais a lucta entre aquelles dois partidos. Os constitucionaes conservadores foram em todos os tempos intolerantes com os progressistas e sempre reaccionários. Em 1826, em 1827 e em 1828, assumiram a attitude que nunca abandonaram durante toda a historia do constitucionalismo até hoje. Elles preferiram sempre o regimen absoluto puro ao regimen da pura liberdade, ou da democracia. Foram, em todos os tempos, (i) Gaveta de Lisboa, de 17 de julho. 133 inimigos irreconciliáveis dos constitucionaes liberaes e progressistas. O mesmo em Portugal, que na França e na Hespanha. Logo no primeiro ensaio da carta, se creou esse antagonismo dos conservadores constitucionaes com os constitucionaes progres- sistas e avançados, o qual foi origem de todas as revoluções poli- cas que tiveram logar em Portugal e em toda a Europa. Os conservadores teem sophismado sempre as liberdades das cartas outorgadas e teem receiado sempre das suas legitimas con- sequências. Houve em todos os tempos muitas sympathias d'elles com os absolutistas puros. Ainda não ha muito que o sr. Canovas em Hespanha governou com o sr. Pidal. A maioria do ministério preferiu approximar-se dos apostólicos, do que de Saldanha e dos vintistas, para levar a liberdade consi- gnada da carta ás suas legitimas consequências. Os jornaes liberaes denunciam, mais uma vez, a cumplicidade dos governos cartistas puros no progresso da insurreição apostó- lica. Em 5 de julho escreve o l^ortiig-iici : «Cartas pregoeiras de noticias absurdas e aterradoras se espa- lham e copiam quasi em publico. Proclamações sediciosas provo- cando á rebellião se distribuem nas cidades e vulgarisam pelos cor- reios. Boatos insinuando esperanças soam por toda a parte c ate onde menos deviam soar, em menoscabo do governo e das novas in- stituições. Medalhas, anéis, engastes, onde sacrilegamente se mistura o divino com o profano, se vendem e trazem publicamente, para servir de pedra de toque ás opiniões de quem com elles se arma. Emissários conhecidos por conspiradores entulham os passeios, lu- gares públicos, cates, iheatros e todos os sitios onde ha reuniões. Lojas onde seus donos se deviam dedicar a um tralico honesto ser- vem para ajuntamenlos ao concentrado espirito anti-constitucional ; e ahi se ventilam questões de alta politica: se distribuem e rece- bem as ordens do dia, para circularem pela cidade. CJubs combi- nados se fazem a cada momento, quando e necessário alentar (• atrevimento dos sectários; promessas de cooperação estrangeira, arteiros embustes, certeza de nenhum ^astigo e a perlida asserçã*.). Í34 insinuada com requinte de maldade, de que até agora algumas au- ctoridades estão de accordo no plano ominoso, e tacitamente o pro- tegem. Eis as terríveis armas manejadas pela seducção.» Conta o Imparcial que se descobriu uma conspiração dos apos- tólicos, e que n'uma carta aprehendida a Manuel José Gomes, ir- mão do redactor do Correio do Torto^ se encontrou o periodo se- guinte : ((Acabo de fallar com o sr. intendente Bastos, e elle, em ami- zade e debaixo de confidencia, me disse que te não assustasses com a devassa ; porque elle a mandou avocar. Pedi-lhe se te podia com- municar isso, e elle m'o concedeu, havendo segredo.» Todas as attenções do intendente geral da policia, braço direito do visconde de Santarém, e da politica de Canning, estavam con- centradas nas taes 40 lojas maçónicas em que se achava filiado o deputado Magalhães e todos os seus sectários. Tudo menos que se dessem largas ás idéas liberaes. O desenvolvimento das idéas abso- lutistas convinha mais aos constitucionaes moderados, ou conser- vadores, esses que já em 1820 estiveram sempre unidos aos rea- listas puros, como mostrámos na historia d'essa época. O partido liberal mais uma vez se agitou diante da aproxima- ção dos conservadores com os apostólicos. Elle pediu com insistên- cia a demissão do intendente geral da policia, e de outras auctori- dades, e bem assim a convocação das cortes, para se conjurar o perigo. Diz o Imparcial em o n.° 18 : (cA convocação extraordinária das camarás já talvez se teria feito, se não houvesse o receio de que, reu- nidas ellas^ não sahissem da linha das discussões que lhes marcasse o governo. » Esta é que é a verdade pura. A maioria do ministério, composta como as anteriores, de con- servadores, não queria a cooperação dos representantes do povo e do paiz; queria governar só com o poder executivo, delegado da auctoridade augusta cujas determinações executava. A convocação das cortes, n'este momento, dava toda a força ao partido liberal e a Saldanha. Isto não convinha, nem aos car- 135 tistas moderados, e nem ao ministro da Grá-Bretanha, que se oppu- nha com toda a energia. E possivel que chegassem de Londres novas instrucções n'esse sentido e em reforço do ministro do reino, o celebre visconde de Santarém, successor dos Trigosos e do bis- pos de Vizeu. Palmella, na sua obra já citada, resolveu eliminar a sua correspondência com o ministro dos negócios estrangeiros. Não lhe conveio denunciar, como o fez no principio, a interferência da Grã-Bretanha n'este perio^io do regimen da carta. Foi exactamente n'esta occasião de crise para a liberdade que se levantou a questão da regência, de que trataremos em capitulo especial. A Áustria deu o primeiro passo para entregar a regência a D. Miguel. O partido liberal reconheceu que esse passo era contra elle, e que não aproveitava senão aos absolutistas puros. Saldanha fez então o ultimo esforço, para tirar o paiz do estado de incerteza, de duvida, de desordem e de anarchia, em que o man- tinham os cartistas conservadores, ou moderados, com sua politica tibia e de meia tijella. Elle exigiu á infanta que se acabasse de uma vez com a interferência estrangeira na nossa politica, que se comba- tessem energicamente as pretenções de D. Miguel á regência, que se desenvolvesse mais energia e actividade na defesa da carta e das novas instituições, e que se demittissem em continente as auctorida- des inimigas e suspeitas. Em conselho de ministros o mesmo Saldanha propoz a demis- são do intendente geral da policia, contra quem havia graves accu- sações, e do presidente da relação^ que estava de accordo com elle. Indicou para substituir o primeiro Manuel 1'uarte Leitão, e para substituir o segundo Pedro de Mello Breyner. O conselho de ministros não se atreveu a reagir, e resolveu que se fizessem essas demissões e nomeações, e que se demittissc o mi- nistério, visto haver n*elle tão graves desintelligencias. Foi então que se levantou em peso toda a reacção dos cartistas puros, capitaneados pelo ministro da (írã-Brctanha, e incitados por Palmella. Antes que os decretos sahissem, correram ao paço da reu;ente o ministro da Inglaterra, Trigoso. o bispo de \'izcu. Ikirradas e outros 136 chefes dos cartistas moderados, aconselhando-a a que os não san- cionasse. Eram imposições das 40 lojas maçónicas, em poder de quem estava Saldanha, homem funesto e perigoso, que urgia afas- tar do poder para sempre. A infanta regente tornou a vêr-se sob a pressão da politica es- trangeira, dos corrilhos de palácio e dos constitucionaes conserva- dores, ou reaccionários, que sempre tiveram intimo convívio na corte. A regente enferma continuava a apertar a cabeça, sem saber para quem havia de se voltar. Ella temia Saldanha e a sua grande influencia no paiz e no estrangeiro, e por outro lado não se atrevia a contrariar a Inglaterra, fiel alliada^ e os que se mostravam mais zelosos defensores do throno. Pouco intelligente e fraca de animo, ella mesma não comprehendia o alcance da politica rasgada e au- daz de Saldanha, e encostava-se aos moderados, de cujos receios compartilhava. Não foi difficil a estes assustarem -n'a com a tal ma- chinação das 40 lojas maçónicas contra os direitos do throno e a favor dos principies de 20, que ella via atraz das pretenções de Saldanha e dos seus partidários. E é digno de se notar que o Correio do T^orto e os apostólicos também defendiam 'o intendente Bastos, emquanto não cessavam de accusar o general Stubbs, pedindo a sua exoneração de governador das armas do Porto. Houve n'este momento uma verdadeira concentração das forças reaccionárias em volta da regente, para que esta desse golpe deci- sivo em Saldanha e nos piutistas. A Inglaterra, a França, a Áustria e a Hespanha, ameaçavam-n'a, se ella desse ouvidos ás exigências do ministro da guerra e transigisse com elle. Os apostólicos apro- veitaram a occasião, para mostrarem ao paiz e á Europa que a carta favorecia os homens de 20, que, como corrente furiosa, devastaram a península e o mundo inteiro com os funestos princípios da Revo- lução. Combinou-se em palácio, sob as inspirações do ministro inglez, o rompimento de hostilidades com Saldanha, e uma forte reacção ao partido liberal, formando-se uma situação accentuadamente con- 137 servadora com um ministério homogéneo e unido sob a mesma bandeira. O conde de Villa Flor, que tinha sob o seu commando três re- gimentos de cavallaria e dois mil homens de infanteria, foi chama- do a Lisboa, para coadjuvar o golpe doestado, combinado em palá- cio pelo ministro da Grã-Bretanha e os conservadores. A infanta, antes de partir para as Caldas da Rainha, tinha man- dado lavrar os decretos resolvidos em conselho de ministros. Quando Saldanha foi conferenciar com ella para a nomeação das novas au- ctoridades, respondeu-lhe : «Já mudei de opinião; não assigno os decretos.» Saldanha ficou surprehendido. Em seguida pediu a demissão, que era o que desejava Canning, Palmella e os mais ministros. As consequências d'esse passo ousado são fáceis de se prever. Os conservadores não teem sido senão fabricas de revoluções e de commoções politicas, por elles provocadas com o seu ódio á liber- dade. Os liberaes já estavam cançados de serem perseguidos e vexa- dos, desde que a carta foi posta em execução. Apesar da sua bran- dura e da sua conducta sempre cordata e prudente, e apesar de serem os leaes defensores dos princípios constitucionaes, não con- seguiram fazer entrar o paiz no verdadeiro regimen d'estes princí- pios. O afastamento de Saldanha foi uma provocação aos cartistas avançados e aos pintistas^ para os ímpellír á revolta, e para dar pretexto á sua perseguição. Quíz-sc tirar desforra da ousada pro- posta de Magalhães, que tão grande escândalo fez nas altas esphc- ras da politica e nas cortes estrangeiras. Apenas na tarde do dia 24 de julho se espalhou em Lisboa que Saldanha fora demittido, em todas as ruas principaes e praças da cidade começaram a formar-se ajuntamentos, mostrando viva in- quietação e commentando desfavoravelmente os factos occorridos. O Chiado e o Rocio enchcram-se de povo, e viam-sc muitos grupos censurando asperamente os ministros que tòram culpados da demissão de Saldanha. 18 138 Os apostólicos exultaram e apresentaram-se em publico ufa- nos com a sua obra. No Rocio, apinhado de povo, o prior do Barreiro ergueu a voz, e disse: «Então cae, ou não cae a constituição? Eis ahi o general Saldanha fora do ministério. E agora vão d'esta vez todos os con- stitucionaes, porque o verdadeiro rei não tarda e então ...» O povo não o deixou continuar ; cahiu sobre elle ; prendeu-o e entregou-o a uma guarda que passava. Depois d'isto, começou a dar vivas a D. Pedro, á carta consti- tucional e a Saldanha, e assim percorreu todas as ruas da cidade na maior exaltação e repetindo aquelles vivas com ardor. Levado o prior do Barreiro á presença do respectivo juiz, este mandou-o logo soltar, recommendando aos soldados o defendessem do furor dos populares, e não o deixassem insultar. ! O povo, quando o viu entrar na casa da guarda, ao Rocio, e sahir solto e livre, correu atraz d'elle e prendeu-o novamente. Esteve na casa da guarda até ao outro dia. Foi conduzido á presença do ministro do bairro de Santa Catharina, que o mandou então para a cadeia. Durante toda a tarde e a noite de 24, não cessaram de percor- rer as ruas da cidade grupos dispersos dando vivas a Saldanha, á carta e a D. Pedro. Um numeroso grupo foi fazer uma manifesta- ção defronte da casa d'aquelle general, que foi vivamente victoriado e acclamado por milhares de pessoas. Esta exaltação durou até ás duas horas da noite, em que os numerosos grupos se dispersaram e voltaram para suas casas. A cidade mostrou-se todo este dia bastante inquieta ; mas não se com- metteram excessos, nem violências por parte da multidão tumul- tuosa. No dia seguinte, a agitação da cidade augmentou. Circularam boatos de que o governo ia tomar medidas enérgicas ; que o conde da Ponte ia ser encarregado da pasta da guerra e que o conde de Villa Flor ia ser encarregado do commando das tropas, tendo rece- bido ordem para acutilar o povo e cessar os tumultos. Quando o ministro da marinha sahia do seu ministério e v^ol- 139 tava para a rua do Ouro, o povo cercou-lhe a carruagem. Deu-lhe muitos vivas e morras ao intendente geral da policia, ao ministro do reino e a outros que influiram na demissão de Saldanha. Depois pediu-lhe que representasse á regente a magua que todos sentiriam quando souberam da demissão do ministro da guerra. «Nós todos? lhe disseram, solicitamos que novamente o nosso general entre no ministério». O ministro da marinha prometteu-lhes que faria constar ess^ voto á infanta regente. O povo deu-lhe muitos vivas e acclamou de novo D. Pedro, a carta e Saldanha. A todas as auctoridades importantes que o povo encontrava pe- dia-lhes que fizessem conhecer á regente o desgosto geral que ia pela cidade por causa da sahida do ministro da guerra. A noite appareceu subitamente um numeroso cortejo, composto por pessoas de todas as classes e com archotes acesos. Dirigiram-se ás residências de vários personagens mais influentes no partido liberal, e ahi fizeram-lhes vivas manifestações de sympathia e de adhesão. A casa de Saldanha foi alvo das mais ardentes ovações Ahi o cortejo desfez-se em vivas repetidos e em todas as demon- strações de sympathia sugeridas por seus corações gratos e reco- nhecidos. Foi um momento de verdadeiro enthusiasmo. Ao passar por a casa do intendente Bastos, a multidão não pôde conter o seu furor; parou e por muito tempo deu-lhe morras e significou- lhe o quanto era detestado pelos habitantes da cidade. Nos theatros a população mostrou a mesma exaltação. Em S. Carlos a platéa pediu o hymno constitucional, que foi depois cantado em coro por todos os espectadores. Recitaram -se poesias a Saldanha, a D. Pedro e á liberdade, as quaes foram aco- lhidas com salvas de palmas, e seguidas de muitos vivas e ruidosas manifestações do publico exaltado. No dia 27, soube -se que o conde da Ponte fora encarregado da pasta da guerra e interinamente da dos negócios estrangeiros. Pelo meio dia começaram a reunir-se nas ruas e praças princi- paes da cidade numerosos grupos de cidadãos de todas as classes. As seis horas romperam no Terreiro do Paço calorosos vivas a 140 D. Pedro, á carta, e a Saldanha. A multidão era immensa. Aqui resolveram enviar uma deputação ao juiz do povo, para lhe pedir fosse ás Caldas da Rainha expor á regente que o povo da ca- pital pedia a reintegração de Saldanha. Acompanharam todos a deputação no meio de vivas. O juiz do povo compareceu á janella, respondendo com os mesmos vivas. Deu a sua palavra que parti- ria ás duas horas da noite. Assim o cumpriu, sendo acompanhado por uma escolta de cavallaria. Já n^este dia viram-se muitos offi- ciaes e soldados misturados com o povo e acompanhando-o nas suas manifestações. Continuaram a percorrer as ruas da cidade muitos grupos, dando vivas a D. Pedro a Saldanha, á carta e á liberdade. Correu que Saldanha, que se tinha retirado para Cintra, tivera' ordem de sahir do reino, boato espalhado de propósito para provo- car o povo ao tumulto e á revolta. Com effeito n'este dia já a população de Lisboa se mostrava impaciente e desesperada pelo prolongamento da crise. Por as esquinas das ruas appareceram proclamações revolucio- narias; soltaram-se gritos subversivos e os jornaes liberaes publica- ram artigos enérgicos contra o governo e as tendências reaccioná- rias que se manifestavam nas altas regiões do poder. Essa imprensa lança um olhar de saudade para a época de 1820, em que imperou o sincero regimen da liberdade. O Imparcial defende o direito que tem o povo de resistir ás me- didas despóticas e arbitrarias dos governos. A própria Gaieía de Lisboa aparece com um artigo combatendo a obediência cega aos soberanos, a qual diz que é o mesmo que entregar as almas e os corpos á roda inconstante de uma verda- deira loteria politica. Paliando da declaração da Turquia ás potencias com respeito á Grécia, na qual o sultão sustenta que os vassallos devem aos sobe- ranos obediência passiva, aquelle jornal, referindo-se aos reaccioná- rios ou aos conservadores cartistas, accrescenta : «Queriam e ainda querem, portanto, impor-nos a lei musulma- na e fazer-nos passar da classe de homens e súbditos constitucio- 141 nalmente livres para a baixa e vil sorte de vassallos turcos, sujeitos a um sultão. » Entende que aquella doutrina não encontra proselytos em Por- tugal, onde desde as cortes de Lamego houve sempre cortes. E diz em seguida : «E preciso que se saiba que entre as nações modernas é Por- tugal o primeiro povo que soube resistir e gosar as doçuras de uma justa e bem regrada liberdade, assim como é necessário altamente declarar que também os reis portuguezes foram os primeiros na Europa que reconheceram o interesse e o valor de governar os po- vos constitucionalmente.» No dia seguinte a mesma gazeta mostra os perigos de se des- presar a opinião publica e de se querer governar por meio da força. Termina da seguinte forma: «Não sejam, pois, inúteis as lições da experiência. A opinião, ou se ha de dirigir com muita sabedoria e prudência, ou se ha de arrostar temerariamente com ella. O pri- meiro meio é o mais prudente e seguro ; o segundo é o mais arris- cado e temerário e pode ter resultados fataes. » Estes artigos sensatos foram obra de José Liberato Freire de Carvalho, outro malvado de 1820. Produziram escândalo e indi- gnação nos paços da regente e no mundo official. • Também n'este dia appareceu uma proclamação republicana, que tem dado origem a grande controvérsia. Difficil, senão impos- sível, é saber-se d'onde partiu. Uns dizem que foi obra do inten- dente Bastos; outros que partiu dos apostólicos e outros dos clubs liberaes. Qualquer d'essas hypotheses tão contrarias é admissível ; d'aqui a difficuldade da questão. Tanto o governo, cartista moderado, como os apostólicos, tinham interesse em mostrar ao paiz e á Europa que os cartistas liberaes e os pintistas pretendiam levar o paiz para a republica. Com essa proclamação faziam recuar todos os timidos, e legitimavam a inter- venção estrangeira, que já em 1820 derrotara a liberdade em Por- tugal. Era um meio mais efticaz de concentrarem todas as forças monarchicas em volta do throno. Os apostólicos, com essa proclamação, justiíicavam os artigos 142 dos seus jomaes, as suas obras e manifestos, em que diziam que a carta trazia comsigo inevitavelmente a época de 20 e, portanto, a republica. Com essa manobra pretendiam attrahir para a causa de D. Miguel, ou do throno absoluto, todos os monarchicos, ou cartis- tas moderados. Também é possível que todos os sinceros liberaes, descrentes, em vista dos factos, de que o regimen liberal fosse praticável dentro da monarchia, se voltassem n'este momeato para a republica. To- dos os esforços por elles empregados n'esse sentido, desde que a carta fora proclamada, foram baldados. Não era a primeira vez que isto succedesse. Esta hypothêse é, porém, a menos certa. A proclamação parece obra, ou dos conservadores, ou dos apostólicos. Merece ser conhecida. Eis como ella começa: «Portuguezes! A perfídia dos secretários doestado que se mu- daram ha pouco conheceu-se, ainda que tarde. Já se não pôde impedir as negociações que elles tinham entabolado, auxiliados pela junta apostólica, e protegidos pela infernal e destruidora politica do príncipe de Metternich. D'aquellas negociações resultou que o reino de Portugal se entregou ao infante D. Miguel com o titulo de re- gente. E que esperamos? Que o tyranno appareça entre nós, e que banhe sua vingativa espada no sangue dos mais puros e fieis por- tuguezes ? Já não haverá quem se lembre da fatal noite de 3o de abril de 1824, e queira vêr subir ao patíbulo, uns após outros, como executaram em 18 17 no Campo de Sant'Anna, para reinar sobre essas cinzas esse Miguel de horroroso e detestável nome? Não, salvemos, emquanto é tempo, a nossa pátria da fatalidade que a ameaça; salvemo-nos a nós mesmos; e para conseguil-o principiemos por exterminar os que se preparam para serem os nossos mais cruéis verdugos. Se tivermos valor, o triumpho será nosso; e se não, os que se salvarem da vingança de um dia de anarchia não escaparão do cadafalso. Despertae-vos, portuguezes leaes ao juramento. Ainda é tempo de conservarmos nossas juradas instituições e por ellas daremos a ultima pinga de sangue.» Ha n'esses períodos a verdadeira prophecia dos acontecimentos 143 futuros. No emtanto não se comprehende como se appelle para o juramento prestado á carta, e se queira, ao mesmo tempo, procla- mar a republica. A coniradicção é flagrante. Passa a proclamação a mostrar que nada se deve receiar da Hespanha, cujo exercito está cheio de republicanos^ e da França ameaçada pelo grito da guarda nacional no dia 3o de abril, o qual é indicio de que n'ella também se conspira a favor da republica. Aqui ha, ou ignorância, ou má fé. A proclamação accusa sir Accourt por aconselhar á regente a de- missão de Saldanha. E diz que foi elle quem matou a liberdade em Nápoles e Piemonte e depois na Hespanha, em que illudiu os con- stitucionaes até á queda de Cadiz. «É este ministro, diz ella, de mil unhas que se acha entre nós e que nos presenteou com um exer- cito que ainda hoje se não sabe ao que veiu, que nos é tão gravoso como inútil e com o qual ousam ameaçar-nos.M N'este ponto a proclamação diz a verdade. Ella prosegue dizen- do que o partido liberal tem um chefe e que só ellc nos pôde sal- var, bem como a republica, rermina com vivas ao primeiro côn- sul electivo, á republica, ás nações que hão de seguir Portugal e á independência nacional Era desconhecer o caracter, a Índole e sentimentos monarchi- cos de Saldanha, elegendo-o para presidente da republica. E os proclamadores consultaram aquelle general ácèrca d esse passo? Não é possivel; e se o tivessem consultado era certa a sua immediata recusa. Como o acclamaram então primeiro cônsul electivo :' Queriam eleval-o a esse cargo contra vontade e sentimentos d'cll8!* Não estará aqui uma intriga do intendente Bastos, braço direito do visconde de Santarém, para compromctter Saldanha e desacredital-o, não sinnente perante as nações, mas também peran- te D. Pedro, que apoiava a sua politica? Todo este dia passou -se no meio de tumultos. Je vivas á repu- blica, e a Saldanha, misturados com vivas a 1). Pedro c á carta. O conde da Ponte andava pelas ruas provocando o povo c dando cuti- ladas, acompanhado de alguns constitucionaes modcrad- s que niais 144 salientes se mostraram na Villafrancada. O futuro barão da Ribeira de Sabrosa pedia aos soldados que carregassem sobre estes canalho- cratas; o povo amotinou-se ; e tel-o-hia assassinado, se elle de prom- to não lhe desse plena satisfação pela sua expressão injuriosa. Um numeroso grupo dirigiu-se á residência do ministro da fa- zenda, que estava em conferencia com os ministros da justiça e da marinha. Enviaram-lhe uma deputação de três populares pedindo- Ihes a reintegração de Saldanha. Diz Sousa Monteiro que, apesar dos conselhos de muitos fidalgos que desejavam acutilar os canalhocratas tumultiiarios, o conde de Villa Flor não se atreveu a fazel-o, pela attitude da tropa e dos voluntários do commercio, que se reuniram ao povo, e com elle deram vivas á carta, a D. Pedro e a Saldanha, e deram morras ao intendente geral da policia (i) O conde de Sampaio, governador das armas da província da Extremadura, ao ver o perigo da situação e o estado tumultuario da cidade de Lisboa, enviou á regente uma representação assigna- da por ofíiciaes de vários corpos, pedindo-lhe a conservação de Saldanha, para se serenarem os ânimos. Emquanto o governo planeava a revolta desejada, e lhe dava tempo a que ella se manifestasse, de accôrdo com o ministro inglez tomava todas as medidas para a reprimir, e dar o golpe d'estado contra os vintistas^ filiados nas 40 lojas maçónicas que machinavam contra o throno. Como no dia 27 a revolta não apparecesse, o governo conser- vador lançou mão de medidas violentas. A infanta partiu para Ma- fra; e, a pretexto da tal proclamação republicana, ordenou a Sal- danha que de Cintra se retirasse para Oeiras, até se resolver o seu pedido para se passar para o Rio de Janeiro. Foram prohibidos os ajuntamentos nas ruas e praças de Lisboa, os vivas e poesias e hymnos nos theatros; redrobaram-se as patru- lhas e a cidade foi declarada em estado de sitio. Ao mesmo tempo, o intendente geral da policia abriu devassa geral e procedeu á pri- são de homens importantes e influentes no partido liberal. ii) Idem. Tomo iii. pag. 355. 145 O bispo do Algarve e António Manuel de Noronha, pessoas de Saldanha, foram demittidos das suas pastas, que foram entregues provisoriamente ao visconde de Santarém e a Manuel António de Carvalho. Assim pagou o ministro da marinha as manifestações de sym- pathia que durante todos estes dias recebeu da população de Lisboa. O conde de Sampaio foi demittido do governo das armas da Extremadura e do logar de inspector geral de cavallaria, sendo aquuelle primeiro encargo entregue ao general Caula. José Liberato de Carvalho, auctor dos dois artigos da Gaveta de Lisboa^ mereceu também castigo, sendo demittido do logar de official da secretaria dos negócios estrangeiros ; e o censor foi seve- ramente reprehendido por ter dado licença á publicação dos arti- gos. Foi encarregado da redacção da gazeta official José Joaquim Pedro Lopes, que foi depois um dos mais ferozes miguelistas ! Em virtude da devassa, foram presos o arcebispo de Elvas, o marquez de Fronteira, os condes da Cunha e da Taipa, que na camará dos pares mais opposição fizeram aos governos conserva- dores cartistas ; foram presos muitos militares, redactores dos jor- naes liberaes e muitos patriotas, como veremos n'outro capitulo. Não foi só em Lisboa que a demissão de Saldanha, então chefe do partido liberal, causou commoções populares e inquietou o es- pirito publico. Também no Porto deram-se acontecimentos graves. A noticia chegou no dia 28 ; formaram-se logo muitos ajuntamen- tos procurando informar-se das noticias recebidas da capital. Ao aproximar da noite, soldados e paizanos levantaram muitos vivas a D. Pedro, e D. Maria II, á carta e a Saldanha. O regimen- to 9 de infanteria percorreu a cidade com archotes aceesos. c acom- panhado de muito povo e de pessoas de todas as classes sociaes. Por todo o caminho foram dando vivas a Saldanha. O cortejo foi fazer uma manifestação defronte das casas do chanceller Ja rela- ção e do corregedor da comarca. Em seguida, dirigiram-se á resi- dência de Stubbs. Enviaram-lhe uma deputação, para que elle pe- disse á infanta a reintegração de Saldanha. 19 146 O governador das armas annuiu, e dirigiu á regente uma repre- sentação no sentido seguinte : i.° Que a regente, no desempenho da sua missão e para bem do throno e da nação, deveria conservar o ministro da guerra de- mittido. 2.° Que tendo-o desonerado concluia-se doeste facto que estava em coacção e opprimida pelos inimigos que a rodeavam. 3.° Que em consequência elle e os habitantes do Porto supplicavam a readmissão de Saldanha e que a regente afastasse da sua residên- cia conselheiros e validos que se atreviam a coarctar as intenções e villipendiar os deveres e auctoridade d'ella. 4.° Que elle general se oíFerecia para vir a Lisboa com os oíiiciaes e soldados da guar- nição da cidade e com muitos patriotas, para defender a liberdade. A attitude conciliadara de Stubbs conseguiu que os ânimos se- renassem immediatamente, e não houve na cidade nenhum motim, ou tumulto. Todos esperaram que a regente attendesse ao pedido da seguíida cidade do reino juntando os seus votos aos da capital. O resultado d'aquella representação foi a demissão de Stubbs, tão guerreado pelo Correio do Porto e a seita apostólica! O governo mandou mettel-o em conselho de guerra e substituiu-o pelo conde de ViUa Flor. O próprio Almeida Araújo, referindo-se a todos estes factos, escreve o seguinte : «Esta fracção do partido liberal, vintista, accusada tão violen- tamente de aspirar a insólitas pretenções, pagava agora as suas ar- rojadas propostas na camará dos deputados, as suas aprehensões a respeito dos magistrados territoriaes, as suas suspeitas de que se tra- mava contra a carta constitucional, sendo vigorosamente processada e até perseguida, ao pasM que aos inimigos do systema constitucional^ ainda aquelles que o tinham combatido com as armas na mão, por ' um singular contraste, se franqueavam todos os meios de liberda- dey^ (1). E aqui teem nossos leitores quatro ministérios sabidos da carta, recuando todos diante das consequências das liberdades n'el- (i) Chronica da rainha D. Maria II. (Tomo i. pag. 225). 147 la íicticiamente consignadas. O poder executivo toma constante preponderância sobre os mais poderes e sobre o paiz : é elle que tudo dirige, que se impõe a tudo e que define as situações politi- cas, como nos regimens liberaes os parlamentos. Ainda mais: teem visto nossos leitores que o poder caiu sempre nas mãos dos cartis- tas conservadores, e que estes até este momento foram inimigos ir- reconciliáveis dos cartistas liberaes, ou progressistas, e propenderam sempre para os absolutistas puros. Durante toda esta serie de mi- nistérios accentuou-se a politica conservadora. Quatro notas d'cste regimen cartista : o fortalecimento do poder executivo ; politica ac- centuadamente conservadora ; guerra a todas as liberdades e a in- fluencia estrangeira. Em 1 7 d'agosto o governo mandou publicar o seguinte decreto : «Havendo os perturbadores da ordem publica attentado contra ao faculdades que me competem^ na conformidade do § 5." do artigo 75 da carta constitucional, e não sendo coherente com a minha di- gnidade como regente doeste reino deixar sem gi'aves exemplos que pantenteiem com quanto zelo mantenho o disposto na mesma carta, e tendo alguns periódicos, tanto na capital, como na cidade do Por- to, não só pretendido com a mais desmedida hypocrisia justilicar as ultimas revoltosas occorrencias, publicando doutrinas contrarias á conservação do socego publico^ mas até invectivando o governo com escandaloso arrojo, fazendo- se por este modo apologistas da anarchia e dos inimigos da carta. Hei por bem, em nome de el-rei, emquanto se não tomar outras medidas, demiltir aquelles censores dos referidos periódicos que deixaram passar e correr as doutrinas de alguns números dos mesmos durante as mencionadas occorren- cias e mesmo posteriores a ella.» Refere-se ao Portugue^^ ao Imparcial c aos artigos da Ga\ctj de Lisboa ! E note-se que todos esses jornaes escreveram doutrinas corren- tes em todos os regimens liberaes; não se apreiíoaram doutrinas exaltadas e demagogas, como aliás faziam os jornaes miguelistas. Esses jornaes não fizeram mais que mostrar o peri^^o que havia de se comprimir o espirito publicc^ com medidas arbitrarias e vio- 148 lentas; citaram os exemplos dos déspotas e tyranos que sempre pro- vocaram revoluções e conspirações, e sustentaram o direito que tem todo o povo livre, para reagir a quem lhe pretenda roubar a sua liberdade. E tudo isto em linguagem comedida e em nome da carta que todos defendiam. Mas censurar os actos dos governos e pedir a demissão d'elles era attentar contra os direitos do throno, e um arrojo escandaloso» segundo o decreto acima transcripto ! No officio dirigido ao censor da Gaveta de Lisboa é este repre- hendido por ter dado licença a artigos dictados por um espirito contrario ao socego publico e á opinião do governo! Em circular de 28, o conde da Ponte informa as potencias es- trangeiras das ultimas occorrencias, que attribue aos demagogos e liberaes exaltados. Participa que o socego publico está completa- mente restabelecido, e que o redactor da Gaveta de Lisboa foi de- mittido pelas doutrinas subversivas que n'ella expendera. ^ Saldanha tinha enviado ao Rio de Janeiro um seu ajudante de campo, para informar D. Pedro de todas as medidas por elle ado- ptadas e da politica que entendia mais conveniente, para se con- solidar o regimen da carta diante do progresso da insurreicção mi- guelista. Pouco depois dos acontecimentos de julho, chegou a Lisboa o emissário de Saldanha, trazendo a approvação de todos os passos dados por este e do seu programma politico. D. Pedro condemnou a aproximação dos cartistas conservadores com os apostólicos, co- mo funesta á sua causa, e aconselhou, ao contrario, uma aproxi- mação com os liberaes, que n'este momento eram os únicos que defendiam fielmente a carta. Para dar uma satisfação ao irmão, a regente não teve outro re- médio senão demittir o visconde de Santarém e o conde da Ponte. O ministro da Inglaterra, sir Accourt, oppoz-se novamente a que a regente chamasse aos conselhos da coroa pessoas affectas aos liberaes e aos homens de 20. A regente demittiu o ministério, con- servando alguns dos ministros e nomeou interinamente para a pasta do reino Carlos Honório de Gouveia Durão, para a dos negócios 149 estrangeiros Cândido José Xavier, e para a da justiça o desembar- gador Freire de Andrade. Foi apenas uma mudança de pessoas. O ministério saiu mais uma vez dos conservadores. Proseguiram as devassas contra os liberaes; continuaram as prisões contra os implicados nos últimos acontecimentos; mantiveram-se as leis repressivas da liberdade de imprensa, e continuaram os attentados contra as garantias consti- tucionaes e dos cidadãos. * Um dos primeiros passos do novo ministro da justiça foi o ce- lebre decreto de 3 d'outubro, com o qual pretendeu captar as s\ m- pathias dos absolutistas puros, para os attrahir á carta e a D. Pedro Por esse decreto o ministro da justiça ordena aos juizes que jul- guem, sem dependência de requerimento, ou de qualquer formali- dade, os indivíduos comprehendidos no indulto de 1 3 d'abril, man- dando-lhes dar baixa na culpa, e procedendo a levantamento dos sequestros, afim de que sejam postos em liberdade c absolvidos sem mais demora ! Isso emquanto os liberaes eram envolvidgs nas devassas geraes; eram perseguidos, mettidos nas cadeias e processados com todo o rigor da lei ! Assim o exigia o ministro da Grá-Bretanha, que não queria os homens de 20. Este novo e quarto ministério sabido do regimen da carta, além de querer contentar a Grã-Bretanha, a França, a Ausiria e a Hespanha, quiz ainda, mais uma vez, mostrar aos miguelistas, ou absolutistas puros, que se não tratava do regimen da liberdade com todas as suas legitimas consequências, mas apenas do antigo regimen com algumas concessões emanadas do throno, á imitação dos antigos reis feudaes. Perseguiu os vintistas e os cartistas avançados, contra quem os absolutistas puros andavam em guerra accesal Fez-lhes a vontade para os attrahir a si. E em recompensa do muito que elles guerreavam os homens de 20 e os exaltados, mostrou-se solicito em cumprir, o mais breve possível, o indulto que lhes foi concedido, mandando dar baixa de culpa a todos os implicados nas ultimas re- 150 voltas e conspirações miguelistas ! O absolutismo os fez, o absolu- tismo os juntou. E assim, logo ao primeiro ensaio da carta, se rompem as hos- tilidades dos cartistas moderados, ou conservadores, com os cartis- tas avançados, ou progressistas, tendendo para os princípios de 20. Diante d'estes, ou da democracia, o partido conservador, por ironia chamado liberal, lançou-se nos braços dos absolutistas puros, para avigorar o systema politico que mais quadrava com as doutrinas d'estes, as quaes afinal eram as da carta, doutrinaria e conserva- dora. A lógica dos factos devia coincidir com a lógica das doutrinas. CAPITULO Vil QUESTÃO DA REGÊNCIA • arbítrio das POTENCIAS; A regente adoece. — Metternich julga momento opportuno para dar o primeiro patso para a regência de I>. Mi- guel.—Negociação de Metternich com o governo inglez— 1'almclla pede paia »er ouvido o'cMa que*iii> como representante de Portugal.— A Inglaterra accata as propostas de Palmella. — D. Pedro nomeia o irmái) regente.— Envia Carlos .Malheiro Pereira á Inglaterra c á Áustria com o decreto da sua nomeação— Artigo da Gabela de Lisboa a respeito d'csta questão.- Negociação entre a Inglaterra e a Au»tría para a c\c«.uçâ<) do decreto de D. Pedro.- Carlos .Maihcu» Pereira tem uma comferencia com Metternich.— Conferencia do conde de Villa Real em Vienna com .Metternich, com o embaixador inglez e com o barão de Villa Secca nosso embaixador n'esta corte.— Findas estas questões parlamentares, abrcm-sc três confcrenciaf> entre o» re- presentantes da Áustria, da Inglaterra e de Portugal, para se resolver as questões pendentes.— Nova conie- rencia cm Londres cm que se propõe derrogar a succcssão da coroa de Portugal por meio de um tratado as* signado c reconhecido por todas as potendas.— Foi o regimen cartista que trouxe 1). Miguel a Portugal. A infanta regente, fraca e pouco intelligente, adoeceu com as grandes luctas politicas em que se viu envolvida. Metternich, para quem a lógica dos principios era tudo, enten- deu que, morto o regimen liberal em Portugal, e estando presos e perseguidos os seus leaes defensores, tinha chegado o momento opportuno de D. Miguel vir tomar conta do poder, para proclamar o regimen do puro absolutismo. Fra este o único meio efticaz de se obstarem aos principios de 20, e a que as liberdades consigna- das na carta não fossem levadas até as suas ultimas consequências, como queriam os cartistas avançados. Os cartistas conservadores não davam senão razão aos absolu- tistas puros. Os golpes doestado de julho deram vida aos apostólicos. Foram estes os verdadeiros triumphadorcs. Desde entã(^ por diante, os seus jornaes tornaram-se arrogantes e audazes : e molavam tanto dos cartistas moderados, como dos cartistas avançados, amcaçando-o> 152 muito bem de serem corridos do poder. D. Miguel, auxiliado por todas as potencias, estava a chegar. O futuro pertencia-lhe. As dou- trinas advogadas pelos cartistas puros, tanto no seio do parlamento, como na imprensa e nos documentos officiaes, eram a confirmação do verdadeiro regimen do throno e do altar. D. Miguel era mais consequente e lógico que D. Pedro. Metternich, em vista do estado de coisas de Portugal, commu- nicou ao gabinete de Londres que o imperador, seu amo, julgou conveniente aconselhar ao infante D. Miguei a que não fosse ao Brazil, conforme as ordens do irmão. Expoz-lhe que, segundo a Áustria e as mais potencias da Europa, a regência pertencia de di- reito a D. Miguel, em chegando á edade de 2 5 annos. Terminou a sua nota pedindo ao gabinete de Londres desse a sua opinião e en- trasse n'um accordo sobre as medidas a adoptar, para se chegar áquelle fim, dando a entender que o imperador não estava aucto- risado para deter por mais tempo em Vienna o infante D. Miguel. Palmella, ao ter conhecimento d'essa nota, dirigiu um memoran- diim ao governo inglez, pedindo-lhe para tratar esse negocio com elle, como representante de Portugal. N'esse memorandum lê-se o seguinte: «Parece comtudo que as potencias estrangeiras, qualquer que seja a influencia que exerçam de facto n'este negocio ^ terão necessi- dade de recorrer ao rei de Portugal, ou á nação portugueza, para tomar a iniciativa. Este ultimo meio seria o mais certo, mas não será talvei aquelle que mais convenha, para evitar o choque das opiniões, e assegurar a tranquillidade publica ; e, alem d' isso, como quererão as potencias todas da Europa admittir assim virtualmente o principio da soberania nacional, reconhecendo ás cortes o direito de declarar que a coroa passara da cabeça de D. Pedro para a de sua filha, e de- cidir a questão da abdicação? Em vez d'este, o primeiro meio indi- cado, o de recorrer a D. Pedro, apresenta, de certo, a vantagem de ser coherente com a marcha que até agora se tem seguido n^este ne- gocio^ e parece, por consequência, muito preferivel. Basta, pois, somente examinar quaes sejam as proposições que podem dirigir-se a El-rei D. Pedro em nome da Inglaterra e da Aus- 153 tria, de accordo com as outras potencias, e quaes sejam as medidas que debaixo d'esse accordo a tal respeito convém adoptar.» E de opinião que as duas cortes declarem a D. Pedro que con- sideram de absoluta necessidade para a manutenção da Europa que os arranjos do tratado para a separação do Brazil não fiquem illu- sorios ; que D. Pedro declare ter por prehenchidas as condições exigidas para a sua abdicação, passando a coroa para a filha desde o dia em que fizer essa declaração. De então por diante a regência passará por direito a D. Miguel. Conviria diz, Palmella, que D. Pedro fixasse a época da separação de sua filha, a qual deveria ser o mais tarde possivel, ou para quando o casamento pudesse ter logar canonicamente. Conviria também que declarasse que a sua renuncia á coroa de Portugal e todas as suas consequências se en- contram na carta, e que se não poderia alterar uma parte d'este arranjo, sem se consolidar o todo. Aconselha que se signifique a D. Pedro que as potencias se não responsabilisam pelo resultado, se elle se recusa a este arranjo, e que o interesse da Europa exige a completa separação de Portugal e Brazil, fixando-se definitivamente a sorte d'aquelle. E também de opinião que por meio de um pacto de familia D. Pedro se obrigue á reversão futura e reciproca de cada uma das coroas, no caso de se extinguir algum dos ramos da familia real ; assim como se obrigue egualmente a estabelecer uma base certa para as relações commerciaes entre dois paizes. As relações de Palmella com D. Pedro não eram muito cor- deaes, por causa do apoio que ellc dera a Saldanha, contra as suas indicações c inspirações. A Inglaterra seguiu os conselhos de Palmella. \í\\i\ entrou em negociações com a Áustria, para ambas declararem a D. Pedro a necessidade da sua abdicação simples e completa, alim de se aca- bar por uma vez com o estado de incerteza em que a este respeito se encontrava, tanto Portugal, como toda a I^uropa. D. Pedro, antes que aquellas duas potencias Ih^o imposessem. e porque isso lhe convinha, apressou-sc a nomear o irmão regente com o titulo de loirar tenente do reino. 154 No dia 27 de agosto, chegou a Londres Carlos Mathias Pereira, enviado por D. Pedro ao rei da Inglaterra, ao imperador da Áus- tria e a D. Miguel, com aquelle decreto de sinistra memoria ; tem a data de 3 de julho. A infanta regente foi a ultima pessoa a quem o enviado de D. Pedro communicou a resolução d'este. Estavam em primeiro logar os soberanos das nações estrangeiras! A nação portugueza nada tinha com isso. É curioso o artigo que a este respeito escreveu a Gaveta de Lisboa de 26 de setembro. «Esta detreminação, diz a folha oííicial, do soberano mostra claramente que a politica dos estados e as grandes mudanças nos governos não são, sem duvida, por sedições militares, por tu- multos dos povos, ou pela penna dos escriptores. Portugal viu por espaço de 14 mezes os terríveis eífeitos de todas estas causas; e está bem certo de que nenhuma d'ellas influiu sobre esta determi- nação. » Prosegue censurando os militares que emigraram para o estran- geiro ; e accrescenta : «Sua alteza, assumindo o governo de Portugal, segundo os mais sagrados principios da legitimidade pelo mesmo senhor reconhecidos e respeitados em harmonia com as idéas das nações mais preponde- rantes da Europa^ pelo voto unanime de todos os bons portuguezes que amam a paz, que respeitam as decissões do seu rei, a santidade da religião e a prosperidade e a segurança individual ; que presam uma bem entendida liberdade, mas que detestam a licença, e que, emfim, não desejam os excessos dos partidos, nem a violência dos extremos, achará n'estes bem fundados principios os titulos só di- gnos d'elle, e só capazes de mover a sua vontade a aceitar o gover- no na minoridade de sua augusta esposa, a nossa rainha a senhora D. Maria II, e não os que lhe podia oíferecer a illusão de alguns poucos de soldados embaídos com principios mal entendidos de religião e de liberdade. (í Os escriptores públicos, pretendendo taipei dirigir a opinião de cl-rei e a politica dos gabinetes estrangeiros^ se intrometteram auda- 1&5 ciosos na questão da regência de Parhigal, questão que se ventilou entre nós imp'udentemente, até que se publicou o decreto de 20 de ju- nho do corrente anno^ o qual expressamente a prohibiu, e verão agora que o rei nos negócios da maior transcendência para o bem da nação tem de se dirigir por combinações profundas, que muitas ve^es não se ajustam com as máximas dos escriptos^ ás quaes não é raro dar-sc falsamente o nome da opinião publica. » E não são aquellas as puras doutrinas sustentadas pelos abso- lutistas puros? Continuavam a prevalecer nas regiões officiaes as doutrinas politicas de Palmella. Nem ás cortes, nem á imprensa, nem aos escriptores públicos e nem á opinião publica, competia a questão da regência. Isso era apenas com D, Pedro e as potencias estrangeiras! O mais curioso é que, cm quanto aos liberaes foi prohibido tra- tar d'essa questão pela imprensa e mesmo no parlamento, que con- tinuava fechado por causa d'isso, aos apostólicos e miguelistas eram pcrmittidas todas as publicações em defcza dos direitos de D. Miguel ao throno de Portugal! Não tem conta as obras que el- les publicaram n'esse sentido. Os frades e os padres não cessaram de pregar nos púlpitos a favor dos direitos de D. Miguel. Todas as prohibições eram só para os liberaes! O governo inglez, mal teve conhecimento do decreto de D. Pe- dro, participou ao da Áustria que se não oppunha a elle, logo que o infante se prestasse a uma manifestação publica, em que se com- prometesse a manter a carta e não entrar no caminho das represá- lias. Referia-se unicamente ás represálias contra os antigos amigos de D. João W e contra os cartistas moderados. Muito contente fi- caria a Inglaterra, se D. Miguel exercesse a sua vingança e a sua politica de extermínio s<)mente sobre os vintistas. Mas D. Miguel tinha verdadeiro ódio pessoal a Palmella e a todos c^s que C(>ncor- reram para o seu desterro. Odiava-os talvez mais do que aos viu- tistas. Os puros cartistas não tinham >iJo ate ahi mais Jí^ qiic instru- mentos da Grã-Bretanha. Fsta quiz. cm recompensa, p'')r as suas 156 vidas ao abrigo das represálias do sanguinário infante, que ardia em desejos de vingança. Lord Dudley teve urna conferencia com o príncipe da Esterha- zy. Em 1 2 de setembro, communicou aquelie ao duque de Palmella o seguinte : «As conferencias do embaixador austriaco, príncipe de Este- rhazy, commigo, terminaram felizmente n'um completo accôrdo, quanto á linha de conducta que devem seguir as nossas respecti- vas cortes ácêrca do que devem recommendar ao infante D. Mi- guel, como consequência do convite que sua alteza recebeu do seu irmão o imperador D. Pedro, para assumir, sob certas condições, a direcção do governo de Portugal. Se, como não deve duvidar-se, o gabinete de Vienna sancionou as opiniões manifestadas pelo seu embaixador, e se, como não deve ser menos certo, o infante ad- optar os conselhos d'aquelles em quem tem mais motivos para con- fiar, isto é sua majestade britânica, o seu mais antigo alliado, e o seu parente e tutor, o imperador da Áustria, sua alteza real em breve se porá a caminho para o seu paiz natal, aíim de preencher a missão salutar, para a qual ahi se reclama a sua presença. » O ministro inglez accrescenta que lhe parece, a elle e ao prín- cipe de Esterhazy, conveniente que o infante seja acomhanhado por pessoa de confiança; e indigita o conde de Villa Real, que, por seus talentos, probidade e bom senso, contribuirá, mais do que nenhum outro, para o afastar das pessoas, que se lhe atravessarão no cami- nho, para o obrigarem a proclamar seus direitos, mal elle saia de Vienna d' Áustria ! Tinham tanta confiança em D. Miguel, que o queriam guardar bem guardado na viagem, para que elle não os trahisse ! Carlos Mathias Pereira, assim que chegou a Vienna d'Austria, pediu uma conferencia com o conde de Lebzeltern, para fazer assi- gnar ao infante uma proclamação com protestos de submissão a D. Pedro e de fidelidade á carta, e com promessa de perdão a to- dos os seus contrários, seguida de uma amnistia geral e completa, e para que D. Miguel na viagem para Portugal passasse por a In- glaterra e França. 157 Conforme o pedido de lord Dudley, Palmella enviou a Vienna o conde de Villa Real, que partiu em i8 de setembro com instruc- ções acerca da viagem do infante, das explicações que deveria dar áquella corte e da linguagem que deveria usar para com o mesmo infante. Chegou em princípios de outubro. Teve varias conferencias com o principe de Metternich e com o embaixador da Inglaterra, ás quaes assistiu o barão de Villa Secca, nosso embaixador em Vienna. Estas conferencias foram originadas das influencias que tan- to Fernando VII, como os absolutistas da Áustria, exerciam so- bre o infante, afim de o afastarem da Inglaterra e deixarem-n'o em liberdade plena, para proclamar o absolutismo em Portugal sob o seu sceptro. O infante persistia em passar de preferencia pela Hes- panha. O marquez de Rezende declarou-lhe energicamente que D. Pedro revogaria os poderes que lhe conferira, e retomaria os seus direitos, no dia em que elle se deixasse levar pelas influencias que se abrigavam com o seu nome. Em presença d'esta declaração, o infante cedeu. Findas estas questões preliminares, as nações abriram então conferencias entre os seus representantes, para em tribunal supre- mo decidirem a questão da regência de Portugal, que segundo as antigas leis d'este, competia somente ás cortes do reino ! As conferencias tiveram logar entre Metternich, conde de Lcb- zelteu, o conde de Bombelles e o cavalheiro Neumam por parte da Áustria, Wellesley por parte da Inglaterra e o conde de \illa Real e barão de Villa Secca por parte de Portugal. Na primeira conferencia, que se realisou em casa do príncipe de Metternich, no dia iS de outubro, Jecidiu-se exarar no proto- collo vários documentos relativos a esta questão, entre elles Jua> copias de duas cartas escriptas por D. Pedro ao rei da Inj^laterra c ao imperador da Áustria, pedindo-lhes a sua iniervençãíx para que a nomeação de D. Miguel fosse immedíaianiente cumprida e a carta guardada como lei fundamental do estado. K importante a copia de um despacho de Metternich para o embaixador austríaco em Lon- dres, com a exposição histórica de toda a sua ne^ociaçã(3 com o 158 infante sobre a sua viagem por Inglaterra, sobre a sua situação pre- ssente e futura, e sobre as suas finaes determinações. Os plenipotenciários poriuguezes annunciaram que o infante lhes havia participado suas ultimas resoluções ácêrca da sua viagem, e lhes ordenara houvessem de redigir as cartas que desejava, sem demora, dirigir ao imperador D. Pedro, ao rei da Inglaterra e á irmã regente. Accrescentou que a que fosse dirigida a esta não dei- xasse a menor duvida ácêrca da sua vontade de manter religiosa- mente as instituições, de esquecer o passado e de conter com força e firmeza o espirito de partido e as facções que por longo tempo agi- tavam Portugal. Todos os membros da conferencia elogiaram os sentimentos do infante. O principe de Metternich declarou que, logo que aquellas cartas estivessem escriptas e assignadas, elle as faria expedir imme- diatamente ao seu destino. Os plenipotenciários portuguezes agradeceram e acceitaram aquelle offerecimento. O principe de Metternich observou que n'es- sas cartas o infante devia usar do titulo de regente com o de logar tenente^ por isso que estava de accôrdo com o decreto de D. Pedro, e seria contrario á sua dignidade pessoal assumir um titulo inferior ao da irmã. Concordaram todos. Ds plenipotenciários portuguezes declararam que era muito para desejar que o infante não hesitasse em acceitar esse cargo. E accrescentaram que tinham ordem d'elle para fazerem chegar ao conhecimento dos membros da conferencia os seus sentimentos de gratidão para com o imperador da Áustria. Metternich disse que o imperador acceitaria essas expressões de reconhecimento com a mais viva satisfação. Xa segunda conferencia, realisada a 20, leram-se aquellas cartas. Deu-se geralmente um tributo de louvores á sabedoria, lealdade e rectidão de principies que presidiram á sua redacção. Observou-se, no entanto, que a carta ao imperador D. Pedro não continha re- serva alguma dos seus direitos pessoaes, a qual em Londres se jul- gou muito para desejar; Metternich accudiu, dizendo que, tendo já o infante reservado explicitamente todos os seus direitos na carta 150 que dirigiu ao mesmo D. Pedro, quando lhe enviou o jnramcnto á carta constitucional, seria agora supérflua segunda reservai Conti- nuou dizendo que era muito natural que em Portugal se desse grande apreço a esta questão, necessariamente ligada com a da comfirmação da abdicação, da ida da rainha para Portugal, e da separação definitiva das duas coroas. Emquanto ao rrjais, accres- centou perfidamente, os membros da conferencia podiam estar inteiramente socegados sobre este particular, porque a Áustria e a Inglaterra estavam ambas convencidas da importância de não dei- xar indecisas por mais tempo questões de tamanho interesse para Portugal, estando também resolvidas a reunir seus esforços, para apressurar e obter decisão do Rio de Janeiro. Dadas estas exf^cações, os membrosd a conferencia reconhece- ram como inútil a reserva exigida ! Os plenipotenciários portuguezes annunciaram ao embaixador britannico que o infante prevenira os desejos do seu governo, deci- dindo-se escrever espontaneamente segunda carta confidencial e cheia de atTecto á infanta regente, para a tranquilisar quanto ao futuro. No protocollo da terceira conferencia, realisada a 2 3 de outu- bro, diz-se que estava fechado c assignado o protocollo da confe- rencia de 20, quando o embaixador inglez annunciou que tinha ainda uma communicação confidencial a fazer aos membros da conferencia. Leu-lhes uma carta de Paris, participando a chegada a esta cidade de alguns agentes dos emigrados portuguezes em Hes- panha, para obterem do infante uma audicncia I Segundo essa carta, os refugiados portuguezes procuravam ex- citar uma insurreição em Portugal e destruir a carta, antes da che- gada do mesmo infante. O principe de Melternich fingiu-sc prco- ccupado com tal noticia ; no entanto confessou que elle mesmo tinha recebido directamente da Hespanha novas, que lhe íaziani crer na existência d'esse projecto criminoso! Disse que o infante foi o primeiro a communicar-llie seus temores a este respeito, exprimindo desejo de que se e\ita^se esse movimento, que o poria na situação mais Jitlicil e peri-;<)sa'. lV)i Jo 160 parecer que o meio mais efficaz de se obter isso era o próprio in- fante escrever directamente a Fernando VIL E propoz que se per- suadisse ao infante que escrevesse a este sem perda de tempo, decla- rando-lhe que estava disposto a manter a regência de que foi in- vestido pelo irmão, e pedindo-lhe medidas para manter a tranquil- lidade na península, e para fazer constar aos emigrados portugue- zes que elle reprovava todas as suas tentativas, e estava disposto a reprimil-as ! Os plenipotenciários portuguezes communicaram que o infante se prestara a escrever essa carta, e que tinham ordem de a entregar ao príncipe de Metternich. Rogavam, portanto, a este quizesse fazel-a dirigir ao seu destino, e deixar d'ella copia no protocollo. Metternich prometteu-o ; e sob proposta delle resolveu-se communicar o protocollo d'esta conferencia aos gabinetes de Lon- dres, Paris, Berlim, e São Petersburgo, rogando-lhes que transmit- tissem, sem demora, ás suas respectivas missões em Madrid a or- dem de apoiar o passo que o infante acabava de dar! No dia 12 de janeiro de 1828, ainda houve nova conferencia em Londres entre o lord Dudley, ministro dos negócios estrangei- ros, o príncipe Esterhazy, embaixador austríaco n'aquella corte, o conde de Bombelles ministro plenipotenciário da mesma nação em Lisboa, o marquez de Palmella e conde de Vílla Real. N'esta conferencia o ministro britânico declarou que, para evi- tar os embaraços que resultariam da falta de fundos nos primeiros momentos da regência de D. Miguel, elle prestava seus bons offi- cios para um empréstimo em Londres até á quantia de 200:000 libras. Declarou mais que o seu governo desejava que as tropas britânicas regressassem logo de Portugal, visto estar preenchido o fim que ambos os governos se proposeram! O marquez de Palmella e o conde de Villa Real disseram que o infante estava de accordo com isso ; mas que desejava que o em- barque não fosse fixado, antes que elle, á sua chegada a Portugal, expressasse os votos que a este respeito lhe cumpria annunciar. De maneira que a Inglaterra agora já considerava ter preen- chido o seu fim, de accordo com a Áustria, só com a investidura da regência na pessoa de D. Miguel! A manutenção da carta e das IBl instituições dadas por D. Pedro já não era questão para ella, nem foi esse o fim da expedição! Tanto os representantes da Áustria, como o da Grã-Bretanha, manifestaram desejos de que a abdicação de D. Pedro fosse com- pletada o mais breve possivel, sem restricções, prestando os dois governos seus bons officios, para o Brazil e Portugal chegarem a um accordo sobre a abdicação e a separação. As mesmas potencias obrigaram-se a dar o seu auxilio, para se regular definitivamente, por meio de um tratado, a ordem de successão nos dois ramos da casa de Bragança, sendo esse tratado levado depois ao conheci- mento das potencias estrangeiras, para ser reconhecido por ellas! Pobre Portugal! Até a ordem de successão á coroa devia ser regulada pelas potencias estrangeiras por meio de um tratado reco- nhecido por ellas! Isso não era negocio em que fosse ouvido o povo portuguez, vassallo e não soberano! Metternich encaminhava, no entretanto, as coisas para D. Mi- guel se proclamar rei com regimen do puro absolutismo, afim de garantir as coroas da Europa contra o regresso á época de 1820, e contra as ultimas consequências que os cartistas avançados que- riam tirar das liberdades legitimadas pela carta. Desde então por deante, os realistas puros começaram a activar a publicação de manifestos e de brochuras, defeudcudo os direitos de D. Miguel ao throno portug-iiei e os princípios do puro absolutismo! Foi o regimen cartista, negando ao povo o direito de se intro- metter nas altas questões da politica, que trouxe a Portugal D. Mi- guel, este monstro de crimes, de tyrannias e crueldades, que tantas desgraças accumularam sobre este paiz. E emquanto o povo se oppunha a esse passo funesto, emquanto o partido liberal era perseguido c seus chefes presos e processados, por quererem que essa questão se resolvesse cm cortes; e emquanto estas eram despresadas e postas de lado n'esta questão grave, D. Pedro e as potencias estrangeiras impunham a Portugal a rcL;cncia de D. Miguel! Segundo a carta, todas essas altas questões da politica deviam emanar legitimamente do throno. Os parlamentos, os escriplores 162 públicos, a imprensa, e a opinião publica, nada tinham com isso. Era negocio para ser resolvido entre a coroa portugueza e as co- roas da Europa suas alliadas. E chamava- se a isso monarchia representativa e regimen da liberdade ! A questão da regência é das mais caracteristicas da historia ge- nuina da carta constitucional, e das cartas outorgadas, concen- trando no throno, ou na chamada legitimidade, toda a politica dos estados. CAPITULO VIII ANNIQUILAÇÃO DAS LIBERDADES Encerrado o parlamento, o novo ministcrío vc-se senhor de o todo o paiz c entra no caminho da reaçáo — Ki>ia- beleccm-se em Portugal as mesmas situa^^ões violenta», que a carta de Luiz XVIII crcou em IVança.— O» mi- nistros, despresaiorcs das liberdades e garantias dos cidadios, recommendam ás aucioridades iudiciaesepo- liciaes medidas de repressão.— Prisões arbitrarias e violações das garantias conslitucionaes peios juizes de direito e pelo ministro da justiça.— Os militares mandam chibatar paisanos. — Os juizes de direito viuiamo segredo das cartas.— [nfracçáo da carta constitucional nas devassas ordenadas no Porto.— O ministro da justiça usurpa os poderes da magistratura c do poder legislativo.— Dase no primeiro ensaio da carta cons- titucional o mesmo que se deu em todos os períodos posteriores do puro regimen cartista.— Suppressão de todos os jornaes que defendem os princípios puros da liberdade e combatem os abusos dos governos e das auctoridades— Prisão violenta c arbitraria dos redactores dos jornaes Português, Vrotetto e ^íeJitador.— \'exames c tormentos por que passaram estas viciimas da liberdade de imprensa.— Opinião de Mousinho da Silveira acerca da lei de liberdade de imprensa da Revolução de iS.-o. — São suprimidos todos os orgáo» da opinião publica. — Não é permittido o direito de associação.— A Revolução de 20 e o primeiro período do regimen da carta. — Opinião de José Líberato I'reire de Carvalho, testemunha dos abusos então praTicados. Encerrado o parlamento, como roda inútil e embaraçosa do systema da carta, o poder executivo, ou o novo ministério, viu-se á vontade e senhor de toda a situação. A elle só, como executor das determinações da auctoridade augusta da coroa, competia a direcção da politica e dos negócios públicos. O novo ministério assumiu o mesmo caracter arrogante e al- tivo de todos os anteriores, e como se tratasse de um ministério do czar. Despresador da representação nacional, elle só se achou com direito de governar o paiz a seu livre arbitrio. Foi um ministério essencialmente conservador, e como tal inimigo de todas as liber- berdades. Klle quiz mostrar, como os quatro anteriores, que <> povo não governava, porque não era soberano, e que os cidadãf)s não tinham direitos, senão os que a coroa lhes quizessc conceder. Hram simplesmente vassallos, a quem competia aguardar com acato c res- peito as determinação da mesma corna. 164 Todos os ministros que sahiram do regimen da carta de D. Pe- dro são em tudo similhantes aos que sahiram da carta de Luiz XVIII. Crearam-se em Portugal situações inteiramente eguaes ás dos ministérios Richelieu, Descazes, Villelle, Peyronnet, etc. Todos os cinco ministérios até agora succedidos uns aos outros oppozeram-se a que se dessem largas ás liberdades, que a carta constitucional nunca teve em vista tornar eífectivas e reaes. Empe- nharam-se todos em pôr diques insuperáveis ás conquistas do povo, e em manter a politica d'entro dos estreitos limites da carta ou- torgada. O partido liberal puro, ou avançado, viu baldados todos os seus esforços, para se entrar no franco caminho da liberdade. Foi sempre aíFastado do poder. Este, como na França nos reinados de Luiz XVIII, Carlos X e Luiz Filippe, cahiu nas mãos dos conservado- res, que d'elle tiveram o privilegio exclusivo. O ultimo ministério organisado mostrou-se ainda mais hostil e irreconciliável com os cartistas liberaes e com os vintistas. Declarou- Ihes mesmo guerra de extermínio. E no seu furor contra estes dois partidos derribou todas as liberdades, como os ministérios de Luiz XVIII e Carlos X. Portugal entrava no mesmo caminho da França. Os ministros, com o rei na barriga, recommendaram ás au- ctoridades judiciarias, administrativas e policiaes, medidas de ri- gor e a repressão de todas as manifestações contrarias á sua po- litica. Vendo o pouco respeito que nas altas regiões do poder havia pelas liberdades, essas auctoridades praticaram toda a espécie de arbitrariedades, a pretexto da manutenção da ordem publica. En- trou-se no reinado do verdadeiro arbítrio e do despotismo. Desde os ministros até aos cabos de policia cada um achou-se auctorisado a praticar todas as tropelias que lhe vieram á mente, para perse- guir os exaltados e os execrandos homens de 1820. Não queremos que nos accusem de exagerado. Pedimos li- cença para transcrever o que a este respeito diz o relatório da com- missão da camará dos deputados, lido na sessão de 29 de janeiro de 1828. 1G6 Referindo-se aos documentos enviados pelo governo á camará, diz aquelle relatório o seguinte: «D'elles consta que, nos inezes de agosto e setembro últimos, o corregedor do crime do Rocio, Izidoro António do Amaral Sem- blano, o corregedor do crime do bairro alto, Martinho Teixeira Ho- mem Brederode, e o corregedor do crime dos Romulares, Francisco de Paula Brito e Barros Villar, fizeram prender, por ordem sua pró- pria e sem culpa formada^ 33 pessoas. Que a causa d'estas prisões foi achar-se provada a existência de um crime de lesa magestade de primeira cabeça, e o constar que os presos eram n'elle impli- cados. Que 3 1 d'estes presos foram retidos na cadeia sem pronun- cia por mais de 8 dias, e alguns por mais de 40; que depois foram soltos 16 e pronunciados i5. Mas o ministro, longe de satisfazer ás suas incontestáveis obri- gações e dar uma, ou outra providencia sobre matéria tão grave, nem ao menos se dignou fazer algum exame sobre a mesma maté- ria, e commetieu o deferimento do negocio a estação, onde absolu- tamente se repugnava ao cumprimento da lei. Deste modo conspira- ram os poderes executivo e judiciário, para privarem de uma das ga- rantias e direitos públicos dos cidadãos portugueses aquelle s indiví- duos que, achando-se implicados nas devassas a que se procedeu pelos tumultos dos fins de julho, não tiveram n'essa época a for- tuna de serem militares, e por isso gemem ainda hoje nas prisões, sem lhes ser permittido, ou convencerem de falsas as testemunhas que os culparam, ou serem por ellas convencidos, e verem assim decidida a sua sorte pela absolvição, ou condemnação. » O corregedor dos Romulares respondeu que a maior parte dos pronunciados já tinham a culpa provada, muito antes da pronuncia e alguns antes de serem presos ! «Ha na relação do corregedor do Rocio, continua o relatório, uma espécie nova no foro porluguez. Respondendo este juiz ás perguntas que lhe foram feitas, declara os dias em que prendeu, soltou, e pronunciou cada um dos individuos contra quem havia procedido; e como assim manifesta as infracções que commctteu, 166 pretende oíFuscaFas, dizendo que por falta de sufficientes provas des- pronunciou as pessoas que por tanto tempo retiver a na cadeia.» Os réus requereram a acareação em publico; foi-lhes denegada! Correu processo em secreto! O governo, composto de conservado- res, estava empenhado em arranjar uma pavorosa., ou uma conspi- ração republicana. Estes políticos são sempre férteis em semelhan- tes recursos. A commissão é de parecer que os documentos sejam enviados ao governo, para proceder contra os juizes que violaram as garan- tias constitucionaes. Diz a commissão que lhe foi presente um requerimento do chefe de esquadra reformado, António Pio dos Santos, o qual expõe que no dia lo de janeiro entrara em casa d'elle o juiz do crime do bairro de Santa Catharina acompanhado dos seus ofíiciaes; levaram-lhe os filhos e filhas, parte dos moveis e roupas que possuia. Queixa-se o mesmo que lhe foi tirada metade do seu soldo e uma pensão de 400^000 réis, o que tudo foi entregado á mulher d'elle! Teve isto logar em execução de dois avisos do ministro da justiça, aconse- lhado pelo intendente geral da policia, sem que para tal houvesse sentença judicial passada em julgado! A commissão é de parecer que o ministro da justiça usurpou as funcções da magistratura; sentenciou, sem ter auctoridade para isso, e atacou a propriedade e mais direitos do cidadão com gravís- simo abuso do poder. A mesma commissão passa a expor um grande numero de jui- zes que o ministro transferiu, por se não quererem sujeitar ás im- posições da politica. E accrescenta o relatório: «Ao que fica exposto, e que só é re- lativo aos moradores do districtos, cujos juizes foram mudados, accrescem as vexações feitas aos mesmos juizes, e que são ponde- radas no requerimento do queixoso João Cardoso da Cunha.» Expõe este juiz que, sem sentença que o privasse do seu logar, fora expulso d'elle por um dos decretos de 1 8 de setembro ultimo, e por uma previsão do Desembargo do Paço, cuja publica forma junta, ordenando este tribunal que o queixoso, dentro de três dias 167 depois da intimação, e debaixo de pessoal responsabilidade, pas- sasse a tomar posse do logar de juiz de fora da cidade de Bra- gança. A commissão é de parecer que o ministro da justiça, por quem foram referendados os decretos, violou a carta e está incurso na responsabilidade por ella estabelecida, e que tem logar a accusa- çáo. Mas a mesma carta teve o cuidado dé fazer depender essa res- ponsabilidade de uma lei regulamentar, que até hoje se não pôz em execução! Na sessão de 23 exclamou Magalhães: Que é isto senhores? Será a carta um presente insidioso, para que o cidadão amante d'ella seja constantemente perseguido?» As auctoridades militares, a quem o governo dera ordens de acutilar o povo e de dar para baixo, acharam-se auctorisadas para mandarem chibatar paisanos. É exaltado? d vintista? Cem chibatadas; tire-se-lhe a pelle! Foi preciso que baixasse a portaria de 20 d'ouiubro de 1S27, para se pôr cobro a esse abuso, filho do zelo pela ordem publica! Os juizes de direito davam ordem para conduzirem ás suas ca- sas as malas dos correios; revistavam; abriam as cartas e autoavam as que lhes pareciam suspeitas! Também foi precisa outra portaria do ministério da justiça prohibindo tão grave attentado; mas os juizes não fizeram caso d'essa portaria, visto que o próprio minis- tro era o primeiro a dar o exemplo de prepotências, e a animar a repressão. A camará dos deputados pediu esclarecimentos sobre as devassas do Porto; o ministro da justiça não fez caso d'esse pedido; nova- mente foi instado na sessão de 3o de janeiro de i82(S. A e^tc res- peito disse o deputado Camello Fortes o seguinte: «A precipitação con] que assignei hontem o relatório da com- missão das infracções obriga-me a declarar que julgo ter o ministro da justiça infringido a carta, por 011 não sei o ninjo y ir que se lhe hd Je formar libcllo accu^atorio, visto não harer njs leis existentes a í'nrnhi d\'sse processo. F requeiro que se manJc imprimir esta dc».Iaração. o 168 Só no íim da sessão legislativa, é que a commissão da camará poude dar o seu parecer sobre aquellas devassas. N^elle lemos o seguinte : «Resumindo, portanto, o que fica expendido, parece á commis- são que, longe de mostrar-se dos documentos juntos alguma causa legal para se mandar proceder á segunda devassa de que se trata, o ministro da justiça, José Freire de Andrade, que mandou tirar a dita devassa, creou para ella uma commissão de juizo especial, vio- lando assim o artigo 145 § 16 da carta; que o mesmo ministro, ex- pedindo um decreto sobre a matéria pertencente a outra repartição, dispensando sobre formulas legaes e annidando tim processo, obrou de mero facto e sem auctoridade legitima, porque para nada d'isso lhe concede a carta no titulo 5.° capitulo II, único regimento actual do poder executivo; e, finalmente, que o dito ministro, ingerindo-se de tantos modos nas faculdades do poder judicial, offendeu os arti- gos 10, 1 18 e 145 §1 10 e II da carta. Parece mais á commissão que estas infracções não podem des- culpar-se pela auctoridade que ao poder executivo concede o art. 75 § 12, porque essa auctoridade, tendo só por fim a boa execução das leis, nunca será legalmente exercida, quando, com o pretexto de executar uma lei, forem atacadas e oífendidas quaesquer outras. E por isso parece á commissão que contra o mencionado ministro tem logar a accusação na forma da carta.» Mas os ministros eram da exclusiva confiança do poder mode- rador; não tinham que dar contas dos seus actos ao poder legisla- tivo, segundo a camará de 1827; eram irresponsáveis, porque não havia, nem houve em tempo algum, lei de responsabilidade minis- terial ; e porque acreditavam-se executores das determinações da auctoridade augusta e única soberana da nação. O ministro da justiça tinha a confiança d'essa auctoridade au- gusta delegada na infante regente. Que mais queriam? Arrogou a si attribuiçóes do poder legislativo e judiciário? praticou arbitrarie- dades? Representava a única soberania de facto e de direito. Quem podia mais do que esta ? E quando deixaram de haver essas usurpações dos poderes po- 169 líticos e essas arbitrariedades dos ministros da coroa durante o regimen da carta? Só á camará popular não era permittido ingerir-se nos actos do poder executivo, pedir-lhe contas e censurar seus actos. Só á im- prensa era prohibido discutir os actos dos mesmos ministros, em menoscabo da auctoridade augusta que representavam; e só ao povo, ao paiz e á opinião publica, era vedado ingerir-se nas ques- tões da alta politica, que segundo as doutrinas então correntes de- viam emanar do alto do throno. Trigoso e Mousinho da Silveira, ou a direita e o centro direito das camarás, é que impelliram o governo áquelles excessos e abusos. A opinião publica estava comprimida, o partido liberal perse- guido e desarmado, a imprensa amordaçada e o poder legislativo, ou os representantes do povo, sem auctoridade para exigirem con- tas aos ministros, da exclusiva confiança da coroa. O poder exe- cutivo, depois dos successos de julho ultimo e da rejeição da pro- posta Magalhães, sentiu-se mais forte do que os mais poderes do estado. Eram inevitáveis todas aquellas consequências. Dir-nos-hão : os ministros abusaram e não executaram a carta. E verdade ; mas os abusos são consequências legitimas da mesma carta, que arma o poder executivo dos pés á cabeça contra os ou- tros poderes, e cria até o poder ministerial, intromettido e arrogan- te, como vimos e dissemos. Foi em 1826 o que foi em 1827. em 1828, e em 1884 a 36, dando origem á Revolução de Setembro; o que foi desde 1842 a 1846, provocando a revolução da Patuléa e o que foi desde 1847 a i852, dando origem á Revolução de i85 i. E o que vemos ainda hoje, apesar da reforma da mesma carta? Não continua o poder executivo a praticar todos esses abusos e arbitrariedades ? Durante todos aquelles períodos, as garantias da carta í(Vam uma burla perfeita. Os direitos dos cidadãos nunca furam respeita- dos; as leis politicas c de processo criminal f(')ram uma permanente suspensão de garantias. Prendeu-sc sem culpa formada; os cidadãos gemeram nas prisões mais de 24 horas c mesmo mais de 8 dias; 170 foram perseguidos e vexados a cada instante pelas auctoridades ad- ministrativas e policiaes. Nunca foi permittida a livre reunião e associação; a imprensa sempre sob leis repressivas e oppresso- ras ; a casa do cidadão foi violada a cada instante ; finalmente, os cidadãos estiveram sempre á mercê dos caprichos e dos abusos do poder executivo e das auctoridades suas delegadas. Mas não foram só os cidadãos as victimas da anniquilação das liberdades; foi a imprensa sobre tudo. Desde 1826 os jornaes políticos não cessaram de ser perse- guidos. O Observador^ logo no seu primeiro numero, ousou fazer a apo- logia da Revolução de 1820, que elle compara com a contra-revo- lução de 1828 e com o regimen da carta. Diz que foi o bem dâ nação que motivou aquelle generoso movimento nacional, emquanto que foram a ambição, o egoismo e o receio de reformas futuras os únicos motores da contra-revolução, cujos auctores logo procura- ram engrandecer-se a si próprios. No Fragmento de um mamiscripto de Ibem-Asbech-Adel o jornal dirige uma satyra mordaz aos sabujos dos reis, que adulam, para os tornarem déspotas e maus. A apologia da Revolução de 20, que a Grã-Bretanha não queria ver resuscitada, o ataque aos auctores da Villafrancada elevada ás nuvens n'este periodo da carta, e a referencia aos reis tyranos, ou déspotas, nada d'isto agradou á regência e ao governo. A censura cahiu sobre o jornal que ousou a tanto. Logo no pri- meiro numero deparamos com a necrologia d'elle. Conta o redactor que enviou o original para o censor; este não quiz examinal-o; passou para as mãos de outro censor, a quem o proprietário requereu que o examinasse, afim de o reformar no que fosse contrario ás leis. Após um dia de demora, respondeu o cen- sor que só d'ahi a dois dias poderia examinar o manuscripto, ao que retorquiu o proprietário que isso o prejudicaria, porquanto tinha obrigação de publicar o jornal todas as quintas feiras e do- mingos. Pediu despacho ; foi este : — A ra{ão é ^porque não quero. — 171 Declara o redactor que termina o jornal, porque não pôde lu- ctar contra a maré e as prepotências da auctoridade ! O Fiscal dos abusos desejou pôr cobro aos desmandos e violên- cias das auctoridades, que desacreditavam o systema constitucional ; combateu energicamente o ministério da regência nomeado por D. João VI ; denunciou abusos da intendência geral de policia, dos ministros territoriaes e de outras auctoridades. Foi o bastante para cahir no desagrado das regiões officiaes. Em o numero 2 encontramos uma declaração da redacção, di- zendo que só quando haver liberdade de imprensa satisfará aos seus leitores com uma íiscalisação de abusos mais rigorosa e sobre matéria mais interessante. No dia 26 de outubro de 1 827, pelas 8 horas da manhã, foi preso o redactor pelo ministro do bairro dos Romulares e remettido á ca- deia á ordem do intendente geral da policia, em execução de uma portaria do ministro da justiça! Pouco tempo depois o jornal acabou. A mesma sorte teve o Clarim Portiigiiei. Em o n.° 4 declara a redacção que suspende a publicação do jornal em obediência ás ordens da censura! O officio que, em 28 de julho de 1827, o conde da Ponte dirigiu a José Liberato Freire de Carvalho pelos seus artigos publicados na Ga{cta de Lisboa é concebido nos termos seguintes : «Sendo os artigos que vossa mercê inseriu na Gaveta de Lisboa de hontem e de hoje contrários á carta constitucional, dirigidos a atacar a auctoridade da serenissima senhora infanta regente, e op- postos á opinião do seu governo^ manda sua alteza, em nome de el- rei, demiitir a vossa mercê de redactor da mesma gazeta. O que participa a vossa mercê para sua intelligencia.» No fim do anno os redactores dos jornaes — O Portuguei^ Pro- testo e Meditador, foram presos sem corpo de delicto e as formali- dades constítucionaes. As suas casas foram cercadas pela força ar- mada ; foram presos e conduzidos no meio de soldados pelas ruas publicas, como malfeitores, e encerrados no Limoeiro. No mesmo dia requereram ao magistrado competente lhes desse por escripto o motivo da prisão; não tiveram despacho! 172 No terceiro dia, os officiaes da justiça entraram de manhã mui cedo nas cellulas das prisões ; acompanhados do carcereiro, deram busca aos papeis e roupas dos presos, sem que estes até ahi sou- bessem os motivos de similhantes vexames. Em seguida, foram se- parados dois a dois e distribuidos pelas três cadeias da cidade. Foram mettidos em enxovias no meio de facinoras e de réus de crimes maiores! Em vão requereram que lhes dessem alguns quartos vagos; tudo lhes foi denegado ! Estes facinoras foram : Garrett, Paulo Midosi, Francisco Midosi, Joaquim Larcher, Carlos Morato Roma e António Maria Couceiro ! O Imparcial, n.° 59, define bem esse regimen de imprensa tão predilecto dos cartistas moderados, ou conservadores. Fallando da falta de liberdade de opinião que havia no paiz e no parlamento, diz aquelle jornal o seguinte : «O mesmo acontece aos escriptores, apesar da lei de 18 d'a- gosto de 1826 lhes dar a liberdade de accusar qualquer emprega- do, seja qual fôr a sua alta dignidade, uma vez que marque pessoa e factos. E, á excepção de nós, mui poucos são os periódicos que teem usado d'esta faculdade. Todos ainda hoje temem somente de ou- virem por escripto pronunciar o nome do intendente geral da policia, pelas dolorosas sensações que imprimiram na abna dos timoratos as arbitrariedades commettidas n^esta odiosa repartição. Quantas ve^es causámos nós receios pela liberdade legal de que havemos usado em alguns números doeste periódico?» Para se conhecer bem o espirito mesquinho e acanhado dos patriarchas do constitucionalismo da carta, basta ler o discurso pro- ferido por Mousinho da Silveira, na sessão de 9 de janeiro de 1828, contra a lei de imprensa da época de 20. Pronunciou-se aquelle cartista contra esta lei libérrima, porque durante ella appareceram muitos escriptos sediciosos e contrários ao socego publico. «... ninguém haverá, disse o deputado cartista na camará, que não tenha conhecimento das obras de Volney e de Helvetius, e que não conheça que aquellas., abusando indirectamente, são muito mais perigosas do que estas I» 173 E para que as theorias de Volney e de Helvetius não invadis- sem o paiz, durante o constitucionalismo da carta, a direita e o centro direito das camarás de 1826 a 1828 uniram-se, para emba- raçarem a approvação do projecto de lei da liberdade de imprensa apresentado. Foi esta uma das liberdades de que mais se arreccia- ram os cartistas da gemma, e de que mais se arreceiaram em todos os tempos. A imprensa tem sido até o cavallo de batalha dos conservado- res, por ironia chamados liberaes. Aconteceu em 1826 a 1828 o que aconteceu em todos os periodos do verdadeiro regimen da carta. Não tem conta o numero de jornaes que morreram á nascença durante este [primeiro periodo do constitucionalismo. Os governos e a intendência geral da policia não cessaram de cair sobre elles, aos primeiros números em que appareceu espirito de independência. Não era permittida a menor discussão, ou censura, dos actos dos ministros, executores das determinações da auctoridade augusta. Censurar os ministros era censurar o throno. A liberdade de imprensa foi uma concessão da carta tão peri- gosa, como a representação nacional. Para ella deviam convergir todas as attenções dos governos, ou do poder executivo, a quem a mesma carta deixou o regular essa liberdade. Todos os ministérios até agora sabidos do regimen cartista as- sustaram-se com a imprensa. E empregaram mil esforços, para que ella não excedesse os limites convenientes ao mesmo regimen. Logo ao primeiro ensaio da carta constitucional, foi anniquilado um dos órgãos mais importantes da opinião publica, que segundo os documentos oííiciaes d'esta época não era chamada para cousa alguma em o novo systema. Isso era no regimen de 20, de odiosa memoria. Segundo a gazeta otíicial, os escriptorcs públicos c publicistas não tinham direito de intrometter-se nas altas questões da politica, que não pertenciam ao paiz, nem á opinião publica. Os governos, para dignidade da coroa, não deviam attcndcr ás indicações doesta; isto era para a época de 20. 174 E para obedecerem ás indicações do estrangeiro, todos os mi- nistérios cartistas d'esta época foram inimigos implacáveis da liber- dade de imprensa. Victimaram todos os jornaes que tentaram des- pertar o espirito publico e combater os abusos dos governos e das auctoridades. Os resultados aqui teem nossos leitores n'este capitulo. Todas as liberdades publicas foram anniquilidas; e os abusos e arbitrarie- dades dos governos e auctoridades não teem conta. E ainda para que a politica não se inspirasse na opinião pu- blica, com quem se não devia transigir, os mesmos governos não consentiram que os partidos políticos se organisassem e formassem os seus centros. Não era consentida a livre associação. Na historia da nossa revolução de 1820 mostrámos o grande numero de sociedades patrióticas que então se fundaram, e o quanto influíram para despertar e manter o espirito publico característico d'essa época. Durante o regimen da carta desappareceram todas essas impor- tantes associações, ou órgãos da opinião publica, sem que não ha regimen liberal. E o próprio Palmella de Londres recommendava toda a vigilância sobre as sociedades secretas. Nada de despertar o espirito publico. Tal foi o cuidado de todos os ministérios d'esta época. Viveu-se sempre sem o concurso e a reunião das cortes; e para que o poder executivo se reforçasse bem, foram atropellados todos os direitos individuaes e todas as garantias dos cidadãos. Agora comparem os nossos leitores tudo o que se passou n'esta época do regimen da carta com o que se passou com o regimen da constituição de 20. Veja-se qual d'elles foi mais livre, mais tole- rante, mais cheio de vida e de enthusiasmo e mais benéfico em seus resultados. No primeiro ensaio da carta constitucional não ha espirito pu- blico; não ha vida nacional; não ha fé no porvir, não ha a reunião de todas as intelligencias e vontades a bem dos interesses públicos, como em 1820, e não ha patriotismo, nem enthusiasmo. Foi uma época de perseguições, de violências, de arbitrarieda- des e de hostilidades a tudo o que era legitima liberdade. 175 Todos os ministérios se preoccuparam com o fortalecer os di- reitos do throno e o poder executivo. E para isso puzeram-se em guerra aberta com os direitos da nação, e oppozeram-se energica- mente a todas as legitimas consequências do regimen da liberdade. Em 1828 o espirito publico já estava morto e anniquilado, os partidos liberaes desarmados e perseguidos, a imprensa amordaçada e o parlamento sem importância e valimento. Estava-se em pleno regimen absoluto. O que faltava? que D. Miguel, a quem foi con- fiada a regência e plenos poderes, tirasse a ultima consequência d'aquelle estado de coisas creado pelos cartistas moderados, ou conservadores. O regimen do puro absolutismo impunha-se fortemente, em vista das circumstancias a que reduziram o paiz os cartistas con- servadores, com o seu ódio á liberdade, ou aos cartistas avançados e aos vintistas. Foram elles que prepararam o governo de D. Miguel. Este nunca teria posto os pés em Portugal, se os vintistas e saldanhistas estivessem no poder, se a opinião publica prevalecesse n'essa época, e se a questão da regência não fosse tratada no Rio de Janeiro, em Londres e em Vienna d'Austria, em vez de ser tratada em Portugal e em plenas cortes. Foi o regimen cartista, antithese do de 20, que atirou o paiz para o reinado feroz e sanguinário dos apostólicos, ou de D. Mi- guel. Os povos eram tão vexados, opprimidos e perseguidos, como antes do regimen da carta. Não havia segurança em parte alguma, e a casa do cidadão era violada a cada instante, sem respeito por esta grande garantia constitucional. A policia estava attenta somente em vigiar os liberaes e vintis- tas; e para isso deixava á solta os gatunos e malfeitores. Nas cida- des de Lisboa e Porto roubava-se e assassinava-se impunemente ; ninguém transitava seguro pelas ruas e praças publicas, nem eslava seguro em sua casa. Nas províncias o mal era ainda maior. Os chamados ministros territoriaes mandavam prender, a torto e a direito, todo aquclle que 176 lhes parecia suspeito, ou de quem se queriam vingar. As quadrilhas de salteadores campeavam infrenes. As estradas e caminhos eram- Ihes franqueados com a máxima tolerância. Não havia vigilância policial, a não ser nas casas dos cidadãos pacíficos, mas zelosos defensores dos principios liberaes. As províncias do norte eram constantemente invadidas pelos exércitos dos apostólicos, que levavam tudo adeante de si a ferro e fogo. Essas incessantes invasões eram marcadas por saques, incên- dios, prisões e cruéis mortandades. Os povos rudes e ignorantes das montanhas fugiam do trabalho dos campos, e andavam arma- dos em guerrilhas, para defenderem a santa religião e o throno. A cada hora e a cada momento, tocava-se a rebate e insurrecciona- vam-se as povoações e aldeias, commettendo todos os excessos e violências. Ao mesmo tempo, as auctoridades constitucionaes mostravam o seu zelo pela ordem publica imitando os absolutistas puros! «Por este tempo, diz José Liberato Freire de Carvalho, todo o fructo das devassas já tinha apparecido e era elle o que por ellas sempre se pretendeu colher, isto é, um grande numero de culpados, parte dos quaes já estava amontoada nas cadeias, e outra parte, por mais fortuna, ou por mais previdência, estava escondida, ou se havia ausentado do reino. Sendo então os clamores das victimas mui altos e mui repeti- dos, e não tendo ainda o despotismo ministerial bastante força para lhes negar a defesa, foi preciso julgar ao menos algumas. Mas como entre ellas se achassem muitos militares, e a defeza d'estes não pertencesse aos tribunaes civis, aqui veiu encontrar a facção servil um embaraço e uma confusão, para que não estava prepa- rada.» Diz que, por uma d'essas anomalias que ás vezes succedem nos governos despóticos, os antigos conselhos de guerra eram públicos; e que por esta forma se patentearam as arbitrariedades das aucto- ridades. «Viu-se, continua o escriptor, por uma parte a baixa ser- 177 vidão dos jui{esy que, contra as formas legaes, fizeram as pronun- cias, e, por outra, decobriram-se as torpezas das testemunhas, que eram quasi todas as mesmas em todos os processos, e formavam um vil e infame bando de individuos todos publicamente desacre- ditados por sua immoralidade, ou por seus crimes.» O processo na camará dos pares, prosegue o auctor, acabou tudo; desvendou-se todo o odioso das perseguições politicas. Os que não eram militares continuaram a ser vexados. Debalde reque- reram elles, uma e muitas vezes, que, em conformidade da carta constitucional, se fizessem também os seus processos públicos; nunca isto poderam conseguir do imbecil e despótico ministro da justiça, que sempre teve a audaz constância de lh'o negar; tal era o caracter d'esse homem, que antes quiz faltar á consciência e ao seu dever, do que ás ordens do partido que o tinha aliciado e o sustentava.» Cita o auctor o exemplo extraordinário da segunda devassa do Porto, mandando o mesmo ministro da justiça remover o magis- trado que tirara a primeira, passando-o para outro logar, só por- que se não prestou a ser instrumento da politica, e implicando na devassa innocentes e as pessoas de quem o governo se quiz vin- gar, (i) E aqui teem nossos leitores a carta constitucional com seu cos- tumado cortejo de suspensões de garantias constitucionaes, de per- seguições politicas, de violações á casa do cidadão, de prisões arbitra- rias, de perseguições á imprensa, de addiamentos successivos dos parlamentos, de dictaduras, de abusos das auctoridades militares, administrativas, policiaes e judiciarias, sempre promptas a auxiliar o poder executivo nos seus attentados contra as liberdades publicas, e de situações chamadas fortes c enérgicas, assentes unicamente no poder executivo, para tornarem o povo um agente passivo, ou sem direitos políticos, e tudo isto logo no primeiro ensaio da carta I O período de i82() a 1828 define e caracterisa a histi^ria do realismo constitucional de toda a Europa; representa cm Porlu-;al (I! I-Jii'.Jio pcHtico^ pai;, ii e semiii'te>. Vide os Jclnuos n.i camará dos pares. 178 OS dois reinados de Luiz XVIII e Carlos X, ou o período decorrido desde a Restauração até à Revolução de julho. Foi o protesto vivo do principio da legitimidade contra o da soberania nacional, ou con- tra os princípios da Revolução. CAPITULO IX O REI CHEGOU A auctondade real dividida entre três priíicipes.— D. Pedro sem força nem influencia cm os negócios de Portugal. — D. Miguei torna-se o homem necessário para D. Pedro, para as potencias e os realistas conslitucionacs. — È repellido somente pelos liberaes, presos e perseguidos pelos realistas constitucionaes e as potencias estran- geiras.—O cartismo deixou o paiz em completa desordem e anarchia.— Crise económica e financeira — To- dos pedem solução prompta e immediata dú situação anarclnca creada pelo cartismo — Partida de D. Miguel para Paris e Londres.— Carlota Joaquina e seus agentes preparam a acciamaçáo de D. Miguel.— Chegada a Lisboa de D. Miguel. — Romaria a Senhora da Rocha. — Attitudo das duas casas do parlamento.— O jura- mento de D. Miguel. — Os apostólicos e realistas puros activam a propaganda a favor do absolutismo e dos direitos de I). .Miguel annunciado por uma prophecia.— Campanha da imprensa realista contra a carta, os liberaes e a Revolução.— Tumultos em Lisboa. — Os liberaes e constitucionaes insultados e aggredidos dentro mesmo do paço real.— Os tumultos e aggressões nas províncias.— A imprensa dos consevadores faz coro com a imprensa realista pura. A desgraçada direcção que deram á politica do paiz, arrancada ao povo, e toda concentrada no throno, levou a nação á mais com- pleta desordem e anarchia, como vimos. Não havia chefe d'estado. D. Pedro abdicara ; imperador do Brazil, continuava a enviar de- cretos e ordens para Portugal, como se fosse ainda rei d'este, e ac- cumulasse as duas coroas. Era brazileiro e portuguez ao mesmo tempo ! Ninguém fallava na rainha, creança de quem se não fazia caso algum, como se realmente não existisse, nem ainda tivesse a coroa de Portugal. D. Pedro é que era considerado rei, e como tal todos se dirigiam a elle. Mas dá-se o caso extraordinário de em Lisboa não quererem executar seus decretos, por isso que tinha abdicado na filha. Mas quem era rei, D. Pedro ou D. Maria, II? Eis ao que nin- guém sabia responder. Por outro lado, os apostólicos, ou absolutistas puros, não reco- conheciam os direitos, nem de D. Pedro, nem de D. Maria II. e só consideravam legitimo rei o infante D. Miguel. 180 E assim vemos nós toda a politica do paiz assente n'uma aucto- ridade incerta, duvidosa e contestada ! Havia tres reis, mas nenhum com direitos definidos, certos e reconhecidos pela maioria da nação! D. Pedro, brazileiro, imperador do Brazil, ligado a elle por in- teresses Íntimos e importantes, tendo abdicado na filha, preferindo o Brazil a Portugal, e estando afastado d'este a tantas mil léguas, que força e prestigio podia ter na marcha dos negócios ? Elle mes- mo mostrava pouco interesse por este paiz, de quem se desligara. Elle nomeou o irmão regente, para acabar de uma vez com a ques- tão, que o infadava e incommodava. Que tinha com Portugal ? Não era o Brazil o seu filho querido ? Diz muito bem o sr. Oliveira Mar- tins que D. Pedro já nada queria de Portugal, e que as exigências dos liberaes começaram a enfadal-o, como sempre aconteceu até o momento em que foi expulso do Brazil. Elle nomeou o irmão, para se ver livre das complicações da politica portugueza. Esta é que é a verdade. D. Miguel tinha acceitado a regência e furado a carta; pouco se importava D. Pedro que elle governasse bem ou mal, ou fosse um tyrano. O caso era acabar com a questão portugueza. D. Pedro foi o primeiro a reconhecer a necessidade de entregar ao irmão o governo de Portugal. Segundo elle D. Miguel era a única pessoa capaz de manter a situação e de resolver a crise. Tor- nou-se-lhe assim o homem indispensável. A rainha D. Maria II era uma creança quasi de collo; uma rai- nha sem coroa nem sceptro, e que todos esqueciam e punham á margem O rei era D. Pedro; e os constitucionaes diziam que com- batiam pelos direitos d'elle. Ninguém fallava na rainha D. Ma- ria II. A infanta regente, que não sabia de quem era delegada, se de D. Pedro, se de D. Maria II e se de D. Miguel, via-se n'uma posi- ção altamente embaraçosa. Além d'isso, era uma senhora fraca, pouco intelligente, como todos os filhos de D. João VI, e estava constantemente enferma. Faltava-lhe a capacidade, a energia e a presença de espirito indispensáveis ao seu alto cargo e á difíicil 181 situação em que se via o paiz. Pouca, ou nenhuma auctoridade, e prestigio tinha. Também por este lado a politica cartista tornou D. Miguel o homem preciso. Emquanto aos partidos, tanto cartistas conservadores, como mi- guelistas, ou absolutistas, acceitavam D. Miguel como necessário para se não voltar a 20, ou á democracia. Para os constitucionaes conservadores era indifferente a ques- tão de D. Pedro e D. Mignel, como já vimos e dissemos. O essen- cial era manterem-se os direitos e o prestigio do ihrono, contra as puras doutrinas liberaes defendidas pelos chamados exaltados e pe- los vintistas. A guerra que os absolutistas puros faziam a estes qua- drava-lhes ; D. Miguel, sob este ponto de vista, oíferecia-lhes mais garantias, do que D. Pedro. As promessas que aquelle fizera, os seus protestos de manter a carta, o juramento que prestou a ella e o reconhecimento dos direitos de D. Pedro, tudo isto era uma garan- tia para os constitucionaes conservadores, de que elles seriam pou- pados na guerra que D. Miguel vinha encetar contras os chamados demagogos e contra os vintistas. As condescendências e benevolen- cias que tiveram com o partido apostólico e absolutista puro davam- Ihes direitos a que este os tratasse com a mesma benevolência. Os constitucionaes conservadores esfregaram as mãos de con- tentamento, ao verem a regência nas mãos de D. Miguel, que vinha exterminar os republicanos e as 40 lojas maçónicas, que promove- ram 'a maldita proposta de Magalhães. Por isso prepararam-se tam- bém para festejarem a vinda d'aquelle príncipe. E se D. Mi- guel se proclamasse rei absoluto, também não lhes desagrada- ria, porque eram essas as suas naturaes tendências. O essencial era que D. Miguel, esquecendo o passado, como promettera, os não incommodasse a elles, emquanto não deixasse descançados os exaltados e vintistas, a quem os constitucionaes votavam cgual- mente ódio eterno. Restavam só os liberaes puros e sinceros. Estes não queriam, por modo algum, os auctores da Villafraucada, da Abrilada e de outras façanhas idênticas. Mas que podiam fazer, desarmados, per- 182 seguidos e encarcerados, como estavam, pelos cartistas conserva- dores ? O partido liberal encontrava-se impotente ante a guerra dos chamados moderados, dos absolutistas puros, da Inglanterra, da França, da Hespanha e da Áustria, que dirigiam os destinos de Portugal. Se elle se levantasse sob os princípios de 20, seria es- magado pelas tropas britannicas, que só n'este caso interviriam na politica interna de Portugal. Vieram para evitar a intervenção di- recta das tropas hespanholas, e para conter os vintistas^ a quem a Inglaterra odiava, mais que os apostólicos e cartistas conserva- dores. Além d'isso, os liberaes puros e sinceros não viam nenhuma diíferença entre o regimen da carta, em que foram sempre perse- guidos, e o regimen absoluto de D. Miguel. Os últimos attentados de que foram victimas fizeram-lhes perder o enthuslasmo pela causa da carta constitucional. O paiz em geral manifestava descontentamento e desgosto pelo estado de coisas que durava ha dois annos sem solução. Todos se resentiam do mal estar geral, e mostravam viva inquietação. A desordem e anarchia que iam por todo o reino mostravam a necessidade de se pôr termo ao estado de incerteza, de duvida e de violentos conflictos em que se via a nova situação creada pela car- ta. Ou o regimen liberal com todas as suas legitimas consequên- cias, ou o regimen do puro absolutismo. O que não se podia pro- longar por mais tempo era aquella situação, que a ninguém conten- tava, nem aos próprios conservadores que a crearam. Como consequência immediata das luctas, dos attrictos, dos conflictos e das perseguições politicas encetadas pelos conservadores, surgiu a crise económica e financeira. Os capitães retrahiram-se com receio de uma mudança politica e diante da agitação crescente do paiz. O papel moeda estava a 1 5 por cento; pouco circulava. O governo, apesar de oíferecer o juro de 6 y„ e de receber ain- da a quarta parte em titulos de divida que se compravam com o rebate de 12 a 20 por cento, não conseguiu cobrir o empréstimo. 183 • O banco suspendeu pagamento! E durante todo o periodo de 1826 a 1828 não se cuidou de nenhum melhoramento moral, intellectual e material do paiz. Nem estradas, nem caminhos, nem pontes, nem escolas primarias e se- cundarias, e nem uma só reforma d'estudos ! Nas províncias do norte era D. Miguel o rei ; no resto do paiz não se sabia quem era o verdadeiro rei. De modo que tudo estava pedindo uma solução prompia e definitiva, fosse qual ella fosse. A não serem os liberaes sinceros e puros, todos os mais espe- ravam D. Miguel como um Messias, e só d'elle esperavam remédio efíicaz para tantos males. D. Pedro, a Inglaterra, convertendo-se em instrumento do hábil Metternich, e os cartistas conservadores, tornaram D. Miguel o ho- mem indispensável, o homem da época e da situação. Foi o que Metternich desejou, para chegar ao seu fim. A situação de Portugal oíTerecia só duas únicas soluções: ou o regimen da pura liberdade, ou o regimen do absolutismo puro. Os cartistas moderados, ou conservadores, tornaram aquella impossivel; não restava senão esta, que tão desejada era pela pró- pria higlaterra. A regência de D. Miguel era o único meio de D. Pedro se livrar das nossas complicações politicas e de contentar a Áustria e a Hespanha ; era o único meio de a Inglaterra libertar-se dos seus compromissos com Portugal e de evitar um conflicto com a Áu- stria poderosa, e era também o único meio de os cartistas modera- dos, ou conservodores, se desembaraçarem dos exaltados e vintistas. O que se não podia era prolongar por mais tempo o estado de coisas em que o cartismo collocou o paiz. «Para sahir, dizia Palmella, doesta perigosa situação, ha só dois meios; e já agora debalde se procuraria prescindir de um ou de outro, ou D. Pedro, ou D. Miguel ha de ir tomar as rédeas do go- verno. » D. Miguel partiu de Vienna d'Austria no dia 7 de dezembro de i(S27, seguindo o itenerario ajustado, e prestando-se a tudo quanto lhe exigiu a Inglaterra e os representantes de D. Pedro; porque a 184 tudo tencionava faltar. Dirigiu-se, em primeiro logar, a Paris, onde a aristocracia e os membros da seita apostólica lhe fizeram uma recepção principesca e enthusiasta. Era o chefe do partido absolu- tista em Portugal. N'aquella cidade illudiu a vigilância dos que os acompanharam. Ahi mesmo não cessou de conferenciar com os agentes do exercito domarquez de Chaves e de Fernando Vil, e ahi nomeou previamente o ministério indicado nas conferencias ! D. Miguel seguiu depois para Londres, onde foi recebido com toda a pompa e solemnidade, e como se realmente fosse o verda- deiro rei de Portugal. No entretanto a rainha Carlota Joaquina combinava com todos os seus partidários o modo de proclamar o absolutismo puro e o filho D. Miguel legitimo rei de Portugal. Estava tudo a pos- tos, os conventos, as sachristias, os quartéis e os clubs secretos apostólicos. As phalanges dos caceteiros, que já tin^ham funciona- do, quando chegou a noticia da outorga da carta, estavam orga- nisadas de novo, e promptas a rachar cabeças. Nada faltava para a execução da santa obra dos apostólicos e feotas. A vinda de D. Miguel era uma nova Villafrancada sem ain- tervenção dos moderados, acobertados com a capa de clemência de D. João VI; era uma Villafrancada com todas as suas legitimas consequências, ou a realisação dos sonhos dourados da Abrilada. Uma das primeiras pessoas que em Plymouth se apresentaram a D, Miguel foi o Raposo, seu companheiro inseparável das corre- rias e aventuras nocturnas e da Abrilada. Veiu informal-o de que elle, o Sedovem, o Grondona, o Veríssimo, o Miguel Alcaide, e outros toureiros e caceteiros, estavam promptos e preparados para a santa obra do throno e do altar. D. Miguel chegou a Lisboa no dia 22 de fevereiro de 1828, Estavam-lhe preparadas duas recepções, uma no Terreiro do Paço., e outra em Belém. Aquella foi a recepção official ordenada pela camará municipal. As ruas da cidade foram embandeiradas e enfei- tadas, e correu bando para que todos os habitantes puzessem lumi- nárias em suas casas e dessem todas as provas de regosijo publico. 185 A camará municipal, de accôrdo com todas as auctoridades, prepa- rou solemnes festejos para este dia, de sinistra memoria para os por- tuguezes. A recepção de Belém foi preparada pela rainha viuva, pelos fidalgos e commendadores, ou pela alta e baixa aristocracia e pelos apostólicos. Uma recepção de estrondo. Estava ahi a nata da aris- tocracia, os altos dignatarios da corte e da egreja, principaes^ mon- senhorcSy arcediagos, cónegos, abbades e curas, e muitos frades, mis- turados com toureiros, cabreiros, cocheiros, empregados nas caval- lariças reaes, fadistas de Alfama, Mouraria e Alcântara, prostitu- tas e pedintes, cegos, aleijados e leprosos, ^'iam-se ahi todos os amigos Íntimos de D. Miguel e de Carlota Joaquina; os seus mais leaes servidores e partidários. O Sedovem e o Miguel Alcaide ardiam em desejos de tornar a ver o seu rei, o pae dos pobres, como elles lhe chamavam. Agora é que vão a ser ensinados os que o levaram ao exilio; não escapará nem um só ; hão de apanhar uma lição que ficará de eterna me- moria em todo o paiz e para exemplo dos mais. Cacete em punho aguardavam em Belém aquelle que vinha salvar Portugal das mãos dos atheus e pedreiros livres. Escusado é dizer que D. Miguel preferiu desembarcarar em Belém, onde estava a sua gente a postos, para executar os planos concertados em Vienna, em Paris e em Piymouth. No Terreiro do Paço achava-se a camará municipal, as auctori- dades e todo o mundo official creado por D. Pedro. A força pu- blica recebera instrucç(5es para reprimir tumultos e violências. Ahi os bandos de caceteiros, toureiros e de ladistas, não podiam desabafar. Em Bclcm, sim, c que D. Miguel se veria á vontade e sem as formalidades, incommodas e importunas, do cstylo. A recepção de- via ser enthusiasta, expontânea e estrondosa. Eram duas horas da tarde, quando a fortaleza da torre de São Julião salvou com 21 tiros, e logo cm seguida todos os navios de guerra surtos no Tejo, e todas as fortalezas. I->a o annuncio do ap- parecimento do pavilhão real que trcmula\a orgulhos .» na íra-;ata -2-\ 186 Pérola^ conduzindo a pérola de D. Miguel. Acompanhava aquella fragata uma esquadra ingleza! A infanta Izabel Maria, acompanhada pela irmã D. Maria d'As- sumpção, partiu immediatamente para o cães de Belém em direi- tura á fragata, que estava a fundear. Houve demorada conferencia a bordo. Finda ella, embarcaram os três infantes na galeota real, e chegaram ao cães de Belém ás três horas em ponto. Carlota Joaquina estava, no entanto, no palácio d'Ajuda dispon- do as coisas. Assim que o infante poz os pés em terra, a turbamulta que o esperava rompeu em calorosos vivas a D. Miguel I. Todos os sinos das egrejas e conventos começaram a repicar desesperadamente ; estalaram nos ares immensas girandolas de foguetes no meio da explosão dos vivas e acclamações a D. Miguel I. A multidão de fidalgos e capitães-móres, misturados com beatos e beatas, com fadistas, toureiros e cocheiros, acompanhara o infante em triumpho até ao palácio d' Ajuda, onde estava Carlota Joaquina. Esta cahiu nos braços do seu filho mais querido, banhada em lagrimas de alegrm. Agora, sim, é que se iam realisar os sonhos doirados de tantos annos. Bemditas as nações alliadas que tal per- mittiram. Depois de se beijarem e abraçarem ternamente, fallaram na jor- nada a Villa Franca, na morte do marquez de Loulé, na Abrilada e n'outras façanhas sempre frustradas. Que alegria ! O poder está em nossas mãos. Vamos á obra ; é não demorar, que é preciso livrar quanto antes o paiz dos seus ini- migos e inimigos de Deus e do rei. D. Miguel esteve conversando com a mãe algumas horas. Pas- sou depois ao palácio da princeza D. Maria Benedicta, onde tam- bém se demorou. Depois d'isto seguiu para o seu palácio, onde deu beija-mão ao senado da camará, aos membros do parlamento, di- gnitários das cortes, a generaes e a muitos fidalgos que pediam para serem admittidos. Terminada a recepção, D. Miguel foi jantar com a sua querida mãe. E ahi em convivio intimo, e devorando as boas iguarias e pe- 187 tistos, fizeram a lista das cabeças que primeiro deveriam cahir sobre o cadafalso. Os copos de vinho que emboccavam ás saúdes eram saboreados com a idéa do sangue das victimas que iam derramar. Eis como o sr. Oliveira Martins nos conta a chegada do cha- mado anjo salvador. «Chegara o tyrano; os demagogos exultavam; os beatos davam graças a Nosso Senhor; os frades oravam e a canalha pelas ruas trepudiava solta. Havia chás em casa dos desembargadores, lustres accesos em todas as egrejas; mas o% quartéis, senão hostis, indiífe- rentes, não se moviam. Havia, porem, nas ruas a tropa livre, vo- luntária dos bandos armados de cacete; era o de Telles, alferes de milícias, o do Grodonna, bilheteiro de S. Carlos, o do Senhor dos Passos d'Argel e o do José Veríssimo e muitos e muitos mais. Ca- cete em punho, cabeça erguida, os bandos seguiam cantando o ^ei chegou^ Ça-irá do miguelismo com variantes livres, pulhas, obsce- nas, em que D. Pedro era vilipendiado e D. Maria apodada com epithetos. Quando o rei chegou á barra A' barra de Lisboa Logo os malhados disseram Esta obra não vae boa. O rei chegou, o rei chegou, Em Belém desembarcou; Na barra não entrou, E o papel não assignou. Outro acudia : Co o papel o c. . . limpou. Vinham então gritos. Viva D. Miguel I rei absoluto! Viva! Morra o senhor D. Pedro mais a p. . . que o pariu! Morra! E assim, venerando e condemnando D. Pedro, e chamando me- retriz á mãe de D. Miguel, a plebe, seguindo cm ondas, ameaça- dora, contente, capaz de todas as loucuras, por estar tomada de uma quente embriaguez collectiva: 188 Venha cá senhor malhado, Metta a mão n'esta gaveta; Diga Viva D. Miguel, Se não quebro-lhe a corneta. O rei chegou, o rei chegou, E em Belém desembarcou.» As egrejas, os conventos, a sé, São Vicente de Fóra, edifícios públicos e particulares, pozeram á noite vistosas luminárias; os si- nos das egrejas repicaram até ao outro dia pela manhã; muitos foguetes estalando a cada momento nos ares; festas nas casas de fidalgos, beatos e beatas e nos conventos, illuminados por dentro e por fóra; ceias lautas d'entro d'elles em que os frades despejaram as adegas, para fazerem saúdes ao anjo Miguel e á virtuosa rainha imperatriz, a excelsa Carlota. Nas ruas e praças um verdadeiro inferno de morras aos li- beraes, aos maçons., pedreiros livres illuminados e atheos., misturados com vivas a D. Miguel I, ao marquez de Chaves e a Carlota Joa- quina, e com injurias e insultos a D. Pedro e á filha D. Maria II. Percorreram as ruas toda a noite bandos de caceteiros, tourei- ros e fadistas e de gente assalariada pela rainha viuva, cantando em alta voz o Rei chegou. Fóra malhado ! chucha judeu ! Acabou-se a guerra; D. Miguel venceu. Defronte do palácio d' Ajuda o povo assalariado e ignorante não cessou de gritar Viva D. Miguel I rei absoluto ! Viva o rei nosso Senhor! Viva a nossa santa religião! No dia seguinte á sua chegada, D. Miguel foi á sé agradecer á Senhora da Rocha o ter-lhe permittido voltar a Portugal e assumir a tão desejada regência. Foi milagre d'ella. O povo acompanhou-o em procissão e em triumpho, á imitação do que se fez em i82 3, quando a rainha foi agradecer á mesma imagem milagrosa a queda da constituição de 20. Diz José Liberato Freire de Carvalho que o fim d'esta primeira apparição em publico de D. Miguel, mascarada com todo o appa- 180 rato de uma devota romaria, foi o apalpar os sentimentos do povo, porque á sabida da cathedral já vozes compradas acclamaram D. Miguel I rei absoluto. Diz que o pregoeiro assoldadado que mais se distinguiu n'esses vivas foi o brigadeiro José Joaquim Maria, que, em paga, recebeu o commando em chefe da guarda da poli- cia. E accrescenta: «O publico não correspondeu a este primeiro ensaio, e antes com assombroso espanto olhou com indignação e despreso para o pequeno bando de eumichos que a tanto se havia atrevido.» (i) Por ironia foi n'este anno que se abriram as cortes, fechadas desde março ultimo! A camará dos deputados ainda tentou um pequeno esforço, para salvar a situação, querendo processar o ministro da justiça e que a lei da liberdade de imprensa fosse immediatamente discutida e approvada, para se pôr termo ao jugo de ferro a que estavam sujeitos os periódicos. Mas a mesma camará não ousou levan- tar a voz contra a illegalidade da nomeação de D. Miguel para a regência do reino. Acceitou resignada tudo quanto se fez e delibe- rou no Rio de Janeiro e nas corte estrangeiras! Não era negocio com ella! Ainda mais! A mesma camará addiou a discussão do parecer da commissão das infracções da carta, para quando as circumstan- cias o permittissem! Tanto o ministro da justiça, como o conde da Ponte, consegui- ram assustar a direita e o centro direito com o perigo d'essa dis- cussão, que desagradaria á coroa e ás potencias estrangeiras. Isso era animar os republicanos e rintistas, e justificar os receios das nações. O parecer da commissão nunca se discutiu; e diz José Li- berato Freire de Carvalho que os que até até ahi mais ardentes se haviam mostrado em ultimar a accusação dos ministros foram de- pois os primeiros que concorreram para a deixar no esquecimento. A lei da liberdade de imprensa morreu, bem como loJas as mais que deviam garantir as libenJades publicas I ( i) I'nsai(> P»Utic(K pat;. 142. 190 A camará dos pares, ou dos nobres e do clero, em presença dos successos de julho, mostrou-se hostil a todos os projectos libe- raes que vieram da camará popular. Nada de transigências com os vintistas e exaltados, ou com os republicanos. O projecto da organisação das camarás municipaes foi addiado, bem como o da inviolabilidade da casa do cidadão, por favorecer, disse o conde de S. Miguel, o estabelecimento das sociedades se- cretas 1 Os mais projectos, diz Sousa Monteiro, foram mandados a dif- ferentes commissões, em cujas mezas ficaram jazendo! As duas casas do parlamento estavam desauctorisadas por si mesmas; abdicaram dos seus direitos na coroa e nos ministros d'ella. Diz assisadamente José Liberato Freire de Carvalho, na obra citada, que é de toda a verosimilhança que os dias de intervallo en- tre a chegada do infante e a farça do seu juramento tivessem sido destinados de propósito para tentear a opinião publica, e ver se ella daria logar a fazer-se alguma acclamação tumultuaria, por meio da qual o infante se pudesse escusar de comparecer perante as cortes reunidas, e n'ellas dar, ou affectar dar, o juramento. Esta idéa tornou-se, porem, impraticável, porque o espirito publico se conservou contrario a ella ; e a tropa, commandada por hábeis e honrados ofíiciaes, não teria soífrido similhante attentado. E sustenta que ás tropas só faltou um homem ousado que a quizesse commandar, para derribar, logo no principio, todos os projectos de D. Miguel, quando este se desmascarou. E accres- centa que muitas considerações fundadas na presença das tropas inglezas, que tinham ordem para defender a pessoa do infante, fize- ram que nada se tentasse. O mesmo escriptor cita o facto de os conselheiros do infante, entre elles particularmente o duque de Cadaval, quererem que elle prestasse juramento pro forma, concluindo-o com a promessa de logo resignar a regência nas mãos da rainha D. Maria II. Commu- nicando-se este projecto ao ministro da Inglaterra, este e o conde de Bombelles o reprovaram, por cujo motivo não teve eíTeito. 191 Foi só no dia 26 que teve logar o juramento do infante, sem que este até ahi publicasse manifesto algum ao paiz, mostrando as suas intenções e a sua profissão politica. N'aquelle dia reuniram-se as duas camarás em sessão real na sala do palácio da Ajuda, afim de o infante D. Miguel ratificar o juramento que prestara já em Vienna d'Austria. Foi a infanta re- gente que leu o discurso, dizendo que o infante ia ratificar de uma maneira solemne o juramento que já tinha feito, e que elle se considerava feliz, por se ver em uma posição, que lhe pçr- mittia desenvolver a sabedoria das suas intenções, a firmesa de seu caracter e a moderação de seus princípios. Terminou fazendo votos pela prosperidade da nação. O infante nada respondeu; não somente porque não estava acostumado a estes actos públicos e era bronco e ignorante, mas porque não ligara nenhuma importância ao juramento que veio prestar com restricção mental^ aconselhada por seu confessor je- suíta. Era um juramento á D. João VI, á Fernando de Nápoles e á Fernando de Hespanha, quando juraram as constituições decreta- das por estes povos. O príncipe estendeu as mãos sobre os Evan- gelhos e proferiu as palavras da formula prescripta com o maior sangue frio. Esta comedia foi annunciada por muitas girandolas de foguetes, por salvas dos fortes e navios de guerra e repiques de si- nos! Terminou com vivas a D. Pedro, á carta, á infanta Izabel Ma- ria e ao novo regente do reino! N'esse mesmo dia os frades, os curas e priores, os beatos e beatas, espalharam pela cidade que o patriarcha escondera com o seu mantelete o livro dos Evangelhos, c que o infante jurara sobre o Poema dos Burros de José Agostinho de Macedo, que havia sido encadernado juntamente com a Bíblia! Desde então por diante, surgiu vigorosa propaganda dos apos- tólicos a favor dos direitos de D. Miguel e do regimen absoluto. d'ante-mão preparada c combinada. Todos os dias se publicavam panegyricos ao divino, ao excelso, ao i^raiide e poderoso Miguel. Poesias, elogios c discursos sahiam 192 constantemente da imprensa em louvor do príncipe immortal, que o céo enviara a Portugal, para o tornar feliz. Os jornaes realistas, com toda a audácia, tratam D. Miguel como rei legitimo de Portugal, e dirigem-lhe louvores em termos tão enihusiastas, como se fossem a uma perfeita divindade. Esgo- taram todos os adjectivos laudatorios e incensadores da lingua portugueza. Ao lerem-se esses jornaes, parece que estava no throno, não um príncipe, mas um d'esses reis deuses dos velhos impérios do Oriente. Não fora um rei mas uma divindade que milagrosa- mente baixara dos céos em defeza da santa religião e dos thronos, ameaçados pelas doutrinas da impia e malvada Revolução fran- ceza. E notável e característico o artigo que em o n.° 52 publica a Trombeta Final. Não parece um artigo politico, mas um hymno a um Deus todo poderoso, deante do qual todos se curvam reve- rentes. Quem desejar conhecer bem os sentimentos sabujos d'esses que negavam que o homem fosse um ente livre, leia esse artigo im- portante e característico dos defensores do puro absolutismo. Depois de cobrir D. Miguel de todos os epithetos louvaminhei- ros, diz que elle foi uma pérola gerada no seio da heroina mãe, a santa igreja., com que o Deus Affonso Henriques obsequiou a nação portugueza, que arvorou as suas cinco chagas gloriosas. E cheio de santo extasi conta o redactor que lera uma prophe- ci'a n'um livro publicado em França um anno antes do nascimento do grande infante. N'ella diz-se que, para salvar Portugal de todas as suas calamidades. Deus enviaria breve um heroe debaixo da protecção do anjo S. Miguel! Este anjo chegara, emfim ; desembarcou em Belém, depois do seu iniquo desterro. E eis como esses sabujos dos reis exploravam a boa fé e cren- dices do povo rústico e ignorante. Perfeitos comediantes. Com o máximo arrojo o mesmo jornal começa a atacar violen- tamente a carta, os cartistas, a liberdade e a Revolução franceza, filha da maçonaria e de atheos incorrigíveis. Em o n." 5 i pede a suppressão da imprensa que propaga as doutrinas revolucionarias 193 contrarias á religião e ás monarchias, sustentando erradamente que o homem é livre, quando Deus o fez escravo, e para obedecer aos que o devem governar. Elle aponta ao infante como perigosos e dignos de severo cas- tigo os jornaes da seita liberal, merecendo-lhe especial cuidado o Imparcial^ por não ter feito coro com os mais jornaes nos insensos ao mesmo infante. Era jornal rebelde ; estava machinando contra o anjo que Deus enviara a Portugal, sob a protecção do anjo S. Miguel. Urgia dar-lhe severa lição, para exemplo dos mais que pretendiam revoltar-se contra os santos decretos da divina providencia. Em 3 de março, escreve aquelle defensor do throno e do altar o seguinte : «Príncipe amável! Emissário celeste! Conúnuno. corajoso a dis- persar essas víboras famintas que vos querem tragar ; porque só de sangue precioso é que se sustentam. Debelae por uma vez esses inimigos de Deus, que no silencio da noite decretam contra seus dogmas sagrados e forjam as algemas, para vos reduzir ao mais simples escravo.» O mesmo jornal ataca a philosophia e os philosophos moder- nos, que fizeram a mais nefasta das revoluções, onde se afundaram os thronos e o altar, revolução libertina, athea e sanguinária. Em o n." 53 já pede castigo para os que atacam os direitos de D. Miguel, o anjo tutelar, o emissário celeste. E leva o impudor ao ponto de pedir o restabelecimento da Inquisição, contra a qual, diz, só os atheos e malvados inimigos da monarchia clamam, no seu furor contra tudo quanto c da religião. «Desenganae-vos, accrescenta o jornal, povos illudidos, não deis ouvidos ás imputações com que costumam atacar a Inquisição ; e se acaso, pelo decurso do tempo, algum abuso se tem introduzido n'este tribunal, o que é próprio de tudo quanto é humano, não Cb- queçacs as utilidades que d'clle lecm resultado.» E sustenta que os dois potentados, ecciesiastico e civil, tecni direitos de adoptar medidas de accordo um com outro, para op- poreni-sc a novidades funestas, que compromctiem o repouso da coreia e do estado ao mesmo tempo. 194 Em o n.° 55 chama a juizo final todos os liberaes, a quem denomina monstros, ministros da desobediência, da rebeldia e da ingratidão. «É chegado, escreve o jornal, esse dia fatal em que, embocando a nossa trombeta altisonante, a façamos resoar até ao mais pequeno angulo de Portugal, annunciando-vos que é chegada, finalmente, essa hora felii^ em que com braço justiceiro, poderoso e valente, deva fazer surgir (o infante), até mesmo das furnas mais escuras e medonhas, todos esses imaginados regeneradores políticos, que pelos seus crimes e atrozes maldades se teem tornado inimigos da pátria, despresadores da religião santa de Jesus Christo.» E o mais curioso é que pedia, ao mesmo tempo, ao governo a suppressão do Imparcial e de outros jornaes liberaes, para não res- ponderem áquelles e outros violentos ataques que lhes dirigia ! Emquanto os jornaes realistas puros, e os apostólicos, tinham direito de usar d'aquella linguagem violenta, e pregavam o extermí- nio e o morticinio de todos os seus contrários, gemiam na cadeia os redactores da imprensa liberal ! Para os cartistas conservadores o censurar os actos dos gover- nos, executores da auctoridade augusta de quem eram delegados, era crime maior, do que o provocar o povo á revolta e excital-o 4 exterminar a ferro e fogo todos os que defendiam os princípios pu- ros da liberdade! Isto era questão de pouca ou nenhuma importância. Não se atacava o throno, nem seus direitos sagrados. Não foi só pela imprensa que os apostólicos fizeram aquella sanguinária propaganda, depois que D. Miguel foi investido na re- gência do reino. No púlpito os frades e todo o clero usaram da mesma linguagem; fizeram enthusiasticos panegyricos ao enviado do senhor, e ao anjo celeste, e sustentaram os direitos d'este ao throno de Portugal. Em sermões coléricos e fulminantes provocavam os fieis a ar- marem-se de cacetes, punhaes e trabucos, contra os inimigos de Deus e dos reis, para preservarem Portugal das calamidades da Revolução franceza. Elles diziam-lhes que os liberaes estavam tra- 195 mando nas lojas maçónicas contra o infante, para lhe tirarem a regência, que lhe fora confiada pelo irmão, por intervenção de Deus, para salvar a sua egreja. Os clubs apostólicos, por outro lado, espalhavam pelas ruas da cidade de Lisboa os seus agentes, para provocarem tumultos. Em resultado d'aquella propaganda pela imprensa e no púlpito, e cônscios da sua impunidade, os caceteiros, fadistas e toureiros, empregados das cavallariças reaes e sachristas, com braço valente e justiceiro quizeram dar cabo dos ima^nnados regeneradores poli- iicos^ que por seus crimes e atrozes maldades se tornaram inimigos da pátria e da religião santa de Jesus Christo. «Todos os dias, diz o sr. Oliveira Martins, desde Ajuda até Xabregas, desde as portas do paço até aos confins da cidade, os bandos caceteiros corrriam ameaçando, e pelas ruas ouviam-se gri- tos fecha, fecha! Cerrava-se tudo, e nem as tropas intervinham, e nem a auctoridade prendia. «Deixem desabafar o povo.» O governo, que mandou metter nas cadeias os liberaes, deixou á solta a demagogia apostólica ! Em um domingo, dia i de março, juntaram-se em frente do palácio d'Ajuda magotes dos taes caceteiros, empregados da Cor- doaria, cabreiros, cocheiros, e alguns empregados públicos demit- tidos por suas prevaricações e immoralidades. Ahi começaram a provocar tumultos no meio de vivas a D. Miguel I rei absoluto, e ao rei nosso senhor. Algumas pessoas pediram ao regente que man- dasse augmentar a guarda, afim de se prevenir algum insulto. «Deixem desabafar o povo», respondeu o bruto D. Miguei. O pateo do palácio foi logo invadido ; as escadas e corredores encheram-se de populares, inflammados pelos sermões e artigos dos jornaes realistas, os quaes penetraram até á sala dos Archeiros; e aqui mesmo deram vivas a D. Miguel I e morras á carta e a D. Pedro! N'esse momento chegaram alguns militares e pessoas atfectas ao constitucionalismo. A multidão assalariada, mal os viu, princi- piou a insultal-os. e os caceteiros cahiram sobre elles. de caceie em punho. O general Cauia solfreu uma grave contusão n'um braço, 196 e teria sido assassinado, se não lhe valesse uma patrulha que o livrou das mãos dos agentes dos clubs apostólicos. Os condes de Villa Real e da Cunha e o príncipe Schuartzemberg, só porque intercederam e censuraram o procedimento dos sicários, foram in- sultados e corridos á pedrada. Deixem desabafar o povo. O commandante da guarda do paço pediu ao infante para dis- persar o tumulto ; o príncipe, chefe dos toureiros e fadistas, res- pondeu-lhe que a guarda era destinada somente a vigiai" pela segu- rança da familia real ! No dia seguinte, o general Caula foi ao paço queixar-se e pedir a punição dos culpados. O infante desculpou-os, dizendo que não achava rasão para se punirem esses desvios, que não manifestavam senão a affeição que o povo tinha á sua pessoa ! Só os successos de julho ultimo é que eram crimes horrendos, hediondos e dignos do mais severo castigo I E para dar uma satisfação a esses que manifestaram por tal maneira a sua affeição ao throno e ao altar, tanto o general Caula, como o conde de Villa Real, foram demittidos dos seus cargos! Nas províncias as mesmas scenas provocadas pelos priores das freguezias, pelos frades e agentes das sachristias e dos paços epis- copaes, pelos capitães-móres e morgados. Em Setúbal os frades astuciosos espalharam pela villa que vi- ram em as nuvens do céo dois anjos, sustentando uma coroa im- perial, e estendendo um distico com estas palavras — Viva D. Mi- guel I rei de Portugal ! — O povo das egrejas e dos conventos sub- levou-se, dando" vivas a D. Miguel e espancando todos os liberaes que encontrara pelo caminho, e os que desdenharam e se riram d'aquella grosseira especulação fradesca. A tropa interveio, e dis- persou os amotinadores; as auctoridades abriram devassa contra os cabeças do motim. D. Miguel, assim que soube d'este procedi- mento das auctoridades em cumprimento das leis e em defeza da vida dos cidadãos pacíficos, enfureceu-se! Mandou-as demitiir em continente, por se terem opposto aos votos do povo. Não somente ordenou que se trancassem as devassas, mas até mandou elogiar os demagogos brancos pelo seu zelo realista ! 197 Mas se o povo se amotinasse em defesa das instituições, dos seus direitos e da liberdade? Os seus votos seriam respeitados? as devassas teriam sido trancadas e os manifestantes postos em liber- dade? Ainda no parlamento se ouviram algumas vozes em defesa das instituições atacadas e ameaçadas; mas eram vozes de mori- bundos. Nas camarás dos pares disse o conde da Taipa : «Estes acontecimentos teem espalhado o terror n'esta capital, e vão fazer sahir do reino centenares de famílias e com ellas grossos cabedaes. Não se ouve fallar senão em emigração a quem tem al- guns meios de subsistir em paizes estrangeiros, o que pode trazer a Portugal uma época funesta, como a que trouxe a perda do se- nhor rei D. Sebastião em Africa ; e talvez para isso se machine, se a lealdade d'esta camará não romper a escura atmosphera de que uma facção tem rodeado o sr. infante regente, fazendo chegar ao seu conhecimento o verdadeiro estado da nação.» iMas a corrente era já assas poderosa ; ninguém a podia suster. Além d'isso, a maioria dos nobres e do alto clero, de quem D. Pe- dro ineptamente compoz essa camará, estava de accôrdo com os apostólicos e com D. Miguel, para se proclamar o antigo regimen absoluto. Não amava o constitucionalismo. O deputado Magalhães também quiz chamar a attenção da ca- mará baixa para os tristes acontecimentos que se estavam presen- ceando. Propoz se pedissem ao governo providencias, mas a direita e o centro direito abafaram-lhe a voz, e protestaram novamente, di- zendo que a proposta era olfensiva á coroa e até contra a digni- dade da própria camará! Em vista d'isso, mais nenhum deputado se ergueu cm defesa das leis e das instituições ! Os cartistas moderados aterraram-sc só com ouvirem as pala- vras do incorrigível vintista ! Guerreiro, prevendo os futuros successos c a morte próxima da carta, propoz que se reunissem todos os documentos que verifica- vam o novo estado politico do paiz; que se pedisse ao governo co- 198 pia authentica do decreto da regçncia de D. Migue!, e do auto do juramento, e que todos estes documentos fossem guardados nos archivos da camará, em seguimento da carta constitucional e dos decretos que a acompanharam. As camarás tinliam os seus dias contados. E taes foram as scenas que se passaram á chegada do anjo tu- telar, do emissário celeste, e do novo Messias, cuja vinda fora annunciada um anno antes do seu nascimento. Eis como elle vinha fazer a ventura dos portuguezes. É preciso que digamos que não foi só a imprensa realista que manifestou contentamento pela vinda de D. Miguel e lhe dirigiu incensos; a imprensa official e ofíiciosa e dos cartistas moderados, ou conservadores, entrou n'esse coro. Só os jornaes avançados é que se retrahiram e manifestaram o seu descontentamento. Os constitucionaes conservadores ainda esperavam que D. Mi- guel não faltasse, como príncipe que era, á sua palavra e aos seus juramantos. EUes viram com satisfação a regência d'aquella prín- cipe; porque suppuseram que ellâ era só contra os defensores dos direitos do povo, da soberania nacional e das theorias da Re- volução franceza, ou contra os exaltados e vintistas. Esfregaram as mãos de contentamento; mas cedo, mui cedo, tiveram o desengano e a paga da sua politica mesquinha e inconsequente. A espada ex- terminadora do anjo Miguel cahiu também sobre cabeças d'elles; fo- ram até as primeiras victimas ! LIVRO SEGUNDO REINADO DO THRONO E DO ALTAR CAPITULO I PROCLAMAÇÃO DO ABSOLITISMO o realismo constitucional impciliu o paiz para o absolutismo puro.— Aos apostólicos repugnavam os sophismas e grosseiras ficções do cartismo.- D. Miguel a verdadeira personificação do Portugal de D. Joáo III e D. João V. — D. Miguel chega a Lisboa no momento mais propicio. — Nomeação do novo ministério e do novo conselho d'estado.— Os constitucionacs são demittidos de todos os governos das armas das províncias e de todos os commandos dos corpos.— Dissolução dos voluntários do commercio. — Crcação de uma guarda para defesa do rei e do palácio. — Prohibição do hymno da carta.— Circular do ministro da guerra contra os otliciaes aife- ctos ao constitucionalismo. — Circular do ministrro da justiça a favor dos amoliiiadores, sicários e caceteiros realistas. — Dissolução da camará dos deputados. — Novas sccnas de tumultos e de violências praticadas pelos realistas. — Manifesto do marquez de Chaves.— Acclamaçáo de D. Miguel rei absoluto na camará municipal da cidade de Lisboa. — Os bandos caceteiros colhem as assignaturns para l). .Miguel se proclamar rei absolu- to.— .As primeiras anctoridadcs e.xigem ás camarás municipaes que promovam nquellas assignaturas.— D. Mi- guel manda convocar os três estados, para o reconhecerem legitimo succcssor ao tlirono.— Eleições dos procuradores.— Sessão real dos três estados. — Como estes reconheceram e acciamaram D. Miguel. — Os li- beraes são logo presos, espancados e cruelmente perseguidos em todo o paiz. — Narrativa dos factos por uma das victimas.— Saldanha pretende resistir; a divisão ingleza oppõese.— D. Miguel manda prender e confiscar os bens de todos os liberaes.— Dissolução dos voluntários constitucionaes. Ainda mesmo que D. xMiguel nãoquizesse, a ordem fatal das coi- sas impellia-o a proclamar-se rei com o antigo regimen absoluto. O partido liberal estava anniquilado pelas perseguições que lhe fizeram todos os governos cartistas, ou conservadores. Estes mar- charam rápidos no caminho do puro absolutismo, como em todas as épocas posteriores do regimen constitucional, em que se asse- nhorearam do poder. O absolutismo puro surgiu logo ao primeiro ensaio da carta ; D. Miguel já o encontrou em pleno vigor. As duas casas do parlamento eram então, como vimos, e dissemos, duas ro- das inúteis do systema ; não tinham importância politica alguma. Por íim, já não dispunham de prestigio e de força moral; estavam desauctorisadas perante o throno e a opinião publica. 200 D. Miguel, coherentc e lógico, desejou acabar com essa come- dia do constitucionalismo das cartas outorgadas, proclamando o absolutismo franco e aberto, e acabando com o chamado systema representativo, que não representava coisa alguma, a não ser a so- berania do throno. Se o rei era o único soberano de facto e de di- reito, a lógica pedia que se acabasse por uma vez com o systema parlamentar, que nada significava. N'este caso, não podiam haver senão cortes meramente consultivas, como as que existiam antes da Revolução de 20, ou depois do reinado de D. Pedro II. A lógica dos factos e dos princípios levava fatalmente o paiz ao velho direito publico portuguez. Aos absolutistas puros repugnavam os rodeios, os sophismas e as grosseiras ficções do constitucionalismo das cartas outorgadas. Elles queriam a legitimidade com todas as suas naturaes conse- quências. A sorte favoreceu-os. O Portugal das fogueiras da Inquisição, dos jesuítas, dos frades e conventos, dos terços, das procissões e das missas cantadas, das festas de egreja e das romarias, o Portugal da estupidez, das super- stições, das crendices e da ignorância mais crassa, ou o Portugal de D. João V, encontrou o homem preciso. D. Miguel é a verda- deira personificação d'esse passado de violências, de despotismos, de erros sem conta, de arbitrariedades e de fanatismo grosseiro. Era feroz como D. João III. N'elle estava a alma d'esse velho e in- feliz Portugal, que de novo resuscitou com a morte do partido liberal. O príncipe, a quem foram confiados os destinos d'este paiz, graças a D. Pedro e ás potencias estrangeiras, tinha todos os defeitos do pae e nenhuma das suas virtudes ; era o retrato vivo da mãe. Possuía a boçalidade de D. João VI e a perversidade e ví- cios de Carlota Joaquina. Bruto, ignorante, violento de génio, su- persticioso e beato, passava a vida nas cavallariças, nas casas das prostitutas, e nas aventuras nocturnas, acompanhado dos Veríssi- mos, Grondonas, Sedevens, ou de toureiros e fadistas. Jaleca com botões e alamares de prata, facha vermelha, calças á bôcca de sino, chapéo de aba larga e capa á hespanhola, abrigando grosso cacete^ 201 eil-o pelas ruas escuras de Lisboa no meio dos seus, ora rachando cabeças dos pacíficos burguezes, ora batendo-se com os valentes e pimpões e pretendentes ás suas namoradas, e ora pelos arredores da cidade de braço dado com as amantes e companheiras do de- boche. Voltava ao palácio fora de horas, ébrio de vinho, de pra- zeres e loucuras. A mãe ria-se e applaudia muito as proezas e aven- turas d'este filho querido. Com D. Miguel despertaram em Lisboa as velhas tradições das cortes de Aífonso VI e D. Joáo V, e da fidalguia turbulenta, dada a brigas e aventuras nocturnas, marialva, no moderno sentido da palavra, toureira e avinhada. O anjo salvador sentia repugnância ás lettras e á sciencia ; bronco e ignorante a mais não poder ser. Assignava-se — Migel. Mal sabia ler e escrever; tinha a linguagem do arrieiro, do fadista e toureiro. Auzencia completa de cultura intellectual e mo- ral. Todas as manifestações da força bruta faziam vibrar a corda do enthusiasmo na alma d'este príncipe feroz e ignorante. As tou- radas eram o seu maior divertimento. Não sabia fallar senão em cavallos e toiros ; possuia completa sciencia de arrieiro, cocheiro e toureiro. Montava bem; tinha excellente mão de rédea; era valente de pulso, e deleitava-se em exercer as suas forças physicas e a sua valentia de fidalgo boçal. Fazer uma pega de rabo^ ou de cernelha^ era uma das maiores glorias d'este príncipe salvador. Não estava bem senão nas cavallariças, nas tabernas, nas praças de toiros e no bordel. D'aqui a sua chamada popularidade. O príncipe descia a pòr-se em contacto com a ultima camada social, ou com fadistas cocheiros, toureiros e homens de taberna, que tanto o festejaram em Belém no seu regresso do exílio. Estavam mortos de saudade por elle. Era somente n'essas classes que tinha popularidade. Era odiado e detestado nas classes instruídas e cultas, na alta e me- dia burguezia e na classe artística. Fora, as touradas, as aventuras nocturnas, a convivência nas tabernas e com gente de má nota, perverteram-lhe todos os bons seniimentos. No palácio, ou na vida intima, seu coração fora cheio 2>\ 202 de peçonha pela educação que lhe deu a mãe, mulher perversa, dissoluta, vingativa e ambiciosa do poder. Desde creança, Carlota Joaquina acostumou-o ás conspirações de palácio, ás revoltas militares e ás sedições. Aquella rainha fez doeste filho tão querido um instrumento da guerra e das vinganças que tentou tirar do marido, que odiava e a quem foi sempre infiel. D. Miguel entrou na conspiração da rua Formosa, cujo pensa- mento fora assassinar todos os chefes do partido liberal; foi o pri- meiro que fugiu para Villa Franca, dando o exemplo ás tropas; passa por ter sido o assassino do marquez de Loulé, encontrando-se junto d'este a manta e o cacete de que se servia. Uma noite fugiu dos mesmos paços de Salvaterra, para vir sublevar as tropas no Campo das Salesias, em Belém, contra o próprio pae; e por fim foi o auctor da celebre Abrilada^ em que prendeu o mesmo pró- prio pae e deu-o por idiota ! Não se livra também das suspeitas de ter sido elle e a mãe que propinaram o veneno a D. João VI, con- tra quem não cessaram de conspirar e de tramar. Um verdadeiro demagogo branco. Tal foi a educação d'este príncipe, palácio dentro. O seu espi- rito impregnou-se d'essa atmosphera de conspirações, sedições, de revoltas e de tramas occultos. Assistiu ás sessões dos clubs apos- tólicos, planeando o extermínio de todos os maçons e pedreiros li- vres illiiminados. Um liberal para este príncipe bruto, feroz e beato era o mais perverso e damninho animal, um ente detestável, vil e hediondo; estava pedindo todas as torturas da Inquisição. Votava- Ihe ódio de morte. Desde a mais tenra infância, a mãe, o confessor e mentor, os apostólicos, de que em breve se tornou um dos che- fes, os capitães mores, os padres e frades, que o cercavam, pinta- ram-lhe os liberaes com cores as mais feias e repellentes. Por este modo tornaram o príncipe uma verdadeira fera contra elles e os maçons. Ainda creancinha, de mãos erguidas para o céo e ajoelhado, pedia a Deus, todos os dias, o castigo e a morte de todos os libe- raes do mundo, d'esta seita maldita e diabólica, inimiga de Deus e dos reis. A mãe, o seu mentor jesuíta, os frades e padres, diziam-lhe 203 que esses malvados, nas suas lojas maçónicas, cavernas do inferno, cuspiam na imagem de Jesus Christo, e faziam outras irreverências á religião que detestavam, e que pediam a cabeça de todos os reis e príncipes da terra. Repetiam-lhe a cada instante a phrase do con- vencional. «Enforcar o ultimo rei na tripa do ultimo padre.» Ima- gine-se, portanto, o ódio que este príncipe estúpido e ignorante não votava a tudo quanto era liberalismo. Nas cortes estrangeiras não ouviu senão contar horrores da Revolução franceza. Os apostólicos e a aristocracia reaccionária deante d'elle não cessavam de gritar e de pedir vingança da morte affrontosa de Luiz XVI. É fácil imaginar a impressão que tudo isto fez na alma vingativa, perversa, sanguinária e violenta d'este digno filho de Carlota Joaquina. D. Miguel era, alem d'isso, fanático e supersticioso, como repre- sentante vivo d'esse antigo Portugal de D. João III e D. João V. Frequentava as egrejas e os conventos, onde era adorado ; ouvia missa todos os dias; coníessava-se a miúdo; cumpria á risca todos os preceitos da egreja; jejuava todos os dias prescriptos e orava com muita devoção. Quando sahia Xosso Pac na sua freguezia, era dos primeiros, de opa vermelha, a ir pegar no pallio. A procissão do Senhor dos Passos e do Corpo de Deus não faltava, ainda que estivesse mui doente. Era irmão de todos as ir- mandades. Em todas as festas de egreja e romarias lá apparecia elle mui devotamente. N'estas namorava e dançava com as saloias mais apetitosas. A noite orgia. E assim se condensara n'este celebre vulto da nossa historia contemporânea a imbecilidade e ignorância dos nossos morgados, o espirito brigão da velha nobreza, a superstição dos reis anterio- res ao marquez de Pombal, o génio violento e mandão dos capi- tães mores, o espirito feroz e sanguinário dos familiares do slviío ojficio e os vicios e brutalidades da plebe ignorante e fanática. Se fosse mandado fazer de encommenda não sahia mais per- feito. Era o homem preciso, para se restabelecer de novo em Por- tugal o puro absolutismo, e para se voltar ás antigas épocas do throno e do altar. 204 D. Miguel tocava no coração das classes fidalgas, do clero e da numerosa plebe dos conventos e das egrejas, faminta, cega, le- prosa e aleijada. Era o idolo dos cocheiros, toureiros e fadistas. Muito popular em Alfama, Mouraria e Alcântara, onde o celebra- vam em fados variados, ao som da guitarra e da voz avinhada. N'este príncipe celebre os paços reaes e da fidalguia boçal uniam-se fraternalmente aos paços episcopaes, aos conventos, ás praças dos touros, ás cavallariças, e ás tabernas da Mouraria. Era como o ponto de reunião de dois extremos oppostos, a alta e a baixa sociedade; adorado nas casas da velha aristocracia, de que era o retrato vivo, nas egrejas, conventos e sachristias, que bemdi- ziam a sua devoção, e nas tabernas e cavallariças, que lhe admira- vam os vicios, aventuras e deboches. Que mais queriam? Não eram essas as classes que tinham en- tão mais preponderância, depois que foi supplantado o partido liberal, defendido pela burguezia e a classe artistica e operaria? D. Miguel desembarcou em Belém no momento mais propicio; d'aqui o grande successo que obteve. Era o homem preciso para a victoria das classes a quem mais aproveitaram os dois annos do regimen cartista, que estrangulou a liberdade e todos os seus prin- cípios salutares. Chegara o homem desejado; restava pôr mãos á obra. A Ingla- terra não se opporia; a acciamação de D. Miguel acabava com as complicações graves em que ella se vira com a Áustria e a Hespa- nha; cessava a causa que a obrigou a enviar a Portugal a divisão de Cliton. A divisão do marqaez de Chaves podia entrar livremente; quem se opporia a isso? A proclamação do absolutismo livrava a Inglaterra dos seus compromissos com os constitucionaes ; por isso foi tão desejada por ella, senão mesmo promovida. Essa proclamação trazia a paz entre a Áustria, Hespanha e Portugal. E feita esta paz, a Inglaterra estava livre dos seus com- promissos e podia mandar retirar a divisão. Animado com isso, e até mesmo protegido pela esquadra e di- visão britannicas, D. Miguel pensou logo em preparar o advento do puro absolutismo. Elle principiou por nomear o ministério combi- 205 nado em Paris. O duque do Cadaval foi nomeado primeiro minis- tro; a pasta do reino e a da marinha foram confiadas a José An- tónio d'01iveira Leite de Barros, o futuro e celebre conde de Bastos, para a da justiça foi nomeado Furtado de Mendonça, para a dos estrangeiros o conde de Villa Real e para a da fazenda o conde da Lousã. O conde de Villa Real era conhecido pelas suas idéas constitu- cionaes moderadas ; por isso foi logo exonerado, e substituído pelo visconde de Santarém. D. Miguel passou a nomear novo conselho d'estado, só de gente sua, como o marquez de Borba da antiga regência de D. João VI, o bispo de Vizeu e o principal Freire. A intendência geral da policia foi confiada ao sabujo e servil José Barata Freire de Lima, sendo o corpo de policia consideravel- mente augmentado e seus postos dados a realistas sanhudos. Depois, D. Miguel lançou as suas vistas para o exercito, que se não commovera com a sua chegada, e se mostrara frio e reser- vado. O general Caula e todos os mais governadores das armas das províncias foram demittidos e substituídos por generaes partidários da rainha e dos apostólicos. Rodrigo Pinto Pizarro e outros officiaes constitucionaes passaram á disponabilidade; o barão de Quintella foi demittido do posto de coronel do regimento de cavallaria dos voluntários do commercio; este corpo foi em seguida dissolvido, por pertencer á classe média, creando-se em logar d'elle uma companhia de voluntários realistas para defesa do rei e do seu pa- lácio ! O visconde da Fonte Arcada foi demittido do commando do regimento de milícias de Lisboa occidental. finalmente, os com- mandantes de todos os corpos foram substituídos por officiaes rea- listas puros. A audácia chegou a ponto de se ter prohibido o hymno da carta nas marchas regimentaes, ordenando-se que se tocasse só o hymno portuguez! Isto estando ainda de pe o rei^imen da carta ! 206 No dia 1 8 de março, o ministro da guerra dirigiu uma circular contra os officiaes affectos ao constitucionalismo. Começa : «S. A. tem já provas do que os militares portuguezes são ca- pazes jt7^/í7 briosa resolução que tomaram em 1823, pa?-a o ajudarem a derrubar a facção que desgraçadamente então existia com designio de destruir a religião santa que professamos e o throno; e está con- vencido de que outras mais darão, sempre que se offereça occasião, e principalmente se Ímpios pretenderem, por qualquer modo, ata- car os dois referidos objectos, sempre caros aos portuguezes.» A circular recommenda aos generaes das provindas e comman- dantes dos corpos aquellas intenções benéficas do infante, declaran- do-lhes, porém, terminantemente que elle está resolvido a ser ine- xorável com todo o militar, cuja conducta se não conformar com ellas; isto é com o papel de bestas de carga, como o brioso exem- plo que em 1823 deram os officiaes que puxaram o coche do rei D. João VI, proclamando-o rei absoluto, ou rei nosso senhor. O ministro da justiça dirigiu também outra circular, mandando proceder contra os juizes que, no cumprimento dos seus deveres, quizeram obstar a que nas províncias os apostólicos Qfeotas atten- tassem contra a vida dos constitucionaes, e procederam contra os sicários. A circular chama a isto «procedimentos escandalosos con- tra differentes pessoas, sem algum motivo, senão o serem amigos da realeza e da pessoa de sua alteza, e o não adoptarem as opiniões liberaes exaltadas» ! Era para animar os bandos caceteiros e os membros dos clubs secretos dos apostólicos a auxiliarem em breve a proclamação do puro absolutismo. Por decreto de i3 de março, D. Miguel dissolveu a camará dos deputados, sem auctoridade e força moral no systema da carta. No mesmo dia promulgou outro decreto, dando por incompatível a convocação immediata de uma nova camará, como manda a carta constitucional, por ainda não haver lei eleitoral! Ao mesmo tempo nomeou uma commissão, para redigir uma nova lei eleitoral em harmonia com os antigos usos e costumes do reino ! As duas casas do parlamento acceitaram resignadas, e sem pro- 207 testo, o decreto da dissolução. A coroa podia c valia mais do que ellas. Compare-se este procecimento das camarás de 1826 a 1828 com o das camarás de 1823, que assignaram enérgico protesto con- tra os decretos de D. João VI, e não quizeram dar-se por disol- vidas. A dissolução das camarás foi recebida nos arraiaes realistas pu- ros com grandes festejos c viva alegria. Por uns poucos de dias repicaram os sinos das egrejas e con- ventos; houve chás em casa dos fidalgos outeiros e illuminações nos conventos, onde se celebraram Te-Dcuns e se pregaram ser- mões contra os liberaes e sua seita maldita e excommungada. De- ram-se muitos vivas a D. Miguel I, ao regimen absoluto e morras a D. Pedro, á carta e aos constitucionaes. Trabalhou de novo o cacete; muitas cabeças rachadas pelas ruas ao som do hvmno do rei chegou. Fora malhado, chucha judeu; Acabou-se a guerra, 1). Miguel venceu. «Cerra! Cerra! lá estão três malhados! Tomem seus patifes! E zás ! Ficavam estendidos no chão com as cabeças, os braços e as costellas partidas! E assim o reinado do rei nosso senhor, que vem fazer a ven- tura dos portuguezes. Não ha ventura possivel com liberaes, maçons c atheos. Dê-se- Ihes cabo do canastro. No convento de S. Bento, e na ultima noite de illuminação, os frades ergueram uma grande pilha de madeira; dcitaram-lhe foi^o, e lançaram para cima os bustos dos homens mais conhecidos pelas suas idéas liberaes. Em volta das chammas os frades em còro infer- nal gritavam apopleticos e enfurecidos; Morram os malhados! Mor- ram os maçons! Morram os pedreisos Uitcs illiiminados ! Morra a carta ! Morra D. Pedro e mais a p . . . que o pariu ! Terminado o auto de fc dos liberaes, lizeram o enterro Ja ^arta constitucional, representada n\im boné. o de palha; levantoií-se de- 208 pois medonha algazarra, similhante a um bando de feras enraive- cidas. Espalhou-se n^estes dias um impresso contra os inglezes «Morra ,o embaixador inglez protector dos pedreiros livres ! Viva D. Miguel I rei de Portugal ! Viva Silveira que ha de vir cortar as orelhas aos pedreiros livres e ao exercito inglez, se elle não fugir antes» I O marquez de Chaves surgiu com uma proclamação aos portu- guezes, pedindo-lhes que abraçassem o puro legitimismo e as ve- lhas instituições do reino. «A religião catholica apostólica, diz elle, é a herança de nossos maiores, a legitimidade e inauferíveis direi- tos do senhor D. Miguel I é a nossa divisa. A justiça e a gratidão atrozmente ultrajadas por esses demagogos, filhos dos tenebrosos clubs anti-philosophos, soberbos e insensatos, reclamam perante nós seus indestructivos direitos.» Diz que os revolucionários destruíram as velhas crenças e insti- tuições. E prosegue. «Eia, pois, ministro da verdade, antes que cheguem os últimos tempos da devastação, limpae o altar e santi- ficae o culto. Com a imagem do Redemptor na esquerda mão, e com a direita empunhando a espada, sede o antemural da religião; conduzi vós mesmos essa fiel porção de christãos velhos, e cortae a cabeça aos Ímpios Holofernes, não deixando com vida aos inimi- gos de Jesus Christo. tCaia por terra o ímpio e infame máçon; não viva em Portugal um só degenerado portuguez que não adore a Deus verdadeiro, e se opponha aos incontestáveis direitos da legitimidade. Sacerdotes! a causa é toda vossa, se confiaes na verdadeira religião que nos tendes ensinado. Correi pois ás armas, que o nosso Deus não ha de negar-nos a victoría. «Portuguezes de todas as classes! guerra eterna aos perversos atheus ; o ferro e o fogo acabem com todos os malhados sectários de Babel. Tríumphe o estandarte da religião e o da realeza e abso- luta, fidelíssima mcnarchía.» Em. todos os tempos foram assim os zelozos defensores do thro- no e do altar. Só a ferro e fogo souberam sustentar as suas doutri- ^^v ^ti 209 nas, e mosiraram-se sempre sanguinários, perversos e demago- gos. Depois de estar tudo assim preparado para a proclamação do absolutismo puro e do rei D. Miguel, os clubs apostólicos e aucto- ridades novamente nomeadas pelo regente, resolveram levantar o grito no dia 25 d'abril, anniversario natalício da excelsa j virtuosa rainha imperatriz viuva. Quizeram dar-lhe essa grata oíferta, e esse alegrão n'um tão fausto dia. Pelas 9 horas da manhã, o commandante da guarda da policia, encarregado de manter a ordem e as instituições, sahiu do seu quar- tel, acompanhado de um esquadrão de cavallaria da mesma guar- da ; dirigiu-se ao Terreiro do Paço, e parou defronte da casa da camará. Aqui já se achava muito povo, dos de Belém; á frente d'elles frades armados e os auctores da Abrilada. O commandante da policia tirou o chapéo, e brandindo a es- pada soltou vivas a D. Miguel I nosso seuJior e á imperatriz sua mãe. Mandou tirar espadas á escolta ; e esta repetiu os vivas. En- tão levantou-se tumulto enorme no meio da multidão de mendigos, cegos, aleijados e leprosos, de cocheiros, arrieiros, e fadistas, capi- taneados por frades. Todos repetiram os vivas soltados pelo corpo da policia; em seguida principiaram a gritar — Morra D. Pedro mais a p. . . que o pariu! Morram os liberaes! Morram os atheus e li- bertinos ! Morram os jacobinos ! ^Morram os maçons ! Uma explo- são de ódios e vinganças. O regimento i6, com bandeira e musica, veio juntar-se aos manifestantes que o acolheram com enthusiasmo. Um grupo correu ao Passeio publico, para trazer comsigo o pro- sidente da camará, que partiu immediatamente. Já encontrou reunido todo o senado de nomeação regia. Foi arvorado nas janellas da casa da camará o estandarte da cidade, no meio do grito soltado pelos vereadores «Real real! por D. -Mi- guel 1 rei de Portugal ! — Passaram depois a assignar o auto de accla- mação de D. Miguel 1, rei absoluto. O presidente fez substituir o auto por uma representação ao infante, pedindo-lhe tomasse a co- roa do reino; e abriu assignaturas. 210 Diz Sousa Monteiro. «Os cidadãos pacificos fugiam para suas casas ; a maior parte das lojas de commercio se fecharam, e dentro em pouco as ruas da cidade baixa estavam desertas; apenas um ou outro magote da mais iníima ralé e algumas patrulhas da policia circulavam por ahi, para obrigarem as pessoas que encontravam, qualquer que fosse a sua qualidade, a ir á camará assignar seu no- me; emissários foram mandados por toda a cidade, pedindo assi- gnaturas ; e levaram a impudência a conduzir as mais immundas prostitutas a virem também assignar o auto de acclamação. «Estes emissários, armados de cacete, espancavam quem quer que se recusava a acompanhal-os, tendo-lhe sido arbitrados 240 réis por dia, para andarem á caça d'assignaturas. Empregavam n'isto a maior deligencia e nos espancamentos a ferocidade que era de es- perar de tal gente. «Nos dias seguintes as auctoridades e os caceteiros procuraram alcançar novas assignaturas, uns continuando com violências, e ou- tros fazendo conhecer nas secretarias doestado e nas repartições publicas a sorte que era reservada aos que a isso se recusassem. No dia 3o foram pregados nas ruas da cidade e publicados na Ga- veta de Lisboa (jornal do governo) convites poi' ordem superior ás pessoas que quizessem assignar as representações do senado da camará. Os presidentes dos tribunaes foram insinuados a fazer assignar pelos seus subordinados idênticas representações, e a nobreza titu- lar também fez a sua em casa do duque de Alafões, a qual foram contrangidos a assignar muitos fidalgos que por factos posteriores mostraram que fora a coacção que a isso os levou.» Cacete debaixo do braço e o papel das assignaturas na mão, os bandos caceteiros corriam fadigosos por todas as ruas e lojas da cidade cantando: Fora malhado, Chucha judeu, Acabou-se a guerra D Miguel venceu. 211 Assigne; é para se acclamar o senhor D. Miguel I. Com os cacetes suspensos sobre a cabeça tudo assignou. Nem policia e nem tropas intervieram ! Isto era só para os tu- multos de julho ultimo, e para o povo em defesa dos seus direitos postergados! Os anarchistas, desordeiros, sicários, ou assassinos, ti- nham liberdade plena para a defesa dos direitos do throno. A de- sordem, o tumulto, e as agressões aos cidadãos pacíficos, não eram crimes hediondos que merecessem repressão. «Deixem desabafar o povo» dizia Paulo Cordeiro, ao andar pelas ruas de Lisboa distri- buindo o dinheiro aos sicários e agentes do rei nosso senhor. «Toma um pinto; merecestel-o bem. Conseguiste muitas assignaturas e ra- chaste um bom par de cabeças d'esses malhados. Bravo Verís- simo ! Es um fiel súbdito de el-rei nosso senhor. » «Tudo assignou, diz o sr. Oliveira Martins, tudo assignou. O enthusiasmo e o medo, a estupidez e a innocencia, a venalidade e o ódio, acclamaram D. Miguel. Assignaram homens e mulheres, fra- des, e gallegos, mendigos e prostitutas.» E era esse o ar puro em que, no dizer do mesmo auctor incon- sequente, nascia a nova geração! O governo deu ordem para que nas províncias se acclamasse D. Miguel pelo mesmo modo. Elie dirigiu n'esse sentido circulares acompanhadas das seguin- tes instrucções: « I .° Que as camarás deviam supplicar ao infante que, attendendo ao poío geral da nação^ e aos interesses do povo, se dignasse decla- rar-se legitimo rei d'estes reinos e seu natural successor; não só porque segundo as leis fundamentaes da monarchia residia na sua real pessoa o direito da legitimidade, mas também por ser este o voto geral dos povos .^ 2." que pedissem a abolição das novas insti- tuições, por serem contrarias aos foros da nação, destructivas do seu futuro primordial, e filhas da facção democrática que em 1820 usurpou a soberania. » Os governadores expediram ás mesmas camarás municipaes circulares, fazendo-lhes conhecer as intenções do governo. «Sabendo, diz o ministro do reino, com certeza que algumas ca- 212 maras do reino teem dirigido a S. A. R. o senhor D. Miguel, uma representação, ou solicitação, em que pedem a S. A. se acclame rei, e cujos princípios são os que vão transcriptos no papel incluso, apres- so-me a prevenir de quanto fica dito á camará de . . . pois que estou bem certo que gostosa não perderá um momento a que as suas idéas e sentimentos realistas, bem como toda a povoação inteira se inclina, e que absolutamente concorrerá para a felicidade da nação na entrega a S. A. R. o senhor D. Miguel, de seus inauferí- veis, direitos á coroa d'estes reinos.» O desembargador da relação do Porto, encarregado da poli- licia, em 29 d'abril, mandou afixar um edital pedindo, «em nome do excelso principe que adoramos», diz elle, as mesmas representações/ E accrescenta: «E qual será o portuguez digno d'este glorioso nome que deixe de annuir ao que fica recommendado, sendo o amor e fi- delidade a seus monarchas a mais preciosa herança que vos trans- mittiram vossos antepassados? Assim o espero e ordeno no sagrado nome do excelso principe que preside aos destinos dosportuguezes.» Quem se atreveria a recusar a assignatura? Em vista d'estas ordens, os bandos caceteiros pozeram-se em campo, para colherem assignaturas e racharem a cabeça a quem manifestasse a mais leve repugnância, ou duvida. — Assigne seu malhado! Você é malhado?. . . Ora tome. . . E assignava depois para lhe pouparem a vida. Repetiram-se em todas as provindas as mesmas scenas e vio- lências, que em Lisboa. D. Miguel foi acclamado pela aristocracia e o clero, pela ralé e pelos caceteiros, assalariados para colherem assignaturas e parti- rem as cabeças a quem a isso se recusasse. Em presença d'essas representações que de todas as terras do reino foram enviadas a D. Miguel, e em presença também dos vo- tos ardentes de todos os portuguezes, cujo amor e fidelidade ao rei foi a mais preciosa herança que lhes transmittiram seus antepassa- dos, D. Miguel, em 3 de maio, mandou convocar os três estados do reino. Diz o decreto que é para reconhecerem certos pontos graves do direito portuguez. 213 Nas cartas convocatórias recommenda-se ás municipalidades que elejam pessoas que pelas suas qualidades e procedimentos quei- ram somente o serviço de Deus e do throno^ havendo o maior cui- dado em que se são receba voto algum em pessoa que não mereça conceito, conforme as disposições reaes, isto é em pessoa que não seja fiel e bem segura. Em 17 de maio, o intendente geral da policia mandou abrir devassa geral em todo o reino. Diz elle: «Podendo acontecer que, por occasião das eleições dos procuradores convocados a cortes dos três estados do reino, em conformidade do decreto de 3 do corrente mez de maio, e instrucções que com as cartas convocatórias lhes foram dirigidas, pessoas mal intencionadas, facciosas e inimigas das instituições e leis fundamentaes da monarchia, premeditem subor- nar os eleitores, para obterem votos, com o particular fim de per- turbar e transtornar o importante objecto de similhante convocação dos três estados, cumpre que vossa mercê, em observância da lei, proceda immediatamente á devassa de suborno por occasião de taes e outras eleições que a mesma lei tem decretado.» Qualifica de subornados os votos que recahirem em individuos que, por seus sentimentos e opiniões politicas, se tenham pronun- ciado inimigos dos verdadeiros principios da legitimidade e sectários das novas instituições, aos quaes dá o nome de facciosos, e por isso não podem constituir a verdadeira representação nacional! Ordena que a devassa ande a par e passo com as eleições, de maneira que, findas estas, se encerre, e com a pronuncia se re- metta á intendência geral. O que tudo recommenda muito debaixo da mais stricta responsabilidade. Os realistas puros usaram dos mesmos processos eleitoraes dos puros realistas constitucionaes, ou conservadores. As eleições fize- ram-sc a cacete e em pleno domínio da força e do terror. Aquellcs ao menos proclamaram franca e abertamente o que os constitucio- naes conservadores, ou chamados moderados, proclamaram com mil rodeios e sophismas. As eleições para a reunião dos três estados pouco dilferem das que foram feitas em 1S26 c em todos os periodos dos regimens 214 conservadores, tanto em França como na Hespanha e em Portu- gal, nos quaes os governos empregaram todas as diligencias para fazerem vingar as chamadas candidaturas officiaes. D. Miguel fez eleições á Villelle, á Peyronnet, á Guizot e á Costa Cabral. Traba- lhou o cacete, para que os votos recahissem só nos puros, isto é nos defensores dos verdadeiros princípios da legitimidade, que só tivessem em vista o serviço de Deus e do throno. D. Miguel mandou annullar as eleições de alguns procuradores que declararam não estarem dispostos a reconhecer os seus actos e a sua usurpação, e ordenou ás municipalidade* procedessem a no- vas eleições, que não se realisaram. Aquelles procuradores foram para o livro negro. Depois de alguma^ conferencias, em que se combinou o que as cortes deviam resolver, foram estas convocadas para a assemblea geral, no dia 23 de junho ás três horas da tarde, na sala principal do palácio d'Ajuda. Ás quatro horas appareceu o infante com todo apparato ^ um rei, e trajando á antiga portugueza. Vinha soberbo e todo cheio de si. A alegria brilhava-lhe nos olhos. Fallou o bispo de Vizeu, na qualidad(í de procurador do rei. Disse que uma P0{ unanime soou em todo o reino, e que todos teem encaminhado ao augusto príncipe os mais ardentes e sinceros votos, para que se apresse a subir ao throno dos seus maiores, e a pôr, por este modo, termo á fluctuação e incerteza do supremo go- verno. O príncipe não podia desattender ás representações de tan- tos cidadãos. Era preciso saber quem tinha direito ao throno de Portugal. Os três estados da nobreza, clero e povo, vão decidir a questão, para a qual o regente os convocou. Abriu a sessão. Respondeu Acúrcio das Neves n'um longo e extenso discurso. Começa: «Sereníssimo Senhor! Depois de tão longas pregrina- ções, e per entre tantos perigos e trabalhos, a mão do Omnipotente conduziu a V. A. R. desde as margens do Danúbio ás do Tejo, para salvar o seu povo. Este fiel povo agitado, opprimido, e cons- ternado pelos partidos, pelas revoluções e por todo o género de angustias, suspirava com tanta anciedade pelo Libertador que ha- 215 via de pôr termo ás suas calamidades, como em outro tempo o Is- rael durante o captiveiro da Babylonia. Depois de Deus todas as nossas esperanças se fixaram em V. A. R; e não era em vão; por- que com V. A. á nossa frente, temos começado uma era mais di- tosa. «Aquella hydra que ha •> annos V. A. R. esmagou em Santarém tem sido a origem de todas as nossas desgraças. V. A. R. pisou-ihe a cabeça com um heroismo que immortalisou seu nome, porem ella, sendo de uma vida tão tenaz, como pintam a hydra da Fa- bula, e ainda mais perigosa, por seus ardis, comprimiu-se; humi- Ihou-se; fez-se morta; e, passados instantes, levantou de novo o collo ; tomou diversa figura; empregou novos agentes, e os seus pri- meiros tiros dirigiram-se contra aquelle que a tinha esmagado. » E diz que nem outra coisa se podia esperar, porque o mons- tro ficou com vida, e preparou a D. Miguel penosas fadigas. Diz mais, que os portuguezes muito soffreram durante a ausência d'elle. Emfim estão agora satisfeitos. Afíirma que ninguém pode atrever-se a contestar os direitos de D. Miguel, e que a Europa reconhece o perigo de se deixar de novo atear o incêndio da Revolução, e por isso não deixará de applaudir a resolução que aquelle tomou de arrogar a si o sceptro portuguez sobre as ruinas da mesma Revolução. Diz que ha rebeldes que também proclamam a legitimidade; mas é umajalsa legitimidade fundada em sophismas. Passa depois a demonstrar os direitos de D. Miguel. E termina «Firme-se V. A. R. n'esse throno excelso, e faça feliz a nação que adora. Generose princeps sic itur ad astra.» Depois d'este discurso o príncipe retircu-se, determinando que no dia 25 se reunisse cada um dos três estados em local separado; o clero na egreja de Santo António da sé; a nobreza na egreja de S. Roque e o povo em S. Francisco. Reuniram-se a portas fechadas e deliberaram em segredo! Pro cesso da legitimidade e do absolutismo puro. «... tudo, diz Sousa Monteiro, se passou como entre homens aterrados com a prespectiva do cadafalso, dos confiscos, dos des- 216 terros, ou de uma longa e penosa prisão. Foi tal a liberdade, que, quando uma commissão, nomeada d'entre cada um dos estados, apresentou a todos reunidos em uma só casa o assento já redigido, um dos membros, pedindo segunda leitura d'este, foi tumultuaria- mente increpado, o pedido despresado, e todos os membros obri- gados a assignar um papel que não tinham visto, que quasi igno- ravam.» Tal a maneira como D. Miguel foi acclamado rei absoluto, e reconhecido legitimo herdeiro da coroa portugueza! A acclamação de D. Miguel realisou-se em todo o paiz no meio de mortandades, violências, vexames e perseguições de toda a espécie. Na Historia do captiveiro dos presos do estado na torre de S. Ju- lião, João Baptista da Silva Lopes deixa-nos conhecer o que se pas- sou com elle na cidade de Lagos, quando chegou a ella a noticia da acclamação do rei nosso senhor. O povo e as tropas espalharam- se aos magotes pelas ruas da cidade no meio de gritos e alaridos. Pela volta das lo horas da noite do dia 24 de maio, as portas da residência d'aquella victima da liberdade foram subitamente ar- rombadas. Diz elle que, para enxugar as lagrimas da familia deso- lada, apresentou-se a dois soldados armados que tinham entrado com um paysano. A voz de preso, procurou consolar a triste mãe, a esposa aíflita e os filhos em lagrimas. Sahiu, encontrando as ruas cheias de povo armado. Foi mettido entre os soldados e conduzido a casa do official da guarda princi- pal, onde o metteram com sentinella á vista. O governador das armas, longe de atalhar aos distúrbios que os anarchistas toda a noite praticaram, prendendo, e assaltando as casas que lhes eram apontadas, animou-os com a sua própria pre- sença, e a de um capitão Ludovico, que arrogou a si o commando dos soldados. Na manhã do dia 2 5, o preso foi conduzido á cadeia com mais dois infelizes, que estiveram com elle nfl casa da guarda. Alli en- controu muitas pessoas presas, cujos nomes cita; e o numero ainda augmentou no dia seguinte. 217 Passavam de noite pela cadeia magotes de gente de baixa con- dição cantando o Rei chegou, com todas as suas estrophes e varia- ções obscenas, e gritando: Morramos malhados! Fora os pedreiros livres ! «Acordámos, diz elle, no dia 28, ao som d'estes mais repetidos e altos alaridos; mandámos o carcereiro indagar a causa d'esia novidade ; e veiu, mui carregado de rosto, dizer-nos que o batalhão ia a marchar, e alguns soldados gritavam que, antes da marcha, deviam matar os presos, para que na sua ausência não arrombas- sem a prisão, e assassinariam suas familias. Não era agradável esta nova, e muito menos ouvindo approximar-se a vozearia. Entanto que nos dispúnhamos para o que desse e viesse, sobe um tambor e manda ao carcereiro que nos metta na enxovia. Teve o carcereiro de obedecer ao denominado mandatário do povo. E nós descemos á enxovia, casa immunda, ao rez da rua, com uma janella para ella, da qual á pedrada podiamos, a salvo da canalha, ser assassinados. Apinhou-se logo a ella muita d'esta ralé, mas a sentinella, que da bocca do alçapão desceu á rua, a arredou á coronhada, e tomando logar junto á mesma janella, não permittiu que ninguém se approxi- masse. Voltando para dentro, ao vêr a casa, disse: «Com effeito isto não é casa para homens. Se os senhores querem, eu mando dizer ao governador que os mande d'aqui para prisões decentes.» Agradecemos a boa disposição do soldado, cujo nome bem sinto não poder aqui consignar.» Ouviram depois tocar a reunir, correrem soldados armados para baixo e para cima, e paisanos armados de piques, gritando — Mor- ram os presos ! Vamos matar os presos ! Não hão de cá ficar ! Durou isto toda a manhã. Veiu um soldado a correr ; lançou-se uma escada, e foram mandados subir. Que anciedade! Subiram para se entregarem ao furor dos agentes do throno e do altar. Iam resignados com a sua sorte. O auctor d'esta narração commovente toi o ultimo que sahiu. N'este momento, chegou um mandatário do povo; mandou descer, e içar a escada. As victimas ficaram mais tranquilias. Ouviu-se o toque do tambor que se approximava. mais c mais. Os presos avis- 2s 218 taram uma patrulha de i6 a 20 milicianos commandada por um oíiicial, que parou defronte da cadeia. Novos sustos e momentos de agonia. Os prezos foram novamente mandados sahir. Mettidos 4 entre a escolta conduziram-n'os á fortaleza da Bandeira. A escolta voltou a buscar os outros. Foram todos mandados para Faro e d'aqui para Tavira. No dia 1 5 de junho, chegaram a Almancil. Metteram-n'os n'uma casa em segredo. Junto a ella ouviram algumas mulheres e rapazes ex- clamarem — Coitados ! Despertou-lhes a curiosidade, e então sou- beram que foram detidos para socegar o povo, que os queria ir matar ao caminho, como acontecera, dias antes, a outros presos que vieram de Olhão. «Não era agradável, diz o auctor, esta nova, mormente sabendo que a canalha era dirigida por certos ecclesiasticos façanhudos e al- guns seculares do mesmo jaez, que na sua desenfreada sanha ainda não se haviam saciado no sangue das victimas, Chateauneuf e o italiano Domingos que ao seu Moloc sacrificaram.» E assim que se perde a liberdade. Saldanha, instigado pelos liberaes, ainda tentou resistir e levan- tar o exercito em defeza das instituições e da carta. Teve uma en- trevista com o general Cliton, para saber se podia contar com o apoio da sua divisão. A resposta foi que protegeria a pessoa do infante contra qualquer tentativa á sua pessoa, fosse qual fosse o partido que a ousasse! Que perfídia ! A usurpação de D. Miguel, todos os seus attentados, todas as suas violências e todos os tumultos, mortes e espancamentos, tive- ram logar sob a protecção da bandeira, da esquadra e das tropas britannicas ! Para se opporem a tudo isso não tinham ordens, nem instruc- ções do seu governo, que lhes ordenou não se intromettessem na politica interna do paiz ; mas para obstarem a que os liberaes se defendessem e defendessem as instituições dadas e juradas por intervenção d'essa nação pérfida, tinham ordens e instrucções, e podiam intervir em nossa politica interna ! Já não vieram só para 219 conter o exercito hespanhol e obstar a que elle invadisse o nosso paiz em auxilio dos miguelistas ! Interviriam em nossa politica, somente quando os liberaes exal- tados, de accordo com os malditos vintistas^ tentassem levantar-se ! Era só contra estes que os cartistas conservadores pediram o auxi- lio da divisão ingleza ! É certo que o exercito portuguez era na sua maioria liberal. E se não íôsse aquella declaração terminante do general britannico, D. iMiguel não teria levado por diante a sua obra de exterminio. Saldanha teria triumphado, e a usurpação não se consummaria. Devemos á Inglaterra mais esta calamidade. E vejam os nossos leitores como o regimen do throno e do altar, chamado o governo da ordem, da paz e da tranquillidade, surge no meio da desordem mais desenfreada, no meio da anarchia, das violências, dos tumultos, das sedições, do pouco respeito pela vida e propriedade do semelhante, pelas leis, pelos juramentos prestados e pelas instituições vigentes, no meio da demagogia mais exaltada e dos processos jacobinicos mais violentos, finalmente, por entre scenas de sangue e de terror! E eram os miguelistas, os apostólicos e feofas, os que mais cla- mavam contra os imaginários excessos da Revolução de 20, que foi o mais cordata, ordeira, generosa e pacifica nos seus processos de governar! São assim todos os ordeiróes. A 3 de julho, D. Miguel investe com todos os liberaes, man- dando-os prender e sequestrar-lhes todos os bens, por causa das suas idéas oífensivas á religião e aos thronos, e origem de todos os transtornos sociaes. Os alimentos devidos aos presos foram consi- derados invalidados e as suas mulheres perderam as suas meações. Foi egualmente prohibido recolhel-os em casa, e dar-lhes azylo. Desgraçado de quem tal fizesse e fosse descoberto pelos espiões, de novo espalhados por todo o paiz. D. Miguel dissolveu todos os batalhões voluntários constitucio- naes, e a i de setembro organisou os corpos voluntários realistas em todas as terras do reino, sob o commando do duque de Cada- val. Estes voluntários tinham o direito de prender, a seu arbítrio, 220 quem quer que lhes parecesse suspeito. E como não apparecessem voluntários sufficientes, as auctoridades passaram a prender este e aquelle para os obrigarem a alistar-se nos taes batalhões. E assim se constituiu grande parte dos batalhões chamados voluntários rea- listas 1 D. Miguel demittiu todas as auctoridades ecclesiasticas affectas ao constitucionalismo, e substituiu-as por clérigos fanáticos, depra- vados e com instinctos de inquisidores. CAPITULO II O TERROR BRANCO Os planos da conspiração da Rua Formosa, da Villafrancaia e da Abri'ala teem sua execução. — O regimen absoluto é novamente justificado com o sentimento religioso. — .\ restauração do absolutismo surge com todas as anteriores medidas de rigor e de perseguição contra as doutrinas da Revolução franccza. — A im- prensa é posta ao serviço do ensino e da propaganda religiosa, e da obra do terror branco.— José Agostinho de Macedo.— i4 Besta «/"o/tiJtí.— Campanha do cacete descripta por este jornal. -Linguagem da imprensa absolutista ante as tentativas de revolução feitas pelos liberaes perseguidos.— A imprensa convertida em de- nunciante, espia e instrumento das perseguições e da acção da justiça contra os liberaes. — /! Facção e a Contemplação, por Faustino José da Madre Deus.— O terror branco pregado no púlpito, soprado no confis- sionario e promovido nas sachristias.— O jacobinismo nas egrejas.— A demagogia nas ruas. —Espancamentos e mortes por occasião da queda de D. .Miguel, quando D. Maria 11 chegou á Europa, quando D. Pedro des- embarcou na Terceira, e quando chegou ao Tejo a esquadra franceza.- Massacres em Villa Viçosa e Extre- mo2. — Telles Jordão. — Supplicios, castigos, torturas, vinganças e crueldades praticadas com os presos po- líticos na torre de S. Julião e no Limoeiro — .\s .-UcaJas e devassas.— Execução dos estudantes de Coimbra. A revolução no Porto. — .V conspiração cm iSay do brigadeiro Moreira. — Sentença e execução dos implica- dos na revolta.— Execução dos implicados na revolta do Porto. — Nova tentativa revolucionaria em Lisboa no anno de i83i. — São executadas no Cães do Sodré mais 7 victimas— .\s Alçadas permanentes.— tio mesmo anno tem logar a revolta do regimento de infanteria n." 4. — São fuziladis iS praças no dia 10 de se- tembro e 21 no dia x^.- A revolução triumpha apesar d'isso. e devido mesmo a essas execuções e violências. Chegou, finalmente, a época tão desejada; a Senhora da Rocha fez o milagre; ouviu os santos rogos de Carlota Joaquina, a des- terrada do Ramalhão, e do devoto filho D. Miguel, o desterrado de Vienna. Dois martyres do liberalismo, dos malvados maçons e pe- dreiros livres, excommungados e atheus. Realisaram-se, emfim, os votos da excelsa Carlota e do anjo Miguel. Vão a pôr-se em santa e devota pratica os planos de ex- termínio concebidos na conspiração da rua Formosa, em Villa Franca e Santarém, nos paços de Salvaterra e na Abrilada. O de- mónio levou d'esta para outra vida o imbecil D. João VI, que se oppoz a esses planos a bem do throno e do altar. Agora todos os liberaes vão ter o merecido castigo de todos os seus crimes atro- zes contra os legítimos direitos do throno e contra a santa religião, que otfenderam com suas doutrinas. A propaganda que os apostólicos c /cotas íizeram depois da 222 Villafrancada vae produzir seus fructos benéficos, graças á virtuosa rainha, a quem os padres deram o nome de Nossa Senhora e graças ao enviado celeste^ a quem equipararam a Jesus Christo! Alterando as palavras da Biblia — O Senhor fundou seu impé- rio sobre o lenho sagrado da cruz — diziam os padres, apostólicos efeotas — O anjo Miguel formará seu reinado com o santo cacete. Por espaço de 5 annos encheram-se de fel e peçonha os cora- ções vingativos da perversa Carlota Joaquina e do filho, seu retrato vivo. E agora o momento de estes ajustarem as contas com os amigos e partidários de D. João VI, que os desterrou e humilhou, e bem assim com os liberaes que fizeram a sempre maldita Revolução de 1820, o mais horrendo attentado que se cometteu contra o throno e o altar. A desforra deve ser cruel e implacável. Vamos á obra da santa expurgação. Proclamado o absolutismo, fez-se alta diligencia para o susten- tar e manter com o sentimento religioso. Todos os meios se empre- garam, para fazer reviver nos portuguezeso antigo zelo pela religião, e para resuscitar o Portugal de D. João III e D. João V. Foi este o principal cuidado dos absolutistas puros. Estes quizeram suífocar com os dogmas e preceitos da religião o sentimento da liberdade, provocado pelas doutrinas da Revolução franceza. A Trombeta flnal^ em o n.° 6, faz um appello enérgico aos sacerdotes, para levantarem o sentimento religioso, abatido pelas doutrinas novas dos rebeldes e atheus. «A quem pertence, diz aquelle órgão dos realistas puros, expli- car e prover a necessidade, a verdade e a divindade d'esta religião? aos sacerdotes. A quem incumbe defender, atacar e destruir os so- phismas, insultos, desacatos e sacrilégios, com que a impiedade, a heresia, a libertinagem e outros falsos principios, pretendem dimi- nuir, enfraquecer e entibiar a veneração dos santos dogmas e a pu- resa da disciplina e da moral d'esta nossa religião? aos sacerdotes.» E, referindo-se aos sacerdotes da moda^ accrescenta : «Leiam esses pregadores e aprendam, para imitar, a força e a vehemencia com que Santo Anastácio defendia a religião contra os 223 ataques do arianismo, a eloquência e a penetração de S. Agostinho contra os manicheos e pelagianos.» E termina: «Sois pregadores da religião de Jesus Christo; pre- gae essa religião; atacae e debellae seus inimigos.» Já vimos que este mesmo jornal defende a Inquisição, como justa, legitima e necessária para se conseguir aquelle fim. Os direitos do throno não se podem firmar sem uma solida e bem solida, educação religiosa ; o absolutismo de D. Miguel, como o anterior á Revolução de 20, viu n'aquella educação o seu esteio mais seguro. Depois da conspiração de 18 17, o governo ordenou aos bispos e ao clero toda a vigilância e zelo pelo esquecido ensino e educa- ção religiosa, e que fossem observados á risca todos os preceitos e mandamentos da egreja. E taes foram também os primeiros cuida- dos do mesmo absolutismo, restaurado com o reinado de D. Mi- guel. «Triumphe, diz o marquez de Chaves na sua proclamação, o estandarte da religião e da realeza absoluta; guerra eterna aos perversos atheus. O ferro e o fogo acabem com todos os malvados sectários da torre de Babel.» Tal o grito d'aquelle chefe dos apostólicos^ feotas e absolutistas puros. O reinado de D. Miguel foi o retrocesso de Portugal para as épocas anteriores a 20. A restauração do puro absolutismo surgiu com todas as anteriores medidas de rigor contra as doutrinas da Revolução franceza, e contra as tentativas feitas em nosso paiz pe- los liberaes e a maçonaria no sentido do progresso. Os miguelistas e apostólicos quizeram anniquilar completamente os eíTeitos da Revo- lução de 20. despertada com a outorga da carta por D. Pedro. Tentaram passar uma esponja por cima das duas épocas do jo c da carta constitunional, para extinguirem para sempre essas duas paginas da nossa historia. E para alcançarem isso, quizeram anni- quilar a ferro e fogo todas as modernas gerações, de modo que não escapasse nem um só liberal. Esses que andaram outr ora por toda a Europa levantando os 224 espíritos contra a republica franceza, que, em defeza própria, lan- çou mão das violências; esses que não cessavam de accusar os pa- cificos e generosos revolucionários de 20 de perversos, facciosos, jacobinos, devastadores, e de outras coisas feias, inauguram pela primeira vez em Portugal 6 verdadeiro regimen do terror ! Excedendo os demagogos francezes, e mostrando-se rancorosos, perversos, vingativos e sanguinários, fazem recuar Portugal ás an- tigas épocas das fogueiras, dos jesuitas e dos cárceres! A Imprensa. — Os absolutistas puros não quizeram imprensa para os liberaes. Foram prohibidos todos os jornaes e publicações que advogas- sem as doutrinas modernas da Revolução. Desgraçado mesmo de quem a tal se atrevesse. Antes que o carrasco se apoderasse d'elle, os caceteiros davam-lhe cabo da pelle. Só foram consentidos os jornaes puros, os que advogavam D. Miguel e o systema do cacete, da forca e dos cárceres, ou a pura legitimidade. Emquanto aos liberaes era prohibida toda a propaganda das suas doutrinas, e toda a defesa, eram, todos os dias, insultados e aggredidos na imprensa realista! O absolutismo estabeleceu um direito para os seus e outro para os liberaes. Só áquelles era per- mittido ler, pensar e escrever livremente. Deixar plena liberdade de acção aos amigos e partidários e recolher ao silencio absoluto os contrários, tal foi a doutrina do absolutismo puro! Já vimos que, mesmo á chegada do infante D. Miguel, a Trom- beta final pediu a suppressão de todos os jornaes do partido libe- ral, e condemnou para este somente a liberdade de imprensa. D. Mi- guel fez-lhe a vontade. A liberdade era só para os puros defenso- res do throno. O governo absoluto quiz aproveitar-se da imprensa, para fazer propaganda a favor do throno e do altar, e para com ella destruir nos povos as doutrinas modernas. Era preciso fortificar nas con- sciências o regimen do terror, e excital-as contra os liberaes que se ia exterminar por todos os meios. 225 Nada ha mais vil, mais abjecto e repugnante, do que a impren- sa d'esta época. Tudo quanto havia de máu, de instinctos ferozes, de ódios e rancores, se reuniu em volta do throno e do ahar, emquanto em 20 reuniu-se em volta da pátria e da liberdade o que no paiz havia de mais nobre em sentimentos, de virtudes civicas e dedicações. Todos os homens perdidos na opinião publica, cheios de vicios e de crimes, se acoitaram na imprensa defensora do absolutismo puro. N'esta sobresae e torna-se saliente o celebre frei José Agosti- nho de Macedo. Teve três processos no convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa por crimes de roubos e de aposthasia. Fugia de noite do convento, vestido á secular, e vinha para as tabernas e bor- deis, onde se entregava a todo o género de deboches. Uma vez foi preso pela policia e mettido no segredo do castello de S. Jorge; ou- tra vez foi preso pela mesma policia e levado para o Limoeiro. Sendo conduzido do Castello para os cárceres do convento, conseguiu fugir com grande escândalo de todo o bairro e do con- vento. Foi este o fundador da Besta esfolada^ jornal destinado a defen- der todos os actos do governo miguelino e a animar as persegui- ções politicas e o terror. Logo no primeiro numero, o frade devasso investe contra a Re- volução de 20 e a carta constitucional. Em o n.*' 3 diz o seguinte «O lim do império da besta é o tran- storno universal de todas as ordens sociaes, ou no estado civil, ou no estado religioso, persuadindo-se a besta que d'esta confusão, ou d'este cahos, pode tirar um novo e mais perfeito mundo moral, mas a seu modo. Se por um possivcl a religião fosse obra de astú- cia e politica humana, assim mesmo seria considerada por mim o maior beneficio que se podia ter feito á espécie humana ; porque sendo a única religião moral e fundada sobre a idca de um Deus providentissimo e justíssimo, rumenerador da virtude e castigador do crime, e sobre a espiritualidade e immortalidade das almas, com suas promessas e com suas ameaças liga a vontade d() homem c determina as suas acções externas, e até seus mais escondidos sen- 2'.' 226 timentos, emquanto acredita que um Deus remunerador está pre- sente aos recônditos actos de sua consciência ; a mesma religião ensina os homens a respeitar nos monarchas da terra a imagem do mesmo Deus e depositário do seu poder ^ e a viverem sujeitos ás au- ctoridades superiores. «A mesma religião lhes ensina que ha três coisas essenciaes na composição da sociedade : a primeira o poder, a segunda o minis- tro, e a terceira o sujeito, sobre quem pelo ministro se exercita o poder. «Sem isto não ha sociedade boa. Quando a consciência liga os homens, quando a esperança de um premio e o terror de um cas- tigo futuro os determina a fugir do mal e a fazer o bem, a ordem se mantém na sociedade, e não se perturba a harmonia civil e poli- tica das humanas instituições. E tudo isto só é e só pode ser obra da religião divina e revelada aos homens. y^ Diz que a besta, apesar de ser besta, reconhece muito bem to- dos aquelles princípios, e que não é coisa de cacaracá transtornar e subverter os povos que se conservam firmes n'elles, e que, pelas lu- zes do século e pelos progressos de civilisação, não podem ser con- duzidos á regeneração. Mas a grande besta, diz o frade, quer apa- gar n'elles a idéa da religião de Jesus Christo, a quem vota ódio eterno, jurando, todos os dias, em todas as noites, sobre uma trolha, onde põe ambas as patas, o seu total exterminio. Eis a profissão de fê do jornal do throno e do altar, ou do puro absolutismo. E como o homem não procede bem, senão com o terror de um justo castigo futuro ; como a besta, ou o liberal, pretende transtor- nar e subverter a ordem em que Deus assentou as sociedade hu- manas ; e como o rei é a imagem de Deus na terra e depositário do seu poder, o mesmo jornal propõe-se defender o castigo e extermi- nio da mesma besta, rebelde a Deus e ao rei. Diz o n." 16 d'este órgão do throno e do altar: «Trabalhar o cacete, desancar o bordão, descarregar o arrocho, são axiomas eter- nos e invariáveis regras da justiça., quando se trata de amansar, ou de tirar manhas ás bestas, quando se pegam, quando se deitam, quando atiram, quando mordem, quando se desviam do caminho, 227 quando se meltem n*um atoleiro e dão comsigo e com a carga em algum barranco. Cacete, bordão, arrocho, conforme os princípios de veterinária (medicina) são os específicos applicaveis e profícuos. Torna aqui besta, e chó besta, isso não faz nada, é perder tempo. E com bestas não ha contemplações; pcrde-se a obra; pcrde-se o trabalho, se o páu não trabalha e não trabalhou deveras. «Hoje 24 de maio, aqui mesmo n'esta casa, me vi rodeado, se- gundo o costume, de respeitáveis corcimdas e n'elles nem os signaes desmentem as obras, nem as obras os signaes ; tinham o venerável rosto mais alegre que de ordinário trazem ; porque as coisas nem sempre podem correr como elles querem; e elles só querem o que é de raião e de justiça. Eu me espantei e lhes disse: Vossas mercês viram algum passarinho novo? O que nós vimos de novo, me res- ponderam elles, já deve ser muito velho; vimos e ouvimos muita pancada; e não eram de enxotar moscas; eram de crear bichos. Pois senhores, se ellas foram bem merecidas, então foram bem as- sentadas; e nunca as mãos doam a quem as assentou.» O mesmo jornal realista puro encarrega-se de nos descrever uma das scenas do cacete. Foi por occasião da chegada á Europa da rainha D. Maria II O jornal cita o verso de Camões. • Deu signal a trombeta castelhana, E a taes patifes tocou-se a pavana.» O frade põe de sua casa o verso seguinte Abatem armas, fere a terra foi;o; Sfifi vicvorados os patifes logo. E passa depois a descrever a campanha Jo cacete aposlolico. Diz que parece que os caceies vieram por seu pe da matla de S. Gião a depositar-se nas mãos seguras dos corciniJas. Não sabe quem commandou a acção, nem Claudino, nem Pego, nem Rego, 228 per lá andaram; nem os corcundas largaram as moxilas das costas, que isso não podem, porque são de nascença. São de poucas falias, mas de excellentes acções. «... o exercito liberal, atacado geralmente, e em toda a parte, onde os batalhões appareciam, como mais fallador preparava-se para o grito da victoria com estes sustenidos e bemoes — ai minha cabeça ! ai minhas costas ! ai meus braços ! ai minha cara! que bo- fetada tão grande! Aqui-d'el-rei ! — «Ah? Patifes, vocês já gritam pelo senhor D. Miguel! Esse senhor tem que fazer agora. Vocês estão na sua lembrança, e dei- xae agora isto á nossa honra e cuidado ; a justiça é só d'elle, elle a fará ; mas os seus amigos conhecem-se nas occasiões ; e esta é uma d'ellas. E todo o bom vassallo é n'este caso flagrante seu executor. Nós podíamos mandal-os para o cemitério, mas para não exceder- mos, contentamo-nos com os enviar para o hospital. «Soldados e camaradas! Fogo e mais fogo! Ai minhas pernas, que me aleijaram ! ai que matam meu patrão ! — «Mais a você, patife, que é seu caixeiro. — «Ai minha barriga ! — «Cale-se, que ainda lá tem as tripas. — «Senhora da Gloria valei-me! — «Espera desavergonhado, que ella logo vem. Se você não vae com S. Pedro, irá com o Pedro postinha. — «Viva o senhor D. Miguel, nosso rei e senhor! — «E quem o ha de matar grandíssimo patife. Emquanto hou- ver um portuguez também elle o ha de ser. Acima d'elle ha só Deus ; e os corcundas que o defendem não hão de estar nunca abaixo de ninguém. — «Ai, senhor, não me dê na nuca, que tenho mulher e filhos. — «Primeiro teve vossê Deus e rei, a quem devia respeitar e obedecer. — «Ai, senhor, basta que sou achacado dos rins. — «Pois, para sahir a pedra, leve vossê com este pau. — «Eu quero ser e prometto ser corcunda de hoje em diante. — «Isso meu amigo já não vem a horas. Em i823 já vossês 229 prometteram o mesmo; chegaram a 1826, já não eram corcundas. Fogo ! . . . » Assim conta o jornal realista, mui amante de Deus e do rei, o que se passou em Lisboa com a noticia da chegada da rainha D. Maria II á Europa. Aquelles artigos eram destinados a animar o cacete e os demagogos brancos. Os apostólicos, feotas e realistas puros, liam-n'os com avidez, e achavam-lhes muita graça. Sahiam á rua para desancarem nas bestas liberaes e tirarem-lhes as manhas. Trabalhe o cacete, senão é tempo perdido. Vamos á obra. Na semana santa de 1829 e na véspera da execução dos impli- cados na revolução do Porto, escreve o mesmo defensor do throno e do altar o seguinte : «Haja carne fresca; o povo quer vêr espectáculos; e os dias de maio são grandes; chegam para tudo.» Quando os liberaes, perseguidos e a quem eram negados todos os direitos e todas as liberdades, se revoltavam, surgiam da im- prensa absolutista grossas descomposturas. Acaba-se de perpetrar, exclamavam elles, o mais horrendo, o mais hediondo e o mais abo- minável crime contra Deus, contra o rei e as instituições que feliz- mente nos regem. Os liberaes continuam no seu infame systema de alterar a ordem, e de fazer revoluções. K preciso severo castigo para exemplo dos temerários. E muitas vezes accusavam o governo de frou.xo e condescen- dente de mais. A Trombeta Final, fazendo a apologia da segurança do estado contra as facções, e da união existente de todas as auctoridades em volta do throno e das instituições, diz: «E como assim é, quem pôde recear d'essa cabilda de ladrões que ha pouco tentaram em- polgar os caros interesses da pátria!' (^ucm receará essa recua de malvados, que ousam usurp\ir os inau/crií-cis c magcstaticos direitos do iri o senhor D. Miguel I, que tem subido ao sólio portui^ue- ? Esses ávidos mações assassinaram a pátria pelo lado politico, reli- gioso e mercantil; faltava-lhes s(') cravar-lhe o punhal ensanj^uen- tado á luz das tochas da anarchia. . . faltava-lhe interessar na ruina iterai da nação a pessoa sagrada de um mc^narcha, único esteio da 230 nossa ventura moribunda. Não o conseguiram, nem o conseguirão ; porque os empregados da pátria, unidos entre si e só attentos á voz do soberano, batem, de commum accordo, as cabeças da hydra, logo que renascem ; elles esforçam-se mesmo em íerir-lhe o coração com a espada da justiça, A hydra tem de morrer nas mãos dos seus perseguidores, abençoados do céo e da pátria do grande AíTonso, a quem Deus ouviu. Ordens estreitas são promptamente obedecidas; cada um fita suas vistas meditadoras nas faces do so- berano», (i) Isso a respeito da revolução do Porto. Quando D. Pedro chegou á Terceira, o mesmo jornal vomita todas as injurias sobre os liberaes. Os rebeldes capitaneados pelo campeão da anarchia europea e fidalgos degenerados, protegidos pela maçonaria de quatro nações, ousaram, diz o jornal, consummar o maior dos crimes^ voltando-se^ um contra o virtuoso e clemente irmão^ e todos contra o munificente rei dos portuguezes. E preciso relatar todas as circumstancias ag- gravantes d'esse horripilante attentado, para provocar a indignação dos portuguezes e da Europa inteira. Chama-lhes destemidos ladrões, conspiradores, assassinos, rebeldes e desertores. E accrescenta : «Paliemos claro: a conspiração do ex-imperador e da sua mal- vada comitiva maçónica não pode ter outro objecco senão o roubo, o assassino dos portugueses e o compromettimento das outras na- ções. A espada da justiça vae cahir sobre aquelles ministros noctur- nos ; e a mascara da impostura bem depressa (oxalá) será pisada pelas ferraduras dos soldados portuguezes.» O Correio do Porto^ em 2 de fevereiro de 1829, acha que as auctoridades se teem mostrado benignas de mais, e estranha que ainda se não tenham confundido os inimigos da paz e da ordem pu- blica. Diz que cada dia que se espera pela conversão dos liberaes é mais outro de que elles se aproveitam, para se tornarem peiores. (1) Trombeta final n." i23. 231 «Não podemos, diz o jornal, em vista de tanta incorrigibilidade, deixar de crer que foram Ímpios e republicanos livros que os ensi- naram, porquanto as doutrinas que seguem teem ,todos os caracte- res da mais refinada malicia e da mais punivel impiedade». Diz que a inclinação d'elles e os seus desejos conformam-se com o seu ca- racter, e este se dá a conhecer pelos factos, sendo o seu systema insultar tudo o que é sagrado; e d'aqui o menoscabo que fazem do altar e do ihrono. «A mentira e a fraude são armas que para simi- Ihantes fins manejam. E, quando não podem com ellas enganar os portuguezes, dignos d'este nome, e os que os conhecem e detestam, vão vomitar fora do reino o veneno que teem tragado para destrui- rem a sociedade, espalhando em toda a Europa contra o mais pa- cifico dos governos, injurias e diatribes taes, que só se podem com- parar com elles mesmos.» Taes foram as injurias que os realistas puros lançaram sobre os liberaes monarchicos hoje no poder, e que então se revoltaram contra as perseguições de que foram victimas; e tal foi a maneira como seus actos e suas tentativas foram então apreciadas pelos seus contrários. A mesma imprensa absolutista pura converteu-se em vil instru- mento da policia, ora denunciando este e aquelle. ora apontando um ou outro como filiado na maçonaria e em sociedades secretas, e ora espionando os seus passos, as suas palavras e gestos, para os delatar ás auctoridades. Quasi todos os dias apparecem correspondências dizendo que ouviram fulano e sicrano fallar mal do governo, do rei e da reli- gião; que em tal casa e em tal sitio se conspira contra as institui- ções; que na aldeia de tal se encontra homisiado quem a policia procura, e que este e aquelle também entraram na conspiração so- bre que se abriu devassa, e que escaparam á acção da justiça. Tal foi a missão da imprensa absolutista pura no seu empenho e furor de tornar odiosos lodos os liberaes. E não foi só a imprensa periódica que cahiu cm tamanha ab- jecção; mas também os livros e opúsculos que então se publi- caram em abundância em defesa do rei;imen vigente. 232 Como em i823, publicaram-se muitas obras, para combaterem as doutrinas da Revolução e sustentarem as puras doutrinas da le- gitimidade, as quaes ficam expendidas acima. Entre aquellas. obras, citaremos uma de outro membro da egreja, Faustino José da Madre Deus. Intitula-se — A facção e a con- templação. Depois de expender as legitimas doutrinas do throno e do altar, sustenta que não se pôde admittir contemplação alguma com a Ímpia e maçónica seita dos liberaes e pedreiros livres. Diz que foi d'essa contemplação que se originaram as terriveis calamidades que flagellaram Portugal até ahi. «Desenganem-se, diz o auctor, os portuguezes, se alguns ha que estejam ainda enganados ! Não é possivel ter contemplação alguma com a facção, sem vir a ser presa de suas sedentas garras. Pelo que se lhe concedeu em 1820 ella fez tudo quanto quiz até 1823. Pela contemplação que houve com ella em 1823 commetteu os mais atrozes crimes e conseguiu quanto intentou até 1826.» Diz que as monarchias constitucionaes são a porta aberta para a destruição das monarchias. «Um simples alfinete constitucional que os monarchas omittam, será nas mãos dos liberaes uma extensa e íorte alavanca com que farão oscillar e baquear as monarchias.» Termina dizendo que, em vista de tantas e tão incontestáveis ver- dades apontadas pela historia, pela própria confissão dos mações e pela experiência demonstradas, é evidente que cartistas de boa fé não os pode haver, senão por tolice, e que os cartistas, ou constitu- cionaes por systema, todos são mais ou menos perversos. Nada de contemplações com elles. Forca e cacete. Reproduzem-se as mesmas obras que em 1823 sahiram á luz publica em defesa do regimen absoluto e contra as doutrinas libe- raes (i). Todo o fel, todo o veneno, todos os ódios e toda a vilania de sentimentos d'esses corações empedernidos e sanguinários foram despejados para essas obras de repugnante leitura. (i) Vide a Historij da Revolução Portugiierfa de iS-ja^ volume iv. 233 Essas almas de lama ejacularam na imprensa toda a immun- dicie de que estavam repletas. Nos TEMPLOS. — Pareciam dias do juizo final. A cada hora to- cavam os sinos das igrejas, chamando os devotos. Opas verme- lhas, verdes, brancas, azues e rochas, corriam apressuradas para ouvirem a palavra do Senhor. Todos os templos regorgitavam de fieis. Pregava Jo.sé Agostinho de Macedo, o padre S. Boaventura, frei da Madre Deus e outros íaçanhudos realistas. Com passo firme e vagaroso subia solemnemente o^^regador austero. Surgia do púlpito com aspecto carrancudo e feroz. Lança- va um olhar severo por todo o auditório, e, tomando uma pitada de esturrado rapé, começava. As faces inflammavam-se; os olhos in- jectavam-se de alterado sangue; abria a bôcca e com voz caver- nosa e irada descarregava sobre os infiéis, atheus e pedreiros livres toda a cólera celeste. A voz retumbava nas arcadas do templo, co- mo nos vales e montanhas os trovões em dias de medonha tempes- tade. O santo ministro do Senhor corfí a palavra inflammada pedia a todos os fieis que pegassem em armas em defesa da santa religião e do anjo celestial que Deus enviara para governar os portuguezes e tor- nal-os venturosos. Com gestos vehementes incitava-os a darem ca- bo de quantos malvados e pestileratos liberaes encontrassem pelo caminho, ao sahirem do templo de Deus, ollendido e ultrajado. José Agostinho de Macedo pedia que a pedreirada fosse exter- minada como os lobos o tinham sido na Inglaterra por uma mon- taria geral. Os pedreiros livres são mais Ímpios do que os egypcios, mais bárbaros do que os assyrios. D. Miguel era como o archanjo que matara os recemnascidos no Egypto e acudira a Jerusalém du- rante o cerco, para dar cabo dos assyrios. Ide; exterminae a ferro e fogo a seita maldita; expurgae a egreja e a sociedade d'esses elementos de desordem e de transtornos so- ciaes I Que se não de quartel a nenhum, e que t(idos caiam sob o pu- nhal vingativo I 30 234 No Porto Frei Fortunato pregava também montaria ás anima- lias do matto grosso. «O remédio, dizia elle, não está nas boticas, está na honra, na fidelidade e no valor para pegar em armas, quan- do o rei o mandar e julgar necessária a montaria. Quem ha que não approve o nosso Miguel cá na terra, aferro- lhando nos calabouços essas feras envenenadas pela patifaria bes- tial do virus maçónico ? «Que de gente não irão vel-as! Nem o povo corre aqui com mais avidez áwcorrida dos toiros no Salitre, do que a ver passar os pe- dreiros para a forca» (i). Os mesmos pregadores promettiam indulgências a quem de- nunciasse os da maldita e excommungada seita. Denunciar um liberal, rachar-lhe a cabeça e fazer-lhe todas as maldades, não era crime perante Deus e a sociedade, antes um acto meritório e de pie- dosa devoção. Deus lá no céo recompensaria quem por este modo o defendia cá na terra de seus inimigos, discípulos de Satanaz e de Ma- foma. A morte de um liberal era o justo castigo dos seus crimes e das suas blasphemias. Finalmente o que a Inquisição por muitos séculos ensinou aos povos e promoveu em Portugal contra os ju- deus e schismaticos, a egreja por espaço de seis annos poz em pra- tica, depois do novo triumpho do throno e do altar. Não fez outra coisa senão excitar o povo rude e ignorante á perseguição e ao ex- termínio dos liberaes, successores dos schismaticos, protestantes e livres pensadores, que outr'ora lançou nas fogueiras dos autos dejé e nos cárceres medonhos da Inquisição. O púlpito foi o logar esco- lhido para essa propaganda diabólica. Não se passava um dia se- quer em que não trovejasse a palavra irada de centenas de minis- tros de Deus espalhados por esse paiz fora contra os liberaes, re- volucionários, pedreiros livres, mações^ republicanos e vintistas. Nas missas os padres pediam pela conservação do anjo Miguel e pela destruição dos liberaes; nos sermões é o que se sabe; e todas as festividades e solemnidades da egreja serviam de pretexto para (i) Portugal ConiemporaneOj pelo sr. Oliveira Martins. 235 se fazer a mesma cruzada sanguinária e devastadora. De dia e de noite os fieis devotos impregnavam-se n'essa atmosphera de ódios e de idéas sanguinárias espalhadas da cadeira de Jesus. No confessionário o mal era maior. Ajoelhava a penitente. — Que vem cá fazer, senhora? perguntava com voz austera o sanhudo confessor. — Cumprir com o preceito da nossa madre igreja. — Não está nas graças de Deus. Não é esposa de um jacobino homisiado? — Senhor padre, eu venho confessar minhas culpas. — Pois bem, diga onde está seu marido, de vida desregrada, immoral e incurso nas penas da lei. — Não sei meu padre. — Lembre-se, senhora, que está diante de Deus, que lê no fun- do da sua alma e para o qual não ha pensamentos secretos. Não vem aqui para dizer a verdade? Se a não quer dizer, e sq vem para cá mentir, levante-se! — Padre, por piedade. Eu sou sua esposa. — Tanto melhor. Nem a senhora nem elle se salvam, se não disser o seu esconderijo. Deus quer o seu castigo. Depois é possí- vel que se arrependa e entre no reino do céo. — Não posso, não devo denunciar meu próprio marido. — Então sabe onde elle pára. — Meu Deus valei-me. — Não invoque o sagrado nome de Deus, que oíTende com sua obstinada recusa. — Mas se eu confesso tudo, meu pobre marido está irremedia- velmente perdido. — Assim o ordena Deus. A senhora salva-se do peccado atroz que commetteu seu esposo, e pode salval-o a elle das penas do in- ferno. — O meu padre I \í possível que meu pobre marido vá para o interno ? — Irremediavelmente, se morre impenitente; e para o salvar a 236 senhora não tem senão a declarar o sitio em que está homisiado. Veja o que faz. — Ir eu e meu pobre esposo para o inferno ! E atroz ! Garan- te-me, vossa reverendíssima, que eu salvo meu esposo das penas eternas, se o denuncio ás justiças ? — Pois não cumpre a vontade de Deus, que é mesericordioso para os arrependidos e os que o servem? E banhada em lagrimas e em suores frios, quasi desmaiada e balbuciando as palavras, fazia a confissão que o astucioso padre lhe arrancava da bôcca. Muitas victimas foram presas e enforcadas por denuncia das próprias esposas, filhas e irmãs, a quem os padres na confissão violentavam por aquella forma ! As frágeis senhoras acreditavam quír salvavam do inferno os esposos, filhos e irmãos, denunciando-os ás justiças ! E era para isso que se fazia tão activa propaganda a favor do sentimento religioso ! Ainda hoje o sexo frágil está em poder do clero, que d'elle se serve para manter a guerra e a discórdia no seio das famílias. E por meio de nossas próprias esposas e filhas que elíe nos guer- reia! Vinha outra penitente e ajoelhava aos pés do confessor. — Então que novidade temos? perguntava o sacerdote cheio de curiosidade. Já sei onde está o pássaro — Então onde está esse malvado ? — Fugiu para uma quinta aqui próxima de Lisboa. Está lá com certeza. — E como soube isso ? — Ia todos os dias a casa da familia vender bentinhos e ima- gens de santos da nossa madre egreja. Nada me escapava, gestos e palavras. Bateu-se á porta; era o correio. Uma filha de 4 annos exclamou é do papá! Fiquei ávida de curiosidade. Olhei para o sobrescripto e vi que vinha da Trafaria. — Muito bem. Vá já dar parte á intendência. Não se esqueça 237 de lhe fazer carga. Jurar-se falso contra um mação e atheu não é crime á face da egreja. — Esteja descançado, senhor padre António. — Esse maroto que diz mal de mim e dos santos padres pre- cisa de um severo castigo. Ande; parta. Eu cá estou para a ab- solver ! — A penitente erguia-se rápida; fazia a genuflexão diante do altar mór; bénzia-se com devoção; e com passo miúdo e ligeiro par- tia a beata para a intendência geral da policia. Após ella ainda outra penitente. — Por cá outra vez ? — E verdade senhor padre António. — O que foi ? o que succedeu ? — Um grande escândalo ! — Sim!' Diga então. — Tenho um jacobino ao pé da porta! Jesus me valha I — E o que fez elle I — O que fez ? Conspira. — Tem a certeza d'issoi* Conte-nos o que sabe. — Ouvi cochichar as visinhas na janella defronte da minha cosinha. Puz-me a escutar; sube que se tratava do dono da casa que é negociante rico. Ouvi então dizer que lá por casa havia gran- des sustos, por causa da ultima devassa. — Bravo! exclama o padre, esfregando as mãos. Mais outro patife. — Tenho escrúpulos, senhor padre António. Não sei se c pec- cado isto de dar a gente parte ás justiças. — Escrúpulos? Pois não sabe que é dever de todo o bom chris- tão ser súbdito íiel do rei? Trata-se de um mação^ de um pedreiro livre e de um perverso jacobino, inimigo de Deus e dos thronos. O céo pede castigo dos seus crimes. Dar parte d'eile ás auctorida- des é serviço que se faz a Deus e á sociedade, ou ao nosso bom rei. — Então se o senhor padre António me dá licença. . . — Sim; cumpra com seu dever. 238 E lá partia do confessionário outra denunciante para a inten- dência geral da policia ! Em plena época da santa Inquisição. Tanto no púlpito, como no confessionário, os frades excom- mungavam todo o que tivesse relações de amizade com um liberal, e o recebesse em sua casa. O prior de Santa Izabel dava aos seus freguezes o bilhete de desobriga seguinte : «Izabel rainha de Portugal, livra o teu reino de Ímpios pedrei- ros ; e conheça o mundo que o teu neto Miguel está debaixo da tua protecção. » Diz Sousa Monteiro que ao lado das relíquias religiosas guar- davam-se objectos que D. Miguel havia tocado, como se fossem coisas sagradas : Ainda fizeram mais. Para não estorvarem as caçadas e mais divertimentos do en- viado celeste, os padres consentiram que se abreviassem todas as musicas das solemnidades religiosas a que elle devia assistir! (i) As sachristias converteram-se em conciliábulos dos apostó- licos e feotas. Ahi juntavam-se fidalgos e fidalgas, beatos e bea- tas, espias e denunciantes, para combinarem as caças, ou monta- rias aos liberaes, as listas dos proscriptos, os que deviam ser en- tregues ás justiças, a maneira como as testemunhas deviam depor, e como se lhes havia de arranjar boa cama. Ahi mesmo davam-se partes diárias do que se passava em casa de um e de outro liberal e mação., e destinava-se a sorte que deviam ter! Fallava-se sobre as devassas e os pássaros que tinham cabido n'ellas. Nos dias das execuções reinava grande alegria e combinavam-se as manifesta- ções que SC deviam fazer contra os condemnados. Um movimento continuo e constante. Os fieis devotos não descançavam na casa do Senhor, para defenderem o throno e o altar contra a pestilenta seita dos liberaes e contra os Ímpios. Nas kuas, — A demagogia e a anarchia reinaram constante- mente no governo chamado da ordem e da lei ! (i) .1 hypocrisia reli^nosa de D. Miguel e seus scqua^es^ porTr. João de S. Boaven- tura. 239 Desde que desembarcou D. Miguel ate que embarcou de novo, as sociedades organisadas de sicários e caceteiros não cessaram de exercer as suas missões e funcções. Era um não acabar. A propa- ganda feita na imprensa, no púlpito, no confissionario, e nas sachris- tias, deu abundantes fructos. Todos os homens perdidos na opinião publica e de fortuna, os pretendentes aos empregos públicos, os que sentiam necessida- des, todos os que temiam a acção da justiça por seus crimes, os viciosos e todos os de vida desregrada, de cacete debaixo do braço vinham otíerecer-se para servir o rei e a legitimidade. Eram bem vindos. Davam-lhes a senha e salvo conducto para fazerem o que quizessem; carta branca para matar os liberaes e maçons. Mostravam-se mais solicitos no cacete os que desejavam obter as boas graças do rei e das auctoridades. Não tinham conta as ca- beças rachadas pelo seu cacete vigoroso. Ninguém lhes escapava. A recompensa era larga, bons cniiados itovos e por fim empregos rendosos e confortativos. Não apparecia nunca na repartição. Era dos fieis vassallos do rei nosso senhor. Deixcm-n'o mandriar; está gosando o fructo dos serviços prestados á monarchia. O numero dos caceteiros augmentava por isso consideravelmente. Todos queriam mostrar que eram também fieis vassallos e mui tementes a Deus. Veríssimo, Miguel Alcaide, Sedevem, o Telles e o Grondona, eram os commandantes insignes dos bandos caceteiros. D. Miguel tinha por elles especial affeição. Quasi todos os dias appareciam sicários pelas ruas e praças das cidades, fazendo montaria aos pedreiros livres. Ao som de — fecha, fecha! — desancavam os cacetes nos desgraçados que cahiam no apertado circulo sem poderem fugir. Era uma algazarra enorme. No meio do canto do Rei chc^^ou com suas estrophes obscenas (Ui- viam-se os gritos aftlictivos das victimas. Ranhadas cm sangue, com as pernas, braços, costellas e cabeças partidas, iam em maca para o hospital. Qualquer pretexto servia para aquellas scenas tumultuosas no meio das ruas. A policia não intervinha. Quando O. Miguel partiu uma perna, ao cahir Jo cavallo. foi 240 um inferno na cidade de Lisboa. Correu que fora um acto preme- ditado dos liberaes. Cacete alçado sahiram os bandos para as ruas. Tudo cahiu sob o furor dos defensores do throno e do altar. Os soldados voluntários realistas juntaram-se aos sicários. As ruas da cidade juncaram-se de cadáveres e de victimas ensanguentadas. Já vimos como a Besta esfolada conta o que se passou, quando chegou a noticia do regresso da rainha D. Maria II á Europa. O mesmo quando vieram as noticias de que D. Pedro sahira do Brazil e desembarcara na Terceira. — Chegou o paquete ; tra- balha o cacete. — Tal foi o grito ao som do qual se levantaram as sociedades caceteiras. Quando entrou no Tejo a esquadra franceza, para pedir uma satisfação pelos vexames inflingidos aos súbditos d'aquella nação, o furor caceteiro chegou ao mais subido grau, a ponto de o go- verno mandar publicar um edital cohibindo os excessos e violên- cias; mas não se podia ter mão na fúria dos fanáticos. As scenas de sangue duraram por todo um mez. As lojas fecharam-se; muitos homisiaram-se ; outros refugia- ram-se na própria esquadra franceza ; e muitos cahiram mortos sob o punhal e cacete dos apostólicos e feotas. Foi uma rasa geral. Eis como o sr. Oliveira Martins conta o que se passou. «Ninguém se recordava já das humilhações soffridas, e parece que os açoites repetidos enfureciam, á maneira do que as successi- vas bandarilhas fazem ao touro no circo. No dia 14 um inglez, Milne, cahira com uma espadeirada de um voluntário realista. Na véspera o Telles, capitão de mihcias, ameaçara de morte, na rua dos Fanqueiros, o caixeiro Higgs. O Solano, com mais dois, prendem outro caixeiro do negociante Ja- mes. No mesmo dia os gaiatos obrigavam o inglez Sowley, á força de pranchadas, a dar vivas a D. Miguel. Marcelli fora colhido, a 16, pelo Telles das milícias no Cães do Sodré, e espancado a ca- cete, a ponto de ficar exangue, qudsi morto, abandonado na rua. Dois oííiciaes de marinha ingleza, que tinham ido passeiar a Bucel- las, foram atacados, espancados, deixados mortos. O cônsul dizia para Londres, em 3o, que em todas as parochias de Lisboa havia 241 listas formadas dos verdadeiros, ou suppostos, inimigos do systema; e que desde o dia 1 1 mais de mil pessoas tinham dado entrada nas cadeias. > Quando os presos eram conduzidos de uma cadeia para outra, iam-lhe ao encontro as sociedades dos caceteiros, e á força de pau- ladas obrigavam-nos a dar vivas a D. Miguel. Quando sabiam, já todos sabiam a sorte que os esperava pelas ruas e caminhos por onde deviam transitar. Muitos pediam permissão para levarem ás costas os enxergões em que se deviam deitar, e com elles se livra- vão das cacetadas. Já vimos que em Olhão pela proclamação de D. Miguel o povo trucidou todos os presos que eram conduzidos d'aquella villa para Faro. Constou em Villa Viçosa que pela villa deviam passar 70 pre- sos vindos de Lisboa para as prisões da praça d'EIvas. Os padres e frades excitaram no púlpito o furor da multidão. A frente d'ella foram esperar ao caminho as victimas. A voz do commando dos ministros de Deus, os populares precipitaram-se sobre os presos. Uns cahiram varados pelas balas, outros apunhalados e outros sob os inúmeros cacetes que lhes vibraram sobre as cabeças. Não es- capou um só! De Alcácer do Sal, sahiram uns vinte e tantos presos políticos para Évora ; eram quasi todos de Beja. Ao chegarem á ponte de Argole, o commandante da força, um tal Noronha, disse-lhes — Os que desejem ir para Beja dêem um passo á frente. — Quasi to- dos obedeceram; suppondo que iam para junto de suas famílias. A vóz de fogo! cahiram todos atravessados pelas balas. Apenas esca- pou um padre Acabado, que, presentindo a sorte dos seus compa- nheiros, conservou-se no seu logar e assistiu aterrado a tão atroz mortandade. Em Extremoz um bando de sicários, malfeitores e de fanáticos. cercaram a prisão; arrombaram as portas, c a golpes de machado assassinaram todos os presos políticos que n'ella encontre ram! Qualquer que se queria vingar de um outro não tinha mais que escrever a giz nas costas d'elle «Malhado». Não chegava ao seu :u 242 destino senão com as costellas partidas. Os bandos caceteiros da- vam com elle. E, desgraçado, cahiam-lhe em cima sem dó, nem piedade. Pancada de crear bicho. Nas prisões. — José Agostinho de Macedo personificada im- prensa realista e o púlpito nas egrejas ; o conde de Bastos o poder executivo, Verissimo, Grondona e Miguel Alcaide os bandos cace- teiros e Telles Jordão o regimen das cadeias, no famoso tempo do absolutismo puro. Era aquelle oííicial um verdadeiro tarimbeiro. Estúpido, igno- rante e de perversos instinctos. Tinha cabello no coração, como se diz vulgarmente. Tapado como uma porta, duro como granito, déspota, mau, vingativo e sanguinário, representava admiravel- mente o systema politico que o investiu no seu cargo. Praguejava e soltava phrases obscenas a cada momento ; um bruto nos hábitos, nos actos, nos gestos, nos gostos e na lingua- gem. Era hbidinoso e devasso, ávido de dinheiro e de figurar. Ti- nha muita opinião de si próprio e vaidade da sua posição e da sua farda. Não admittia que o contrariassem, e não sabia responder ao contradictor, senão com insultos e doestos. O vicio do mando che- gava n'este bruto ao mais subido grau. Orgulhoso com os inferio- res; baixo e servil com os superiores. Era casado com Marianna da Faia, que fora lavadeira d'um tambor no tempo dos francezes, tal a mulher do seu ideal ! Um preso requereu-lhe do subterrâneo da torre de S. Julião. Deu o seguinte despacho : «Declare o supplicante onde ha subter- râneo n'esta torre.» Um outro preso pediu-lhe que o mudasse de subterrâneo, onde gemia ha tanto tempo. — Você, lhe perguntou o celebre governador, sabe latim ? — Não senhor. — Pois sei eu. Olhe : Sub significa debaixo^ terraneo significa terra. Logo isto não é subterrâneo. Deixe-se estar. Recebeu um dia um requerimento que começava : «Os abaixo assignados» 243 Despachou : «As formulas diplomáticas não são permittidas cnrequerimen- tos. » Despachou outro requerimento em que se lhe pedia humani- dade : «N^estes reinos e nos mais civilisados não se põem em pratica as Leis da Natureza, mas as d'El-Rei Nosso Senhor.») Uma vez perguntou a um preso com que auctoridade usava bigode. ^ — É isto tacitamente, respondeu o preso, permittido a todo o ofíicial militar. — Mostre-me a lei que tacitamente permitte o uso do bigode. Outro preso sentenciado requereu-lhe para ser informado da terra para onde o desterraram, afim de mandar vir roupa e de dar outras providencias. O feroz governador escreveu o seguinte despacho : «Seja-lhe indispensável ignoral-o, até que deva fazel-o.» Um dia entrou na capella de Nossa Senhora da Conceição, que existia na torre ; ficou furioso ; mandou chamar o capellão e deu-lhe furiosa descompostura, porque, tanto a imagem, como a capella, estavam pintadas de azul e branco. Ordenou, em seguida, que fos- sem arrancados todos os azulejos e que tanto a capella como a Senhora fossem pintadas com as cores realistas, isto é, de azul e vermelho ! (guando se zangava corria os presos a pontapés no meio das mais obscenas descomposturas. Obrigava todos os presos a resar o terço cm voz bem alta nas casa-matas e nos segredos. Explorava os presos ricos e roubava-os descaradamente. Como lhe constasse que um tinha dinheiro, mandou-o revistar c tirar-lhe tudo quanto lhe foi encontrado. Tendo este mesmo preso sabido do hospital, ordenou-lhe que pagasse trinta e nove mil e tantos réis. apesar de ter mandado vir todos os medicamentos da botica de Oeiras e a comida á sua custa. Tinha um filho de 14 para i ? annos, ,l«)ãn Tcllcs .lordác) c tra- 244 zia na sua companhia um sobrinho, José Alves de Lima Pedrosa, seus dignos discipulos e herdeiros das suas vis qualidades. Tal era esta individualidade a quem foram entregues e confia- dos os presos politicos da torre de S. Julião. Governava a praça, a principio, o brigadeiro José Joaquim Si- mões; mas como tratasse os presos com benignidade e humanidade, foi logo demittido, e substituído por Telles Jordão, que tomou posse do seu logar em lo de janeiro de 1829. Logo na estreia revelou o que era. O tenente fazia a chamada ; cada preso passava de um para outro lado da salla, fazendo uma continência com a cabeça; mas sem dizer o prompto dos soldados. Telles Jordão mandou repetir a chamada segunda e terceira vez. E como não ouvisse o costumado prompto dos quartéis, disse : «Estes senhores não querem corres- ponder á civilidade com que o sr. tenente os trata». Todo o pensamento que presidiu ao regimen das cadeias d'esta época foi o de todos os governos absolutos, e o do santo ojffido. Desejou-se infligir aos presos politicos todos os maus tratos, todas as torturas e todos os castigos, para se vingarem d'elles, para lhes darem cabo da pelle, e para que os que escapassem não ficas- sem com mais desejos de lá voltarem, e se convertessem ao throno e ao altar. Os crimes politicos eram considerados superiores aos de assassínio, de roubo, de incêndio e mesmo de sacrilégio ! Emquanto os maiores faccinoras eram tratados até com a má- xima brandura, os presos politicos estavam sujeitos a todos os ve- xames, á mais rigorosa vigilância e a um regimen de ferro e des- humano ! Eram executores das ordens do bruto o filho Joãosinho, o so- brinho Pedrosa e o celebre alferes Maia, tão damnado como elles. Este partia o pão aos pedaços, que lançava no chão junto aos barris da limpeza a trasbordarem. Quando os presos iam a apa- nhar essas migalhas, mandava-lhes que as beijassem primeiro, para sentirem o cheiro da trampa em que tinham sido molhadas. Que- brava os ovos, lançava-os ao chão e depois dizia aos infelizes que os levantassem cheios de terra e immundicic. Despejava as garrafas 246 de vinho nas de azeite e de vinagre ; depois examinava-as bem, para vêr se dentro d'elias havia alguma cousa pegada ao fundo para os presos. O mesmo fazia com as botijas de barro, o que pro- vocava o riso. A comida era miudamente examinada. O mesmo Maia reme- chia a sopa e o arroz com a ponta da bengala enlameada e suja. Muitas vezes demorava á porta dos quartos a comida, para arrefe- cer bem. Apenas entrava, mandava abrir as portas. «Loiça fora sôs filhos da p . . . São bem fidalgos ; tão devagar comem. Vamos, depressa, senão vou-lhes ás costas. Era necessário obedecer, despejando os presos a comida em outras vasilhas de barro, de que estavam prevenidos. E quando as não tinham á mão, viam-se obrigados a lançar a comida sobre o fundo dos barris, para a tomarem depois com mais socego ! Mandava este agente do throno e do altar tirar o papel em que vinham os maços de tabaco e mettel-os na alcofa do carvão que os presos em boa fé recolhiam. D'ahi a pouco mandava abrir a porta, e despejar no chão a alcofa. Eram encontrados charutos. — Ah! sô ladrão e canalha do diabo ! você quer ficar com o que não é seu? E, zás! pancadaria. Um dia chamou um preso e maiidou-o metter entre três solda- dos com as baionetas desembainhadas. — Levem-no para as portas das Canccllas. Batendo nas costas do preso disse -lhe: «Anda ladrão. Vaes pagar o que tens feito. Já cá está o car- rasco; vaes morrer enforcado com os outros teus companheiros. >' O preso ia desmaiando, quando viu por entre a cancella um homem alto, de jaleca e cinta vermelha, quasi o mesmo traje que d'antes vira n(^ carrasco do Limoeiro. Depois de lhe ter prei;ado o susto, o malvado mandou-(^ S'»liar, e conduzil-o á presença de uma pobre tia que o vinha visitar I Na tarde do dia 20 de setembro de iS3o ouviram cs presos que estavam na casa-mata n." i 1 abrir a porta da casa-mata n. \o. e d'ahi a pouco dar pauladas n'uma victima que soltava grilos e iiemidos de cortar o coração. 246 Por tres vezes recomeçou a pancadaria, até que o padecente já não podia gritar, ouvindo-se todavia os lamentos e dorida voz : — Porque é isto ? Fechou-se a porta, e em seguida abriu-se a da casa-matef n.° 1 1, para trazerem o quer que fosse para os presos d'esta. Então viram o Joãosinho e muitos oííiciaes e soldados. Observaram que d'aquella casa-mata fora tirado um preso a quem mal ouviram gemer, como quem estivesse na agonia. D'ahi a dias, veiu pela manhã o capitão Jayme, que servia no subterrâneo; abriu a porta da prisão n.° lo, e exclamou — Oh! cá está morto. — Fechou a porta. Voltou com o Joãosinho, Pedrosa e com outros oííiciaes. Os presos da casa-mata vizinha ouviram o Joãosinho dizer : — Morreu de morte honrosa ; enforcou-se por suas próprias mãos. — Pedaço de maroto ! ainda aqui escreveu este verso, accres- centou um official. — Tem a cara bastante roxa e o pescoço. Se não lhes consen- tissem nada com que elles se pudessem enforcar, já não acontecia isto. — Nós, replicou o Joãosinho, não podemos prohibir que en- trem lençoes. Um outro continuou : — Rasgou o lençol em tiras, e depois prendeu-o ao gancho; poz-se em cima do boião; deu-lhe com os pés e enforcou-se. Houve altercação entre o governador e o parocho, porque aquelle não queria que o infeliz fosse enterrado em sagrado, por ter sido mação. E como o padre insistisse, mandou buscar o cadá- ver por grilhetas e enterral-o na praia! O outro companheiro que sahira entrou no dia 25. Eram duas horas da tarde, pediu por amor de Deus, que lhe dessem de comer ; porque havia dois dias não comia nada. — Não tenho ordem do governador, respondeu o Jayme. D'ahi a dois dias, sahiu entre dois soldados, sem se saber para onde, nem quem fosse! 247 N'uma occasião os presos protestaram contra o arroz que vi- nha da casa de pasto de um Lemos, com quem o governador pa- rece estava associado. O arroz continuou a vir do mesmo modo ; ninguém o podia comer. No dia 3i de maio de 1829, recamhea- ram o taboleiro com o tal arroz, inscrevendo-lhe certas lettras e ro- deado de cascas de laranja. Lemos foi queixar-se a Telles Jordão, que mandou investigar e metter os auctores das inscripções no subterrâneo n." 7. Um dia chegou o Pedrosa acompanhado de um cabo e quatro soldados. Mandou subir. João Chrisostomo Correia Guedes, tenente-coronel de caçado- res 5, estava de cama doente e persuadiu-se ter ouvido que iam ser todos soltos ; communicou isto ao visinho ; Pedrosa ouviu. — Desça, lhe disse, da tarimba. Guedes começou a vestir-se. — Venha já, quando não vou buscal-os pelas orelhas. — Quem disse, replicou o valente militar, que me vinha buscar pelas orelhas ? — Fui eu, respondeu a insolente creança. E se não desce im- mediatamente, o farei descer na ponta d'aquellas baionetas. Foram todos levados á presença do feroz governador. Este, ao ver entrar um preso que não tinha mandado vir. per- guntou : — Que vem cá fazer este sujeito? Quando fazia a chamada, respondeu Pedrosa, a esses brejeiros, este disse para o vizinho que iam todos soltos. E como visse o ar de mangação com que o dizia, dei-lhe ordem para vir á presença de V. i:x.\ o preso quiz informar o governador do que se passou, mas loi interrompido pelo Pedrosa, que acudiu : — Este sujeito olfendeu-se de lhe não ter dado o tratamenlo de cavalheiro, e de tenente-coronel. — Aqui, disse o governador, não ha tratamento senão de nm- Ihados e de patifes, que e o que vocês são todos. V. Ex.'"* lembre-se, replicou o preso, que sou tenentc-cofjnel. 248 — De que batalhão é você tenente-coronel ? — Do 5 de caçadores. — Ainda você tem a ousadia de dizer que é d'esse infame bata- lhão ! — V. Ex.'' insulta uma respeitável corporação. — Mette, voltando-se para o sobrinho, esse patife no peior dos segredos. ' Foi para o peior dos subterrâneos ! O Maia, assim que o avistou no segredo, perguntou : — Quem é este ladrão? — E um brejeiro, respondeu o Pedrosa, que diz ser tenente- coronel de caçadores 5. — E ainda não está enforcado ? O preso quiz desafrontar-se ; mas o Maia mandou-o callar. — Deixe estar que eu o arranjarei. Se me der mais uma palavra, le- vará com este páu. — Com esse páu ? Isso mais de vagar. Mal o preso acabou de proferir estas palavras, o Maia atirou-lhe uma paulada á cabeça; o preso defendeu-se a murros, accudiu o Telles e o filho, e aquelle ordenou aos soldados que matassem o infame malhado. Um granadeiro de infanteria 5, que estava na re- ctaguarda, callou a baioneta, e teria atravessado a victima, se o não o impedisse um preso que ia também para o subterrâneo, e que lançou mão á baioneta. Maia, Pedrosa e o Joãosinho, começaram então a distribuir pauladas sobre todos os presos. Guedes caiu sem sentidos junto á parede do subterrâneo. Foi arrastado para dentro da prisão a pontapés; os mais a pranchadas e coronhadas. O tenente-coronel ficou caído no chão ferido na cabeça e barba, com 1 6 contusões no corpo, e gemendo de dores. Assim esteve per- to de uma hora I Voltando a si, chamou pek sentinella. Pediu-lhe confessor e cirurgião. A sentinella deu parte; ninguém appareceu. O preso tornou a 249 bater; respondeu a seniinella que já tinha dado parte. O preso caiu novamente sem sentidos. Seria perto de meia noite, ouviu metter a chave na fechadura, algumas palavras em vos baixa, e abrir-se a porta. Ao clarão de uma lanterna de furta-fogo, viu três vultos; era o Maia com um estoque na mão, o Pedrosa com um florete e com uma pistola e um granadeiro armado. Approximaram-se. — Parece, dissse Pedroso, que está morto. Maia deu-lhe um pontapé. — Que é isso? perguntou em voz quasi sumida o ferido, pros- trado no chão, quasi sem vida. — Ainda não o levou o diabo ! exclamou o Maia. Se morrer esta noite, amanhã lhe viremos dar sepultura. E retiraram-se todos. Voltaram pela manhã. O infeliz ofíicial estava com mais for- ças. — Saia cá para fora, lhe disse o Maia. O sô malhado traga o barril. — Aqui não ha barril. — Pois venha você. Guedes encostando-se á parede obedeceu. Maia mandou vir um barbeiro; veio este com oito soldados ar- mados. Pedrosa voltando-se para o barbeiro. — Corte-lhe o bigode c também o beiço, para comermos com feijão. \á fora o pescoço, para poupar trabalho ao carrasco. — Dirigindo-se para um sargento de infanteria 5. — Este ladrão teve hontem a audácia de me deitar as mãos; mas o que lhe valeu foi não ter eu este estoque. O sargento arrancou do terçado, e ia descarregar o golpe, quan- do a isso se oppoz o Maia. Retiraram-se depois. Só depois das duas horas da tarde, é que lhe trouxeram comi- da, uma pucara de barro com o chamado chá e um prato com assucar; o chá cheirava a ourina e n assucar era misturado com barro! 250 O infeliz preso tinha dado ao grilheta um crusado novo para lhe trazer o almoço ! Diz o auctor de toda esta narrativa horrível o seguinte : Extenuado de forças, magoado de dores ; com febre, só e sem luz, pisando lama, tranzido de frio, passou o desventurado todo aquelle dia e noite em tristes agitações, que facilmente se podem comprehender, sem comtudo formar-se uma idéa.» Ao outro dia, perguntaram-lhe se queria comer; respondeu que só queria um pouco d'agua. Recebeu de Maia a seguinte resposta : — Beba m . . sô malhado. E mandou fechar a porta. No dia seguinte appareceu ; mandou sahir o preso, que foi con- duzido á casa-mata n.° lo, a cuja porta Maia deu-lhe duas fortes pauladas que o arremessaram ao chão. E dirigindo-se para os de dentro disse : — Ahi vae mais este ladrão. N'esta infernal prisão achava-se o insigne jurisconsulto e elo- quente tribuno, que nas cortes de 20 defendeu os princípios da justiça e os direitos sagrados do homem, Borges Carneiro. Maia entrou um dia na prisão; rasgou ao preso Alvarenga umas brochu- ras, por terem as capas azues. Foi depois direito ao bahú de Bor- ges Carneiro ; lançou ao chão tudo quanto uelle encontrou, no meio de palavras sujas e insuhantes, que o venerável tribuno e ju- risconsulto ouviu em silencio e resignado. Como não resistisse, mandou-o períilar e juntar os calcanhares, e disse-lhe : — Peça perdão ao nosso rei o senhor D. Miguel, por tudo quanto disse contra elle. — Não tenho que lhe pedir perdão; porque nunca o oftendi. — O seu patife, ponha-se já de joelhos, senão tiro-lhe a pelle. Agora bata nos peitos e diga — Peso-me de haver oífendido a el- rei nosso senhor e peço- lhe perdão. Preparava-se depois para o espancar, quando se oppoz a isso- o filho do governador, ao ver a submissão do preso. Diz João Baptista da Silva Lopes o seguinte : ^< Adorado de todos os presos e soltos, que ternamente o ama- 251 vam por suas eminentes virtudes e particulares qualidades. Ho- mem de vastos conhecimentos, bondade extrema de coração, bem- fazejo, affavel, meigo para com todos, pomba sem fel, não podia conservar rancor a pessoa alguma. No meio de ferros trabalhava, escrevendo sempre a favor da sua pátria. Os seus escriptos nas masmorras em que fomos companheiros, dado que incorrectos, útil seria fossem publicados para utilidade geral, principalmente algu- mas das cartas dedicadas á mocidade portugueza, que compoz nas abobadas de revelim.» Escaparam-lhe alguns manuscriptos, por os ter remettido a tempo ao seu criado Manuel Luiz; e estava em uma das casas do interior, onde os officiaes, já cansados, não faziam revista tão rigo- rosa. Na ultima revista escaparam-lhe alguns manuscriptos, por ter lançado João Pedro Silva Lopes o capote por cima do sac- co que os continha, aílirmando, com outros companheiros, que por esse lado já se havia passado revista. Borges Carneiro foi preso no dia i5 d'agosto de 1828: entrou na torre a 3o; e falleceu no hospital de cholera morbus em 4 de ju- lho de i833, Armavam ciladas para os presos se revoltarem, e terem pretex- tos para os castigarc-n, No dia 21 de maio de 1829, fizeram constar aos presos do Limoeiro que o capitão do paquete vindo da Inglaterra dissera que D. Maria II fora reconhecida por aquella nação, que estavam a embarcar tropas para Portugal, e que D. Miguel seria intimado a sahir do reino. No dia seguinte, puseram nas janellas do bairro de Alfama lenços e bandeiras azues e brancas, de modo que fossem bem vistas pelos presos. Os guardas e o carcereiro não contradi- sseram a noticia e deram a entender aos presos que aproveitassem occasião para sahirem. Assim animados, os presos cheios de maior contentamento, romperam com canções patrióticas e constitucionaes. De tarde appareceram os ministros para devassarem, tomando por testemunhas os maiores criminosos. A noite foram chamados c meiíidos nas enxovias. Na tarde do 252 dia 23, appareceram muitas seges no largo do Limoeiro, cercadas de magotes de caceteiros, que vinham exercer o seu santo mister a favor do throno e do altar. O juiz do bairro de Santa Catharina começou a chamar os ini- ciados, em numero de 29. Ordenou-lhes sahissem na direcção da porta principal. Ao descerem as escadas, foram assaltados pelos caceteiros postados nos degraos. Uma chuva de cacetes cahiu so- bre as victimas. Com as cabeças, as costellas e os braços partidos, foram mettidos nas seges. Ao passarem pela rua de São João de Deus, onde se encontrava tropa formada para um enterro de um general, os soldados atacaram as seges com as coronhas das espin- gardas, e com as baionetas. Os desgraçados chegaram á torre de São Julião á meia noite. Foram recebidos pelo Maia. Mandou-os entrar para uma pe- quena casa debaixo do arco da guarda principal; metteu-os em forma; contou e tomou os nomes no meio dos ditos «sô filho da p. . . sô malhado, sô patife» e de outros grosseiros e insultantes. Mandou tirar as luzes e fechar as portas. Ás apalpadellas os pre- sos encontraram um,a tarimba, em que se deitaram, tendo por tra- vesseiros pedras. A luz de um cigarro lobrigaram uma tigella de barro. Seccos de sede, pela fresta pediram agua ; o guarda encheu e passou para dentro; mas como não chegasse para todos, torna- ram a pedir. O oííicial, vendo isto, atirou uma cutilada á cabeça do que estava junto á fresta. Felizmente não lhe acertou. Depois ordenou á sentinella que não desse mais agua ; e mandou apagar os cigarros. No dia 24 foram mandados sahir, dois a dois, para a casa pró- xima, onde os mandaram despir e lhes passaram revista na pre- sença do governador. Foram depois repartidos por diíferentes cel- lulas. Quando um dos presos entrava na casa-mata n.° 10, viu-a in- nundada d'agua ; voltou-se para os que o conduziam e chamou-lhes a attenção. O official puxou da espada; e batendo com ella nas per- nas do preso disse-lhe. «Arre sô filho da p . . . lá para dentro». Ahi passaram o dia a enxugar a casa, vasando a agua nos barris. 253 E deitaram-se embrulhados nos capotes. Náo havia camas. As pa- redes da casa gotejavam. No angulo da direita da porta rebentava um farto olho d'agua, que por um rego se ia juntar em uma cova aberta por bai.xo da clarabóia. Em 24 horas tudo se cobria de bolor! Sentimos que o espaço náo nos permitta reproduzir o que na obra citada nos conta o mesmo João Baptista da Silva Lopes a res- peito do Limoeiro. E horrivel e repugnante. Basta os seguintes pe- riodos : «Como estas casas superiores eram occupadas por quem podia dar dinheiro, ficavam encerrados nas enxovias os miseráveis ; e en- tão aqui a indigência era extrema e o tratamento bárbaro e digno de Jastima, quanto indigno do homem. Havia pessos que contavam seis, oito, dez e mais annos de prisão; andavam de todo nús, co- bertas apenas as partes pudendas com um farrapo crivado de bu- racos. Rosto esquálido, macilento e descarnado, alvejando, ou ne- gregando, por todo o corpo nojentos vermes aos cardumes. Dor- miam no duro chão, estirados, sem mais cobertura, ou cama, que os enxames que de dia os corpos lhes envolviam. E tanto era seu avultado numero em algumas das enxovias, que, quando de noite queriam para outro lado volver os corpos, era mister que todos ao mesmo tempo o lizessem, acordando-se para isso os que dormiam. «Presidia a cada um d'esies cárceres um denominado juiz, pelo carcereiro nomeado, que sempre é dos mais façanhudos. Tem este á sua disposição os varredores, mocingueiros, escrivão, barbeiro c pedidor, pessoas da sua eleição e confiança de seus irrevogáveis mandados, inexoráveis ministros. «O miserável que n'estas masmoras tem a desgraça de cahir, seja qual for o seu crime, ou condição, é logo obrigado a dar ao manifesto o dinheiro que possue e pagar certas propinas áqucllc^ altos empregados. Se a isto se esquiva, ou alguma coisa occulia, e minuciosamente em todo o corpo e roupa examinado c. verilicaJa a fraude, moido a pão com cacetes de que andam munidos. A mais ligeira infracção de certas leis da casa. c punida com mulia^ pecuniárias, ou sovas de caceie, que ás vezes deixam por morto o 254 padecente, cujos lamentos cobrem com a gritaria que então fazem todos os demais.» O que o auctor nos diz a respeito do alimento é revoltante. Não podemos omittir um facto singular exposto pelo mesmo au- ctor. No dia primeiro de março de 1829, deu entrada no Limoeiro Joaquim José d'Araujo, empregado da mesa da fruta das Sete casas, com a esposa, uma creança de cinco annos, uma creada e um creado, tendo todos estado dez dias em segredo, não escapando a innocente creançinha. Esta adoeceu com sustos e sobresaltos; a in- feliz mãe requereu para ser entregue a seus avós, para a tratarem ; porque em tal edade não se lhe podia imputar culpa, para estar com ella metiida em segredo. O carcereiro respondeu que tinha ordem expressa do intendente geral da policia para conservar presa a pobre creança! O avô requereu que se lhe entregasse a sua netinha, responsa- bilisando-se a dar conta d'ella, quando lh'a exigissem. Só passados dois mezes e meio é que veio portaria para lh'a entregarem, assi- gnando termo em que se obrigasse a apresental-a, quando lhe fosse pedida ! Eram assim as justiças de el-rei nosso senhor. Estiveram nas prisões do reino nada menos que 26:270 presos políticos! As ALÇADAS. — E característico de todas as épocas de abso- lutismo o subtrahirem-se os criminosos políticos ao direito com- mum. Crearam-se para elles leis e tribunaes de excepção, como se estivessem acima dos maiores facínoras, ou fossem peiores que João Brandão e Diogo Alves. Antes da Revolução de 1820 tornaram-se celebres os /w/{05 de Inconfidência, copia fiel dos tribunaes do Santo Officio; com a res- tauração miguelina não se tornaram menos odiosas as Alçadas, ou- tros tribunaes expressamente criados para julgarem os crimes polí- ticos e os liberaes que estão hoje no poder. O fim d'estas Alçadas era evitar as conspirações e as revoltas, 255 exactamente como os Juízos de Inconfidência. Diante d'esses tribu- naes quem se atreveria a conspirar e a rebellar-sei* Vimos na Historia da Reví)lução portugueza de 1820 o resul- tado da execução do Campo de Sant'Anna, que apressou o movi- mento revolucionário. Apesar d'esta experiência, D. Miguel, depois de mandar seques- trar todos os bens aos que fossem implicados em revoltas e cons- pirações, creou, em 14 de julho de 1828, os tribunaes das Alçadas, para conhecerem e julgarem summariamente todas as pessoas pre- sas e implicadas no liberalismo, porque, diz o decreto, o crime de pedreiro livre c muito indigno para ser protegido por formalidades ociosas. Abriram-se devassas em todas as cidades, villas e aldeias, sem limitação de tempo e determinado numero de testemunhas. Depu- nha quem muito bem queria. A jurisprudência jesuítica e inquisitorial tornou a vigorar n* nosso paiz, como anteriormente á Revolução de 20. O confessioná- rio e as sachristias não cessavam de enviar para as Alçadas teste- munhas falsas, para comprometterem este e aquelle pedreiro livre e atheu. O jurar falso contra estes malvadir^ não era crime; os pa- dres lá estavam para a absolvição. Recomeçou o systema de espionagem no seio das famílias, nos sitios públicos, nos cafés, estalagens, casas de bebidas, etc. Portugal transportou-se ás épocas dos jesuítas e inquisidores. Ninguém fallava, que não tivesse ao pé de si upn ou dois espias se- cretos. Paes denunciavam filhos, filhos os pães; os irmãos os ir- mãos; as esposas os esposos! O primeiro signal de resistência foi dado pelos estudantes de Coimbra, que em Condei.xa assassinaram (^s lentes que vinham a Lisboa felicitar o tyranno. Foram todos enforcados! O exemplo não serviu. Em 16 de maio rebentou a revolução no Porto, de que falaremf)s no capitulo seguinte. Foi mandada áquella cidade uma Alçada composta de desembargadores, facciosos e ranaticos por D. Miguel, para tirar devassa sem limitação Je tempo e de tes- temunhas, em virtude da qual todas as pessoas que tivessem siJi» 256 encontradas com armas na mão, ou contra as quaes se adquiris- sem provas sufficientes de que tomaram parte nos acontecimentos, deviam ser julgadas em ultima instancia. Este novo exemplo tam- bém não surtiu eífeito. O exercito sentia repugnância em servir de instrumento de tan- tas tyrannias e desvarios, que levavam a pátria á ruina. Em 9 de janeiro de 1829 teve logar uma nova tentativa revo- lucionaria na cidade de Lisboa. Os corpos da guarnição d'esta ci- dade combinaram uma sublevação n'aquelle dia. O brigadeiro Moreira, acompanhado de seus filhos, apresen- tou-se em frente do quartel da brigada de marinha, de que havia sido commandante, para se collocar á frente d'ella, e marcharem para o Rocio, onde se deviam reunir aos outros corpos, para ahi proclamarem a carta e a rainha D. Maria II. N'este dia não esta- vam, nem o commandante da guarda, nem o ofiicial d'estado maior com quem havia combinação; por este motivo o brigadeiro Moreira começou a tremer e a titubiar, o que fez suspeitar que tinha vindo para tramar. O commandante da guarda deu ordem para que se fechassem as portas do quartel, e para que os soldados pegassem em armas. Depois deu voz de preso ao brigadeiro e a todos que estavam dentro do quartel, sem que aquelle tivesse presença de es- pirito para se pôr a salvo antes de cumpridas as ordens. A policia passou a prender todas as pessoas encontradas na rua. No dia seguinte pela manhã os soldados da mesma brigada, que estavam de guarnição á náu D. João VI, sublevaram-se, ou porque fosse esse o dia marcado, ou porque suppuzeram que al- gum movimento se linha operado em terra, conforme o que se ha- via combinado. A revolução abortou, ou por precepitação e pouca aptidão do brigadeiro Moreira, ou porque os regimentos se retrahiram á ulti- ma hora. O decreto que nomeia a Alçada para julgar os implicados n'a- quella conspiração diz o seguinte : • Sendo incompatível com a boa administração da justiça e com 267 a paz e tranquillidade publica, em que eu devo conservar e manter estes meus reinos, tolerar por mais tempo as continuas rebelliões, motins e traições, executadas tanto n'esta capital, como nas cidades e villas populosas, por pessoas animadas pelo espirito de iniquidade e irreligião^ entre as quaes se comprehendem algumas, a quem, pela nobreza do exercicio e fim da sua illustre profissão militar, compe- tia repellir e conter similhantes insultos, esquecidos do que devem a Deus e á pátria, com despreso das leis divinas e humanas e re- gulamentos militares, que tantas vezes juraram cumprir, para de- fender o reino dos inimigos externos e conserval-o tranquillo á som- bra das mesmas leis no seu interior, para ligar e unir todos os por- tuguezes nas regras da moral e da cordura, não teem cessado as machinaçóes e estudadas maldades sem receio, frequentemente ex- plicadas para desorganisar e obstar aos justos fins a que me pro- ponho.» Estabelece a lei marcial para os crimes militares e não militares. A commissão nomeada condemnou Moreira e mais quatro a degredo perpetuo para a Africa, e dois por dois annos. Os mais foram absolvidos, O rei D. Miguel ficou furioso, quando teve conhecimento d'a- quella sentença. Não foi para isso que constituiu o tribunal mar- cial, mas para que este condemnasse á morte todos os implicados, quer o merecessem ou não. Queria que fossem enforcados, e assim se devia cumprir. A pretexto de irregularidades, annuliou o processo, e ordenou se lavrasse nova sentença. Moreira, Ferreira Braga, Barreiros e Chaby e Scharnichia foram condemnados á hVca : João António Lopes e Bento José Antunes, que tinham ^.ido conJemnados a lo annos de degredo, foram degredados por toda a vida, tendo o pri- meiro de dar três voltas em roda da íí^rca. Moreira tilho e Alves dAguiar foram egualmente condemnados a degredo perpetuo. \í dois que tinham sido absolvidos foram depois conJen"!nado> a lo annos de degredo para a Africai Eis como o sr. Oliveira Martins narra a execução dos condem- nados por suas convicções politicas : Diz elle. 258 «Foi a 6 de março (1829) que os 5 infelizes condemnados á forca, Moreira, Braga, Barreiros, Chaby e Scarnichia padeceram no cães do Sodré. «Houve festa nas casas d'onde se via a funcção, visitas, doces, copinhos de licor, e as damas adoradas da rainha, vestidas de azul e vermelho, debruçavam-se das janellas, de óculo, como no theatro, para ver a morte dos desgraçados, balouçando-se na forca. Com os réus de morte vieram mais seis, degredados por toda a vida para a Africa e condemnados a assistir á execução; um era o filho do brigadeiro Moreira, da marinha, que observou a cabeça do pae espetada no patibulo. Além dos enforcados, além dos degredados, houve outras mortes: a viuva do brigadeiro, de afflicção, e o pae da infeliz creança (Chaby, 16 annos) executada suicidou-se. « Os infelizes foram insultados e apupados no seu transito, exa- ctamente como nos autos de fé. Morreram protestando a sua adhe- são á rainha e á liberdade ! A Alçada do Porto recebeu ordem de apressar a sentença. Devemos notar que os chefes da revolução emigraram, e que a maior parte dos revolucionários os seguiram. Era preciso, porém, dar mais um novo exemplo de rigor, padecesse quem padecesse. Foram 10 condemnados á morte e muitos degredados por toda a vida para a Africa. Duas forcas simples, madeiros grossos e toscos com uma tra- ve no cimo, foram erguidas na Praça Nova do Porto. Os apos- tólicos,/eo/<25 e frades, prepararam grandes festejos para o dia da execução. Ia haver carne fresca dos mações e pedreiros livres. O throno e o altar breve estariam livres de mais esses inimigos e mal- vados. A victoria da sua causa surgiria no meio de este novo casti- go dos rebeldes. Os realistas puros fizeram da forca o mesmo espectáculo de regosijo publico dos antigos autos de fé, por que tanto suspiravam. Os dois conventos dos Congregados e dos Lóios., um em frente do outro, na Praça Nova., mandaram preparar lautos jantares, comprar refrescos, doces, vinhos e licores para os convidados, Prepararam-se illuminações para a noite, e os grandes salões dos 260 conventos foram abertos ás innumeras famílias dos convidados. Logo de manhã, houve grande e activo movimento nas cosinhas e ucha- rias. Os empenhos eram immensos. Os frades quizeram dar uma festa de estrondo aos seus convi- dados. Este dia devia-lhes ficar de memoria e deixar-lhes gratas e agradáveis recordações. O movimento de seges e traquitanas, conduzindo as familias dos fidalgos e beatos, começou logo de manhã cedo. Chegavam apressadas umas após outras. Era um não acabar. Os frades, esfre- gando as mãos, recebiam alegres os seus convivas. Estavam-lhes preparados bons refrescos, excellentes vinhos e licores e iguarias apetitosas. Em contraste, as lojas da cidade fecharam-se, as familias da classe média e do povo retiraram-se para fora ; e a não ser a plebe faminta dos conventos e egrejas, os caceteiros, sachristas, fidalgos e seus lacaios, ninguém mais transitava pelas ruas. Seriam lo horas da manhã do dia 7 de maio de 1829, quando sahiu o préstito fúnebre da Relação para a Praça Nova. Adiante de tudo rompeu um troço de tropas; seguiu-se a irmandade da Mise- ricórdia com o seu tropheo erguido; logo depois padres e muitos frades cantando o De profundis em voz solemne e cavernosa. Atraz vinha a tumba com a competente ampulheta, foice e caveiraf junta á qual se erguia um alio crucifixo, voltado para os réus. Vinham depois estes, acompanhados de frades cantando o cantochão. Cabe- ças e pés nús; alvas longas cahindo sobre as costas; a corda com que deviam ser enforcados passada á cintura e ligada n'um molho sobre as espáduas e um crucifixo nas mãos atadas. Fechava o cor- tejo outro troço de tropas. E logo atraz vinha a multidão de cegos, leprosos e aleijados cantando o Miserere. Os dez padecentes eram Francisco Manuel Gravito da Veiga e Sousa, desembargador da Casa da Supplicação. Joaquim .Manuel da Fonseca, tenente-coronel de caçadores i i, Bernardo Francisco Pinheiro, capitão de ordenanças, Clemente da Silva Mello Soares de Freitas, juiz de lora da villa da Feira, Josc Maria Martiniano da Fonseca, bacharel, Victoria Telles de Medeiros c Vasconcellos, te- 260 . nente-coronel de milícias, Manuel Luiz Nogueira, advogado da re- lação, José António d''01iveira Lopes Barros, guarda-livros do con- tracto do tabaco e António Bernardo de Brito, contador da real fazenda. Quando o préstito entrou na Praça Nova^ as janellas dos dois conventos, estavam atulhadas de familias, rindo, conversando ani- madamente e alegres como n'um dia de festa. De todas as janellas romperam vivas ao rei nosso senhor e á santa religião. Frades, se- nhoras e homens, debruçados das janellas, acenavam com os len- ços no meio de ditos injuriosos aos pobres e infelizes condemnados e de vivas á religião. Foi um momento de delirio nas duas casas do Senhor ! A ralé nas avenidas da praça acompanhava em altos gritos os vivas; e com gestos vehementes imprecava os padecentes com phra- ses obscenas e insuhantes. Uma scena dos autos de fé. Os condemnados foram todos coUocados em redor dos dois patíbulos. De um lado, os juizes com suas vestes negras liam as sentenças, do outro, os clérigos em coro cantavam — De profiindis clamavi ad te. O juiz dizia o nome da victima, o frade que a acompanhava recitava-lhe ao ouvido : Este corpo que abraçaste, Que foi o teu prazer, Vae tornar-se em pó, em terra. Adeus, Mareia, eu vou morrer. Subia o condemnado os terríveis degráos ; a meia altura, o car- rasco cobría-lhe o rosto com o capuz branco pendente nas costas e atava-lhe os dois pés ; passava-lhe o fatal nó na garganta ; e como um tigre saltava rápido para cima do corpo semí-morto do padecente. Ao verem este balouçando no ar com o carrasco montado sobre os hombros, os frades e padres em alta voz cantavam o De profimdis^ das janellas dos conventos soltavam-se gargalhadas; davam-se salvas de palmas ; as senhoras acenavam com os lenços e a ralé 261 insultava a viciima com os nomes de malhado, patife, anda lilho da. . ., malhado, atheu, e com outros nomes injuriosos. Quando o carrasco abandonava o corpo do executado, levan- tava-se uma berraria infernal — Viva o senhor D. Miguel 1! Viva a nossa santa religião! Dez fardos estendidos no estrado dos cadafalsos e aos pés do carrasco! Em cumprimento da sentença, este pucha do bolso uma grande faca; debruça-se; descobre a cabeça do primeiro que está á mão; e corta-a com presteza. O tronco é lançado para a tumba ne- gra; a cabeça fica para seguir o seu destino. Esta operação durou muito tempo, no meio do regosijo feroz dos defensores do throno e do altar, dos apostólicos e /cotas, ao verem em linha sobre o cadafalso dez cabeças separadas dos cor- pos, cada uma com a expressão da morte e da agonia ! As cabeças do tenente coronel de caçadores e de António Ber- nando de Brito e (^unha ficaram expostos no patíbulo, a de José António de Oliveira Silva Barros foi Collocada na Cordoaria de- fronte da casa da sua habitação, para a desolada familia a veri As outras cabeças foram para as terras da naturalidade dos exe- cutados, onde estiveram expostas até os corvos as devorarem ! Paliando da execução do Cacs do Sodré^ diz todo ufano, o Cor- reio do Porto: «Queira o céo, pois, que um tal exemplo sirva de licção aos inimigos do estado, para despresarem as infames associações e pés- simas doutrinas.» Mas o exemplo, mais uma vez, não sciviu Je licção, A 7 de fevereiro de i(S3i tem logar nova sublevação na cidade de Lisboa, a qual abortou egualmente por falta de perícia dos seus chefes. Abriu-se devassa; foram presas muitas pessoas e creou-^e Alçada. No dia \6 de março, eram garrotados no Cães Jo SoJrc 7 Jos implicados. Foram-lhes decepadas as cabeças e os troncos reduzi- dos a cinzas e lançados ao mar. \'ariaram de morte e de espectáculo, como se varia Jc um bom prato para outro, para agradar ao paladar! 262 Vendo que as Alçadas provisórias não davam resultados effica- zes, D. Miguel creou então Alçadas permanentes em Lisboa e Porto, compostas de 3 magistrados e 4 officiaes militares de patente su- perior. Estas Alçadas deviam julgar de todas as pessoas implicadas nos crimes de aliciação para a revolta, sedição, ou movimentos tu- multuarios. Um dos magistrados, á escolha do presidente, seria en- carregado de fazer a instrucção summaria e verbal, sem formalida- des judiciarias, de que, diz o decreto, se tornam indignos réos de tão execrandos crimes. As sentenças deviam ser executadas impreterivelmente dentro de 24 horas. Na sua historia conta Monteiro que, requerendo-se ao presi- dente da Alçada do Porto a soltura de alguns presos conhecida- mente miguelistas, mas falsamente accusados de liberaes, respon- deu «que estava bem certo que alguns dos requerentes eram muito bons realistas, mas que, tendo sido por tanto tempo companheiros dos malhados nas prisões, era de crer que se tivessem deixado in- feccionar das idéas d'elles, e que por isso seria um passo impolitico soltal-os !» De nada valeram ainda todas essas medidas de rigor. N'esse mesmo anno, e em 22 d'agosto, tem logar em Lisboa a revolta do regimento de infanteria n." 4, que foi abandonado e até atraiçoado por outros corpos que entraram com elle na conspiração. Foram fusiladas 18 praças no dia 10 de setembro, e mais 21 no dia 24! E exactamente de então por diante que a causa liberal readquire mais força e entra em novo periodo de actividade. Um anno de- pois desembarcava o exercito liberal no Mindello, e também um anno depois entrava triumphante esse mesmo exercito na capital do reino, sendo expulso D. Miguel 1 Nem o cacete, nem as prisões, nem as Alçadas e nem a forca, salvaram o regimen chamado forte e enérgico ! Foi a mesma força e exemplos de energia que o destruíram e derribaram mais cedo. Quanto mais fraco se sentia, mais forte pretendia mostrar-se. As mesmas Justiças d'el-rei nosso senhor deixavam agonisar no ora- 263 torio os condemnados a degredo; e só depois de os terem atormen- tado bem é que lhes diziam que, forros de morte, deviam assistir de alva e corda á execução de seus companheiros ! Taes foram os actos bárbaros, violentos e de terror, que pratica- ram os que mais salientes se tornaram nas accusações e ataques aos revolucionários de 20 e á Revolução franceza ! Os realistas con- stitucionaes conservadores pagaram com os ossos a guerra que fizeram aos liberaes e vintistas. Todos cahiram egualmente debaixo do cacete apostólico e da espada vingadora da chamada justiça d'el-rei nosso senhor. O marquez de Palmella, o conde de Villa Flor, Cândido José Xavier, o conde da Taipa, Rodrigo Pinto Pizarro, o barão de Ren- dufe e outros foram egualmente condemnados pela Alçada do Porto a serem conduzidos pelas ruas publicas da cidade com baraço e pregão, uns ao garrote e outros á forca, sendo suas cabe- ças decepadas e reduzidas a cinzas com os corpos, e outras expos- tas em altos postes, e todos juntamente com Saldanha, Stubbs, José Victorino Barreto Feio e outros liberaes avançados e vintistas. O tyranno foi implacável com todos. Bom será avivar todos estes factos horrorosos dos jacobinos e demagogos brancos, ou do puro absolutismo, nas gerações moder- nas, onde elles já andam de todo esquecidos, e por isso tão pouco respeito vemos pelos princípios liberaes. Já muitos ha em nossos dias que defendem o absolutismo, igno- rando o que elle é e o que foi, e bem assim o quanto custa e cus- tou a este paiz a perda da liberdade. O livro de João Baptista da Silva Lopes devia ser distribuído de graça por todas as escolas publicas do reino. E vejam os nossos leitores o que era a justiça das monarchias européas, ou da politica internacional d'esta época. Os revolucionários de 20, que, tanto em Portugal, como na Hespanha e na Itália, foram cordatos, pacíficos, generosos c ami- gos da ordem c da legalidade, mereceram a intervenção das potencias, por os accusarem de rebeldes, facciosos, inimigos da or- dem e da paz, jacobinos e demagogos. Agora que de facto reina a 264 verdadeira demagogia, a desordem e anarchia, os tumultos nas ruas, o espancamento dos cidadãos pacificos, os morticinios ; agora que em Portugal está em acção o punhal, o cacete, a forca e todas as mais horrorosas violências e perseguições, as coroas da Europa cruzam os braços e não fazem caso algum ! Só os tumultos de dezembro de 1826 e os de julho de 1827, provocados pelas medidas reaccionárias dos governos cartistas con- servadores, é que irritaram as potencias, que se disposeram a inter- vir em Portugal ! E como todos aquelles actos do governo miguelino eram prati- cados contra o povo e em nome do throno e do altar, as coroas não se commoveram; olharam indiíferentes para todas -essas cruel- dades! CAPITULO III A REVOLUÇÃO DO PORTO l). Miguel encontra os constitucionaes divididos entre si.— Falta de unidade e de acção commum nas tentativas re- volucionarias — Os constitucionaes tentam collocará sua frente a infanta Izabcl Maria— Os agentes de I). Pedro concertam com Saldanha a vinda d'este para Portugal.— Altitude de Palmelia ante a acciamaçáo de D. Miguel.— Agitação ao norte do paiz pela acciamaçáo de D. Miguel.— A revolução planeada por uns para o dia 3o de maio, e por outros para o dia 16. — A revolução em Aveiro.— Revolução no Porto. — Hesitações c rotrahimento dos commandantes dos corpos— O governador das armas tenta resistir. — Triumpha a revolu- ção.—Conselho militar.— Manifesto do conselho militar.— Primeiros passos d'este conselho.— Eleição do governo provisório. — Nomeação do commandante em chefe das tropas. — Revolução em Braga, Q>imbra, Thomar, Santarém, .Minho, Traz-os-Montes, Beira c Algarve. — Forças de que dispunha a Revolução.— .Mani- festo da junta do Porto.— Esta lança-se na politici de Palmelia, ou dos realistas constitucionaes de 1826. — Correspondência da junta com Palmelia. — A junta addia as operações militares até á chegada de Palmelia.- Funestas consequências d'esta politica errada.— Tumultos no Porto.— O norte cie em poder dos miguelis- tas.—A junta recusa os serviços do general Claudino.— A divisão ligeira para em Coimbra.— Acção da ('.rux do Marouços.— Retirada sobre o Vouga.— (Chegada do 'Belasl. D. Miguel encontrou os liberaes e constitucionaes divididos, por causa da politica mesquinha dos conservadores. Quando o tyranno se proclamou rei absoluto, cada um procurou resistir como poude. Não houve um centro de acção, uma cabeça dirigente. Fizeram-se muitas tentativas isoladas, que abortaram por isso. Saldanha recuara diante da resistência do general Cliton; os liberaes não desanimaram por isso. Constitucionaes conservadores e liberaes, cada um pensou nos meios de se derribar a tyrannia. Formavam aqui e ali centros de resistência e de con.spirações, mas sem se entenderem entre si, e sem terem um chefe commum. Os liberaes nas suas tentativas abortadas proclamavam a carta e D. Maria II, sem quererem nada com D. Pedro; os constitucionaes conservadores proclamavam D. Pedro: mas não queriam D. .Ma- ria II. Outros não sabiam o que queriam, nem quem de\iam accla- mar; acceitavam D. Pedro e D. Maria II ao mesmo tempo. Persis- tia sempre a duvida e a incerteza com respeito aos direitos de O. Pedro e de D. Maria II. Não se sabia quem era o verdadeiro rei. 266 Os conservadores eram de opinião que D. Pedro, nem perdera a qualidade de cidadão portuguez, nem os direitos á coroa, e que a sua abdicação não se verificara, por se não terem cumprido as suas condições essenciaes. Os liberaes eram de opinião contraria e não reconheciam senão D. Maria II. Palmella era o chefe dos conservadores. Queria a carta com o puro regimen da ligitimidade. Saldanha continuava a ser o chefe dos liberaes, querendo D. Maria II para chefe do estado e as liber- dades da carta. Um e outro estavam auzentes do reino. Saldanha emigrara e com elle as primeiras intelligencias do partido constitucional e libe- ral. Fahava ao partido revolucionário um homem de confiança das tropas e do povo; não havia no paiz quem o commandasse na re- volta contra D. Miguel. Além d'isso, os conservadores olhavam com ciúme para qual- quer victoria alcançada pelos liberaes, que não queriam ver no poder ; os Uberaes receiavam da victoria exclusiva dos conservado- res, seus eternos inimigos. Assim estiveram sempre em frente um do outro. Diz Sousa Monteiro que os liberaes, antes da proclamação de D. Miguel, tentaram acclamar a carta, coUocando no governo a in- fanta Izabel Maria. D. Miguel surprehendeu a irmã a ler corres- pondências que lhe haviam sido dirigidas n'esse sentido. Ameaçan- do-a de morte, obrigou-a a assignar uma declaração, dizendo ao paiz que gente malévola abusara indignamente do seu nome, para com elle perturbar a ordem publica, e conspirarem contra o throno e o altar. Obrigou-a mais a protestar contra essas imputações fal- sas e calumniosas. diametralmente oppostas aos seus sentimentos, porque estava sempre disposta a concorrer para o bem e felicidade do reino. Nas Observações do conde de Saldanha sobre a carta dos mem- bros dajunta^ diz aquelle general que nos princípios de maio de 1828 o visconde d'Itabayana e o marquez de Rezende conversaram com elle em que, para aproveitar o tempo, o patriotismo e o espirito da nação portugueza, e particularmente do exercito^ era preciso que elle fosse a 267 Génova, onde estava a fragata brazileira l^abel^ e que se transpor- tasse á Madeira e ao PorXo^ para dirigir a insurreição próxima a ma- nifcstar-se em Portugal contra os projectos usurpadores de D. Mi- guel. Novas considerações alteraram aquelle projecto, e quando elle estava a dispor-se para atravessar a França, resolveu-se mandar vir a fragata a Falmouth, para ali embarcar. Vê-se, portanto, que antes de rebentar a revolução no Porto, aquelles dois ministros de D. Pedro sabiam da sua existência e en- viavam Saldanha para a commandar. Diz o mesmo Saldanha que o zelo dos coronéis e officiaes do regimento 6 de infanteria e de caçadores lo accelerou o movimento do Porto. O que fazia, no entretanto, Palmella, sempre inimigo politico de Saldanha e chefe dos conservadores!* Depois da convocação dos três estados, Palmella rompeu as suas relações com o governo de Lisboa e dirigiu-se a D. Pedro, para lhe dar parte do seu procedimento. Em a nota que lhe en- viou exprime-se do seguinte modo: «Seja-me permittido esperar que Vossa Magestade se dignará de approvar a minha conducta e avaliar os meus sentimentos, con- siderando que elles foram inalteráveis em todas as vicissitudes po- liticas que Portugal tem sotfrido ha ann(xs a esta parte; applico agora os mesmos princípios que appliquei no proceder que tive no anno de 20^ quando uma facção opposta á que se le}'anta hoje, bem que se encontre n'esta um certo numero d(^s que então levantaram o pendão da rebellião, conseguiu temporariamente desriar uma parte da nação dos seus deveres e lo 'ar por diante uma revolução contra o soberano e as leis.-»-) Palmella teria tido conhecimento dos planos do visconde d'lla- bayana, e teria enviado ao Porto agentes seus. para que o movi- ment(í não cahisse em poder de Saldanha!' A revolução tcr-^c-hia apressad«\ para que ella não fosse dirigida por este general, chefe dos avançados !^ O que c certo é que o governo provisório vciu parar iU mãos do> conservadores e amidos de Palmella ! 268 O norte do paiz não se manifestou tão dócil e obediente á seita apostólica e aos actos revoltantes de D. Miguel, como o sul. As representações para que D. Miguel se acclamasse rei tive- ram poucas assignaturas no Porto, e muitos cidadãos recusaram-se com levantada coragem a assignar o auto da camará da cidade, e outros protestaram contra elle. Na tarde e noite do dia 3 o de abril reuniu-se grande concurso de povo e de cidadãos de differentes classes sociaes nas ruas pró- ximas ao quartel de Santo Omdio e no vasto campo do mesmo nome, e deram calorosos vivas a D. Pedro e á carta, como pro- testo contra o que se fez na casa da camará sob a acção do cacete apostólico. Os regimentos da guarnição da cidade tiveram ordem de se recolherem aos quartéis, onde lhes fecharam as portas, para não sahirem em auxilio do povo. A ordem e segurança da cidade foram confiadas apenas ao corpo de policia. O governador das armas coUocou-se á frente d'aquelle corpo ; dirigiu-se ao campo de Santo Ovidio^ e mandou carregar sobre a multidão, havendo n'este momento muitos atropellamentos, muitas cutiladas e uma morte. O povo esperava ser auxiliado pelos regimentos ; mas estes, fechados nos quartéis e vigiados pelos commandantes, não pude- ram manifestar-se n'esta occasião. Em Aveiro a camará municipal, obedecendo também ao mesmo domínio do cacete, acclamou D. Miguel na ausência do batalhão de caçadores n.° lo, mas este, ao regressar, trancou e annulJou o auto d'aquella acclamação ! Os corpos de infanteria n.°' 3 e 9 em Braga, n.° 2 1 em Valença, n.° 12 em Ponte de Lima e n.'^ 6 em Penafiel, obstaram a que as respectivas camarás, sob a pressão dos apostólicos e do terror, se- guissem o exemplo das mais. A acclamação de D. Miguel produziu assim viva agitação e descontentamento nas províncias do norte. As auctoridades empre- garam todos os meios para comprimirem essa reacção. Paliando da prohibição do hymno da carta, diz o manifesto do conselho militar installado no Porto pela revolução, o seguinte: 209 «... era nãn só expressamente prohibido de se tocar pelas mu- sicas militares, mas inquisitorialmente era espionado quem o can- tasse até em sua própria casa, mettido em processo como dema- gogo e republicano ; e, o que é mais, até presos e castigados insi- gnificantes rapazes que o cantavam pelas ruas! Os cidadãos paci- ficos, as famílias conviventes em mutuas relações de amizade eram tolhidas da urbana e reâproca convivência ; quem apparecia pelas ruas depois das nove horas da noite era preso, desfeiteado, maltra- tado ou apalpado . . . entre impropérios próprios da verduga tropa da policia, capitaneada até em força pelos chefes que a incitavam com indignas e vergonhosas maneiras!» Segundo diz Sousa Monteiro, estava planeada a revolução para o dia 3o de maio. Os factos mostram que os que projectaram o movimento em Lisboa enviaram para as províncias do norte emis- sários, afim de aliciarem as tropas e de prepararem um levanta- mento geral. Já vimos que em principio de maio o visconde dMtabayana combinava com Saldanha os meios de auxiliar o movimento revo- lucionário em Portugal. Como mostraremos adiante, ou n'outro capitulo, os mesmos mandaram emissários para a Madeira e Aço- res, afim de animarem a resistência aos actos de D. Miguel e de sustentarem a causa de D. Pedro e da carta. fc! Palmella decerto não ficava inactivo diante da attitude de Saldanha, de cuja influencia em Portugal tanto se temia, e que não cessou de combater com toda a enerj^ia. Temos razões para acreditar que, emquanlo em Portugal o> clubs liberaes tentavam uma reacção geral á acclamação do abso- lutismo, de Londres partiram emissários, quer de Saldanha e quer de Palmella, para o mesmo fim. E d'aqui talvez a falta de unidade c de uma direcção commum do movimento, que se pronunciou antes do tempo marcado. Não acreditamos que as prisões c moJidas preventivas ordena- das pelo governo de Lisboa fossem cau^a Ja aniecipaçãn Jo mo- vimento revolucionário df) Porto, porquanto no nie^mo Jia cm que este se realisou rebentou em Aveiro, c primeiro que n'aquella 270 cidade, o que prova uma combinação anteriormente feita entre as duas cidades para os regimentos se pronunciarem no mesmo dia. E mesmo possivel que essa combinação se estendesse a Braga e Coimbra. O próprio Almeida Araújo, na obra já citada, diz que a revolu- ção do Porto se fez de combinação com os liberaes de Aveiro. E não é de suppôr que os que entraram riggsssa combinação despre- sassem o auxilio dos regimentos e do povo de Braga e de Coim- bra, que também mostravam pronunciadas tendências para a reac- ção contra D. Miguel. O sr. barão de S. Clemente diz que a noticia da prisão do coronel Francisco José Pereira, do regimento de infanteria 6, es- palhou-se no dia i6, o que motivou a sublevação d'este regimento na tarde d'este mesmo dia, mas não foi. decerto, essa a causa; por- que, logo de manhã, sublevava-se o regimento de caçadores n.° lo em Aveiro e seguia immediatamente para o Porto. Não resta, portanto, duvida de que, emquanto uns combina- vam a revolução para o dia 3o, outros entravam em combinações para a eíTectuarem no dia i6. Os movimentos simultâneos do Porto e Aveiro não foram ex- pontâneos e filhos do acaso; obedeceram a um plano d'antemão concertado. Sob que influencia se delineou essse plano? O coronel graduado de caçadores n." lo. José Júlio de Carva- lho, accordou com o desembargador Joaquim José de Queiroz levantar o grito contra D. Miguel e a favor de D. Pedro e da carta na cidade de Aveiro, no dia i6. Com effeito logo de manhã o regimento formou-se e sahiu do quartel, tocando o hymno da carta e dando vivas a D. Pedro e á mesma carta. O coronel prendeu o governador militar, o juiz de fora e alguns indivíduos mais influentes do partido apostólico. "Grande numero de cidadãos, diz Almeida Araújo, gostosa- mente se lhe reuniu e entre estrepitosos vivas ao sr. D. Pedro IV, á sua augusta filha e á carta constitucional, se lavrou o competente auto de ratificação de juramento.» 271 Depois de se ter apoderado do dinheiro dos cofres públicos, o corontl Carvalho partiu com o regimento para o Porto, acompa- nhado de muitos patriotes e paisanos. Entrou no dia seguinte pela manhãil sendo recebido com vivas calorosos pelos habitantes da cidade. Agora vejamos o que se passara no me.smo dia na cidade do Porto. O governador das armas, tendo noticia de que o coronel Fran- cisco José Pereira estava resolvido a levínitar o grito, mandou cha- mar o genro d'elle, para saber onde estava. Isto intimidou-o ; por cujo motivo retardou-se o movimento, que provavelmente estava combinado para se realisar á mesma hora em que se realisou em Aveiro. O capitão Cair, da primeira companhia de granadeiros do regi- mento, vendo que aquelle coronel não apparecia, concertou com os seus collegas sahir á rua com o regimento. Ellc mandou tocar a reunir ; os soldados correram logo ás armas ; e o regimento todo sahiu, tocando o hymno da carta, e dando vivas a D. Pedro e a D. Maria II. iMarcharam todos para o campo de Santo Omdio, afim de se reunirem aos regimentos de infanteria n." i8 e artilheria n." 4. O coronel sahiu á paisana e procurou dissuadir os officiaes e soldados de proseguirem na sua marcha. Re.sponderam-lhe com enthusiasticos vivas a D. Pedro, a D. Maria e á carta constitucional. Recolhia o coronel a casa, quando a senhora d'elle, indignada com o seu procedimento, fechou-lhe a porta, e de uma janella ati- rou-lhe a espada, dizendo-lhe — «Sê homem ••. Envergonhado diante d'esse acto de valor da esposa, tomou a espada e foi collocar-se á frente do regimento. Eram 6 hora> da tarde quando chegou ao campo de Santo Oi'idio. Aqui proclamou ao> soldados, recordando-lhcs o juramento que tinham prestado á carta e a D. Pedro, e lembrou-lhes a gloria que lhes cabia, por terem sido Os primeiros a dar o exemplo, por que todo o exercito esperava ancioso, para vingar os direitos de D. Pedro, da íilha e Jo po\T> portuguez. 272 Os commandantes dos regimentos de infanteria 1 8 e de artilhe- ria 4, de que era coronel Duarte Guilherme Ferreri, em vez de se unirem ao regimento de infanteria 6, como estava combinado, man- daram fechar as portas dos quartéis, para obstarem a que os sol- dados sahissem como desejavam. Diz Sousa Monteiro que aquelle passo, que se não esperava de homens cujos sentimentos liberaes eram bem conhecidos, talvez desa- lentasse o regimento 6, alguns paisanos e os voluntários dos extinctos batalhões de D. Pedro e D. Maria II, se os esforços do capitão Cair e de mais alguns officiaes os não persuadissem de que aquelle procedi- mento era fingido, e de que elles não tardariam a encorporar-se a elles. Não contente com isso, o capitão Cair conseguiu introduzir-se com a musica do regimento e alguns paisanos no quartel do regi- mento de infanteria i8 por um postigo que viu aberto. Elle instou com o commandante e oíficiaes para que o seguissem, mas recu- saram-se receosos. N'este momento, mandou á musica que tocasse o hymno da carta, o que surtiu o desejado effeito. Os soldados correram logo ás armas ; formaram-se ; e no meio do mais vivo transporte do seu enthusiasmo reuniram-se aos revoltosos. Só ás II horas da noite, segundo o sr. barão de S. Clemente, é que o commandante de artilheria n." 4, Duarte Guilherme Fer- reri e Henrique da Silva da Fonseca, commandante de infanteria 18, a instancias reiteradas do coronel Francisco José Pereira, resol- veram juntar-se aos revoltosos com o resto dos seus regimentos. Quasi ao mesmo tempo pronunciou-se o contingente de cavallaria n.^ 12, que eslava no Porto em serviço de remonta. O governador das armas, Gabriel António Franco de Castro, mandou reunir algumas milícias, o batalhão de caçadores n.° 1 1 e o corpo de policia. Com este ultimo marchou para as immediações do campo de Santo Ovidio. Seriam perto das 8 horas da tarde, mandou vir á sua presença o coronel Francisco José Pereira, para, por meio de pro- messas, obrigal-o a retroceder. Este respondeu-lhe que estava resol- vido a não abandonar a sua posição, sem primeiro ter restituído a D. Pedro os indisputáveis direitos que o irmão lhe havia usurpado. 273 O governador, não tendo confiança nos outros corpos, e ven- do-se sem forças bastantes para resistir, retirou-se; e na manhã seguinte sahiu da cidade com parte do corpo de policia e poucos soldados e praças de caçadores i i e com alguns magistrados. Foi juntar-se com o visconde do Peso da Regoa, governador da provín- cia de Traz-os-Montes, afim de o auxiliar a debellar a revolução. N'este mesmo dia debandou-sc para os revolucionários a maior parte do regimento de caçadores n." 1 1, e alguns officiaes do pró- prio corpo de polícia. De modo que o governador viu-se quasi só. A sabida do general, reuniram-se os commandantes e officiaes dos regimentos de artilheria n." 4, de infanieria n."' 6 e 18, de ca- vallaria n." 12 e de caçadores n.-* 11 e 10, chegado n'essa madru- gada de Aveiro; e aqui formaram um conselho militar, presidido pelo coronel Ferreri. Este conselho publicou, em seguida, uma pro- clamação mui moderada na forma e no fundo. Diz essa proclamação que a força militar reuniu-se por aucto- ridade do juramento que prestou ao rei legitimo D. Pedro IV, para o ratificar e sustentar. Uma facção rebelde desthronou o rei legitimo, para o substituir por um outro. As auctoridades, em vez de empregarem a força para manterem os legítimos direitos do rei e a cana constitucional por elle outor- gada, queriam que essa força fosse empregada para os destruir. Diz que o sangue derramado em Coruche, em Amarante, nas margens do, Prado e sobre a Ponte da Barca, estava votado á abjecção mais humilhante «(ia, diz a proclamação, a ser punido como crime o que fez o brazão da nossa honra ; tomar-se-nos-hiam conta da noNsa subordinação e obediência ao governo constiiuido que lá no^ man- dou sustentar o brio militar, o decoro da pátria, a santidade do ju- ramento e a legitimidade do ihronol» O fim do conselho militar c justo; o eco o ha de abençoar, por isso que se não jura em vão; os soberanos da Europa, alliados todos de D. Pedro e ante cujo governo figuram seu^ representantes, hão de respeitar o proceder e o caracter das tropas -iiblevaJas; e os mais companheiros d'armas hão de >.(uidiuval-as na sua b.onrada empre/.a. 274 Os do conselho protestam, á face de Deus e dos homens, que ninguém mais do que elles respeitam o infante D. Miguel, como logar-tenente do irmão, legitimo e jurado rei de Portugal ; mas em- quanto a facção que o rodeia lhe menoscabar os sentimentos ex- pressos de um juramento ainda superior ao d'elles, são obrigados com respeitoso sentimento a considerar como impotente a sua von- tade governativa. Termina dando vivas a D. Pedro e D. Maria II, á carta, a D. Miguel, como logar-tenente do irmão, e á religião que presidiu ao juramento que prestaram. Occorre agora perguntar qual o motivo do retrahimento, das hesitações e até da recusa do presidente do mesmo conselho, e do commandante do regimento de infanteria n.° i8, a entrarem no mo- vimento. O coronel do regimento de infanteria n.*' 6 parece que foi por medo do governador das armas ; mas não teria havido divergências entre aquelles dois coronéis e os mais chefes da revolução a res- peito do caminho que esta deveria seguir ? Quereriam elles compri- mir os primeiros Ímpetos dos officiaes e soldados, evidentemente inspirados e influenciados pelos clubs e paisanos que os seguiram ? A moderação da primeira proclamação será devida á influencia d'esses chefes timidos e moderados? Os factos mostram que elles estavam compromettidos no movi- mento, que se retrahiram á ultima hora e contra o que todos espe- ravam, e que se empregaram altos esforços para que elles se deci- dissem a acompanhar os revoltosos. E o conselho militar vem a cahir nas mãos exactamente d'esses chefes timoratos! O seu primeiro passo foi enviar ao bispo exem- plares da proclamação, para os mandar distribuir pelos parochos da diocese, e outros ao chanceller, servindo de governador das jus- tiças na relação, para os transmittir ás auctoridades suas subordi- nadas. Também enviou exemplares da mesma proclamação aos cônsules das diíferentes nações, para elles os transmittirem aos res- pectivos embaixadores na corte de Lisboa, «para conhecimento, diz a circular, dos públicos sentimentos de que se acha animada a tro- 275 pa portugueza, e que boatos sinistros^ ou mal interpretados ^ podem inverter maliciosamente. ^^ E acrescenta que os membros do conselho esperam que o seu proceder terá a approvação dos soberanos da Europa, attento o cui- dado respeitoso que houve de se guardar todo o decoro ao caracter do infante D. Miguel como logar tenente do rei D. Pedro. No dia i8 publicou um manifesto narrando os factos passados depois da chegada do infante, e os vexames que foram infligidos aos povos, a fim de arrancarem d'e]les pedidos para se acclamar D. Miguel. Diz que este se acha coacto pelos que o cercam ; e por isso se afastou do caminho marcado pelo irmão e a carta constitucional. «Determinar, acrescenta o manifesto, porém, as circumstancias do termo d'essa coacção pertence á madura reflexão de pessoas doutas^ tementes a Deus., respeitosas ao rei^ fieis á carta e de confiança pu- blica. E este o fim do conselho militar: escolher indivíduos reves- tidos de prerogativas tão eminentes.» Diz que não tem sido possível ainda concluir esta escolha, que anda entre as deliberações do conselho, que segue tomando as me- didas de precauções militares para o socego publico, emqiianto as auctoridades ecclesiasticas e civis seguem nos seus ordinários cami- nhos. E termina declarando que o conselho militar não tarda a con- cluir os seus imprescriptiveis deveres. Três dias esteve o tal conselho de militares tímidos e mui mo- derados a meditar na escolha de pessoas ;;»// tementes a Deus^ e res- peitosas do rei., que deviam compor o governo provisório ! Foi o próprio conselho militar que escolheu os eleitores para o tal governo, convocando só as pessoas da sua inteira confiança ! Na interlocução dirigida pelo presidente do conselho á pequena e diminuta assembléa de eleitores desculpa-se elle de não ter con- vocado geralmente pessoas de todas as classes sociaes, porque o tempo e as circumstancias o não permittiram ! Ao meio dia do dia 20, reuniram-se na casa da camará as pes- soas convocadas pelo conselho militar, e aqui elegeram o governo provisório, que íicou composto da seguinte forma : Presidente, o 276 tenente general António Hypolito da Costa ; vice-presidente, o co- ronel Duarte Guilherme Ferreri; Vogaes, o desembargador Ale- xandre Thomaz de Moraes Sarmento, o coronel Francisco da Ga- ma Lobo Botelho, Christiano Nicolau Kopke, o desembargador José Joaquim Gerardo Sampaio e Francisco Ignacio Vanzeller. O conselho militar tinha deliberado primeiro que o governo se compuzesse de um presidente, de um vice-presidente e de cinco vogaes. E por essa forma se elegeu um governo provisório de pessoas doutas, mui tementes a Deus e respeitadoras do rei, tendo por pre- sidente um octogenário obeso, sem acção, energia e valor. A junta nomeou para secretários do expediente ao desembarga- dor Manuel António Vellez Caldeira, ao dr. Joaquim António de Magalhães, e ao tenente coronel do regimento n.° 4 de artilheria, José Baptista da Silva Lopes, para secretario do expediente militar. No dia 2^^, nomeou o secretario Vellez Caldeira ministro do reino e da fazenda, o secretario e desembargador Joaquim José Queiroz ministro dos negócios ecclesiasticos e da justiça, o secreta- rio, tenente coronel Silva Lopes ministro da guerra e marinha, e o dr. Magalhães ministro dos negócios estrangeiros, Jorge d'Avillez foi encarregado do commando em chefe do exercito de operações; mas como estivesse gravemente enfermo, por ter fracturado o terço inferior da perna direita, a junta não teve quem o substituísse senão o seu presidente, o velho general Antó- nio Hypolito da Costa! No dia 17, os regimentos de infanteria 3 e 9 reunidos em pa- rada levantaram o grito do Porto na cidade Braga. O governo de Lisboa tinha demettido do governo das armas da província do Mi- nho o tenente general António Hypolito da Costa; este entregou o governo ao tenente coronel Serrão de infanteria n.° i5, por ser a patente mais graduada que estava na cidade. Em a noite de 18 convidou os commandantes dos corpos e alguns officiaes ; expoz- Ihes os motivos da sua demissão ; disse-lhes que na qualidade de tenente general estava disposto a servir a causa de D. Pedro; todos o apoiaram, e convidaram-n'o para tomar o commando das forças 277 da província, e pediram-lhe que marchasse com ellas para o Porto. Annuiu e partiu logo, chegando a esta cidade no dia 20, em que foi eleito para presidente da junta. O vice-reitor da universidade de Coimbra, assim que teve co- nhecimento dos factos occorrrdos no Porto, mandou reunir as milí- cias de Coimbra, Figueira, Aveiro, Louzá e Soure. O destacamento de cavallaria, depois que se ausentou a companhia de caçadores n." 1 1, começou a apoiar os opostolicos da cidade. No dia 22, pela manhã, appareceu nos geraes um ediíal suspendendo os actos aca- démicos, e ordenando aos estudantes que se retirassem para os seus districtos dentro de 24 horas, sob pena de desobediência. Ne- nhuma d'estas medidas surtiu effeito, porquanto ás duas horas da tarde o mesmo vice-reitor, acompanhado do conservador, do bispo, juiz do crime, coronel de milícias de Coimbra e seu filho e alguns estudantes, retirou-se á pressa da cidade, e seguiu pela estrada de Lisboa, protegido pelo regimento de milícias de Aveiro e pelo des- tacamento de cavallaria 7. Reuniram-se immediaiamente muitos estudantes com vários cidadãos, e dirigiram -se á casa do. corregedor e juiz de fora. Aqui deliberaram a pronipta acciamação de D. Pedro e da carta. listan4o reunidos os regimentos de milícias da Figueira e Coim- bra na praça de Samsão, ahí levantaram o grito no meio de en- thusiasticos vivas das tropas, do povo e dos estudantes. Encorpo- rados dirigíram-se á casa da camará, onde concorreram os vereado- res; e aqui renovaram o juramento prestado a D. Pedro e á carta. O commando das forças foi entregue ao tenente coronel do re- gimento de mílicías da Figueira, Fortunato da> Neves Mascare- nhas e Mello. Ao major José do Carmo Lima toi confiado o com- mando do regimento de milícias de Coimbra, e ao major. Io>c Joa- quim Gomes Fontaura o do regimento Ja Figueira. No mesmo dia 22, estes publicaram uma proclamação ao> ha- bitantes da cidade, dizendo que obedecerão ã junta do l'orto, ate que se forme um governo estável, conforme as ordcn>< de D. Pedro. Os estudantes oífereceram-se para formarem o batalhão acadé- mico, que a junta tratou logo de organisar. 278 Os regimentos aquartelados em Valença, Guimarães, Penafiel e outros pontos do Minho, adherem á junta e partem para o Porto. No dia 25 o capitão do esquadrão de cavallaria lo, que se achava em Bragança, adhere também e marcha para aquella cida- de, seguindo a estrada da ponte do Cavez. Seguem-lhe o exemplo os batalhões de caçadores 7, 9 e 12 que estavam na mesma provin- da de Traz-os-Montes. A revolução passou á Beira, sublevando-se os corpos que esta- vam em Vizeu, os quaes adheriram ao movimento do Porto e pro- clamaram D. Pedro e a carta. Toda a guarnição da praça de Al- meida seguiu o mesmo exemplo. O que é, porém, para admirar é a rapidez com que o movimento revolucionário passou ás provindas do sul, mais próximas do go- verno de Lisboa. O batalhão de caçadores n.° 2, aquartelado em Thomar, pro- nunciou-se primeiro que a cidade de Coimbra. Eis como o sr. Martins de Carvalho nos explica a attitude d'a- quelle regimento. O conselheiro José Silvestre Ribeiro, ha pouco fallecido, e que frequentava o quarto anno da faculdade de direito, assim que soube da Revolução do Porto, sahiu de Coimbra para Thomar com as proclamações da junta. Chapéo de abas largas, com um grande laço azul e encarrrado e disfarçado, partiu o arrojado estudante pela estrada fora. Por todo o caminho foi mostrando ao arrieiro o maior enthusiasmo pela causa miguelista, e grande furor contra os constitucionaes. Levava as proclamações da junta dentro dos canos das botas. Por acaso encontrou-se, ao almoço na hospedaria de Thomar, com um official do regimento de caçadores. Travou conversa, e começou a fazer enthusiasticos elogios a D. Miguel e ao governo de Lisboa. O official enfureceu-se e protestou. O estudante disfar- çado, ao ver-se diante de um correligionário, não poude conter-se de alegria; deu-lhe um abraço e em seguida descoseu os canos das botas, sacando as proclamações que passou a ler. Partiram ambos para o quartel do commandante do regimento, que os recebeu com 279 indizível alegria, que se communicou immediatamente ao batalhão e a todos os liberaes de Thomar. O commandante, Homão José Soares, depois baráo de Cacilhas, mandou reunir o regimenio, e no dia 2 1 marchou com elle para Coimbra, vindo pelo Espinhal. Chegando aqui, fez alto, para saber o que tinha occorrido n'aquella cidade. José Silvestre Ribeiro partiu para Coimbra, onde encontrou a revolução já triumphante. Acompanhado de vários amigos re- gressou e deu parte d'este acontecimento. No dia 2 3, partiu com o regimento, chegando n'esse mesmo dia áquella cidade no meio de uma recepção enthusiastica da academia e dos habitantes. Diz o mesmo sr. Martins de Carvalho que os miguelistas nunca perdoaram aquelle acto a José Silvestre Ribeiro e aos que o acompa- nharam na sua aventura ; e que se aquelle não tivesse emigrado, teria lido a sorte do tenente coronel de milícias de Lousã, cuja ca- beça foi espetada em um pinheiro no terreiro de Samsão da cidade de Coimbra. No dia 24 pronunciou-se em Santarém o regimento de infante- ria n.*" 10 e o regimento de cavaliaria do mesmo numero. Ambos se puzeram em marcha para Coimbra, onde chegaram no dia 27. O regimento de infanteria n." 2 3, aquartelado em Leiria, tam- bém esteve prestes a sublevar-se, esperando que o exercito do Porto entrasse n'aquella cidade para se pronunciar, O afroxamento das operações do exercito do Porto demorou aquelle passo impor- tante; e Povoas entrou rápido n'aquella cidade, levando comsigo i> regimento, que por isso permaneceu fiel. A revolução passou da Extremadura para o Algarve. Assim que no dia 2 5 constou em Lagos a revolução do Porto, sublevou-se o primeiro batalhão do regimento de infanteria n. j com as milícias da cidade e muitos habitantes. O major, Manuel Bernardo de Mello, commandante do secundo batalhão estacionado cm Tavira, junto com a sua ollicialidadc. apresentou-se no quartel general do governador das armas, o te- nente general Luiz Ignacio Xavier Palmeirim, nisse-liic que b)do> estavam resolvidos a annuUar o acto de acclamacão de D. .MÍl;uc1 280 feito em 3o d'abril, e que se elle não annuisse correria muito san- gue ; pois esperavam as tropas de Lagos. O general cedeu, por não ter forças para resistir. No mesmo dia, as tropas e o povo corre- ram á casa da camará e fizeram um novo auto de fidelidade a D. Pedro e á carta. Depois d'isto partiram as forças para Faro. Em Olhão o coronel Mendonça e o major Chateauneuf coUoca- ram-se á frente de ò companhias das milícias de Lagos, a que se foram unir as forças sahidas d'esta cidade e de Tavira. Reunidos dirigiram-se sobre Faro, mas foram repellidos e destroçados pelo regimento de artilheria. Chateauneuf foi assassinado barbaramente pelos caceteiros e apostólicos da cidade. Já vêem os nossos leitores que a reacção ao governo absoluto de D. Miguel foi muitíssimo importante e mais do que tem parecido até hoje. Com excepção do Alemtejo todas as mais províncias se suble- varam. Segundo um manifesto da própria junta, no curto espaço de i 5 dias estavam em armas para defenderem a causa da liberdade os regimentos seguintes: — cavallaria — 6, 9, 10, 11, 12, — infanteria 3, 6, 9, 10, iS, 21 e 23, — caçadores — os batalhões 2, 3, 6, 7, 9, 10, II, 12:0 regimento de artilheria 4 e algumas melicias. E orga- nísaram-se rápido 24 batalhões de voluntários em diíferentes terras do norte que adheriram ao movimento. Isto basta para se avaliar o alcance da revolução. No dia 28, a camará do Porto annulou o auto de acclamação de D. Miguel, por ser illegal, subversivo dos direitos de D. Pedro e da carta, e filho da coacção e do abuso da força. N'esse mesmo dia a junta publicou o seu manifesto, narrando todos os actos de usurpação praticados por D. Miguel, e expondo as circumstancias do paiz, quando o exercito ergueu a sua voz. Diz que os monarchas de todo o mundo riscariam Portugal das na- ções, ao verem que os portuguezes soífriam, em despeito do principio da legitimidade que fa^ia então a base do direito publico da Europa^ que fosse usurpada a coroa de D. Pedro, e ao verem que os portu- guezes não sabiam defender as instituições que magnânimo lhes 281 déra aquelle monarcha, e quebravam o juramento que lhe haviam prestado. Diz qu2 sempre foi para defender os seus reis jurados que a nação portugueza correu ás armas; e até invoca, como o marquez de Chaves, o Deus de Aífonso Henriques, protector dos reis legíti- mos. Passa, em seguida, a demonstrar que nem D. Pedro nem a fi- lha são estrangeiros, e que aquelle é que é o legitimo rei de Por- tugal, e por isso a junta está disposta a defender os seus direitos. É um manifesto de perfeitos realistas constitucionaes, e todo inspirado nas doutrinas politicas de Palmella. Parece mesmo di- ctado por elle. Um dos primeiros cuidados do governo provisório, composto de pessoas mui tementes a Deus, respeitosas do seu rei, e defenso- ras do principio da legitimidade em que se fundava o direito politico de toda a Europa, foi o estabelecer a censura previa para os jor- naes e escriptos! Por portaria de 22 de maio, manda pôr em execução o decreto de 18 de agosto de 1826 e nomeia o conselheiro João Pedro Ri- beiro, o dr. José Machado d'Abreu, o dr. António Joaquim Barjona, o bacharel José Francisco Gonçalves e xManuel Rodrigues Braga, da Congregação do Oratória, para a respectiva commissão de censurai Bastava só esta medida para se mostrar os sentimentos conser- vadores da junta, e que esta entrara claramente no caminho dos realistas constitucionaes de 1826, a cujo partido pertencia. A junta não se installou para defesa das liberdades publicas, que ficam esquecidas no meio das suas proclamações e manifestos, mas para defesa dos direitos de D. Pedro e do throno, ou do puro realismo constitucional. E como os clubs estavam influindo no exercito e tomaram parte activa no movimento, como adherissem muitos corpos aífectos a Saldanha c aos princípios liberaes, a junta, com seus naturaes instinctos conservadores, quiz logo comprimir o espirito publico com a censura previa de 1826, tão applaudida por Palmella. Ainda fez mais! Em 25 suspendeu as líarantias individuaes por espaço de dois mezes! 30 282 A politica aconselhada por Palmella aos realistas constitucio- naes de 1826 accentua-se claramente, logo ás primeiras medidas da junta do Porto! No mesmo dia em que publicou o seu manifesto, mui temente a Deus, respeitoso do seu rei e em defesa do principio da legitimi- dade, tão querida de Palmella, a junta investiu furiosa contra os partidários de Saldanha. E muito importante e notável a portaria. Diz ella. «A junta provisória encarregada de manter a legitima auctori- dade de el-rei o senhor D. Pedro W afirme nos seus princípios da carta e da legitimidade que protesta manter inalterável e por que só pugna; querendo prevenir que pessoas mal intencionadas renovem as desastrosas scenas de julho próximo passado em Lisboa^ incitando indivíduos, que pela sua desmoralisação, ou poucos annos, se tor- nam capazes de tudo, a que, por meio de palavras illegitiraas e subversivas proclamem entre os tumultos governos democráticos e revolucionários^ e isto com o depravado íim de que a justa imputa- bilidade de poucos se faça extensiva a muitos e áquelles que só que- rem o seu rei e a carta que este lhe dera.» Ordena a junta ao desembargador encarregado da policia e a todas as auctoridades civis e militares dêem todas as providencias efiicazes, pai^a que similhante plano não possa ter effeito ! Não deixa de ter muita graça, e ao mesmo tempo muita impor- tância, ver os membros da junta do Porto servirem-se exactamente da mesma linguagem da Trombeta Final e do Correio do Porto, ao referirem-se aos acontecimentos de julho ultimo! E aquella importantíssima portaria veíu denunciar claramente "que havia, quer entre os regimentos e quer entre os líberaes, plano de se reagir á política mesquinha e retrograda da junta, filiada nas bandeiras de Palmella. Os realistas constítucíonaes puros, nova- mente se insurgem contra as liberdades, para manterem o princípio da legitimidade! A junta do Porto segue todos os passos aconselhados por Can- níng e Palmella aos realistas constítucíonaes de 1826. E, receiosa de que realisassem seus planos os que, segundo ella, pretendiam 283 proclamar governos democráticos e revolucionários, dirige-se apres- sadamente áquelle ultimo estadista, dando-lhe parte de todos os seus passos e medidas, pedindo-lhe conselhos, a protecção da Grá-Bre- tanha, e que viesse tomar a direcção do movimento revolucionário, contra os que desejavam governos democráticos! Palmella respondeu a 6 de junho, dizendo á junta que a reco- nhecia como o único governo legitimo, emquanto se não constituir a regência, que, segundo a carta devesse, em tão extraordinárias cir- cunstancias, governar o paii, até se receberem ordens de D. Pedro. Diz que, emquanto não vem tomar a direcção do movimento, man- terá com a junta as suas relações diplomáticas; e faz a sua profissão de fé politica. E a seguinte. A abdicação D. Pedro não teve eífeito, em virtude dos actos de rebellião de D. Miguel, que faltou ás con- dições d'ella; e que se deve sobreestar em reconhecel-a, emquanto D. Pedro a não ratifique. Em officio de 7, respondeu a respeito do reconhecimento pela Inglaterra do bloqueio do Porto pela esquadra miguelista. Não dá esperança alguma da protecção ingleza que a mesma junta lhe pe- diu contra os absolutistas puros, e contra os exaltados liberaes e vintistas. «Pela que toca, continua Palmella, aos conselhos que vv. ex." teeni a bondade de pedir, não me eximirei tão pouco de os dar; e reduzir-se-hão por agora aos dois seguintes: Os escolhos que, a meu ver, convém evitar são, por um lado, o de se prestarem com nimia facilidade ás offertas e ás promessas que o governo de Lisboa, talvez impellido pelos diplomáticos ahi residentes, se resolverá a fazer-lhes, e por outro a darem pretextos a que possa receiar-se que uma facção jacobinica e revolucionaria se aproveite em Portugal, e talvei mesmo em Hespanlia^ da scisão que actualmente existe, para le- var a effeito planos de desorganisação. ICstes são os d(^is escolhos que eu claramente vejo. Emquanto, porem, ao modo de os evitar não me atrevo, nem é possível n'csta distancia, o suggerir idéas; e vv. ex." não necessitam certamente que eu o faça. Qualquer ajuste que não seja firmado nas mais soli- das bases deixará em breve reproduzir todos os males a que nos 284 vemos expostos, sem que haja meios para os atalhar uma segunda vez. Qualquer desmancho que possa haver no comportamento, ou na linguagem dos realistas constitucionaes fornecerá pretextos á Hespanha, para se armar em sua própria defesa, ao mesmo tempo que afastará de nós todas as outras potencias, as quaes agora, e co- meçando pela Inglaterra mesmo, olham com suspeita e receio para tudo quanto possa tender a uma nova revolução.» Sempre a ameaça do estrangeiro para se evitar que em Portu- gal se implantasse o benéfico regimen da pura liberdade ! Mas por- que não se levantavam essas mesmas potencias contra os desman- dos de linguagem, contra a demagogia desenfreada e sanguinária, contra a anarchia, violências e barbaridades que se estavam prati- cando em Portugal, em nome do throno e do altar ? E por aquelle ultimo officio de Palmella se vê que a junta re- volucionaria, o consultou também sobre o modo de se evitar que a tal chamada facção jacobinica e revolucionaria se aproveitasse da occasião, para levar a eífeito seus planos. Palmella refere-se a este escolho em resposta aos conselhos que a mesma junta lhe pediu. Palmella não se atreveu a responder cla- ramente, não só por causa de Saldanha, que estava em Londres, como também porque a junta provavelmente o informou da cele- bre portaria de 27 de maio e da commissão da censura previa. Por isso diz que os membros da junta não necessitam dos conse- lhos d'elle a este respeho. Ja tinham tomado as necessárias provi- dencias, que elle, de certo, applaudiu muito. Era esse o caminho que elle tinha que indicar-lhes. Impolitico e pouco diplomático seria, pois, apontal-o em seu ofíicio. Também é possível que Palmella, que tinha ódio e repugnân- cia pelos governos revolucionários, se apressasse a pedir a D. Pe- dro as suas ordens acerca da nomeação da regência que se devia installar no Porto, em substituição da tal junta revolucionaria, que não podia governar em nome da legitimidade e do throno, duas cousas incompatíveis. Por este motivo diz reconhecer essa junta, emquanto se não receberem as ordens de D. Pedro, e que se deve 285 sobreestar no reconhecimento da abdicação, emquanto D. Pedro a não ratificar. Era a D. Pedro que Palmella queria entregar o governo do Porto, para lhe tirar toda a macula de revolucionário e entrar-se no verdadeiro caminho da legitimidade. Tornava-se preciso, por- tanto, não se darem passos decisivos e importantes, emquanto não chegassem as ordens do Rio de Janeiro. Palmella era, por conseguinte, pelo addiamento das coisas, até áquelle momento, em que ellas entrariam em uma nova phase, e n'um periodo de acção mais enérgica e clara. A direcção do movi- mento por uma regência nomeada por D. Pedro acabaria com os receios das potencias e conteria os chamados demagogos e jacobi- nos no devido respeito. A junta provisória seguiu á risca os conselhos de Palmella, por isso que eram esses os seus sentimentos próprios. Palmella demorava-se, porque desejava primeiro receber as taes ordens de D. Pedro; e a junta demorava o movimento revolu- cionário, á espera de Palmella, e ainda na esperança de que este obtivesse o auxilio pedido á Grã-Bretanha, que em 1826 auxiliara os mesmos cartistas moderados, ou conservadores. Foi entretendo até á chegada d'aquelle homem salvador. Em vez de organisar dois exércitos, com que marchasse em defesa das terras do norte sublevadas e em auxilio da praça de Al- meida, e outro que se dirigisse a auxiliar o movimento do sul, de- morava as operações militares. Apenas formou uma divisão ligeira para marchar sobre Lisboa ás ordens de Saraiva, homem sem ta- lentos militares, como o commandante em chefe, e inhabil para tão arrojada empreza. Tanto esta nomeação, como a do velho general Hypolito, mos- tram que o governo provisório queria demorar as operações milita- res até á chegada de Palmella, e que temia qualquer victoria alcan- çada pelos que desejavam proclamar ^ortvvzo.f democráticos, antes da vinda d'aquelle estadista, em quem só ellc confiava. Rccciava dar impulso á opinião publica e que d'aqui proviesse o desenvolvimento das idéas liberaes. A junta conservadora estava para com os offt- 286 • ciaes e soldados affectos á liberdade, como os governos cartistas para com Saldanha, a cujas victorias sempre se oppuzeram. Chamamos a attenção de nossos leitores para os períodos se- guintes de um opúsculo publicado n'esta época por Rodrigo Pinto Pizarro, futuro barão da Ribeira de Sabrosa: intitulado — Observa- çõeò sobre alguns paragraphos da carta da junta — E são : «Porque não armou a junta as villas e cidades que lhe obe- deceram? Que uso fez da imprensa para exaltar o amor da liber- dade? Longe de empregar tão poderosa alavanca, ou fosse por aca- so, ou por combinações, mostrou mais receio do desenvolvimento do enthusiasmo popular^ que da inércia dos habitantes; seguiu mais á risca as máximas fementidas, sob o nome de moderação conciliado- ra, dos conselheiros que illudiram a infante regente^ desde agosto de 182J até fevereiro de 1828, que as regras do bom senso patriótico que os dictames da theoria e da experiência em matéria de revolu- ções. Se a junta tivesse dado impulso aos primeiros transportes da re- volução^ quem duvida que toda a população comprehendida entre o Douro e o Mondego se teria armado por ella ?» E diz que a junta, quer no Porto e quer em Coimbra, tivera por divisa a immobilidade. «As tropas leaes, continua o opúsculo, cuja meta e salvação era Lisboa ; as tropas, que nem um favo de mel deviam tocar senão no castello de S. Jorge, acantonaram-se no Mondego; esperaram; deram tempo ao decrépito Rio Pardo, ao tardio Barbacena, para animar, subornar e pôr em marcha as tropas do Algarve e do Alem- tejo, para as reunir em Leiria e atacar com ellas nos Marouços! Em todo este tempo, trinta e quatro dias, que fez a junta? Uma só brigada dos rebeldes esteve isolada em Leiria, nem sobre ella se marchou ! A junta não tinha perdido um só homem ; não sabia ainda o animo de que vivia uma parte da guarnição de Lisboa; os chefes e officiaes dos corpos constitucionaes estavam anciosos de marchar, de combater, valor perdido, patriotismo inutilisado! Coimbra foi Capua onde a junta se entorpeceu, o xVlondego foi o Rubicon que a junta não quiz passar. Se d'este fatalissimo paroxismo, se d'esta 287 imperdoável lentidão se tirasse ao menos o partido de retirar a guarnição de Almeida; mas nem isso!. . . » Sá da Bandeira, referindo-se á marcha do exercito sobre Lis- boa, diz no seu relatório a D. Pedro o seguinte: «Se este movi- mento tivesse sido executado com rapidez, elie teria posto um ter- mo á usurpação.» E emquanto a junta se mantinha n'esta criminosa inacção, não cessava de proclamar ás tropas miguelistas, esperando que d'ellas lhe viessem reforços contra os mal intencionados que desejavam renovar as scenas de julho. E também, como os canistas de 1826 a 1828, pu- nha a salvação da sua causa no auxilio da Grã-Bretanha, que man- dou pedir para Londres e ao ministro d'esta nação em Lisboa! O governo ficou a principio tão aterrado, que D. Miguel pen- sou em assumir o commando do exercito e collocar-se á frente d'elle, idéa que abandonou, por ser bronco e inhabil para tal mis- são. Diante da inacção da junta do Porto e das suas medidas, que revelavam profundas divergências entre o partido revolucionário, o governo de Lisboa recuperou animo. Promptamente enviou uma esquadra a bloquear a cidade do Porto; e nomeou o marechal de campo Álvaro Xavier da Fonseca Coutinho e Povoas general em chefe do exercito, de que D. Miguel seria o commandante em chefe. Povoas sahiu logo com uma divisão composta de 4 regimen- tos de infanteria e um trem de artilheria, a qual fora precedida por uma brigada de perlo de dois mil homens escolhidos de entre os corpos mais aífectos a D. .Miguel. As mesmo tempo o governo de Lisboa organisou o corpo de voluntários realistas, dividido em duas brií;adas. cada uma forma- da por dois batalhões, tendo cada um seis companhias. Nas províncias do norte (jaspar Teixeira, Álvaro da Costa c o governador do .Minho, faziam altos esforços por levantarem guerri- lhas, que supprisem a falta das tropas que n'ellas se tinham suble- vado. Esperavam com essas forças popuIare> auxiliar Povoas, que se dirigia sobre o Porto. 288 Parece ter havido grande descontentamento n'esta cidade pela politica inepta seguida pela junta e por causa da inacção do exercito, que nada fazia, emquanto marchavam contra elle podero- sas forças miguelistas, e emquanto a mesma junta abandonava com- pletamente o norte do paiz. Isto deu origem a tumultos na cidade, por cujo motivo se pro- cedeu a prisões. No dia 1 1 de junho, a junta ordenou ao major de milícias que não entregasse armas senão áquelles que julgasse dignos e capaies. N'este mesmo dia, mandou que os donos de boti- cas, lojas de bebidas, hospedarias e de quaesquer outras casas pu- blicas, não permittissem que dentro d'ellas se preferissem discursos, se praticassem actos e se espalhassem escriptos contrários á mages- tade^ diz o edital, do sr. D. Pedro /F, nosso legitimo rei, ou contra o governo provisório que em seu nome nos rege. » No dia seguinte, mandou annunciar que alguns presos, homens perdidos por sua imoralidade e crimes, tentaram perturbar o socego publico; mas o seu prompto e immediato castigo expirara as suas atrocidades. E accrescenta : «Se a instigação de outras pessoas, cujos sentimentos de trai- ção são bem conhecidos, for provada, elles servirão rapidamente de exemplo a todos os traidores no castigo legal que se lhes vae dar.» E em vez de contentar a todos, de estabelecer a concórdia e harmonia entre os constitucionaes e liberaes, e em vez de os ani- mar com seus actos, com sua conducta, com o seu apoio franco e decidido, e com um governo illustrado, tolerante e benigno, a jun- ta provisória creava a desunião, a desconfiança e o desanimo no exercito, e provocava o descontentamento em todos e no publico! Os conservadores são sempre assim. A junta provisória continuava preoccupada com as tendências liberaes manifestadas no exercito e no publico, e concentrava toda a sua acção e energia na repressão d'essas tendências, que podiam dar força e prestigio ao partido de Saldanha, que evidentemente hostilisava. Conforme em sentimentos com Palmella, queria evitar, a todo o custo, o escolho da facção jacobiuica e revolucionaria^ que podia descontentar a Inglaterra, cujo auxilio mandou pedir. 289 E com este receio não se atreveu a activar o movimento das tropas e a accelerar as operações. Não quiz dar batalha antes de chegar Palmella. No entanto as guerrilhas da Beira foram atacar audazmente a ci- dade de Vizeu, que não teve forças sufficientes para lhes resistir e entregou-se-lhes no dia 6 de junho; no dia lo as tropas liberaes foram batidas em Penafiel, perdendo munições de guerra e cavallos e cahindo muitos prisioneiros. A mesma sorte coube á praça de Almeida, em que se deixaram cercar as tropas sublevadas, em vez de marcharem para o Porto, ou em vez de d'esta cidade enviarem uma divisão importante, para proteger os corpos sublevados ao nor- te, os quaes ficaram completamente abandonados pela junta, toda attenta em vigiar a facção jacobinica e revolucionaria, que podia com- prometter o auxilio da Grã-Bretanha e afugentar as tropas migue- listas, que a mesma junta pretendia atrahir a si. Com a perda de Vizeu, de Penafiel e de Almeida, a causa do Porto ficou inteiramente perdida no norte do paiz, onde exacta- mente o governo de Lisboa tinha menos forças ! No oíficio de 2 de julho para o general Povoas diz o visconde do Peso da Regoa que na provincia de Traz-os-Montes apenas tem o regimento de infanteria n.° 1 2 fiel a D. Miguel, e que foram precisos esforços heróicos, empregados por elle e os governadores do Minho e do Porto, Franco de Castro, para conseguir o ataque a Penafiel e a organisação da pequena divisão denominada a 4.* do exercito sob o commando d'elle, com a qual partiu sobre o Porto. Tal foi o abandono em que a junta deixou as províncias do norte, que facilmente teria occupado, expulsando d'ellas o visconde do Peso da Regoa, Franco de Castro, e D. Álvaro da Costa, go- vernador do Minho, os quaes se uniram e mais tarde marcharam sobre o Porto. Diz o sr. Soriano que em Braga estava o regimento do infante- ria n." 21, um batalhão do 9. outro do 18 e vários contingentes de caçadores, além da artilheria. O general Claudino estava vigiado f^c porto pelos miguelistas na sua casa na Torro do Moncorvo, para 290 onde se tinha retirado depois da dissolução das cortes. Represen- tou á junta a impossibilidade de sahir, para se apresentar a ella, visto estar cercado de guerrilhas. E acrescenta muito bem aquelle escriptor que a junta do Porto, em vez de enviar uma divisão com- posta dos corpos que estavam em Braga na direcção de Vizeu e Lamego, onde se encontravam os batalhões de caçadores 7 e 9 e um outro de infanteria n.° 23, deixou os generaes miguelistas le- vantarem os povos contra os constitucionaes. «A junta, diz o auctor, desdenhosa do valioso apoio d'este ge- neral (Claudino) no meio do seu proceder moderado e dos desejos de jamais ultrapassar a vontade dos gabinetes estrangeiros^ não mos- trou, com eífeito, ter grande empenho em agenciar um militar de génio activo e ousado, que lhe dictaria as leis e a forçaria a obrar, o militar que demais a mais tinha contra si o ser progressista e o ter- se mostrado na camará dos deputados decididamete hostil aos perne- ciosos e subservientes ministros da infanta regente D. Iiabel Maria. Claudino, quando mais tarde cuidou em unir-se á revolução do Porto, fugindo de Moncorvo, teve a infelicidade de ser descoberto e preso, terminando seus dias muito antes da restauração do go- verno legitimo (i). Estava ahi um partidário de Saldanha; convinha inutilisal-o. Era dos taes jacobinos e revolucionários ; a sua entrada no exercito seria perigosa e um reforço para Saldanha. «Debalde, diz Silva Maia, o coronel Caiola, antes de sahir de Braga, representou á junta que elle com o seu regimento n.° 21 e mais algum reforço que se subministrasse, reunido aos voluntá- rios das villas do Minho refugiados no Porto, iria purgar a provín- cia das guerrilhas armadas por D. Álvaro e o coronel Raymundo, livrar Valença, recolhendo-se depois ao Porto, operações que pode- ria concluir em poucos dias; e não foi attendido, ordenando-se-lhe marchasse de Braga directamente para o Porto» (2). Contrasta singularmente esta inacção da junta do Porto, dis- (1) Cerco do Porto. Tomo I. pag. 261 e 262. (2) Memorias históricas da revolução do Porto de 1828. 291 pondo de importantes forças, com a actividade que desenvolvia o governo de Lisboa, depois de lhe terem passado os primeiros mo- mentos de terror produzidos pela revolução, que se tornou quasi geral. E toda essa inacção proveiu de a junta de moderados ter fica- do á espera do seu chefe Palmella, e do apoio da Grã-Bretanha contra os que desejavam proclamar governos democráticos, isto é contra os vintistas. A junta evidentemente não quiz dar nenhum passo decisivo antes da chegada de Palmella. E para entreter os ânimos irritados com a sua politica reaccionária e frouxa, mandou uma divisão ligei- ra, commandada por Saraiva, na direcção de Lisboa, mas sem in- tenção de dar batalha. E para evitar que os regimentos, onde imperavam idcas libe- raes e democráticas, se subtrahissem á sua vigilância, nomeou uma delegação d'ella, para acompanhar o exercito de operações. Não po- dia a junta dar melhor prova da sua pouca confiança n'essa divi- são que enviara sobre Lisboa. Quiz tel-a sempre debaixo da sua acção e vigilia ! Só mui tarde é que a divisão ligeira avançou sobre Lisboa. Ao chegar a Coimbra, parou ahi e demorou-se! No entretanto Povoas avançava sempre para aquella cidade e aproximava-se de Condei- xa. No dia i8 fez alguns reconhecimentos sobre Pombal, Redinha e \'enda da Cruz. Dois regimentos de cavallaria 7 e 8, o regimento de infanteria n.^ 22 e milícias de Aveiro e Soure marcharam a occupar esta villa, tão próxima de Coimbra. Foi então que o general Saraiva foi obri- gado a sahir da sua inacção. Elle ordenou ao tenente coronel João Schwalbach que na ma- drugada de ig para 20 atacasse o inimigo com os batalhões de ca- çadores n.°' 3 e 6, um batalhão de infanteria n.' 9 e um esquadrão de cavallaria. O ataque teve logar na villa da Ega, sendo o inimi- go cortado e batido, cahindo em poder dos constitucionaes 6b pri- sioneiros, entre elles i major, i capitão, i alteres e 14 cavallos. Saraiva sahiu de Coimbra para Condeixa sempre com frou- 292 xidão e sem enthusiasmo. Ao chegar a esta villa, voltou para Coimbra! Diz o sr. Soriano «O general Saraiva, ou por ordens recebidas do Porto, como alguns dizem, ou pelos seus próprios receios, não se atreveu a passar para além de Condeixa, onde no dia 2 de junho proclamou ao exercito inimigo, espantando-se de que elle não tives- se já sahido da sua apathia e indiíferença, voltando-se para as ban- deiras da legitimidade em rasão do juramento que prestara a D. Pedro e á carta constitucional. O caso de se não marchar immediatamente sobre Leiria, não só obstou a que o regimento de infanteria n.° 22, estacionado n'aquella cidade, se declarasse pela causa do Porto, mas até a que fizesse o mesmo o regimento de Peniche, donde por mar foi mandado recolher a Lisboa pelo governo miguelista, attenta a pouca confiança que n'elle tinha. Para acabar de rematar o gran- de desacerto de tão inútil demora em Coimbra, nem ao menos, du- rante este tempo, se destacou d'alli uma força destinada a favorecer a evasão da guarnição de Almeida, fazendo-a reunir ao exercito, e, para mais se paralysarem as operações militares, até se enviou do Porto para junto do general Saraiva uma delegação da junta pro- visória, que, chegando a Coimbra, em 14 de junho, de nenhum pro- veito serviu, se é que não prejudicou os movimentos e operações da campanha. Esta lentidão do governo do Porto imprimiu-lhe um certo ar de fraqueza, que produziu a falta de concorrência nos cor- pos, de quem com rasão se esperava a sua coadjuvação; effectiva- mente ninguém se une por vontade própria ao partido mais fraco ; e parada aquella concorrência, os mesmos constitucionaes parece- ram assenhorear-se de grande receio pela sua causa, que reputaram quasi perdida pela desegualdade de íorças e meios de que dispu- nham contra a usurpação» (i). Em uma nota diz o mesmo escriptor que a Revista Histórica de Portugal affirma que o general Saraiva paralysara as operações militares por uma portaria que para este fim lhe expedira a junta do Porto. Palmella estava a chegar. (ij Cerco do Porto. Tomo I, pag. 254. 293 Povoas marchava sobre Pombal; Saraiva fez um reconheci- mento sobre a Redinha, e voltou breve á sua antiga posição, não sem grandes suspeitas, diz o sr. Soriano, de se ter contentado ape- nas com a vista d'alguns piquetes. Retrogradou ainda mais, e reco- Iheu-se a Coimbra, ou por deliberação sua, ou por ordem da junta, como se affirma, resultando, diz ainda o mesmo historiador, doesta retirada uma terrível impressão de descrédito na opinião publica, e a falta de confiança nas armas constitucionaes, a quem de nada valeu a surpresa feita em Ega, onde se aprisionaram coisa de cem inimigos. E temos quasi a certeza de que Saraiva fez esta retirada para Coimbra ainda por ordem da junta. Palmclla estava a chegar, e ella queria dar-lhe a gloria do primeiro combate contra as forças de Povoas. O inimigo continuou a avançar, e apoderou-se de Condeixa no dia 24 com uma parte da divisão da vanguarda, tendo a guarda avançada ordem para occupar Sarnache, onde se achavam posta- das algumas forças constitucionaes. Logo de manhã poz-se em marcha o batalhão de caçadores n." 8 e a i /^ brigada de infanteria, parte da qual foi necessário empregar no serviço de caçadores por causa do terreno. Levaram adiante de si os postos das forças de Saraiva até a posição de Sarnache, onde se achavam quatro bata- lhões de caçadores. Os constitucionaes foram ainda levados até á Crui de Marouços^ occupando os miguelistas a principal e vanta- josa posição de Venda do Cego^ e sendo então auxiliada a força mi- guelista pela divisão da vanguarda, e pela 3.'^ divisão que se po>tou nas alturas da direita, conseguindo com auxilio da artilheria repel- lir os constitucionaes, que tentaram recuperar as suas primitivas posições com todas as forças e artilheria. Diz Sá da Bandeira, no seu relatório a D. Pedro, que a> tr<>pa> constitucionaes sustentaram, perto de 12 horas, um dos combates mais renhidos contra uma força dobrada em numero e bòccas de fogo. No campo da batalha não havia trcs mil homens; porque, contra todas as regras militares, se não haviam reunido á divisão dois ou três batalhões e um esquadrão, que a junta poderia ter en- 294 viado do Porto e Minho, porque deveria ter presente que quem é senhor da capital do reino é senhor de todo o paiz. A mesma junta abandonou Almeida, e por isso perdeu três batalhões e outros des- tacamentos de excellente tropa que guarneciam a praça, apesar das instancias de quinze dias do mesmo Sá da Bandeira, para se man- dar um batalhão com ordem de abandonarem a praça, e reunirem- se em Coimbra. Dois batalhões e dois esquadrões foram sem moti- vo algum mandados para Tentúgal, a perto de três léguas do cam- po da batalha ; e dois batalhões de milícias, apesar das respectivas observações do mesmo Sá da Bandeira, se haviam deixado na Fi- gueira. Por este motivo o exercito de operações não foi reforçado pelo menos com dez batalhões e três esquadrões, o que era bem preciso para ir sobre Lisboa. A esquerda do exercito constitucional era apoiada por uma col- lina, e a direita por uma aldeia. Duas vezes o inimigo se assenho- reou da collina ; duas vezes foi d'ella expulso á bayoneta e com me- tralha. «Deveu- se, diz Sá da Bandeira, o ganho d'esta acção ao valor dos soldados, que gastaram n'esta acção perto de trinta mil cartu- chos, á bravura dos officiaes e á actividade de alguns ofíiciaes do estado maior, que harmonisaram os movimentos das tropas, po?'- que se combateu sem projecto, sem plano e sem ordem. A junta não se participou que havíamos ganho a batalha. Generaes teem perdi- do acções e teem annunciado triumphos ; ignoro que alguém calas- se uma victoria. Este silencio fez pensar á junta que havíamos sido derrotados e o que se seguiu devia confirmal-a d'esta errada opi- nião. «O general, em logar de atacar o inimigo, como nós fortemente lhe pedimos, adoptando conselhos talvez sinceros, apoiado pelo pânico, poz-se em retirada para o Porto na madrugada do dia 27, movimento absurdo e o mais fatal para a causa da vossa magesta- de. Coimbra, forte por natureza, e onde eu, como chefe de enge- nheiros, havia levantado algumas obras de fortificação, podia ser defendida com a maior facilidade, quaesquer que fossem os movi- 295 mentos da divisão, e n^isto se havia assentado. Mas a cidade foi abandonada, como se a divisão houvesse sido batida.» E diz o valente militar que, se não se demorasse n'ella ainda al- gumas horas, teriam cabido em poder do inimigo mais de 800 ho- mens, a quem se não haviam communicado ordens algumas! No dia seguinte, diz o sr. Soriano, constou que a cavallaria mi- guelista tinha passado o Mondego no vau de Pereira, e infundiu tal terror, que a junta, sem verificar a sua veracidade^ resolveu executar uma prompta retirada sobre o Vouga, o que se verificou pela i hora da noite do dia 26 na maior desordem, abandonando-se pi- quetes, munições e todo um regimento de milícias, sem ao menos se dar tempo e o mais leve aviso ás auctoridades e pessoas com- promettidas de Coimbra, Figueira, Aveiro e outras terras, que d'este modo poderiam ser barbaramente sacrificadas! Isto é inaudito. As tropas constitucionaes teem ordem de se re- tirarem depois de uma vicioria alcançada á custa de muito valor e de muito sangue ! Foi exactamente n'esta occasião que chegou Be//<35/, conduzindo Palmella e os mais generaes que o acompanharam, e pelo qual a junta esperava a cada momento e anciosa! Não está bem explicada a ordem de retirada ? O vapor Belfast demorou-se mais do que se esperava por causa das avarias que soíTreu na viagem. Em Falmouíh a expedição es- teve 7 dias á espera de Palmella, que não chegava ; e desde o cabo Li{ard até ao Porto o vapor gastou 10 dias. Chegou pelas 6 horas da manhã do dia 26, quando as tropas constitucionaes tiveram or- dem de se retirarem sobre o Vouga! A junta não queria de maneira alguma que os regimentos, onde predominavam láéas jacobinas e revolucionarias^ alcançassem victo- ria, sem que á frente d'elles estivesse Palmella e o conde de Villa Flor, para os conterem no excesso do seu enthusiasmo. e para lhes refrearem os seus impulsos demagógicos. Saraiva não tinha força nem prestigio, e nem era pessoa compe- tente para isso. O capitulo seguinte explicará melhor os factos. 296 A retirada sobre o Vouga é que deu origem a que os miguelis- tas attribuissem a si a victoria do combate na Crui do Marouços. Essa retirada fazia crer, na verdade, em que os constitucionaes ti- nham sido completamente derrotados. Não retira um exercito vi- ctorioso. Pode-se imaginar o eíFeito que isto produziu no exercito mi- guelista. Muito fraca estava a junta do Porto para ordenar uma fuga tão precipitada, consideraram logo os generaes absolutistas. E animados com isso, depois de receberem a derrota da véspera, cahiram sobre o exercito constitucional, e foram em sua perseguição recuperados de anim.o! CAPITULO IV A BELFESTADA Saldanha combina com o visconde d'Itabayana a sua vinda a 1'oriugal.— Paimella prepara manifestações dos emi- grados para vir tomar a direcção do movimento revolucionário. — Entrevista de Palmella tom os ministros da Grá-Bretanha e da Hespanha.— O visconde ditabayana abandona Saldanha, e apoia a vinda de I'aImeHa co- mo chefe da revolução do Porto — Intrigas contra Saldanha.— Reunião em casa do visconde d'itabaya:ia, e resohiçáo ahi tomada. — Partida dos generaes no Belfasl.— Entrevista de Palmella com Saldanha na praia de Mattesinhos. — Recepção dos generaes pelos habitantes do Porto.— Palmella c testemunha da popularidade de que gosava no Porto Saldanha c Stubbs.— Nomeação de Palmella para commandante em chefe das tropas e de novos membros da junta do 1'orto. — Destino dado ao conde de Villa Flor, Saldanha, Stubbs e outros. — Descontentamento provocado por todas essas nomeações.— Saldanha quer activar as operações do exercito contitucional, Palmella oppóc-se. — Palmella envia adiante o conde da Taipa, para espalhar o terror.— Com- bate na ponte do .Marncl. — Encontro de Saldanha com o conde da Taipa nos Carvalhos.— Saldanha avança e encontra em boa orJem o exercito, que o recebe com alegria — Saldanha quer tomar a offensiva. — Palmella convida Saldanha para uma conferencia, cm que declara que está resolvido a embarcar no He/fast. — Salda- nha oiTerecese para fazer um reconhecimento c uma surpresa ao inimigo.— Palmella quer obstar a isso. — Consequências de uma victoria de Saldanha.— Palmella convoca uma reunião dos generaes.— Reunião da iuiita no dia 2 de julho. — Saldanha encarregado do commando da retirada para (ialliza. — A supposta dicti- dura de Saldanha e nomeação de uma commissão do governo.— Os officiacs e soldados recusam-se retirar para Hespanha.- Posição embaraçosa de Saldanha.— Retirada dos membros da junta e dos generaes para bordo do 'Bcl/iisJ. — Este parte para Inglaterra, emquanto o exercito constitucional é entregue á sua sorte. Diz Saldanha nas suas observações á carta dos membros da junta do Porto a D. Pedro, que logo que lhe constou a revolução no Porto, foi pedir auxilio ao visconde d'Itabayana para se transpor- tar áquella cidade. Foi-lhe offerecida uma escuna veleira que estava prompta em Plymouth. Isto parece indicar que, emquanto a junta se dirigira a Palmella a informal-o dos seus passos e medidas, a pedir-lhe conselhos e que viesse dirigir o movimento, os partidários de Saldanha, os taes a quem a mesma junta chama demagogos e revolucionários, dirigiram-se a este para os vir commandar. Accrescenta o mesmo general que no momento em que devia pôr-se em caminho com o general Stubbs, com os officiaes d'cstado maior, o c<^ronel Pizarro, o capitão Praça e tenente Thomaz Pinto Saavedra, receberam-se novas noticias de Portugal, annunciando o brilhante successo da revolução. 38 298 Á noite foi a casa de Palmella, que lhe disse ter vontade de con- tribuir para o bom resultado da causa do Porto, e pediu-lhe fizesse a justiça de o acreditar, e fosse em tudo de accôrdo com elle. Salda- nha respondeu, contando-lhe o que se havia passado entre elle e o visconde d'Ilabayana, e os generosos soccorros que este lhe queria facultar, para se transportar immediatamente ao Porto. Palmella viu o caso mal parado ; Saldanha continuava a ter o apoio de D. Pedro. Aquelle diplomata, por conselho do governo inglez, começou então a empregar todos os meios e todas as intri- gas, para que a direcção do movimento revolucionário não cahisse nas mãos de Saldanha, o protector dos demagogos e vintistas^ que a Inglaterra odiava. Por instigação de Palmella e de Cândido José Xavier, seu braço direito, os emigrados começaram a fazer manifestações a favor de Palmella, para evitarem que Saldanha partisse só. A Inglaterra não o queria. No dia 3 de junho os condes de Villa Flor e da Taipa fizeram uma declaração publica, dizendo que a revolução de Portugal não offerecia, para constituir governo, senão elementos de discórdia, que, só o marquez de Palmella poderia harmonisar. Dizem mais que, partindo para Portugal sem elle, partem sem medo, mas sem esperança alguma de que os seus serviços possam ser úteis á causa do rei e da pátria. E declaram terminantemente que Palmella é o único que poderá formar governo estável e que mereça o concei- to, tanto da aristocracia compromettida, como partido liberal. Deviam dizer do partido liberal conservador. Palmella nas suas Notas e Correspondências apresenta uma ou- tra declaração assignada no dia 7 pelos mesmos, conde de Sam- paio, Stubbs, Cândido José Xavier e pelo próprio Saldanha ! Dizem os signatários que é urgente que Palmella parta para o Porto e se encarregue da direcção do movimento, afim de não dar pretexto ás potejKias^para attribuirem a revolução a princípios idtra- liberaes, e para não buscarem meios de destruir a carta, clamando contra o jacobinismo ! E simplesmente assombrosa a assignatura de Saldanha, Stubbs 299 e do conde de Sampaio n'esse documento. A não se attribuirem ás intrigas e influencias do governo inglez, combinado com Palmella, não se podem explicar similhantes assignaturas. A serem verdadei- ras, foi cilada que lhes armaram os ministros britannicos, provavel- mente como a falsa promessa de um apoio de tropas. Prosigamos em a narração dos factos. Conta o Pitblic Ledger^ de 12 de junho, que Palmella teve uma entrevista com o duque de Wellington; e o sr. Soriano, no Cerco do Porto, diz que o mesmo diplomata é accusado de ter tido outra en- trevista com o conde de Alcudia, ministro hespanhol em Londres. Portanto combinava com os ministros d'essas duas nações os meios de se obstar aos principies ultra-liberaes e ao jacobinismo, que se manifestavam nas tropas do Porto, o que não era, decerto, em favor de Saldanha. Ahi se ajustou na maneira como Palmella se devia conduzir no Porto, para afastar aquelle general da direc- ção do movimento, e para evitar a sua influencia nas tropas e no publico que o idolatravam n'essa época. Diz Saldanha nas Observações citadas que foi convidado para uma conferencia em casa do visconde d'Itabayana, e que ficou ad- mirado de ver ahi o marquez de Palmella, o conde de Villa Flor, o conde da Taipa e Cândido José Xavier. Reconheceu-se logo a junta do Porto como legitimo governo de Portugal. Em seguida, o conde da Taipa propoz que Palmella fos- se para o Porto, onde a sua presença lhe parecia de incalculável transcendência. O conde de Villa Flor apoiou ; e Cândido José Xa- vier sustentou aquella proposta. Diz Saldanha que, apesar dos ar- gumentos d'este, o visconde regeitou a proposta, e persistiu nas medidas que tinha já tomado com Saldanha, oppondo-se ás instan- cias do conde da Taipa., o qual lhe perguntou directamente a sua opinião. Saldanha disse que achava contradictorio reconhecer o marquez a junta do Porto, e deixar a embaixada sem licença do governo reconhecido, e que julgava os serviços d'elle mais úteis em Londres, do que em Portugal. Então como é que Saldanha {-(edia a Palmella que viesse tomar conta da junta do Porto!' 300 Parece que o governo inglez interveio, e trabalhou perante o visconde d'Itabayana para o dissuadir do seu apoio perigoso ao chefe dos jacobinos e demagogos portuguezes. No dia seguinte, houve nova conferencia no mesmo local, e en- tre as mesmas pessoas. O visconde d'Itabayana declarou então que tinha mudado de opinião, e deu como coisa assente e decidida a partida de Palmella para o Porto. «Vim depois, diz Saldanha, a saber que em uma reunião, a que não assisti, tinham feito crer ao visconde que Saldanha á frente da canalha^ nome com que classificavam os liberaes, únicos súbditos fieis á causa da senhora D. Maria II, era mais perigoso, que o infan- te D. Miguel á frente dos Silveiras :^^ E accrescenta muito bem que, se todos tivessem partido logo na escuna que o devia conduzir de Plymouth, grandes males se teriam poupado. Saldanha não diz onde teve logar a reunião. Teria sido em casa do duque de Wellington? E ponto de fé que tudo isso foi manobra do governo inglez, que se empenhava então em fazer reconhecer o governo de D. Mi- guel, e não queria, por forma alguma, ver os portuguezes livres, e sobre tudo os malditos vintistas novamente no poder. Palmella con- tinuava a ser um instrumento da politica ingleza, no seu ódio aos liberaes e democratas, que também não queria ver no poder em Portugal. Ficou decidido que Palmella fosse o encarregado de dirigir o movimento revolucionário do Porto. Saldanha resignou-se, e acom- panhou a expedição para acceitar o encargo que lhe destinas- sem. Antes de partirem, tiveram nova reunião em casa do visconde d'Itabayana. Palmella foi encarregado de passar a escripto o resul- tado d'esta reunião. Foi o seguinte : (( I .° Todos os portuguezes que se acham presentes ratificam a protestação da sua fidelidade ao seu soberano e legítimos succes- sores, na conformidade da carta constitucional, outorgada pelo mesmo soberano, e manifestam o desejo de se transportarem quanto 301 antes para Portugal, aíim de tomarem parte activa na defesa dos direitos legitimes de D. Pedro. «2.° Em consequência d'estes mesmos principios, todos elles de- claram reconhecer como governo legitimo, emquanto se não formar a recenda em conformidade da caria, aquelle que se installou na cidade do Porto em nome de D. Pedro IV, e para o fim de restaurar a legitima auctoridade do dito senhor em Portugal, nos termos da declaração por elles assignada e annexa ao presente acto. «3.° O ministro do Brazil, em nome da sua corte declara reco- nhecer da mesma forma o governo do Porto, e está prompto a prestar-lhe toda a cooperação official que d'elle dependa. * «4.° O mesmo ministro entregou ao marquez de Palmella um ofíicio que lhe dirige e vae também annexo a este acto, especifi- cando quaes são os fundos que poz á disposição do embaixador de D. Pedro em Londres, tanto para o immediato transporte a Portu- gal dos signatários da conferencia e dos mais portuguezes que qui- zerem reunir-se á expedição, como para habilitar o governo instal- lado no Porto a supprir as despezas urgentes que exigem as cir- cumstancias em que se acha.» Quem não vê em tudo isto obra exclusiva de Palmella ? Diz ainda o sr. Soriano que este estadista é accusado de ter arrancado de Saldanha uma declaração por escripto, em que se responsabili- sava por em tudo andar de concerto com elle ! A expedição do Belfast foi, desde o seu principio, uma cilada armada a Saldanha, hostilisado pela Inglaterra e Palmella, por ser chefe do partido liberal avançado, ou progressista, defensor da so- berania nacional. Palmella, inimigo de revoluções, nunca teria sahido de Londres, se não fosse a attitude tomada por Saldanha, a quem os liberae^ do Porto convidaram para os vir commandar, Veiu para obstar á influencia d'elle no Porto, onde era estimado e tinha grande presti- gio, desde o dia em que obrigou a rcgenle a mandar jurar a carta, como nossos leitores já sabem e viram no logar competente. Palmella sentiu mesmo grande repugnância em partir; demo- rou, tanto quanto poude. a sua viagem. 302 Diz Saldanha que elle não julgava própria para si a escuna que estava prompta para seguir viagem, e que desejava esperar por um paquete que devia chegar de Lisboa. Fretou-se o vapor Belfast^ que estava por concertar e tão arruinado, que na viagem para Falmouth soffreu consideráveis avarias, sendo preciso reparal-as em um dos portos do canal. Ao sahir de Falmouth^ rebentaram as caldeiras, arribando a Ribaden para as concertar. Em Falmouth^ onde o vapor esteve 7 dias á espera de Palmella, este ainda queria demorar-se mais tempo, á espera do paquete de Lisboa! Tudo isto prova a má vontade e repugnância com que elle partira para meio de revolu- cionários. O vapor chegou a Mattosinhos no dia 26, apesar do bloqueio. Ahi mesmo na praia disse Palmella para Saldanha que não igno- rava a popularidade que gosava em Portugal, principalmente no Porto; mas lembrava- lhe que se tornava necessário não sepa- rar-se d'elle, nem attribuir-se uma ascendência, d^onde poderia re- sultar grandes prejidsos para a causa, visto as idéas de que alguns gabinetes se achavam possuídos a este respeito. «Não era, accrescenta Saldanha no opúsculo citado, esta a pri- meira vez que diante de mim se repetia ser bastante o meu nome á testa, ou no ministério em Portugal, para dar a certos governos suspeitas de republicanismo.» A junta foi esperar os generaes a Mattosinhos ; e estes foram recebidos no Porto no meio de festejos e da maior alegria de toda a população. Palmella viu 'então com seus próprios olhos a sympathia que Saldanha tinha em toda a cidade, e foi testemunha do prestigio que elle dispunha, quer no exercito, e quer no povo. Apesar do enthusiasmo, a população não distinguiu ninguém no acto da recepção dos generaes e officiaes vindos no Belfast, comtudo, pouco tempo depois, Palmella reconheceu que as attenções voltavam-se todas para o seu rival, e que era inevitável a ascendên- cia d'elle na população e no exercito. Estava no Porto, não somente Saldanha, mas o estimado gene- ral Stubbs, seu amigo intimo, isto é os dois homens de julho, cujas 303 scenas a junta e Palmella não queriam ver renovadas por forma alguma. Mas como evitar que esses dois generaes, queridos do povo e do exercito, tomassem activa preponderância em os negócios pú- blicos e nos destinos da revolução? Palmella nem militar se podia chamar; era inhabil para condu- zir as tropas á victoria; a nomeação do conde de Villa Flor trazia grave descontentamento no exercito e na população do Porto, por verem excluido Saldanha. Mesmo o conde de Villa Flor mostrou -se frio e reservado n'esta occasião e com pouca vontade de prestar ser- viços. O único que se manifestou verdadeiramente animado e com bons desejos foi Saldanha. Esta é que é a verdade. Mas, se este general ganhasse a primeira victoria ao lado de Stubbs, o que seria da junta, dos planos de Palmella combinados em Londres e dos seus compromissos com as potencias? Palmella fez todas essas considerações ; e no mesmo dia em que chegou combinou com os membros da junta a sua nomeação para commandante em chefe do exercito e a do conde de Sampaio, de D. Filippe de Sousa Holstein, irmão do marquez, e de Cândido José Xavier, seu braço direito, para membros da junta ! Palmella, pouco tempo depois de chegar ao Porto, procurou Saldanha, e participou-lhe que a junta o queria nomear comman- dante em chefe ; mas que receava que isso oífendesse o seu melin- dre. Saldanha não se oppoz, dizendo-lhe que serviria em qualquer posto em que o collocassem. Com eíTeito n'esse mesmo dia appareceram aquellas nomea- ções. O conde de Villa Flor e Saldanha foram nomeados para servi- rem no exercito de operações, tomando o logar que lhes competia segundo a patente e antiguidade. O tenente-general Stubbs foi se- parado de Saldanha, e entregaram-lhe o commando da divisão de operações do norte, que não estava ainda organisada. c tendo este cahido inteiramente em poder dos generaes migueli^ta^. como os noss(os leitores viram ! Ao velho general Hypolito foi con liado o governei das armas do Porto, e ao marechal de campo graduado. FraiKÍ>co de Paula 304 Azeredo, o governo das armas da província da Beira, também já em poder dos miguelistas! Como a nomeação ridicula do general Stubbs o oífendesse, porque era um perfeito ludibrio, foi preciso tirar o governo das ar- mas ao general Hypolito, e entregal-o a elle, que da mesma maneira ficava fora do exercito de operações I Quem não vê em todas estas nomeações manobras do astuto diplomata ? Para que não nos accusem de parcial, cedemos o logar a um outro escriptor: «Estes despachos, diz Silva Maia, causaram a todos que tinham alguma penetração bastantes preconceitos sinistros, de occultos tra- mas^ porque observavam em todos a maior incongruência, e a junta- sahiu fora das formulas que até então havia seguido. A nomeação de Palmella era uma violação ás leis militares, que até ahi obser- vara a junta, porque Palmella, considerando-se só como patente mi- litar, era inferior como marechal ao conde de Sampaio e a Stubbs, tenentes-generaes, a todos os mais respeitos inhabil para comman- dar um exercito ; não tinha a confiança dos soldados, primeira qua- lidade que devia ter; não tinha nenhuns conhecimentos da arte da guerra, porque nunca soube mandar uma parada; apenas tinha servido por algum tempo no estado maior, e quasi toda a sua vida empregado na diplomacia, e adquiriu graduação militar, como é costume em Portugal ás pessoas da sua classe, pelo favor da corte, em recompensa de serviços sem serem militares ; pelo contrario os dois tenentes-generaes que eram preteridos gosavam da melhor opinião e tinham a confiança do exercito. «A junta desculpava-se d'esta illegalidade, dizendo que, existindo inimiiade entre os condes de Villa Flor e Saldanha, fora necessário escolher para chefe o marquez de Palmella, afim de desfazer aquella inimizade, devolvendo o commando ao conde de Villa Flor e d'este no Saldanha, que era o querido do exercito; fatal desculpa; tanto podiam fazer a reconciliação entre aquelles dois condes e Palmella, como Sampaio e Stubbs. A verdadeira causa foi excluir a 305 estes últimos do cominando^ que decerto não anmnriam aos planos de Palmei la^ por isso mesmo que assai proíbas tinham dado de cara- cter e lealdade de seus sentimentos. «Se este despacho do marquez de Palmella para general em chefe mostrava, pela sua incongruência, que a junta estava affectada de novos sentimentos^ os outros despachos ainda melhor o eviden- ciaram. Que auctoridade tinha a junta para alterar a sua primitiva organisação, augmentando a seu bello prazer o numero de seus membros ? Receberam a instrucção do conselho militar que orde- nou aos eleitores que escolhessem somente sete membros ; haviam participado ao soberano a sua inauguração, sem receber d'este or- dens, não podiam fazer semelhante augmento de membros; pois que se ella já tinha o defeito dos corpos collectivos em ter muitas pessoas, mais augmentava o defeito, augmentando o numero de seus vogaes. » Depois de ter feito o quadro das forças de que dispunha a junta, accrescenta : «Se os aristocratas quizessem de boa fé servir a causa da legi- timidade e da carta, se elles não viessem de Londres imbuídos na machiavelica politica da santa alliança., inspirada arteiramente pelo duque de Wellington ao marque^ de Palmella.^ e se os adherentes não viessem animados também como ellcs, ou como elles também enganados por aquelle astuto duque, este brilhante quadro das forças e recursos dos constitucionaes deveria reanimal-os e excital-os a emprehenderem bater os inimigos, e com tanta mais vantagem, que todas as forças reunidas em frente da divisão de Grijó, apenas exce- diam ás d'aquella divisão em 3oo cavallos, e havendo-sc espalhado entre elles a noticia da chegada dos nossos generaes, os ha\ia abatido, quanto reanimado os constitucionaes.» (i) Saldanha requisitou do governo um mappa circumstanciado das forças etfectivas do exercito constitucional. Soube então que cm Grijó estava uma divisão composta de 3:6oo baionetas, 400 caval- los e 20 peças de campanha, em \'all()ngo uma sci^unda divi>ão, composta do regimento de infanteria n." 21, contingentes de linha 11) Meniori.is citadas. 306 e voluntários do Porto, ao todo i:ooo baionetas, e que na cidade estavam os contingentes de infanteria n° i8, artilheria n.° 4, corpo académico, voluntários de diversos districtos, reaes fiisileiros, mili- cianos, fazendo ao todo 2:600 baionetas, além de 4:000 a 5:ooo ci- dadãos armados, companhia de bombeiros, policia provisória. Mostrou-se-lhe mais que nos cofres existiam 20o:oooí:í50oo réis effectivos, aléní das avultadas offertas de muitos negociantes, que havia abundância de viveres e de munições de guerra de toda a espécie, e que as tropas estavam possuídas do maior enthusiasmo por se baterem com o inimigo. Saldanha quiz marchar logo para o exercito de operações, o que, se tivesse conseguido, o exercito miguelista teria soffrido tal- vez completa derrota no Vouga, como mostraremos adiante. Palmella entretinha-se, no emtanto, a fazer combinações e de- morava a partida! Nem ao menos organisava o seu estado maior! Apesar das instancias de Saldanha, addiou a sabida para o dia seguinte. Foi ainda preciso que Saldanha o procurasse de novo no dia 28, para o obrigar a partir para o exercito de operações, o que se eífectuou pelas 7 horas da tarde. E preciso notar bem que Palmella teve o cuidado de mandar adiante o conde da Taipa. Para que? A ser verdade o que nos conta Magalhães na sua Analyse ás obsevpações do conde de Saldanha^ encontrou-se com aquelle emis- sário de Palmella em Albergaria-a- Velha, suppomos que no dia 27. O que se passou entre ambos ? E difiicil saber-se, senão impossí- vel. Diz Magalhães que na madrugada do dia 28 foi com elle vêr o exercito que marchava sobre a ponte do Mamei, onde eííectiva- mente se postou. Voltaram ambos para Albergaria, e ahi tiveram noticia de que o inimigo, apparecendo sobre o Vouga, parecia que- rer atacar as posições do exercito constitucional. Dirigiram-se então segunda vez áquelle rio, «tendo, porém, diz o próprio auctor do opúsculo, observado que apenas havia um tiroteio de postos avança^ dos ; tornámos a Albergaria, de onde o conde na tarde doesse dia par- tiu em direitura ao Porto.» E accrescenta que acompanhou o conde, não só pelas instancias 307 que elle lhe fez para isso, como também por julgar necessário vir até Oliveira de Azeméis, onde deveriam ter chegado, segundo as noticias officiaes, Palmella, Villa Flor e Saldanha. Como assim não acontecesse, e o conde continuasse a sua mar- cha para o Porto, passou a noite n'aquella villa. Agora vejamos o que se passara na ponte de Marnel^ onde Magalhães observou apenas um tiroteio de postos avançados^ e de onde se retirara immediatamente para Oliveira d'Azemeis na com- panhia do emissário de Palmella. Oiçamos o sr. Soriano : Diz este escriptor na obra citada que, depois da retirada de Condeixa, os liberaes na maior confusão pararam no rio Vouga, e tomaram posições onde bem lhes pareceu, emquanto a delegação da junta, a que pertencia Magalhães, seguia caminho para Oliveira d'Azemeis, e o quartel general avançava, indo estabelecer-se em Grijó, duas léguas do Porto! O commandante e officiaes, envergonhados d'essa retirada de- pois da acção da Crui de Morouços^ resolveram por si bater-se com o inimigo, e defender as suas posições novas. Pelas 9 horas da manhã do dia 28, os miguelistas atacaram a ponte do Mamei com toda a violência. Por umas poucas de vezes tentaram romper as posições, atravessar a ponte e as passagens do pântano, outras tantas vezes foram repellidos. «Por mais de 9 horas, accrescenta aquelle escriptor, a ponte do Mamei e as passagens d'este pântano foram o theatro de repetidos ataques e o alvo do mais intenso fogo de artilheria e mosqueteria entre as numerosas forças do inimigo e as poucas tropas constitu- cionaes que as repelliram.» A acção durou 9 a 10 horas, sendo sustentada quasi exclusiva- mente por caçadores. Os constitucionaes ficaram senhores das suas posições toda a noite seguinte. Só um batalhão do inimigo perdeu para mais de 200 homens entre mortos e feridos. Dirigiu o com- bate Sá da Bandeira. E diz este que ainda se não participou á junta aquella victoria! Palmella, Saldanha e \'illa Flor, tinham partido do Porto ás 7 308 horas da tarde ! Aquelle punhado de valentes náo puderam ser soc- corridos por elles a tempo. Só na madrugada do dia 29 é que aquelles generaes chegaram a Oliveira de Azeméis. Pelo caminho encontraram o conde da Taipa nos Carvalhos. Este, assim que os viu, começou a gritar — Fujam, fujam! A cavallaria inimiga passou o Vouga em Angeja e occupa a estrada que vão seguir! — «Isto, diz Saldanha, dito com ar de terror aterrou o marquez, que setn mais esclarecimentos quiz voltar para o Porto, se o Salda- nha lhe não observasse a perturbação do conde da Taipa. O mar- quez, mais animado, avançou, encontrando o tenente César, do 4 de cavallaria que se retirava ferido e dera noticias exactas do com- bate do Vouga ; avançou ainda, mas encontrando no caminho um sargento e dois milicianos que se achavam aterrados como o conde da Taipa, o marquez retrocedeu. Saldanha ficou com o seu ajudante d'ordens, o capitão Praça e o capitão Albino Pimenta d'Aguiar do 1 2 de cavalaria e o coronel Pizarro, que, apesar de estarem ás or- dens de Palmella, preferiram acompanhar Saldanha.» Teria sido aquella comedia representada pelo conde da Taipa a missão de que o encarregou Palmella? Parece que o sargento e os dois milicianos, por instigações do conde da Taipa, declararam que as tropas liberaes tinham sido cor- tadas e batidas completamente! Saldanha com os seus oflficiaes marchou ao encontro d'aquellas tropas, sem se persuadir, diz elle, que fossem cortadas e batidas de tal sorte, que estivessem anniquiladas. E não se illudiu. Encontrou-se depois com os membros da junta, que acompanhavam o exercito para o Porto. Pediram-lhe en- carecidamente que se não expuzesse, e que retrogradasse, mas elle oppoz-se, e avançou, obrigando o coronel Gama Lobo e o dr. Maga- lhães a voltarem com elle ; ficou em Oliveira d'Azemeis. Salda- nha continuou a ir ao encontro das tropas que se retiravam sobre aquella villa, sem serem perseguidas por força alguma inimiga! «Em todos os exércitos, diz Saldanha, as retiradas successivas des- moralisam os soldados, mas os de Sua Magestade vinham animados do melhor espirito. ^y 309 O facto de os membros da junta pedirem a Saldanha para re- trogradar, afim de se não expor, não mostra uma combinação com o conde da Taipa, e o desejo de o affastar do exercito? Foi o conde da Taipa que fez espalhar por todo o caminho e pelo exercito o boato falso da passagem da cavallaria inimiga. Ainda no dia i de julho apparece uma participação official do próprio conde de Villa Flor, dizendo que lhe consta que na véspera, ou no dia 3o, pelas 5 horas da tarde, chegara a Oliveira d'Azemeis um destacamento de cavallaria e outro de injanteria inimiga, mas que ainda não appareceram na sua frente! E como foi que o conde da Taipa colheu essas informações, se se retirou da ponte do Marnel^ logo que ouviu os primeiros ti- ros e o combate durou 9 horas? Parece indubitável que elle foi mandado adiante, para espalhar o terror pelo caminho, e para com elle obstar á marcha de Salda- nha para o exercito de operações. Diz ainda aquelle general. «O desalento que espalhou no Porto a súbita apparição do marquez de Palmella na madrugada immediata foi sobejamente publico.» E é fácil de se avaliar essa impressão. O próprio dr. Magalhães, dizendo que Saldanha encontrou o exercito liberal pouco mais ou menos a meia légua de Oliveira de Azeméis, accrescenta. «Ahi se manifestou em todo o exercito o maior prazer á vista do general.» E mais adiante diz o seguinte, que é muito importante: «Quando voltámos para Oliveira d'Azemeis com o general Sal- danha, depois de ter visto desfilar o exercito, fomos todos almoçar ao quartel do mesmo general, onde se assentou em continuar a re- tirada sobre o Porto, devendo toda a divisão, depois de descançar e comer o seu rancho, ir ficar n'essa noite nas visinhanças de ( irijó. Sendo então a opinião do gcncraL como já n 'outra parte tiremos oc- casião de mencionar, que, logo que ella se reji^iesse do que lhe faltava, deveria tomar a offensiva atacando o inimigo. » Conta Saldanha que enviou Pizarro ao Port<>, para participara 310 Palmella o estado do exercito e communicar-lhe a sua retirada até Grijó, onde o major Bernardo de Sá devia marcar o campo. E diz que em Oliveira d'Azemeis os officiaes pediram-lhe que recusasse a auctoridade da junta e do marquez de Palmella, o que achamos de toda a verosimilhança. Na madrugada do dia 3o, as tropas liberaes acamparam em Grijó. Ahi compareceu então Palmella, que passou rápida revista a cada corpo, e voltou logo para o Porto. No dia i de julho acam- pou o exercito em Santo Ovidio, perto de Villa Nova, para melhor se organisar e fornecer, diz Saldanha. N'este dia Palmella voltou ao campo, sem ter ainda tomado nenhuma medida! Logo que aca- bou de visitar todos os postos, convidou Saldanha para uma con- ferencia no seu quartel, onde reuniu o conde de Villa Flor e Cân- dido José Xavier, e convidou Pizarro. Ahi fez um quadro doloroso da situação, concluindo que a revolução estava perdida, que, nem elle, nem os que vieram no Belfast^ eram culpados do tempo que a junta havia perdido, nem das ordens mal concebidas que havia dado ao general Saraiva, e por isso estava determinado a embar- car para Inglaterra e convidava-os a seguil-o. Tanto Saldanha como Pizarro desapprovaram a retirada, que viria acabar de tirar a força moral á revolução, o que está de accordo com a opinião do próprio Magalhães, quando affirma que Saldanha queria que o exercito tomasse a offensiva. Palmella desistiu, e Saldanha offereceu-se para na madrugada seguinte fazer um reconhecimento, ao que aquelle annuiu; mas re- commendando-lhe que não passasse dos Carvalhos. As 2 horas da noite, Saldanha marchou com 800 homens, acom- panhado do general Saraiva. Chegando aos Carvalhos, não encon- trou piquete inimigo, e por isso avançou até Grijó; e só d'aqui é que descobriu uma patrulha que fugia. Soube então que os migue- listas se estendiam de Ovar para Santo António e Oliveira d'Aze- meis. Voltou ao campo, tendo estabelecido communicações que em a noite seguinte o deviam prevenir da approximação do inimigo, e com a idéa de empenhar-se com Palmella, para que lhe consen- tisse tentar uma surpreza n'essa mesma noite. 311 E possível que Palmella já estivesse informado do enihusiasmo com que Saldanha foi recebido pelo exercito, mal o viu, c do pe- dido que lhe fez para abandonar a junta e a auctoriJade d'elle. Palmella estava completamente desauctorisado, tanto perante o exercito, como perante a população do Porto, onde as suas demo- ras e hesitações, as suas idas e retiradas successivas do campo de operações, produziram desagradável impressão. N'estas condições como podia conter as tropas e o publico, que fatalmente se volta- vam para Saldanha, o único que até ahi se portara bem e mostrara desejos de fazer alguma coisa? Em taes circumstancias, um acto audacioso e uma victoria de Saldanha tornavam-n'o inevitavelmente senhor da situação. E en- tão lá iam por agua abaixo os compromissos de Palmella com a Inglaterra e mais potencias, e a tal politica conservadora até ahi seguida. As coisas entrariam em uma nova phase e alcançariam o poder os demagogos, os jacobinos, os revolucionários, os exaltados e os demónios dos vintistas. E certo que, se o paiz se libertasse por si mesmo, não sabemos qual o caminho que a revolução seguiria diante das hesitações, das condescendências de D. Pedro com o irmão e do pouco caso que mostrou n'esta occasião pela a sorte de Portugal. A missão do marquez de Santo Amaro poderia ter sido bem fatal para elle. Triumphante o povo e o paiz por seus próprios esforços, não sabemos mesmo se a carta se manteria. A sorte da carta estava fatalmente ligada á pessoa do dador. Palmella, receioso de tudo isso e dos que desejavam proclamar de novo a Revolução^ quiz evitar por todos os modos que Salda- nha tirasse partido das circumstancias com o prestigio de uma victoria ganha n'este momento contra os absolutistas puros. O mesmo que em 1826 e 1827, em que a politica dos cartistas, inspirada por Palmella e a Inglaterra, se oppoz sempre a ]ue o mesmo general tomasse ascendência sobre o exercito e sobre o paiz, para que se não voltasse a 20. Saldanha, ao chegar ao campo pelas i i horas da manhã do dia 2, na idéa de apresentar o seu plano a Palmella, foi por este convi- 312 dado para uma nova conferencia, a que também convidou o conde de Villa Flor, Stubbs e Cândido José Xavier. O marquez tornou a repetir que tudo estava perdido, que era inútil e arriscada toda a resistência, que o exercito inimigo era muito superior ao do Porto, e que todos deviam embarcar n'essa noite. Saldanha recusou-se naturalmente. N'este momento, chegou Vellez Caldeira, dizendo que a junta estava reunida e os convidava para uma conferencia, que udo leva á supposição foi preparada por Palmelía, que foi adiante predispor os ânimos de Saldanha e Stubbs e dos mais officiaes. Partiram; e seriam duas horas da tarde estavam todos reuni- dos na sala das sessões. A junta nem perguntou a Saldanha pelo resultado do seu reconhecimento! Moraes Sarmento pediu a palavra. Disse que Valença cahira nas mãos do inimigo, e que se presumia ter outro tanto succedido á praça d'Almeida, visto não haver noticias d'ali ; que as tropas commandadas pelo coronel Caiolla e ultimamente pelo general Azeredo tinham sido obrigadas a retirar-se de Braga e Guimarães para Vallongo, onde as ameaçava a divisão do conde do Peso da Regoa e de Gabriel António Franco de Castro. Expoz que D. Ál- varo da Costa, á frente das tropas que reunira no Minho, avançava também pela estrada de Villa do Conde ; que a força commandada por Povoas excedia a 10:000 homens, e que a força dos outros três generaes excedia a 9:000! Disse que, ainda que as tropas acampa- das em Villa do Conde pudessem repellir o ataque, a divisão do general Azeredo não podia impedir a entrada dos miguelistas na manhã seguinte na cidade do Porto. Concluiu declarando que, em vista d'isto, a junta resolveu dissolver-se^ e mandar retirar as tropas para Galliza. A junta desejou no emtanto ouvir a opinião dos ge- neraes. Saldanha foi o primeiro a pedir a palavra. Disse que tendo chegado apenas ha 6 dias, e passado a maior parte do tempo no campo a cuidar só nos meios de defeza, não tinha informações para oppôr ao que acabava de ouvir. Admittido, porém, que tudo fosse verdade, achava um expediente melhor. 313 Logo que chegou ao Porto, perguntou ao governo que viveres e re- cursos havia na cidade, e estava bem certo terem-lhe respondido que existiam mantimentos para mais de 7 mezes. Sendo assim, e reunida toda a força, elle compromettia-se a defender a cidade á maneira de Saragoça. D'este modo podiam esperar soccorros e ordens de D. Pedro. Pouco faltou para lhe chamarem doido ! Os nossos leitores, em presença de todos os factos e relacionan- do-os bem entre si, julgarão da verdade d'aquella affirmativa de Saldanha. A defeza da cidade do Porto, que mais tarde resistiu heroica- mente ao cerco dos miguelistas, era a primeira idéa que se oílerecia a quem mesmo tivesse medianos conhecimentos da sua posição importante, e a quem estivesse animado de bons desejos. E o pró- prio dr. Magalhães, que escreveu com evidente desejo de o com- prometter perante a opinião publica, confessa que Saldanha era de opinião que se resistisse ao inimigo. Vellez Caldeira, como secretario da junta, declarou que se tinha recebido participação de que o Porto ia ser atacado da parte do norte pelos três generaes já citados, com grandes forças^ e pelo sul pelo exercito de Povoas. O tenente-general Sampaio pediu a opinião do governo sobre 06 pontos seguintes : Se conviria arriscar uma batalha em Santo Ovídio, ou retirar-se o exercito sobre o Porto, cortando a ponte, e entrar no Minho ; bater os generaes que occupavam esta província, e depois, seguindo a fortuna das armas, passar á Beira Alta, para reunir ao exercito a guarnição de Almeida. Ou se conviria sustentar-se no Minho, emquanto se pudesse, e retirar-se em ultimo recurso para Galliza. A junta decidiu que não se devia arriscar uma batalha alem do Douro. Magalhães diz que Saldanha, que 5 dias antes fora de parecer que, logo que o exercito se provesse do que lhe faltava, devia tomar a otfensiva, já n'este dia não fura do mesmo parecer I 4U 314 Os nossos leitores avaliarão da verdade d'esta affirmativa. A junta deliberou a retirada para Galliza, que, segundo nossa humilde opinião, estava d'antemão combinada com Palmella. Conta Saldanha que Magalhães lembrou a idéa de se annunciar aos habitantes do Porto a resolução tomada, mas que Sarmento observou que o povo os assassinaria, se tivesse conhecimento de tal deliberação. Sarmento desejou saber se alguns membros da junta queriam acompanhar a divisão ; exceptuando Gama Lobo, Magalhães, Quei- roz e Caldeira, todos responderam que embarcariam. Caldeira, talvez também de combinação anteriormente feita com Palmella e outros membros da junta, propoz a Saldanha o acceitar o commando da retirada. Recusaram-lhe o commando das tropas, para as não conduzir á victoria, e agora ofFerecem-lhe o commando para as conduzir na retirada, sem darem uma batalha como elle desejava ! Agora a junta já não acha perigosa a presença de Salda- nha á frente do exercito ! Não ha maior perfídia ! Parece não restar duvida que Saldanha acceitou esse encargo, apesar da má fé com que lhe foi offerecido. A junta deu-se logo por dissolvida, e cada um tratou de se pôr ao fresco, embarcando para Londres, deixando o pobre Saldanha entalado, e bem entalado ! Falando dos discursos aterradores que Palmella e Cândido José Xavier proferiram na conferencia, diz Silva Maia o seguinte : «Quizeram responder a isto dois membros da junta, mas foram logo combatidos pela maioria ; decidiu-se, emíim, que, visto o estado de apuro em que se achavam e a junta não ser reconhecida pelo gabinete bvitannico, considerando-a revolucionaria filha de inna facção militar^ o exercito devia retirar-se para Hespanha.» E possível que haja confusão de idéas no trecho acima trans- cripto. Não foi porque a junta fosse revolucionaria, porque deu sobejas provas do seu conservantismo e do seu espirito reaccionário. A junta resolveu a retirada e a sua dissolução, para evitar que o mo- vimento cahisse nas mãos dos revolucionários e jacobinos, o que a Inglaterra não queria por forma alguma. 315 Isto contrariava os compromissos tomados por Palmella com o gabinete britannico, ao sahir de Londres. E, antes que Saldanha, com a sua costumada energia, desse um golpe decisivo nos absolutistas puros, coUocando-se á frente das tropas constitucionaes, que deram tantas provas de valor, quizeram arrastal-o para a Hespanha, conduzindo esse mesmo exercito n'uma retirada vergonhosa ! Como no periodo de 1826 a 1828, esses mesmos conservadores preferiram a victoria dos absolutistas puros á victoria dos puros liberaes e vintistas. Saldanha á frente da canalha era mais perigoso^ que D. Miguel á frente dos Silveiras. E Palmella enviou adiante o conde da Taipa, para espalhar o terror com que depois os membros da junta deviam justificar o seu procedimento e a sua deliberação, tomada muito tempo antes da reunião do dia 2. De accordo com Palmella, já iam com essa idéa assente, e os discursos proferidos foram d'antemão preparados. Para se avaliar a falsidade das informações dos membros da junta, basta dizer que no officio do mesmo dia 2 de julho o vis- conde do Peso da Regoa, a quem Povoas ordenou avançasse sobre o Porto, responde-lhe que dispõe de mui poucas forças para facili- tar as operações d'elle, e que de maneira alguma pode adiantar-se das alturas de Vallongo, porque será destroçado pelas tropas cons- titucionaes concentradas no Porto, (i) Silva Maia, dizendo que na reunião se exaggerou as forças de Povoas, accrescenta que na realidade não excediam a 3:()oo pra- ças. Já vimos que o mesmo auctor calcula esta divisão excedente apenas em 3oo cavallos á divisão constitucional, que estava em Grijó. E também ridículo o susto da divisão do general Franco de Castro e de D. Álvaro, quando estes apenas traziam comsigo guer- rilhas mal armadas e incapazes de se baterem com tropas regu- lares. O sr. Soriano e mais escriptores são unanimes em mostrar que ( i) \'idé Ga-^íta de Lisboa. 316 OS membros da junta quizeram espalhar o terror entre os generaes que assistiram á reunião. Representaram, sim, a mesma comedia que o conde da Taipa nos Carvalhos, ao encontrar-se com o general Saldanha. Todos os documentos por nós consultados e todas as testemu- nhas dos factos mostram que a reunião do dia 2 ficou em dissol- ver-se a junta e entregar-se o com mando da retirada a Saldanha. Magalhães, que no seu opúsculo bem mostra que foi auctor das difFerentes comedias que representou n'este transe tão triste, vae mais além, para fazer cahir todo o odioso e toda a responsabilidade sobre Saldanha. O tom e o estilo farçante em que está escripto aquelle opúsculo denunciam bem o seu pensamento a quem for mesmo critico medíocre. Em todas as passagens nota-se o pensamento reservado de desconceituar o adversário. Ao contrario, o opúsculo de Saldanha é simples e singello no estylo e em a narração dos factos. Diz aquelle membro da junta, em defeza dos actos d'esta e de Palmella, que sobre o modo de se eíFectuar a retirada o irmão do marquez lembrou a necessidade de uma dictadura ! Esta idéa foi abraçada e ampliada pelos desembargadores Sarmento e Sampaio com a nomeação de um logar-tenente em nome de D. Pedro^ por ser mais adequada aos nossos costumes. Foi indicado Palmella para esse logar. Diz que a junta não podia continuar tão numerosa, o que era incompatipel com a celeridade de resoluções que as cir- cumstancias exigiam^ mórmejite nas continuas marchas que o exer- cito teria defa^er. Oiçamos o auctor na sua linguagem de comediante: «A estas reflexões, diz elle, seguiu-se um estado de profunda melancholia na assembléa, parecendo árduo obrigar alguém por uma nomeação para se encarregar do goperno; ninguém, comtudo, se oíFereceu, sem embargo da reflexão feita pelo marquez de Palmella, de que uma tal commissão convinha que fosse conferida a quem espontaneamente se ofFerecesse para ella. «Depois de um não pequeno silencio disse o desembargador Caldeira : 317 "O momento é critico e condem que sejamos francos ; dos senho- res generaes presentes o que tem mais influencia no exercito é o sr. general Saldanha. O silencio continuou ; o desembargador Caldeira proseguiu, vol- tando-se para o general. — Então o sr. João Carlos não ha de aban- donar-nos n'estas circumstancias.» «O general, que também se tinha conservado mudo e reclinado sobre os copos da sua espada, disse — Parece que o fado me tem ta- lhado para ser o que tome sobre mim esse encargo. Eu me ofFereço a ficar., apesar do desamparo da minha familia. «Apenas o general acabou de fallar, muitos louvores lhe foram dados por todos os membros da junta; e o conselheiro D. Filippe de Sousa propoz que todos se obrigassem por escripto a sustentar a familia do general, e a cuidar da educação de seus filhos, no caso que elle fosse victima de tão nobre resolução. Todos concordaram ; e o general Saldanha com as lagrimas nos olhos respondeu que, sendo pobre, não se despresava de acceitar esta offerta, que muito agra- decia. O marquez de Palmei la disse que aos louvores dados ao ge- neral accrescentava que a sua conducta n'aquelle momento era tan- to mais digna de louvor, quanto elle marquei.^ se tivesse sido nomea- do., confessava que não se achava com forças para acceitar. «Tratou-se, pois, de lavrar a sobredita obrigação e a nomeação do general do que foi encarregado Magalhães na qualidade de se- cretario. » Então levantou-se Saldanha, dizendo que ia fazer algumas dis- posições; dentro em pouco voltou, dizendo que se encarregava so- mente do que dizia respeito ao exercito, e que desejava companhei- ros para o governo. Magalhães e Gama Lobo olfereccram-se para isso. Deliberou-se que o governo fosse entregue a uma commissão permanente, sendo presidente Saldanha com o commando cm che- fe do exercito. «Então o general nos disse. Meus companheiros, eu vou dar as disposições, para se começar a elfectuar a retirada esta noite: ás dez horas nos encontraremos no quartel de Santo Ovídio ; e com isto sahiu.» 318 Magalhães foi encarregado de lavrar a portaria creando a nova commissão e de escrever a obrigação de que se fallou acima. «Feito isto, accrescenta Magalhães, todos aquelles que em virtude do que se havia deliberado tinham cessado de pertencer ao governo despediram-se de nós e sahiram a cuidar da sua viagem. » E tudo espantoso! A nomeação de uma dictadura e de um governo em nome do rei para acompanhar um exercito na sua retirada para paiz es- trangeiro não lembra ao demónio. Mas para honra do próprio auctor do opúsculo, ou da defesa da junta, isso não passa de uma grosseira invenção d'elle, para tirar de cima da mesma junta toda a responsabilidade dos actos poste- riores e lançal-a a cargo de Saldanha. A ser verdade tudo isso, seria uma pagina bem negra e nefanda da nossa historia politica. Quem não vê em toda a passagem acima transcripta uma seducção a Saldanha, para o comprometter n'uma empreia ardua^ que deixou a todos em profunda melancholia^ e para a qual o próprio Palmella confessara não se achava com forças bastantes ? Que repugnante que é essa attitude hypocrita attribuida a Vel- lez Caldeira, que, depois de ter adulado a vaidade do general, vol- ta-se para elle, que se conserva silencioso; e com diabólica perfí- dia diz em tom melifluo. — Então o sr. João Carlos não ha de aban- donar-nos n'estas circumstancias ! Palmella é de opinião que se não obrigue ninguém a acceitar esse encargo, que deve ser dado somente a quem se offereça ex- pontaneamente ; e a junta exerce pressão sobre Saldanha; excita- Ihe a vaidade; e insta com elle para que acceite! A resposta atiribuida a Saldanha mostra que elle acceitou con- strangido e ante essa pressão da junta. E a explosão de louvores cabidos sobre a cabeça da victima ? Quem não veria ahi a expressão de contentamento de todos, por se verem livres da carga de responsabilidades que pesava sobre elles ? Saldanha acceitava com as lagrimas nos olhos; e cada um reti- 319 rava-se á pressa, para arranjar malas e fugir immediatamente para o estrangeiro, deixando no perigo aquelle contra quem não cessa- ram de conspirar até esse momento ! E por muita generosidade as- signaram uma declaração, responsabilisando-se pelo sustento e edu- cação da esposa e filhos da sua victima, no caso de fallecer na em- preza árdua e arriscada em que a metteram ! Se tudo isso, que é assombroso, fosse verdade, seria indubitá- vel que desejaram desfazer-se de Saldanha, como os jesuitas se desfizeram do infeliz D. Sebastião, atirando-o para os selvagens da Africa na expedição a Alcacerquibir. E quem procedia com tanta deslealdade e perfídia com o adversário, quem lançava mão de um meio tão traiçoeiro para o comprometter, seria também mui capaz de o mandar assassinar pelo caminho. Não faltariam occasiões para isso. Se todos os membros da junta estavam persuadidos de que seriam assassinados pelos habitantes da cidade, se lhes annunciassem a deliberação da reti- rada para Galliza, mais convictos estavam de que as tropas se su- blevariam muitas vezes pelo caminho, como de facto aconteceu. K n'uma d'essas sublevações seria fácil darem cabo da vida do gene- ral que commandava a retirada. Em toda essa passagem do opúsculo do dr. Magalhães vê-se o pensamento de assassínio planeado contra Saldanha, para darem cabo do chefe do partido liberal, que tanto estava incommodan- do a elles e ás potencias. E os conservadores de todos os paizes são bem férteis n'estes recursos na sua permanente conspiração contra a liberdade. Mas para honra de Palmella e dos mais membros da junta não acreditamos na tal dictadura, nem em tudo quanto a este respeito escreve o dr. Magalhães. É pura invenção d'estc. para livrar a junta de todas as responsabilidades posteriores e para a justilicar da sua fuga vergonhosa, querendo lançar todo o odioso sobre Saldanha. Tanto quizeram ferir a victima. que bateram cm si próprios O golpe que desejavam descarrci^ar sobre aquclla vciu a cahir so- bre quem o despediu. Diante d'aqucllas passagens da defesa da junta quem liça em 320 odiosa situação não é, de certo, Saldanha, é a própria junta e Palmella. Chamamos também a attenção de nossos leitores para a tal in- ventada declaração para o sustento da viuva e dos filhos de Salda- nha, no caso de que este fallecesse na retirada. Palmella, Cândido José Xavier, Magalhães e os mais membros da junta, eram, por- ventura, homens abastados de fortuna ? Como podiam assumir tal responsabilidade pessoas que mal tinham com que sustentar-se ? E Saldanha era tão destituído de rasão, que deixasse a sorte da es- posa e filhos na dependência de uma tal declaração, que não tinha valor algum legal e assignada pelos seus inimigos ? A analyse de similhante opúsculo levar-nos-hia a muito longe. E se tudo o que fica exposto não fosse ainda bastante para pro- var mais esta comedia representada pela junta, ou por Magalhães, seria sufíiciente a maneira como este conta como Saldanha banha- do em lagrimas acceitou a offerta dos generosos membros da junta. Mas a portaria, perguntarão nossos leitores, que nomeou Sal- danha dictador, onde pára, onde foi publicada? A isto responde Magalhães de uma maneira extravagante. Diz que foi a casa do dr. Barjona e que ahi appareceu D. Manuel da Camará da parte de Palmella a pedir-lhe uma copia da tal portaria^ para ser publicada em Londres. Ahi mesmo tirou Barjona a copia requesitada e entre- gou-a ao oííicial. Magalhães andou á procura de Saldanha por differentes pontos da cidade; não o encontrou; foi a bordo do Belfast^ não estava lá; foi encontral-o a bordo do brigue Cordelie, d'onde elle se passou para o Belfast. Em seguida diz que n'aquella occasião se perdeu de Barjona, que, vendo-se obrigado a voltar para terra, rasgou todos os papeis que se achavam n'uma pasta, entre os quaes a portaria em questão! Mas porque é que Palmella não publicou em Londres a copia d'essa portaria? Diz Saldanha que a bordo do Belfast Palmella nunca lhe fallou em similhante portaria. Parecendo-nos provada que a tal dictadura e nomeação do go- 321 verno, em que entrava o próprio Magalhães, é pura invenção d'este, vejamos agora o que fazia Saldanha, depois de se ter encarregado do commando da retirada. Diz elle que sahiu da reunião, para tomar algumas medidas, e que foi jantar a casa do barão de Rendufe, onde encontrou Pal- mella e Cândido José Xavier. Depois do jantar, Palmella chamou-o á parte, e disse-lhe que não era para admirar que os soldados se Conspirassem, ao verem-se conduzidos á Hespanha, sem nada se lhes dizer, que seria conveniente convocasse os officiaes, e que, se estes se compromettessem pela disciplina, os acompanhasse, mas que não se arriscasse. Lembrou-lhe que elle em Londres e em casa do visconde d'Itabayana lhe prometteu obedecer em tudo ás ordens da junta. Saldanha foi ao campo; convocou os officiaes; e disse-lhes que, segundo as noticias obtidas pela junta, era mui perigoso arriscar uma batalha na margem esquerda do Douro, e que a opinião da mesma junta era retirar-se o exercito para a Galliza. Declarou-lhes que os não abandonaria na retirada, mas que era preciso lhe declarassem se contavam para isso com a disciplina do exercito. Todos os chefes, diz Saldanha, assombrados d'uma tal propos- ta, responderam que para Hespanha não iam de modo algum. O tenente coronel Schwalbach respondeu que em caso tal dividiria o seu corpo em guerrilhas, e se conservaria por onde pudesse, prefe- rindo todos morrer em Portugal, do que depor as armas em Hes- panha. Saldanha pediu-lhes uma declaração por escripto; fizc- ram-n'a. Todos os historiadores e escriptores estão de accordo com essa attitude nobre e valorosa tomada por todo o exercito liberal, ao ter conhecimento da resolução da junta. E não era preciso isso; basta saber que pelo caminho os regi- mentos se sublevaram varias vezes, dizendo com desespero que era vergonha fugirem para Hespanha, sem ferirem uma batalha. Foi preciso o valor de Sá da Bandeira para os conter. Diz muito bem Saldanha que não podia tomar sobre si resolu- 41 322 ção alguma; porque os chefes não podiam ver n'elle senão um ór- gão do governo; porque não lhes fora communicada oííicialmente a nomeação d'elle para o commando da retirada, o que é verdade. Seriam i o horas da noite, procurou Palmella ; soube então que já estava a bordo. Escreveu aos dois membros da junta que resol- veram acompanhal-o na expedição, dizendo-lhes que os comman- dantes dos corpos se recusavam a seguiFo ; e que por isso se via na impossibilidade de cumprir a sua missão. «A voz de traição, já tinha ferido os meus ouvidos; receioso que me fosse impossivel manter o socego na cidade e a subordinação nas tropas, visto a disseminação e posições em que se achavam; não me julgando auctorisado a alterar aquillo que se tinha conven- cionado na ultima sessão, pensei na melindrosa coUisão em que me coUocava a duvida dos chefes, e que tornando a consultar o marquez de Palmella, o presidente e os membros da junta, al- gum expediente poderia achar-se que a todos nos tirasse do emba- raço. » Foi a bordo do Belfast, onde encontrou já todos os generaes que vieram n'elle, excepto Pizarro e Saavedra, e encontrou também seis membros da junta. Palmella foi de opinião que Saldanha se retirasse com elle. Diz Saldanha que tanto na cidade como no campo já havia a idéa de se ir atacar o vapor Belfast, prestes a sahir. E acreditamos n'isso. Na mesma hora em que Saldanha foi a bordo do vapor, para de novo conferenciar com os membros da junta, Magalhães sahiu da casa de Gama Lobo, para com este ir a Santo Omdio juntar-se áquelle general. N'este momento chegou o capitão Álvaro Pimenta com o ofíicio de Saldanha. Eis como a este respeito se exprime Magalhães: «Porque razão nos dirigiu elle a sua carta n.° i3 do quartel ge- neral de Santo Opídio ? Elle escreveu-nos como membros da junta governativa ; mas a junta governativa estava dissolvida e d'essa um de nós (Magalhães) era apenas secretario: se pois não havia nova circumstancia que nos revestisse de um caracter politico e official^ por- 323 que se dirigiu o general a nós. E se uma nova circumstancia decor- ria qual era ella? «Ou nós Íamos com o exercito como particulares, ou não iamos como particulares, que necessidade tinha o general de nos partici- par que se dava por desonerado da commissão que a junta gover- nativa lhe havia confiado ? Se não, qual era o caracter publico que tínhamos. Não era por certo o de membros de um goveruo que já se achava dissolvido. » Foi preciso que se tratasse n'este momento de salvar responsa- bilidades, para que aquelle membro da junta se desconcertasse in- teiramente e denunciasse toda a verdade. O próprio Magalhães confessa que ia no exercito como simples particular e sem caracter publico e oflicial ! Então o que é feito da tal dictadura e do tal governo composto de uma commissão permanente, de que seria presidente Saldanha e aquelle um dos membros com o coronel Gama Lobo? Está, portanto, apurado que na reunião do dia 2 ficou resol- vido que Saldanha tomasse o commando da retirada, e que tanto Magalhães como o coronel Gama Lobo se oííereceram para o acompanhar como particulares apenas, e para o auxiliar n'cssa empreza árdua e diíiicil. Emquanto ao ter abandonado n'estas circumstancias o exer- cito Saldanha, contra quem se armou toda esta cilada da Bel/es- tada^ os nossos leitores julgarão do seu procedimento. Magalhães e Gama Lobo deixaram-se ficar a bordo do brigue Cornélia, e na madrugada do dia 5 sahiram do Porto cm uma em- barcação mercante, que partiu para Londres co:"n vários negocian- tes portuguezes, também emigrados. A mesma conclusão da defesa da junta por Magalhães denun- cia o pérfido pensamento d'cste de lançar todo o odioso c toda a responsabilidade para cima da victima que tentaram fiizer. Depois d'aquelle procurar convencer o publico Jc que Salda- nha assumiu o governo c a dictadura, concluc todo triumphante : ((A sua dissolução (da juntai era uma consequência necessária d'aquellas medidas; dissolveu-se : tihí (.K\Ttou íoJj j siui rcspotisa- 324 bilidade, ahi principiou a responsabilidade do general e da com- missão. E o que fez o general ? Desamparou o exercito que devia com- mandar; desamparou a commissão a que devia presidir, e contra vontade d'esse exercito, contra a fé da sua promessa, contra a con- fiança que n'elle se havia posto, renunciou á causa da pátria; em- barcou-se de seu motu próprio no Belfast e veiu para Inglaterra!» Tudo isto caracterisa a politica dos astutos conservadores e os processos que actualmente adoptam todos os partidos portuguezes alistados n'essa bandeira, ao desertarem das fileiras do partido progressista, hoje completamente extincto entre nós. Os membros da junta obstam por todos os modos a que Sal- danha, ou Stubbs, tomem o commando do exercito; empregam todos os meios para que aquelle general não dê uma batalha, com receio de que a victoria lhe augmente o prestigio nas tropas e o torne senhor da situação; e, não o podendo evitar, resolvem dissolver a junta e mandar retirar o exercito para Hespanha. Afim de se desfazerem do seu terrível inimigo politico arma- ram-lhe a cilada do commando da retirada ; e, como elle achasse pretexto para se livrar do laço traiçoeiro, vieram para publico lançar- Ihe falsas accusações, e imputar-lhe toda a responsabilidade dos erros que praticaram e da sua politica mesquinha! E ainda por cima tentaram desconceitual-o na opinião publica, para o inutilisa- rem de todo! Aquelle escripto em defeza da junta mostra o desespero em que ficaram os conservadores e os inglezes, seus amigos e alliados, ao verem que o chefe dos progressistas e dos vintistas não foi va- rado, ou pelas balas do inimigo, ou pelas balas dos próprios soldados constitucionaes, na aventura arriscada em que o quizeram metter. Como Saldanha escapasse d'isto, tentaram depois perdel-o na opinião publica, no conceito do exercito que o idolatrava e no con- ceito de D. Pedro! O governo inglez devia ter ficado bem grato a essa publicação em defesa da junta e do seu querido Palmella e contra o protector dos malditos vintistas. 325 Saldanha praticou uma falta imperdoável ; e foi o ir misturar-se com os seus próprios adversários, que tentaram perdel-o, e desgra- çal-o para sempre. Teremos muitas occasióes para accusar aquelle estadista le- viano; mas desde 1826 a 1834 não temos senão louvores a tecer- Ihe, em nome da verdade e da justiça. Não cabe aqui narrar o que se passou na escolha do general que devia commandar esse bravo exercito que ardia em desejos de se bater com o inimigo. Os nossos leitores encontram isso muito bem desenvolvido na obra de Silva Maia e no Cerco do Porto pelo sr. Soriano, bem como muito bem narrada nas mesmas obras essa heróica retirada, que é uma das glorias do exercito portuguez. E emquanto esse infeliz exercito partia no meio de tantos peri- gos para Hespanha, atravessando com denodo e valor a província do Minho occupada pelos miguelistas, e tendo na rectaguarda o exercito de Povoas, corria veloz e lançando ao vento seu penacho de fumo o vapor que levava a salvamento os generaes e os mem- bros da junta, que o abandonaram á sua sorte! Eis mais esta triste pagina da historia dos conservadores. Preferiram a victoria dos absolutistas puros á victoria dos sin- ceros liberaes, a quem sempre alcunharam de exaltados, jacobinos, demagogos e inimigos do throno. E porque esse exercito perfilhava idéas avançadas, compromet- teram o seu chefe e general, e entregaram-n'o ás balas do inimigo! Assim o exigia a Inglaterra. A chamada Belfestada é das paginas mais importantes e cara- cterísticas da historia que intentámos escrever. Quasi que resume em si toda a historia da revolução democrática de setembro de i836 contra a mesma politica dos conservadores. CAPITULO V A REVOLUÇÃO NA MADEIRA E AÇORES o governador da ilha da Madeira dispõe as cousas para os habitantes se conservarem fieis a D. Pedro e á carta. — Escreve directamente a D. Pedro. — Chega á ilha um emissário dos ministros de D. Pedro em Londres. — Valdez fiel servidor da causa da legitimidade. — O emissário de Londres segue para o Brazil, levando infor- mações dos planos de Valdez. — Os periódicos do Porto annunciam antecipadamente a revolução da Ma- deira. — Os apostólicos tentam acclamar D. Miguel, mas são logrados nos seus esforços. — Chega á ilha a noticia da revolução do Porto. — Valdez proclama o governo da carta e de D. Pedro. — Manifesto de Valdez em favor dos princípios da legitimidade constitucional. — O manifesto e proclamação de Valdez enthusias- mam Palmelia. — O governador da ilha envia um emissário ao Porto e outro a Londres. — Cartas de Val- dez a Wellington e Cliton. — Chegada á Madeira da fragata Princeya Tieal. — Valdez recusa-se a receber o novo governador nomeado por D. Miguel. — A fragata retira-se. — Os apostólicos levantam os povos do norte da ilha que são derrotados. — O bispo sae da ilha. — Chega á ilha a noticia da Bel/estada. — Estado das forças que guarneciam a ilha. — Prepara-se a defesa d'esta. — Apparecimento da esquadra miguelista. — ■ Falta de soccorros do Brazil e Londres. — Valdez intenta supprir esta falta. — A esquadra ataca a ilha que se lhe entrega. — Valdez refugia-se na fragata ingleza Alligator. — Os apostólicos acclamam D Miguel na ilha Terceira. — Seguem-se as perseguições politicas — Revolução proclamada pelo regimento de caça- dores n." 5. — O capitão José Quintino Dias assume o commando das forças da ilha e prende o capitão ge- neral. — A camará municipal ratifica o juramento prestado a D. Pedro. — Nomeia-se o governo interino. — Este officia ás auctoridades das outras ilhas. — Manda recolher á ilha os destacamentos do regimento de caçadores. — O governo interino recusa-se a receber o novo governador nomeado por D. Miguel. — O capi- tão Quintino Dias pede soccorros para Londres. — Representação da camará municipal a D. Pedro. — Pal- melia insta com D. Pedro para que nomeie um governo para a ilha Terceira. — Palmelia não tem idéas as- sentes sobre a maneira de resolver a questão portugueza.— Envia ao Brazil Luiz Mousinho d'AIbuquerque, para informar verbalmente D. Pedro acerca dos partidos políticos de Portugal. — Palmelia é já de opinião que D. Pedro intervenha, ou directamente, ou praticando actos de soberania como tutor da filha. — Palmela, ao ter conhecimento da revolução do regimento de caçadores n.° 5, quer acudir á Terceira de preferencia á Madeira. — Envia áquella ilha o general Cabreira como capitão general d'ella. — Palmelia não confia nos revolucionários da Terceira — Manifesto de Cabreira. — Eleição de um governo provisório. — Acção do Pico de Cclleiro. — Chegam á ilha reforços das tropas dos emigrados portuguezes. — Medid.is previdentes do governo provisório. — Palmelia investe contra o governo provisório da ilha. —Intenta dissolver este go- verno por meio de intrigas. — Cabreira demitte-se de presidente do governo e sae da ilha. — Os agentes de Palmelia intentam demiltir o governo provisório. — Palmelia dissolve este governo e nomeia o conde de Villa Flor capitão general da ilha com poderes discricionários. — Abre-se novo período com o governo do conde de Villa Flor. O movimento revolucionário da Madeira e Açores foi quasi si- multâneo. Começaremos por aquella ilha, servindo-nos de guia o relatório do próprio governador, José Lúcio Travassos Valdez, pu- blicado no tomo V da obra do sr. barão de S. Clemente. Aquelle relatório está de accordo com os documentos existentes d'aquella época. 327 Valdez foi nomeado capitão general da Madeira pelo governo constitucional, em 7 d'abril de 1827. No dia 1 2 de maio, chegaram á ^Madeira as noticias de Portu- gal e da convocação das antigas cortes do reino, para proclamarem D. Miguel. O governador procurou dispor as cousas para a ilha se conservar fiel a D. Pedro e á carta. Não se declarou, para evitar ser atacado, antes de ter meios de resistência. Quiz primeiro ganhar tempo, afim de se preparar e de sondar o espirito publico da ilha. Foi ver o estado das fortificações e deu baixa ás praças de milí- cias que tinham completado o tempo de serviço, e mandou recru- tar para o regimento de milícias do Funchal e Calheta, afim de occultar os seus projectos ao partido apostólico. Fez concertar o armamento e correame que estava arruinado; foi tratando da arti- Iheria, que pela maior parte estava desmontada ; mandou construir telegraphos, e fez fardar o batalhão de linha á custa do thesouro da ilha; cuidou na disciplina do mesmo batalhão, e bem assim no armamento e disciplina dos regimentos de milícias do Funchal e Calheta. Depois d'isto escreveu directamente a D. Pedro, dando-lhe no- ticias de Portugal, e partícipando-lhe a resolução em que estava de resistir á usurpação do irmão. O governador encontrou algumas difíiculdades na realísação dos seus planos; porque o secretario do governo era do partido apostólico. Estavam as cousas n'aquelle estado, quando, no dia i de junho, chegou á ilha um emissário do marquez de Resende e do visconde de Itabayana, saido de Londres em 12 de maio. Xo seu officio, os dois ministros de D. Pedro pedem a Valdez que. visto^ ser imi dos mais fieis servidores de D. Pedro, dê uma prova conspícua c deci- siva da sua fidelidade, tomando as mais enérgicas medidas para conservar a ilha na obediência a D. Pedro, na certeza de que o attentado commettido em Portugal se ha de mallograr, porque lo- dos os governos da Europa são interessados na conservação doyrin- cipio salutar da lei^itiniidade. E terminam: ^^.E tendo r. ex.\já por- Jiado pela sustentação doeste principio^ estamos certos de que c<>nti- 328 nuará a ter a gloria de ser um dos seus mais fervorosos defenso- res.» O facto d'aquelle emmissario ter sido enviado á Madeira, antes de a revolução ter rebentado no Porto, indica que outros emissá- rios foram egualmente enviados a Portugal no mesmo sentido. Não é de suppor que só a Madeira merecesse a attenção dos diploma- tas que estavam em Londres. Valdez serviu ás ordens do conde de Villa Flor, e por aquelle officio se vê que elle era considerado como um dos mais ferve- rosos defensores do principio da legitimidade, ou do realismo con- stitucional puro ; por isso mereceu a capitania geral da Madeira. Era palmellista da gemma; e por este motivo Palmella não cessa de o elogiar em suas notas, officios e cartas para D. Pedro. O emissário seguiu para o Rio de Janeiro, e por elle Valdez informou o imperador de que se declararia, logo que pudesse e fosse necessário. Os periódicos do Porto deram a noticia do pronunciamento da ilha, antes de elle se eíFectuar, o que deu origem a que o governo de Lisboa fosse prevenido e tomasse providencias. O bispo e os apostólicos empregavam, no entretanto, todos os meios, especialmente nos campos, para os povos acclamarem D. Miguel. No dia 14, ou i5 de junho, sahiu da egreja de S. Francisco da cidade do Funchal um clérigo com um crucifixo nas mãos, dizendo em alta voz que tinha fallado com D. Miguel, e que quem se qui- zesse salvar o seguisse. Juntou-se muito povo, como era natural. O governador fez sahir officiaes da sua confiança, e parte da sua própria guarda, para dispersarem a multidão, e mandou tocar a reunir, para pôr as tropas em armas. O povo dispersou, e o clérigo fugiu. O general exigiu ao bispo que o mandasse castigar, o que fez mandando -o prender. O par- tido apostólico ficou logrado nos seus planos, e Valdez mais seguro da fraqueza d'elle. No dia 14, ou 16 de junho, chegou a noticia da revolução do Porto. 329 «Brilhou, diz o relatório, no rosto dos madeirenses a maior ale- gria com taes noticias, e o general Valdez tratou de fazer immedia- mente um manifesto e proclamações ás tropas e habitantes. Com- municou tudo aos ministros do imperador em Londres, pedindo- Ihes os necessários auxilios. » No maior segredo, mandou imprimir o manifesto e duas pro- clamações, e deu ordem para, ao meio dia de 22 de junho, se fa- zer em toda a ilha uma formal declaração contra o governo de Lis- boa, o que se verificou com a maior facilidade e regosijo. Fez pren- der r8 a 20 individuos dos mais perigosos, entre os quaes 637 padres; removeu outros para a ilha do Porto Santo; suspendeu o secretario do governo ; exigiu que o bispo suspendesse o vigário geral e alguns parochos, e mandou vigiar o bispo. O manifesto publicado no dia 22 é todo dictado segundo o sa- lutar prmcipio cia legitimidade, que todos os governos da Europa estavam interessados em manter, um manifesto de realista consti- tucional puro, ou de um conservador e palmellista. Chega mesmo a fazer o panegyrico do grande Pedro /F, do anjo celestial dos portugueses^ da querida e mimosa Jilha do grande Pe- dro 7F, e o da carta constitucional, monumento de alta sabedoria que este generosa e espontaneamente offereceu ao paii que o viu nascer. No termo rebeldia envolve os miguelistas, saldanhistas e vintis- tas, dizendo que o monstro, não podendo encarar o esplendor das armas portuguezas, recorreu á perfídia ; sonhou republicas e pertur- bou os últimos dias do governo da regente, que fora testemunha da fidelidade portugueza para com o seu rei. «Sobresaltou-se, diz o manifesto, de novo o coração dos portu- guezes honrados e fieis; houve então quem desejasse a vinda do se- reníssimo senhor infante D. Miguel, para, na conformidade da carta constitucional, reger a monarchia em nome do seu augusto irmão, o senhor D. Pedro IV, e para soterrar por uma ve^ a hvdra da rebel- dia. » Diz que foram mallogradas essas esperanças, sendo elle pro- vavelmente um dos taes que as teve e acolheu bem D. .Miguel, 42 330 suppondo que elle só se revoltaria contra os que sonhavam com republicas, isto é contra os vintistas e salda nhistas. O manifesto faz a defesa dos direitos de D. Pedro IV ; e recorda os juramentos que toda a nação lhe prestou. O general felicita-se por ter isentado a Madeira do crime de rebeldia para com o seu rei legitimo, e por ver coroados seus esforços. Termina Valdez, o futuro conde de Bomfim, por fazer votos para que seus esforços possam coadjuvar a empreza do exercito portuguez, e para que o exemplo de fidelidade da Madeira accenda nos peitos portuguezes o fogo da lealdade ao rei e á carta. Espera que as nações alliadas não consentirão que murche em flor tão no- bre esforço a favor do salutar principio da legitimidade e a favor do magnânimo rei o senhor D. Pedro IV, e das liberdades que elle ge- nerosamente outorgou aos portuguezes. No ofíicio de 6 d'agosto, Palmella diz a Valdez que o não sur- prehendeu a resolução tomada por elle; porquanto a lealdade e fir- meza do seu caracter são bem conhecidas «porém, diz elle, não posso deixar de lhe expressar o prazer que me causou a leitura dos documentos impressos e manuscriptos.» No mesmo dia em que se pronunciou, o governador passou a cuidar nas medidas de defesa da ilha, montando a artilheria, e es- tabelecendo telegraphos. Enviou depois um emissário ao Porto, para se entender com a junta, e o brigadeiro António Rebello Palhares a Londres, para levar aos ministros plenipotenciários de D. Pedro as procla- mações, manifestos e medidas adoptadas, e fazer um relatório dos acontecimentos, e para representar a necessidade de lhe enviarem mil armamentos e correames para infanteria e caçadores, e outros auxílios. O mesmo brigadeiro foi encarregado da missão de fazer levar ao conhecimento do governo inglez que a attitude da ilha tinha só por fim conservar o principio da legitimidade, por cujo mo- tivo esperava e rogava que elle a auxiliasse na manutenção da au- ctoridade do seu rei legitimo, como o mais antigo e fiel alliado da Grã-Bretanha. Julgando que em peitos britannicos pudesse vibrar algum sen- 331 timento de generosidade, o mesmo general Valdez, aproveitando-se da circumstancia de ter sido o primeiro portuguez que serviu junto ao seu estado maior nas batalhas da Roliça e do Vimieiro, escre- veu uma carta mui amável e attenciosa ao duque de Wellington ; escreveu ainda uma outra ao general Cliton ; mas de nenhuma teve resposta. A resposta foi o consentimento do bloqueio da ilha e a protecção ao governo de D. Miguel. No dia 25, chegou ao Funchal a fragata Pritice^a Real, condu- zindo o novo capitão general, o capitão de mar e guerra José Ma- ria Monteiro, o vice-almirante Henrique da Fonseca Prego, capitão general dos Açores, e D. Pedro de Alencastre novo governador da ilha de S. Miguel. Assim que teve conhecimento do fim da viagem da fragata, Valdez reuniu a tropa nas fortalezas e quartéis, e poz tudo em vigilância. Á communicação das portarias e decretos de Lisboa, respondeu Valdez, enviando as proclamações e o manifesto por elle publica- do; e intimou ao commandante da fragata, se continuasse a servir a causa de D. Miguel, para que se aíTastasse das aguas da Madei- ra, e que, se se approximasse, seria tratado como rebelde. Tanto o commandante como o novo governador tornaram a officiar ; mas Valdez respondeu-lhes que já lhes tinha communicado o que tinha a dizer-lhes. A fragata conservou-se todo aquelle dia á vista ; mas desappa- receu no dia seguinte. Diz o relatório que, á vista d'estes acontecimentos, desenvolveu- se na cidade o maior enthusiasmo; e chamando o general ás armas alistaram-se dentro de três horas 5oo voluntários, em que entravam as principaes pessoas por sua nobreza e fortuna. N'esta occasião, vários clérigos, de combinação com os apos- tólicos de Lisboa, levantaram os povos de Ponta Dclíj^ada e outras povoações ao norte da ilha, e alguns milicianos de S. \'icente, que, armados de espingardas, marcharam sobre S. Jorge. Dentro de duas horas, o general mundou sahir um forte destacamento a marchas forçadas ; mas duas companhias do mesmo regimento de S. \'i- 332 cente já tinham dispersado os revoltosos, havendo n'essa occasião duas mortes, dez feridos e alguns prisioneiros. O destacamento voltou, passados três dias, trazendo os mais implicados na revolta. «Como o bispo, diz o relatório, era geralmente conhecido pelo chefe dos apostólicos, todos os amantes da boa ordem o vigiavam; e elle, pela sua parte, se receava muito dos habitantes, consequen- temente, a titulo de se achar doente, pediu ao general que o dei- xasse sahir da ilha para se ir tratar.» Diz Valdez que desejou proceder contra elle ; mas que receou que o povo visse ahi uma perseguição á religião. O general concedeu que o bispo sahisse, uma vez que fosse para o Porto, e que antes da partida fizesse conhecer aos povos os seus deveres de fidelidade a D. Pedro e á carta, ao que elle accedeu, partindo para o Porto no dia 3o. No dia 12 de julho chegou á ilha a noticia da fuga dos gene- raes do Porto para Londres no Belfast^ e de que a causa da revo- lução estava perdida em Portugal. Esta noticia deixou os espíritos na maior consternação. Em poucos dias, porém, o regimento de milícias do Funchal já tinha 1:200 praças, tendo-se reunido voluntariamente as que haviam re- cebido baixa. O regimento de milícias da Calheta foi elevado a 900 praças, e o de S. Vicente a 700, mal armados e mal disciplinados. O batalhão de voluntários, formado no dia em que chegou a fragata Prmce{a Real^ tinha 400 praças ; apezar de ser constituído por pessoas de confiança, não estava em ordem, por falta de ins- tructores, de armamentos e de correame. A companhia de voluntá- rios de cavallaria, composta de 64 praças, fez bom serviço. O general foi augmentando a artilheria miliciana da guarnição das fortalezas. O batalhão de linha, composto de quinhentas e tantas praças, e augmentado com duzentos e tantos recrutas, era o corpo que es- tava em melhores condições e mais bem disciplinado. O destacamento de artilheria n.° 2 de Portugal, composto de sessenta e tantos homens, foi empregado no artilhamento e preparo 333 das competentes munições, assim como da artilheria de posição, e de campanha, e no arranjo do cartuchame de infanteria. Trabalhou- se na defeza da Piaia Formosa^ onde se construiram diversas baterias ; e n'um curto espaço de tempo se fortificou toda a costa de leste. Nos fortes e baterias puzeram-se em estado de bom serviço mais de i8o boccas de fogo, a maior parte de grosso cali- bre, além de 26 boccas de fogo de campanha. O governador armou em canhoneiras, com sua competente peça, duas lanças do governo, e mandou armar um barco grande que servia de communicação com o Porto Santo. Esperavam-se 3:ooo armamentos completos, que o governador mandou pedir para Londres, officiaes aguerridos de Portugal e a fragata brazileira Isabel. No dia 28 appareceu uma corveta e um brigue, que declararam ao cônsul inglez vinham bloquear a ilha ; no dia 3o appareceu mais outro brigue. No dia 3i, anniversario do juramento da carta, a esquadra mi- guelista tez-se ao largo e desappareceu. Diz o relatório que já então se começava a sentir a demora da chegada das armas e de alguma artilheria que se tinha pedido para Londres, assim como dos otíiciaes por quem se esperava. A exce- pção de Valdez, não havia na ilha da Madeira quem tivesse en- trado em campanha. Valdez escreveu ao cônsul brazileiro em Gibraltar, pedindo informações de Portugal, e que conseguisse que viessem para a Madeira esses valentes oíficiaes e soldados que, ao perder- se a re- volução no Algarve, embarcaram na escuna Xyinpha. commandada pelo heróico tenente de marinha Aulfediener, que os conduziu a salvamento até áquelle porto. O mesmo general mandou á ilha de S. Miguel um navio, para pedir ao commandante das duas compa" nhias de caçadores 5 que lá estavam viesse com ellas para a Ma- deira, mas n'essa occasião as companhias tinham retirado para a Ilho Terceira. Ancioso esperava o general pela resposta de Londres e pelos au- xílios pedidos, quando, no dia i? de agosto, appareceram 9 navios 334 de guerra miguelistas, para bloquearem a ilha e procederem ao des- embarque. Mandou o general tocar a rebate ; distribuiu as tropas ; revistou as fortalezas e dispoz tudo para a defeza. No dia i6, a esquadra, formada em linha, avançou sobre o porto do Funchal, e mandou uma lancha com um parlamentario. Este foi recebido, e entregou um officio do vice-almirante Prego, exigindo a entrega da ilha, sob pena de a arrasar. Valdez despediu o parlamentario, e esperou que a ilha fosse logo atacada. A esqua- dra, porém, fez-se ao Jargo ; conservou-se no dia seguinte a grande distancia, impedindo as lanchas-canhoneiras que as lanchas da es- quadra se approximassem de terra. No dia i8, a esquadra pareceu atacar a Praia Formosa^ mas de tarde seguiu o rumo de Santa Cru^, chegando n'esta occasião a fragata ingleza Alligator. No dia 20, chegou o paquete inglez, trazendo dois oííiciaes por- tuguezes, entre elles o tenente-coronel João Schwalbach, e com a noticia de que breve chegaria a fragata brazileira Isabel, com ar- mamento e mais oííiciaes. No mesmo dia, o capitão-general deu o commando de toda a costa de leste ao tenente-coronel Schwalbach, deixando-lhe sob as suas ordens três dos oííiciaes que o acompanharam. No dia 2 1 , a esquadra tomou rumo para o nordeste da ilha, pa- recendo querer retirar-se. No dia seguinte, havendo vento fresco e favorável, o telegrapho participou, ás 10 horas da manhã, que a esquadra se approximava com grande velocidade, e ás 1 1 horas atacava Machico. Diz Valdez que muito embora confiasse na bravura e intelli- gencia de Schwalbach e nos oííiciaes que vieram com elle, não acontecia o mesmo pelo que respeita a disciplina e valor das tro- pas, quasi todos milicianos, pela maior parte recentemente recruta- dos, mal armados, «e não tendo chegado os soccorros que com tanta antecipação se haviam requisitado.» São, com eíFeito, extraordinários os esforços que, tanto Valdez como Schwalbach, empregaram na defeza da ilha. 336 O general, depois de algumas providencias acertadas, sahiu da cidade e foi dirigir as operações contra o inimigo, que se dispunha para o desembarque. A esquadra approximou-se de Machico; adiantoa-se um brigue, que rompeu o fogo, a que responderam os dois fortes da villa, mas, ao terceiro tiro, fugiu toda a guarnição do forte do Ancoradouro. Pouco tempo depois, uma nau tomou a posição do brigue; e come- çou então o fogo geral de toda a esquadra, que fez calar o forte de Nossa Senhora do Amparo, que havia resistido por mais tempo, apezar da inferioridade da sua artilheria relativamente á da esqua- dra. Schwalbach dirigiu-se á Crui Queimada, para obstar ao des- embarque; mas o commandante a quem confiara as tropas que mandou avançar, foi o primeiro a fugir e com elle o resto da força. Ainda Schwalbach empregou esforços heróicos para reunir um troço de tropas ; mas tudo estava perdido diante da pouca disci- plina dos soldados e officiaes. Os miguelistas effectuaram o desembarque, e tomaram posse da ilha, refugiando-se o governador e familia a bordo da fragata Alligator. Conta Valdez que, instando-se com a esposa para que aban- donasse a cidade, e se refugiasse a bordo da fragata ingleza, na ausência do marido, ella, apezar do seu e.stado adiantado de gravi- dez, oppoz enérgica resistência, não só para não desanimar os ha- bitantes da cidade, como também porque ^^ marido, ao sahir, não lhe tivera insinuado semelhante passo. Foi preciso mostrar-lhe o perigo que corriam os filhos mais novos para se decidir. O mesmo governador termina o relatório, queixando-se da pouca actividade que houve em Londres, que não fizeram (^ que prometteram ; porque, em logar de mandarem a fragata Isabel dire- ctamente á Madeira, pelo contrario, lhe ordenaram fosse á Terceira, u quando, accrescenta o relatório, se tivessem ordenado que a fra- gata sahisse immediatamente de Falmouth cm direitura á Madeira, visto ser um navio muito velein^, teria provavelmente alli chc:íad«i com as armas, olViciaes, etc. quasi ao mesmo tempo que chegou o 336 paquete, e que então, distribuídas logo as armas aos voluntários (gente da maior confiança) capitaneados pelos officiaes que deviam ir n'ella, e mesmo a apparição de um navio de guerra de tal força, e os recursos que esse acontecimento poderia produzir, muito pro- vavelmente teriam salvo a sorte da Madeira, e até teriam talvez feito retardar o ataque d'ella.)) Vamos vêr a razão porque Palmella, que até ahi tanto se inte- ressara por Valdez e a Madeira, subitamente voltou as suas atten- ções para a Terceira, assim que teve conhecimento de que o regi- mento de caçadores 5 tomara n'ella a resolução de se revolucionar contra o governo de D. Miguel. Passemos agora aos Açores. Assim que D. Miguel partiu para Portugal, os apostólicos de Lisboa enviaram para os Açores emissários seus, afim de prepara- rem os ânimos para a acclamação do rei nosso senhor. Houve varias reuniões, ora em casa de um morgado da Ilha Terceira, Luiz Mey- relles, ora em casa de um tenente de engenharia, Roberto Luiz de Mesquita, e ora em casa do próprio capitão-general, Manuel Vieira de Albuquerque e Tovar. Os padres franciscanos iam, entretanto, fornecendo-se de armas e pólvora. No dia 17 de maio, o governador convocou a seu palácio a camará municipal, e ahi apresentou-lhe uma representação assi- gnada pelo deão, governador do bispado, e pelo vereador mais antigo, João Sieuve de Seguier, pedindo a acclamação de D. Mi- guel. Em vista d'isso, ordenou á mesma camará convocasse o clero, nobreza e povo para esse fim, assegurando-lhe que a tropa se não opporia, porque elle lhe prohibiria de sahir dos quartéis. A camará, n'esse mesmo dia, mandou pôr um edital, fazendo aquella convocação, mas sem designar o seu fim. Os apostólicos e feotas romperam logo com ameaças e vio- lências contra os liberaes, o que denunciou o fim d'aquella convo- cação. O capitão-general ordenou antecipadamente o desterro para outras ilhas de officiaes superiores e inferiores e de soldados, de 337 quem mais desconfiava, e passou a dar ordem para que os regi- mentos se conservassem nos respectivos quartéis. Logo na manha do dia i8, estava reunida a camará municipal. Luiz Meyreiles, á frente dos conjurados e de gente assalariada, dirigiu-se á praça publica, acompanhado de populares. Aqui levan- tou vivas a D. Miguel I, rei absoluto, o que foi correspondido pela multidão, onde se viam muitos frades, vários officiaes e cadetes de artilheria. A camará procedeu immediatamente ao auto de acclamação. A noite houve illuminação na casa da camará, quartel general, igrejas e conventos. Os frades franciscanos estiveram toda a noite a atirar tiros de pistola, de espingarda e bacamartes, no meio da vozeria infernal de vivas a D. Miguel I, rei absoluto, de morras e de insultos a D. Pe- dro, á carta e aos liberaes, sobre quem despejaram todo o seu furor. Seguiu-se depois o período do terror. Diz o manifesto de caçadores 5, o seguinte: «Pronunciar, ainda na voz mais mysteriosa, o nome do senhor D. Pedro IV, nome sempre caro aos bons portuguezes, era um crime de lesa-magestade. Fallar, ainda do modo mais cauteloso, na carta constitucional era attentado de alta traição. Officiaes de todas as graduações eram punidos, só porque a sua probidade os figurava incapazes de perjurar; officiaes inferiores e soldados, depois de ar- rastados a cárceres e fortalezas, eram conduzidos ao porão de mes- quinhas embarcações, e tratados como revolucionários, só porque eram incapazes de transigir com a perfídia. Egual jugo pesava so- bre os cidadãos de todas as classes, em quem divisava o menor enthusiasmo de legitimidade». Diz que o hymno de D. Pedro fora prohibido, e quem o tocasse em casa era logo preso e punido por demagogo e republicano. Cabem as honras ao regimento de caçadores n." 5 de ler rea- gido a este estado de coisas e á acclamação do absolutismo. Segundo alguns auctores, o movimento fez-se de combinação com dois ricos morgados da ilha, Theotonio d"Orncllas Bruges 43 338 Ávila e seu cunhado Pedro Homem da Costa Noronha, a quem o capitão-general mandou prender na véspera. Diz o officio do ajudante d'ordens do governo geral dos Açores para o governo de Lisboa, datado de 3o de junho, que no decurso de mais de três mezes espalharam-se boatos em Angra, e o governo teve denuncias e até provas de que o regimento de caçadores 5 pretendia fazer uma revolução, para fins apenas conjecturados, affirmando-se ao principio ser com o intento de estabelecer uma republica, sendo esta empreza coadjuvada por algumas pessoas da ilha. No dia 2 1 de junho o governador tomou medidas activas ; re- uniu dois corpos de ordenanças e dois batalhões de caçadores de milícias, e mandou pôr de prevenção o batalhão de artilheria. Em a noite d'esse dia José Quintino Dias, capitão do regimento de caçadores n.* 5, aquartelado no castello de S. João Baptista, sublevou as quatro companhias do 5.° batalhão do seu regimento; prendeu os capitães Francisco Paula da Cunha e Patrício José Abranches e o tenente José Manuel de Paiva, affectos ao governa- dor, e que assignaram o auto de acclamação de D. Miguel, no qual tomaram parte activa ; e obrigou a darem-se por doentes o major e o ajudante em quem não tinha confiança. Depois disto, e com o má- ximo arrojo, prendeu o governador da praça, alguns officiaes do corpo de artilheria, e surprehendeu as guardas d'este corpo ahi existentes. Em acto continuo, officiou ao ajudante do castello de S. Se- bastião, para prender António Pacheco, tenente do batalhão de ar- tilheria com o commando interino do mesmo castello, e para assu- mir este, afim de manter os direitos de D. Pedro e a carta consti- tucional, que estava firmemente resolvido a sustentar com o seu batalhão. O mesmo capitão assumiu o commando da força armada da ilha, e pelas duas horas e meia da madrugada fez sahir um desta- camento, composto de 3o praças das mais valentes e commandado pelo tenente Francisco Eleuterio Lobão, para atacar o quartel ge- neral. Este foi defendido por uma força considerável commandada 339 pelo primeiro tenente Ignacio José Pinheiro, que fez vivíssimo fogo e ofFereceu forte resistência, em vista do que retirou-se para o cas- tello o destacamento expedido. O capitão general achava-se gravemente enfermo. Ao romper do dia, o capitão Quintino Dias reuniu as quatro companhias ; tomou posições em differentes pontos, e apresentou-se depois no largo, em frente da casa do governo. Pediu para fallar ao capitão-general. Disse-lhe que estava resolvido a defender a causa de D. Pedro e da carta, e que, se annuisse aos votos d'elle e do regimento, a ordem publica seria mantida, e nada soffreria; mas, se se op- puzesse, elle e todo o corpo estavam determinados a levar por diante seus intentos, emquanto restasse um soldado só. Os corpos de milicias fugiram com a approximação do corpo de caçadores, de modo que o governador ficou sem forças para poder resistir. O capitão-general, n'estas circumstancias, annuiu ao que se lhe impoz. O capitão Dias exigiu então que o governador passasse ordem, para lhe ser entregue todo o armamento, pólvora e munições de guerra dos batalhões de milicias da cidade e da villa da Praia. Em seguida, intimou o mesmo governador para que se recolhesse ao castello ; mas como o medico afíirmasse que o seu estado de saúde era bastante melindroso, limitou-se a prender o ajudante d'ordens Manuel da Costa Borges, e o tenente-coronel António Izidoro de Moraes Ancora, e a mais algumas pessoas que foram conduzidas ao castello, pelas 9 horas da manhã. Depois d'isto, o mesmo capitão marchou com as quatro com- panhias para a praça da cidade no meio de vivas a D. Pedro e á carta e acompanhado de muitos cidadãos influentes e de povo. Aqui officiou á pretérita camará, para se reunir e lavrar um auto de ratificação do juramento prestado a D. Pedro e á carta consti- tucional. A camará promptamente annuiu ; e. reunida, passou a lavrar o competente auto. que toi assii;nado por muitos cidadãos Jiberaes da ilha e pelos otliciacs do regimento sublevado. N'este acto. a mesma 340 camará tirou o governo do bispado ao deão, por ser apostólico, e elegeu para governo interino o reverendo thesoureiro mór, João José da Cunha Ferraz, por ser a dignidade da sé immediata á do deão, o brigadeiro D. Ignacio de Castello Branco do Canto, o juiz de fora que presidiu á camará e o corregedor interino José Jacintho Valente Farinho, e para secretario o bacharel Manuel Joaquim No- gueira. O corregedor da comarca fechou-se em casa, e recusou-se a comparecer, por cujo motivo foi nomeado outro interinamente ; o brigadeiro D. Ignacio deu-se por doente, e o secretario Nogueira também não acceitou. Por este motivo o governo interino ficou composto só do vigário geral, o cónego Ferraz, do juiz de fora, de Farinho e do coronel de engenheiros José Rodrigo d'Almeida. Este governo interino publicou um pequeno manifesto no sen- tido da revolução, e pedindo aos habitantes ordem, moderação e respeito pelas novas auctoridades. No mesmo dia 22, o capitão Quintino Dias, na qualidade de commandante da força armada, e governador do castello de S. João Baptista, ordenou ao tenente António Homem da Costa Noronha tomasse o commando do batalhão de linha, e fizesse reter n'aquelle castello o capitão Jacintho Manuel de Sousa, por se não ter apre- sentado ao toque da chamada e na camará municipal. O governo interino passou a officiar para todas as auctoridades das ilhas dos Açores, dando parte da sua installação, e convidan- do-as a annuir ao governo de D. Pedro e da carta. O capitão-general foi conduzido n'uma cadeirinha ao castello de S. João Baptista, onde se conservou preso. O tenente-coronel, ajudante d'ordens, foi mandado para Ilha do Fayal, o capitão Álvaro Abranches para a Ilha de S. Miguel, o primeiro tenente Ignacio José Pinheiro para a Ilha de S. Jorge e o deão da sé para Ponta Delgada. O governo interino passou ordem ao capitão Joaquim Zeferino de Sequeira, commandante do destacamento de caçadores estacio- nado em Ponta Delgada, para recolher com elle á Ilha Terceira. Pelo oíficio que aquelle capitão dirigiu n'esse sentido ao governa- 341 dor militar da ilha, vê-se que elle deliberou-.se logo a executar aquella ordem, pedindo-lhe para mandar render as praças do des- tacamento, os abonos da lei e os transportes necessários. O governador militar reconheceu que o espirito d'essas tropas eram conformes com o do seu commandanie; e para que ellas não animassem os habitantes a seguirem o exemplo da Terceira, consentiu no embarque, protestando, comtudo, contra o governo d'esta ilha que não reconhecia. N'este entretempo, chegou a fragata Princeia Real^ conduzindo o vice-almirante Prego, nomeado pelo governo de Lisboa para go- vernador geral dos Açores. O governo interino recusou-se a recebel-o, por cujo motivo não desembarcou, e recolheu-se á Ilha de S. Miguel. As outras ilhas, apezar da agitação que n'ellas existia, não se atreveram a pronunciar-se, e conservaram-se hesitantes diante das medidas de rigor das auctoridades. O capitão Quintino Dias escreveu a Palmella, dando-lhe parte dos acontecimentos, pedindo-lhe soccorros para a defeza da ilha, e que obtivesse do governo inglez a permissão de uma esquadra d'esta nação vir cruzar nos mares dos Açores, para proteger a causa de D. Pedro seu alliado. A camará municipal de Angra enviou a D. Pedro uma repre- sentação, manifestando-lhe a sua resolução de manter os direitos d'ellc e a carta constitucional, e pedindo-lhe protegesse e soccor- resse a causa em que ella estava empenhada, enviando-lhe princi- palmente soccorros navaes, para pôr a ilha a salvo de qualquer ataque do governo de Lisboa. Esta representação tem a data de 8 de setembro. O marquez de Palmella esperava sempre as ordens de D. Pedro e as respostas ás suas cartas, em que pedira a nomeação de um governo, para pôr termo ao estado revolucionário em que estavam os povos fieis á causa constitucional. Elle não cessou de enviar missivas para o imperador do Brazil, onde s(')mente via a salvação da causa em que os libcrac> estavam empenhados. 342 Palmella não tinha idéas fixas sobre os meios empregados para aquelle fim. Na carta de 8 de junho pede que D. Pedro mande com urgência para a Europa a filha D. Maria II com um conselho de re- gência sob a presidência de uma das pessoas reaes, e que peça ao rei de Inglaterra que acceite a tutella da rainha menor. Mudou, porém, de opinião. Como vimos, elle e os embaixadores de D. Pedro em Londres mandaram sobreestar no reconhecimento da abdicação, até novas ordens do Rio de Janeiro. Em princípios de agosto, enviou a D. Pedro Luiz Mousinho d' Al- buquerque, para o informar verbalmente dos partidos políticos existentes em Portugal e dos acontecimentos que precederam a usurpação e dos que tiveram logar no Porto até á sahida do Bel- fast. Na carta que lhe dirigiu a 5 de agosto roga ao imperador haja por bem acreditar nas explicações que lhe dará o emissário acerca das idéas que lhe occorreram para bem da causa d'elle e salvação de Portugal, na crise por que este atravessava. Palmella preferiu transmittir por um intermediário as suas idéas, a confial-as ao papel! Na carta de 9 do mesmo mez, entra, porém, mais desassombra- damente na questão portugueza. E de opinião que, se D. Pedro pudesse vir á Europa, seria o remédio heróico, e que essa noticia somente bastaria para preci- pitar a D. Miguel do throno. Reconhece as difíiculdades da reali- sação d'esse passo; mas, vindo elle com uma esquadra de 5 ou 6 navios de guerra, nada se poderia oppor ao seu desembarque na Ma- deira, ou nos Açores ; d'ahi proclamaria á nação e reclamaria auxi- lio dos alliados. Em breve aplanar-se-hia o caminho ao throno de Portugal, sem haver necessidade do emprego da força. E acrescenta que D. Pedro tem sobejas razões para annular a abdicação; mas, se o não quizer, pode, como tutor da filha, obrar os mesmos actos de auctoridade que exerceria como rei, sendo este o meio de evita- rem-se duvidas e contestações desagradáveis com os gabinetes es- trangeiros. E já do parecer que a prudência pede que D. Pedro não envie 343 immcdiatamente a rainha para a Europa, e a não confie ao impe- rador da Áustria. Insta por que D. Pedro mande uma esquadra aos mares da Europa, ainda mesmo que não queira declarar guerra a Portugal. E termina : «Do que fica dfto, segue-se, em todo o caso, que vossa magesta- de deveria dirigir os seus primeiros esforços a conservar, ou a re- conquistar, se se tiverem perdido, a Madeira e os Açores; e que, se não enviar logo sua augusta filha, convirá estabelecer n'estas ilhas um governo provisório sustentado por uma força marítima. » Mais tarde ainda Palmella foi de opinião que o decreto de abdicação estava nullo, e que D. Pedro era o legitimo rei de Por- tugal. E taes foram as disposições d'aquelle estadista, quando teve co- nhecimento da revolução na Madeira e Açores. Palmella teve pri- meiro conhecimento d'aquella revolução. As proclamações e mani- festos do Valdez, o futuro conde de Bomfim, encheram-n'o de con- tentamento, como vimos. Estava ali um súbdito flel, um realista constitucional, como era preciso, e um fervente defensor do principio da legitimidade, por que pugnara desde 1820. Palmella, de accôrdo com o visconde d'Itabayana, desenvolveu no principio grande actividade na defesa da Madeira, e em enviar soccorros ao seu querido correlegionario politico. Elle apressou-se a enviar a fragata brazileira Iiabcl com vários officiaes, entre elles o marechal de campo José Maria de Moura com munições de guerra e algum dinheiro. Alguns otficiaes foram de parecer que a fragata fosse primeiro á ilha Terceira, onde constava ter rebentado a revolução; mas Palmella foi de parecer contrario, querendo que >e corresse em auxilio do verdadeiro defensor da legitimidade. Subitamente Palmella mudou de (opinião, assim que souhc que foi o regimento de caçadores n." 5 que levantou o ^rit(^ n'aquella ultima ilha ! Este regimento tinha sido por elle deportado, em 1824, por cau- sa do seu allecto ás idéas de 20! Para acudir ao perigo, apressara- 344 se a arrancar o governo da ilha das mãos dos que foram eleitos por influencia do regimento jacobinico e demagógico. De accôrdo com o visconde de Itabayana e o marquez de Rezende, enviou á Terceira o brigadeiro Diocleciano Leão Cabreira, para assumir a capitania geral dos Açores, sujeito, diz elle no oííicio de i3 d'agosto a Valdez, á prudente escolha e arbítrio do conselho que formei dos generaes Moura e Falhares /» Na proclamação aos habitantes da Terceira, Cabreira exprime- se assim. «Tendo tido a ventura de achar-me hoje entre vós, aonde me enviaram de Londres os ministros plenipotenciários de sua majes- tade, o excelso rei o senhor D. Pedro 7F, nosso legitimo soberano^ para assumir^ como assumido tenho, o governo das armas doesta im- portante provinda. » Juntamente com o tal conselho de generaes, Palmella enviou officiaes da sua inteira confiança, entre elles o tenente de infante- ria n.° 7, José Maria Taborda, que mais tarde conspirou ao lado dos marechaes contra a Revolução de Setembro, e se tornou de- pois um celebre cabralista! Cabreira era tão amigo de Saldanha, que, assim que teve noti- cia de que este se dirigia á Terceira, pediu logo a sua demissão e abandonou a ilha! Nas informações que dá a D. Pedro, Palmella não mostra ne- nhuma confiança na ilha Terceira. Na carta de 8 d'agosto, afíirma que nos Açores não existe, segundo dizem, a unanimidade de opinião que reina na ilha da Madeira ; e na carta de 23 d'agosto, dando noti- cia do pronunciamento do regimento de caçadores n.° 5, accrescenta: «Não confio tanto na possibilidade de se defender aquella ilha, no caso que seja seriamente atacada, nem creio que ahi se ache um ofi- cial que possa dar a direcção e o exemplo que dá o governador da Madeira; porém., se chegar a tempo a fragata /{abei, a bordo da qual embarcaram., como já referi a vossa magestade, alguns officiaes capares, não me parece também que se deva dar ahi o caso por per- dido .^> Palmella não falia a verdade, quando pretende justificar a sua pouca confiança na ilha Terceira com o erro indesculpável de a 345 considerar menos defensiva que a Madeira. Elle, evidentemente, quiz occultar os verdadeiros motivos da sua desconfiança com essa absurda razão, de que não estava convicto. Na circular dirigida ao conde do Funchal, em data de i8 d*a- gosto, isto é, muitos dias antes d^aqueila ultima carta a D. Pedro, exprime-se da seguinte maneira, para o que chamamos a attenção de nossos leitores. Diz elle: «-4 minha opinião é que a ilha Terceira se poderá mui bem defender contra qualquer aggressão^ mantendo-se o tempo ne- cessário para que cheguem do Brasil os soccorros e providencias já annunciados com que sua majestade el-rei o senhor D. Pedro IV não deixará de acudir aos seus fieis súbditos^ que tantos sacrifícios teem feito para sustentar os seus direitos» (i). Já vêem nossos leitores que Palmella não é nada sincero, quan- do pretende justificar a sua pouca confiança na ilha Terceira com os poucos recursos que vê n^esta ilha para se defender de qual- quer ataque e aggressão. Ocultou as verdadeiras razões; e estas são evidentemente a existência na ilha do regimento que elle pró- prio deportou para ella por causa do seu aífecto aos princípios de 20. E para que a ilha Terceira desse o exemplo e a direcção do Val- dez, o ferveroso defensor dos princípios da legitimidade contrários aos de 20, para que houvesse n'ella a mesma unanimidade de opi- niões que havia na Madeira, e para que existisse a máxima harmo- nia entre esta e os Açores, os ministros plenipotenciários de D. Pe- dro arrogaram a si o direito de nomear para os Açores o capitão general ! Palmella, por sua alta recreação, forma uma espécie de gover- no com o tal conselho de generaes da sua confiança ; e em vez de mandar a fragata I{abel á Madeira, como promettera, apressa-se a envial-a primeiro á ilha Terceira, afim de accudir aos princípios da legitimidade, dando os resultados que nossos leitores acabam de ver, ou a perda d'aquella ilha ! {i I Documcnlos /\7;\7 ^7 /tislorij Jjí côrlcs gcf\7es. Tonvj v, pai;. >•(> e 67. 4-i 346 Bem funestos teem sido para a causa da liberdade estes mode- rados, ou conservadores! Cabreira levou instrucçôes para manter com rigor os princípios puros da legitimidade, até que D. Pedro adoptasse as providencias necessárias e qualquer dos alvitres apresentados por Palmella. Este reconheceu que aquella ilha, perdida a causa no Porto, podia ser- vir de núcleo de resistência, quer ao governo de Lisboa e quer aos liberaes. Cabreira teve ordem de activar as operações militares, afim de desembaraçar as ilhas das auctoridades miguelistas, e de attrahir á causa da legitimidade os povos d'este archipelago, tirando-os da influencia do regimento de caçadores. Cabreira chegou á Terceira, no dia 8 de setembro. Assim que assumiu o governo dos Açores, publicou o seu ma- nifesto, cuja linguagem destoa completamente da do capitão Quin- tino Dias e do governo interino. É um manifesto á Valdez. Vê-se que elle pretendeu assumir uma espécie de dictadura, para domi- nar a situação com a sua auctoridade. Diz que o seu primeiro dever é chamar a attenção dos habitan- tes da ilha para que, entrando no conhecimento do fim único a que se destina^ regulem a sua conducta pelas imprescriptiveis regras da razão e das leis sabias. Diz que a ilha tem sido theatro de funestas desordens, e pede aos habitantes que recobrem o animo e confiem na vigilante solicitude d'elle, que fiel ao seu rei saberá prevenir no futuro a reproducção das scenas desagi^adaveis que teem infeliz- mente apparecido na ilha. «Repousae, diz-lhes elle, leaes terceiren- ces, na energia e até protecção do nosso immortal rei, o senhor D. Pedro IV, e confiae tudo de suas pias e paternaes intenções. » Acaba ameaçando os povos «se, desorientados e imprudentes, vos separardes dos vossos sagrados deveres, se de qualquer modo attentardes contra a tranquilidade publica e contra os principios da legitimidade do grande monarcha, o mesmo augusto senhor D. Pe- dro IV, sereis inexorável e militarmente punidos com o mais severo rigor. » Parece que a ilha Terceira não quiz sujeitar-se á dictadura de 347 Cabreira, nem ao tal conselho de generaes nomeado por Palmella. O governo interino convocou, para 4 d'outubro, o senado da cama- rá, todos os officiaes commandantes dos corpos de diíferentes armas até capitão, os commandantes das fortalezas da cidade e alguns officiaes do estado maior, para uma sessão extraordinária do novo governo. Ahi o primeiro membro do governo, João José da Cunha Ferraz, expoz a necessidade de se nomear um governo provisório, em logar do governo interino, ficando o general Cabreira com to- das as attribuições de capitão general. Foi resolvido por maioria que se elegesse esse governo e que este fosse collectivo e composto de três membros eleitos pela camará municipal. Com eíTeito esta reuniu-se no dia seguinte, e elegeu os seguin- tes membros : Cabreira, o thesoureiro mór Ferraz e o coronel de cavallaria, José António da Silva Torres. A figura do capitão José Quintino Dias, o heroe da revolução da Terceira, desapparece para sempre; é posta á margem e esque- cida completamente! No mesmo dia em que o governo interino convidou o senado e mais pessoas para deliberarem sobre a necessidade da organisação de um governo provisório, isto é no dia 4, deu-se a importante ac- ção do Pico do Celleiro. Os apostólicos levantaram no interior da ilha muitas guerrilhas, para com ellas resistirem ao governo da cidade, até chegar a es- quadra enviada pelo governo de Lisboa. Foi expedida contra ellas uma força de caçadores 5 com duas peças de artilheria, commandada pelo tenente coronel José Antó- nio da Silva Torres. Perto das cinco horas da tarde, este encon- trou-se com o inimigo no Pico do Celleiro, três quartos de legoa da villa da Praia, occupando três fortes posições. Foram atacados com vigor, e em cinco minutos fugiram em debandada na direcção dos Biscoutos pela estrada da Villa Nopj, deixando no campo muitos mortos e feridos. O interior da ilha fi- cou tranquillo. Emquanto a revolução estava circumscripta apenas á ilha Ter- ceira, sahiam de Hespanha as tropas portuguezes que emigraram 348 do Porto, e desembarcavam na Inglaterra, d'onde foram mandadas sahir pelo governo d'esta grosseira nação. A emigração d'esses soldados aguerridos e valentes fará objecto de um livro especial, ou do livro seguinte : Palmella, para se vêr livre de Saldanha e para contentar a pér- fida Grã-Bretanha, envia aquelle com os seus mais dedicados de- fensores para o Brazil, dando-lhe ordem de tocar na Terceira, sabendo previamente que seria apprehendido no caminho pela esquadra britannica. D'esta expedição trataremos também em capi- tulo especial. Satisfeito o seu desejo contra o chefe dos sinceros liberaes e protector dos vintistas^ a Grã-Bretanha não mais se oppoz a que Palmella enviasse á Terceira reforços das tropas emigradas ! Em princípios de fevereiro de 1829, entrou n'aquella ilha um batalhão dos voluntários; pouco depois chegaram mais 824 praças do mesmo batalhão em diíferentes embarcações, e até março tinham entrado mais de mil homens com munições de guerra. O corpo de voluntários era composto dos que se alistaram no Porto a favor da causa da rainha e dos voluntários académicos de Coimbra. No capitulo respectivo veremos a maneira como estes voluntá- rios foram tratados em Plymouth pelo marquez de Palmella, sem- pre adversário de tudo quanto fosse liberdade. O governo de Lisboa enviou uma grande esquadra, para tomar a Terceira ; mas um forte temporal dispersou-a e obrigou-a a arribar. Diz o sr. Soriano que o governo provisório, desembaraçado d'este inimigo, deu nova forma ao seu primeiro plano de defesa, considerando toda a ilha como praça de guerra, onde era vedada a entrada das forças miguelistas. Caçadores 5 foi encarregado da guarnição do castello de S. João Baptista ; a defeza da Villa da Praia foi dado aos voluntários da rainha; e as diíferentes praças avulsas que foram chegando da Inglaterra formaram um batalhão provisório, que se conservou na cidade, para acudir a qualquer ponto atacado. Em fins de julho formava já um regimento provisório de 600 bayonetas. 349 Foi creado um supremo conselho militar e uma relação para o foro civil ; nomeou-se um governador militar da cidade, considerada praça de guerra ; mandou-se guarnecer de artilheria Porto Judeii^ Porto Martins e a Villa da Praia, mais sujeitos a um desembarque, nomeando-se para isso uma commissão denominada de fiscalisação dos armazéns reaes^ que depois constituiu um verdadeiro arsenal militar. O mesmo governo estabeleceu postos militares entre os diffe- rentes pontos da ilha, e mandou apromptar a estrada que vae de Biscoitos a Fonte Velha e os ramaes que da estrada real se dirigiam a Villa Nova e S. Sebastião. A ilha ficou dividida em 8 districtos militares, commandados pelos officiaes superiores que havia em disponibilidade. O com- mando da força armada foi dado ao coronel António Pedro de Brito, que ficou auctorisado para dispor da tropa como entendesse no caso de ataque. Organisou-se meia brigada de artilheria mon- tada; das chamadas companhias de artilheria de costa tiraram-se duas companhias de artilheiros sapadores, para guarnecerem diíTe- rentes fortes, e dos officiaes subalternos de cavallaria formou- se uma companhia da mesma arma. O governo mandou construir duas lanchas canhoneiras, para andarem entre Villa da Praia e Angra. A falta de meios para acudir a tantas despezas era, porém, mui sensível. Seria talvez injustiça accusar Palmella ; este não podia fazer-se em dinheiro, abandonado como estava, tanto pelo impera- dor e governo do Brazil, como pela Inglaterra, que lhe contrariava todos os passos para soccorrer a Terceira, que desejava ver cahida em poder de D. Miguel, como a Madeira. E certo que Palmella, depois da organisação do governo, ou da junta revolucionaria, e depois da expedição de Saldanha, arrefe- ceu bastante. Mas não se pode negar que elle mostrou desejo> de acudir á ilha Terceira, em que via um ponto importante de resis- tência ao governo de D. Miguel. í^ile pensava nos meios de dissol- ver essa junta, para a substituir por um governo de nomeação de D. Pedro. 350 A junta viu-se na necessidade de mandar pôr em circulação uma porção da antiga moeda-papel, que em bilhetes se achava nos cofres da junta de fazenda, e creou outros de meia moeda e quar- tinho. Este papel-moeda cahiu logo em descrédito, em vista do que a junta mandou derreter os sinos das egrejas e cunhar moedas tos- cas de bronze. Assim foi custeando as despezas, sem receber cinco réis, nem do Brazil, nem de Londres ! Palmella não cessou de manifestar ciúme pelo exercício da soberania nacional, ou pelo governo revolucionário nomeado na Terceira contra sua vontade. Assim que a rainha D. Maria II chegou a Londres, depois da completa abdicação de D. Pedro, conseguiu que ella o nomeasse ministro d'estado, até que D. Pedro providenciasse sobre o governo de Portugal. Tornou-se por este modo o director do movimento. Em seguida, investe contra a junta da Terceira, dizendo-lhe, em officio de i5 de janeiro, que a rainha não approvará nenhuma promoção militar, nem concessão de graças, ou empregos, que lhe não sejam previamente propostos, devendo a junta tão somente limitar-se, em caso de absoluta necessidade^ a nomear promsoria- mente para os empregos civis os serventuários que forem indispen- sáveis. E espera que a junta, independentemente doesta insinuação^ não deixará de reconhecer os inconvenientes de qualquer desvio do principio acima enunciado. A respeito da creação de uma relação na ilha, o mesmo Pal- mella, em officio de i8 de fevereiro, diz que a rainha sente muito que a junta fizesse essas nomeações, e que a vontade da rainha é que se não façam essas innovações, sem que tenha precedido a regia nomeação! E accrescenta : «Cumpre-me accrescentar que sua magesade ordena que a junta informe, por todas as occasióes que se lhe proporcionear, de tudo quanto praticar no desempenho de seus árduos deveres^ para que a mesma augusta senhora possa estar plenamente inteirada dos factos do governo da Terceira, e participar á junta ojui^o que d' e lies forma .^) 351 Isto prova muito bem o quanto o agastava a existência d'esse governo filho da soberania nacional diante do principio da legiti- midade, que pretendia representar. Os seus primeiros passos, como ministro da rainha, foi investir contra esse governo de eleição popular, tentando cercear-lhe as suas attribuições, limitar, ou annular, o campo da sua acção e su- jeital-o á vontade da rainha, ou á vontade d'elle como delegado doesta ! Vê-se que Palmella desejou assumir a direcção exclusiva da revolução da Terceira, para a dominar, como em vão tentou domi- nar a do Porto. Esse aristocrata, para quem os liberaes e defensores do povo eram os canalhas^ entendia que sem a intervenção dos reis e a d'elle não havia salvação possível. Não lhe servindo de emenda o desastre do Porto, desejou se- guir os mesmos meios, para dominar a situação da Terceira em nome da legitimidade. Para este realista constitucional puro não se tratava, nem da causa do povo, nem da causa da liberdade, mas da causa de D. Pedro e de sua filha com a carta emanada da au- ctoridade real e para interesses dynasticos. A questão da liberdade era uma questão secundaria, um incidente apenas. Vê-se também que a junta da Terceira não quiz abdicar dos seus direitos, nem sujeitar-se á dictadura de Palmella, por cujo motivo mereceu a censura por este dirigida em nome da rainha. O governo interino, como vimos, não quiz também sujeitar-se á dictadura de Cabreira acompanhado do tal conselho militar for- mado pelo mesmo Palmella ; este ficou contrariado com a eleição do governo provisório ; e agora vê o mesmo go\erno não querendo obedecer ás suas ordens e direcção. Era preciso dar cabo d'esse governo eleito pelo povo e fazer cahir o descrédito sobre elle, para a ilha Terceira acccitar resignada o governo que Palmella mandou pedir para o Rio de Janeiro. Então o astuto diplomata deu ordem aos seus agentes, para promoverem a discórdia no seio da junta revokici')naria por meio de intricas. 352 Com eíFeito estas pozeram-se logo em acção. Os miguelistas aproveitaram-se d'isso, como no periodo de 1826 a 1828, e come- çaram também a mover intrigas e auxiliar de novo os planos dos realistas constitucionaes puros. Cabreira, por insinuação de Palmella, insistiu em que lhe des- sem o logar de capitão-general, mas a junta não esteve para abdi- car nas mãos d'elle, e recusou-se sempre. Vendo que nada conse- guia, e receioso que viesse para a Terceira Saldanha, seu inimigo pessoal, pediu a sua demissão, que foi logo acceite, e retirou-se para Londres em principios do anno de 1829. Foi substituído pelo irmão Sebastião Drago Valente de Brito Cabreira, por decreto da junta de 5 de março d'aquelle anno. O novo presidente da junta mostrou-se mais moderado e prudente do que o irmão. Não obs- tante isto, continuaram as intrigas para se obter a fácil dissolução da junta revolucionaria. Esta destoava da nova situação que Palmella pretendia crear, depois da completa abdicação de D. Pedro e do reconhecimento da rainha D. Maria II. Sahiu o general Diocleciano Cabreira ; mas ficou José António da Silva Torres, que andou sempre empenhado em tornar a junta odiosa, obrigando-a a actos violentos e a perseguições revoltantes. Era déspota, e não cessava de exigir castigos severos para os presos políticos. Levou a sua intolerância a tal ponto, que o próprio ex- presidente da junta se revoltou contra elle. Foi este o homem que ficou de dentro da junta para semear a discórdia. Esses agentes de Palmella principiaram por querer tirar o com- mando do batalhão de caçadores a José Quintino Dias, o heroe e auctor da revolução da Terceira, que foi arredado dos negócios e até mais tarde perseguido! Tentaram substituil-o pelo coronel Zeferino de Sequeira, acu- sando-o de não ser observador da disciplina militar. A falta de dis- ciplina militar consistia em elle ser querido e estimado por todo o batalhão ! Era preciso afastal-o d''este, para se executarem os planos de dictadura de Palmella, e ciiminar-se de todo esse resto da re- 363 voluçáo popular. Houve divergência na junta ; esta na sua maioria oppoz-se a esse passo. Depois d*isto, tentaram tirar o commando do batalhão de vo- luntários ao major Manuel Joaquim de Menezes, que o acompa- nhou á Terceira e por elle era egualmente estimado e bemquisto. No dia 4 de maio, o batalhão formou em quadrado mettendo n'clle o seu commandante, e fez-lhe constar que o queriam tirar do commando, e que se tomasse uma resolução para obstar a isso. O major res- pondeu que a maioria da junta era-lhe favorável e que o comman- do não lhe seria tirado. Os factos passados em Plymoiith e que narraremos no livro seguinte, esclarecerão melhor este aconteci- mento. Não contentes com isso, os agentes de Palmella tentaram pôr fora da junta o membro Ferraz, que era de todos o mais serio, to- lerante e que se oppoz sempre a que a mesma junta abdicasse dos seus direitos e se entregasse ás mãos de outrem. Deve-se a elle a nomeação do governo provisório contra as tendências dictatoriaes que trouxe para a Terceira Deocleciano Cabreira, emissário de Pal- mella. Foi elle também que influiu para que aquelle ex-presidente da junta não fosse nomeado capitão general, como desejava. O se- cretario Alexandre Martins Pamplona era pessoa toda de Ferraz. Diz Drumont, nos Aunaes da ilha Terceira, que aquelles dois foram alliciados com palavras e promessas seductoras, fazendo-lhes ver o quanto era melhor viverem retirados em suas casas, descan- çando de tantas fadigas, como convinha já a seus estados e edades avançadas. Como não cedessem, foram assaltados de noite, quando se retiravam juntos para suas casas. Ferraz poude escapar, por es- tar próximo da sua residência, mas Pamplona foi ferido com uma estocada, e escapou, por ter sido auxiliado por um creado que o acompanhava '. A junta nomeou um conselho militar, para abrir devassa, desco- brir os criminosos g proceder contra ellcs. Do processo constou que o principal agente d'essa conspiração fora um dos próprios membros da junta, que fez espalhar o boato que liiUii facçãd republicana pretendia Jcp<> a junta e substituil-a 45 354 por um governo militar, e que enviara emissários seus á villa da Praia, onde fomentara a intriga com muito artificio, diz Drumont! Em vista d'isso, o processo foi trancado! A especulação com a republica denuncia bem d'onde partiu a intriga e que se pretendia indispor os ânimos contra Ferraz, Quin- tino Dias, o commandante do batalhão de voluntários, e outros in- fluentes do partido liberal, que se procurava dissolver, para se impor a regência, cujos decretos já vinham em caminho para a Europa, ás instancias de Palmella. A politica palmellista ainda fez mais : intentou provocar coníii- cto entre o batalhão de caçadores e o dos voluntários, conhecidos pelas suas idéas liberaes. Empregaram-se altos esforços, para exci- tar a rivalidade entre esses dois corpos e dividil-os ! No dia 6 de junho, a esquadra miguelista que bloqueava a ilha aprisionou na bahia do Fanal um hiate americano, que illudiu o bloqueio. Os intriguistas aproveitaram-se d'esse ensejo, para acaba- rem com a junta. No dia 8, enviaram á Villa da Praia um emissário, para espa- lhar que a junta recebera e mandara correspondências oííiciaes ao commandante da esquadra, para lhe entregar a ilha; e que era preciso que o batalhão de voluntários marchasse já para a cidade, onde o batalhão de caçadores estava á espera d'elle, afim de se op- pôr á traição. Felizmente o auctor do Cerco do Porto^ o senhor Soriano, cor- rera a toda a pressa para a villa da Praia, afim de desfazer aquel- les boatos e certificar que na cidade havia completo socego. Emquanto isto se passava na Terceira, Palmella, em Londres, ia preparando tudo, para dissolver essa junta revolucionaria, que tanto o estava incommodando. Em 5 d'abril, e muito antes dos acontecimentos acima expos- tos, Palmella, em nome da rainha, dissolveu a junta da Terceira, e nomeiou capitão general d'esta ilha, com poderes discrecionarios, ao conde de Villa Flor, outro adversário de Saldanha ! Diz a carta régia o seguinte : «Tomando na minha alta consideração quanto sefa{ necessário 355 reunir em uma só pessoa o governo e administração da ilha Terceira € das mais ilhas dos Açores, cujos habitantes forem reconhecendo a minha legitima auctoridade, para assim dar todas as providencias que as actuaes extraordinárias circumstancias exigirem para bem do meu real serviço com aquella energia e rapidei, sem a qual as mais acertadas se mallogram, e attendendo ao novo merecimento, honra {elo e reconhecida fidelidade: hei por bem nomear- vos gover- nador e capitão general das ilhas dos Açores, para as regerdes e governardes em meu real nome com a mesma auctoridade e prero- gativas de que gosaram os vossos predecessores n'este importantis- simo emprego, podendo suspender aquelles empregados públicos, de justiça, ou fazenda, que por seu comportamento civil, ou politico, o merecerem. » Nas instrucções que acompanham a carta régia aconselha-se muito respeito á religião; recommenda-se ao dictador que se appli- que a estudar a opinião publica dos habitantes, adiri§il-a ea rcctifi- cal-a, quando fôr necessário^ e que, para prevenir perigos internos, evite, quanto possa, a communicação dos soldados com os habi- tantes ! Eis o epilogo das intrigas e manejos empregados na ilha Ter- ceira, para dissolver a maldita junta filha da soberania nacional, ou popular, e para lançar sobre ella o desejado descrédito. A Belfestada não sortiu eíTeito no Porto; mas continuou na Terceira, conseguindo Palmella, com a sua politica de intrigas, apo- derar-se da situação, e conquistar esse reducto em pró da legitimi- dade ! Por officio de 2 5 d'abril, o conde de Villa Flor foi auctorisado para, em nome da rainha, promettcr recompensas de postos, hon- ras, ou distincções que julgasse convenientes. O conde de Villa Flor desembarcou na Terceira no dia 22 de junho, obedecendo a junta á ordem da sua dissolução sem resis- tência alguma. No otficio de 4 de junho a Luiz António de Abreu c Lima, dan- do noticia da chegada do conde de Villa Flor, Palmella, cheio de contentamento, diz que ella pode ser considerada como a maior 356^ fortuna que n'essas circumstancias podia ter logar «para assegurar a defensa d^aquelle ultimo baluarte da legitimidade.^^ Acompanharam o conde de Villa Flor 21 oííiciaes da sua in- teira confiança. E como a chegada d^aquelle general seja o preparo para a ins- tallação da regência mandada pedir para o Rio de Janeiro, e como marque também o primeiro período do governo da legitimidade na Terceira, daremos por finda aqui a revolução que se proclamou n^esta ilha, pór um acto de arrojo e valor do capitão Quintino Dias e do batalhão de caçadores 5. Trataremos do governo do conde de Villa Flor, quando fallar- mos na regência da Terceira. LIVRO III NA EMIGRAÇÃO CAPITULO I O DEPOSITO DE PLYMOUTH Sá da Bandeira c Pizarro concertam n'iim plano de resistência ao governo de D. Miguel. — 1'izarro abandona á ul- tima hora aqueiles planos. — Retirada para Galliza — Acampamento de I.obios. — .\ssaltc do guerrilheiro Pereira. — Dialogo entre este e Sá da Bandeira. — Conflicto. — Os padres e frades tentam persuadir as tro- pas de qiie regressem para l*ortugal. — A fome e o frio apertam no acampamento. — O governo he>panhol intima os emigrados a sahirem de Hespaiiha. — Partida dos emigrados para Inglaterra. -Esforvos de Palmella para qiio o governo interceda a favor dos emigrados em Hospanha. — Os portuguezes hostilmente recebidos pelo governo inglez. — Este governo apresenta a Palmella a idéa de enviar os emigrados para o Brazil. — Estes são conduzidos a Plymouth. — Cândido José Xavier nomeado director do deposito. — Ordem do dia de 27 d'agosto. — 0> emigrados divididos em 6 classes. — Desegiialdades e injustiças na distribuição dos soccorros. — Descripçáo dos annazcns dos depósitos por Silva .Maia. — Administração e organisação do de- posito.—Os estudantes de Coimbra, collocados na sexta classe, protestam. -Ordem do dij de 9 de setem- bro.— Chega a Inglaterra a rainha D. Maria II. —Recepção d'esta pelos emigrados. — Representações no barracão de Plymouth. — Prohibiçáo d"cstas representações. — Stubbs substitiie Cândido José Xavier. — Palmella é quem tudo manda e dirige de Londres. — Os voluntários continuam a ser vexado> e perseguido^. — A carta dos membros da jiiUta a D. Pedro provoca novas polemicas entre os liberaes e em:grado>. — Fo- lhetos publicados. — .1 piTjiJui dcsmascciradíi. — Nota do editor d'esta obra. Não é nosso assumpto a retirada audaciosa e arrojada das \a- Icntes e aguerridas tropas do Porto para a Galliza. Isto está mui hem descripto no Cerco do T^orto do sr. Soriano c na obra já citada de Silva xMaia, como dissemos. No emtanto diremos alguma cousa do que se passou, antes de essas tropas seguirem o seu destino. Quando Saldanha deu conhecimento de que a junta se tinha dissolvido e resolvido aquella retirada, Sá da Bandeira combinou com o brigadeiro Pizarro a retirada das tropas para <> norte do Douro, afim de que fosse defendida a passagem d'estc rio e a ci- dade do Porto, abandonada pelos generaes do ^Belfast. Rápida- 358 ■> mente deviam ser enviadas duas brigadas a atacar as forças mi- guelistas, que em numero diminuto se haviam approximado d'aquella cidade. Um forte destacamento marcharia, para passar o rio Douro a 4, ou 5 léguas distantes de Almeida, e, reunindo-se á guarnição d'esta praça, se passaria ao norte, ou ás províncias de Traz-os- . Montes e Minho, onde se deveria recomeçar a guerra com mais energia. Sá da Bandeira marchou em continente com parte da força, para começar a pôr em pratica aquelle plano de campanha ; mas Pizarro, na ausência d'aquelle militar patriótico, resolveu ou- tra cousa, e retirou-se pelo caminho de Braga! «O brigadeiro Pizarro, diz Sá da Bandeira no seu relatório, foi o general que ficou comnosco; elle possue excellentes qualidades pessoaes, mas, havendo servido na marinha, pouco conhecia o serviço de terra; esta falta foi uma das principaes causas dos nos- sos infortúnios. Entretanto nós tributamos a este general o nosso reconhecimento, porque marchou comnosco.» Sá da Bandeira retrocedeu, e teve que acompanhar a divisão. E foi o que valeu a esta; porque só ao valor e coragem d'elle se deve o não ter-se revoltado no caminho, porque desejava bater-se com o inimigo; e se deve também o não ter sido derrotada por este. As tropas miguelistas quizeram estorvar a passagem para Braga, mas foram batidas, deixando no campo 6o a 70 mortos. As tropas constitucionaes portaram-se ainda com bravura, e Sá da Bandeira menciona especialmente os corpos voluntários, in- cluindo o corpo académico, os quaes diz se comportaram com dis- tincção. Foi morto o capitão Rocha do 9 de caçadores, que foi um dos que mostraram mais valor na ponte do Marnel. E mui importante o plano de campanha concertado entre Sá da Bandeira e Pizarro; elle mostra que se pensou ainda em resistir, como aconselhara Saldanha. E se não fossem as hesitações e o pouco valor de Pizarro, talvez que Sá da Bandeira tivesse realisado o que intentara Saldanha. «Tendo nós entrado, diz aquelle general, no território hespa- nhol com mais de quatro mil homens, em logar da hospitalidade que o nosso mau fado nos obrigou a solicitar das auctoridades 369 doeste paiz, só d'ellas recebemos um tratamento digno dos princí- pios apostólicos que dominam n'esta desgraçada terra. Não conten- tes com o armamento e cavallos dos soldados, exigiram também e despojaram os ofticiaes, os paizanos, e até as mulheres de oíficiaes que compunham o exercito foram deixadas a pé; muitas das nos- sas bagagens foram saqueadas e muitos de entre nós completamente roubados. A nossa caixa militar foi-nos tirada, e não nos deram ra- ções, nem do, etape, nem de pão. Os nossos commissarios appro- veitaram esta occasião, para fugirem com o dinheiro que haviam recebido para o sustento da tropa, a qual se achava no bivaque sobre rochedos nus, e estava exposta a um tempo imsupportavel de frio, vento e chuva.» Assim que a divisão transpoz a raia, começou a ser victima de rudes tratos e de inclemências. Entrou a 6 de julho na aldeia de Poriella de Leonte^ uma légua distante de Lobios, onde estava o pri- meiro oflicial hespanhol da fronteira; era um alferes. A elle se di- rigiu Pizarro. Recebeu como resposta que nada podia resolver, sem ordens do general, que estava em Orctise. Por muitos dias esteve a divisão acampada em um vai estreito, árido e agreste, formado por duas altas montanhas de ásperas rochas de granito. Chovia e fazia frio. Alguns formaram barracas com folhas d'arvores e os mais dormiram sobre a terra molhada e debaixo da agua, que lhes cahiu em cima toda a noite. Em volta apenas havia uma, ou outra, aldeia pobre e miserável, d'onde não era possível mandar vir man- timentos. Por um pão de milho pediam três linros ! A fome aper- tou. Assim estiveram por muitos dias á espera da decisão do gene- ral, debaixo de agua, com fome e frio. sem lhes vir soccorro de parte alguma! De Portugal nada era possível obter-se. Alguns soldados foram ter com os otliciaes banhados em lagrimas; e abraçando-se despe- díram-se d'elles, dizendo-lhes que voltavam, porque não podiam supportar por mais tempo a fome e o frio! Por desgraça os commissarios, podendo escapar-se, tugiram com o dinheiro destinado ao sustento das tropas! N'este aperto, foram uma noite assaltados pelos voluntários 360 realistas hespanhoes, que fizeram fogo sobre elles, e deram saque ás bagagens! -^ O coronel de milícias de Pontevedra, D. Manoel Ignacio Pereira, que no tempo dos francezes se armou em guerrilheiro, e fizera im- portantes roubos na Hespanha e Portugal, apresentou-se um dia no acampamento- rodeado de padres e de frades, que dias antes tentaram persuadir os soldados que voltassem para Portugal. O bandido estabeleceu um forte piquete n'uma coUina próxima; percorreu a cavallo o acampamento, até chegar aonde estava Pizarro com o estado maior. Apeou-se com modos enfurecidos; e quando aquelle general se dirigiu a elle para o cumprimentar, recebeu-o com insolências e injurias. Disse-lhe que os emigrados haviam commet- tido um grave attentado, entrando armados em território hespanhol. Pizarro nada lhe respondeu. Sá da Bandeira rompeu o silencio, dizendo que tanto desejava respeitar as leis de hospitalidade, que á simples intimação de um alferes todos haviam entregado as armas, não o tendo feito antes, para evitarem serem perseguidos pelas guerrilhas portuguezas. Estabeleceu-se então entre o bandido e Sá da Bandeira o col- loquio seguinte: — Eso merecen ustedes, porque son ustedes rebeldes y crimi- nosos. — Rebeldes, respondeu na mesma lingua Sá da Bandeira, y cri- minosos son esos que nos sigen. — Y se atreve usted a hablar-me con essa altenaria. — Io le hablo a V. de la misma manera que V. me habla. — V. me habla asi en quanto no le cuerto la cabeza. — Y V. me habla asi por que no tengo espada a mi lado. O covarde e insolente ex-bandido e guerrilheiro puchou da es- pada; chamou a seu lado os soldados que o acompanhavam, os quaes de bayoneta callada correram sobre Sá da Bandeira. Este crusou os braços, e com sangue frio e altivez disse : — Es una cosa gloriosa el sacar la espada contra um hombre desarmado. Os soldados portuguezes amotinaram-se n'este momento, que- 361 rendo defender o seu general; mas um capitão hespanhol do estado maior e um official commandante de uma guarda, lançaram-se so- bre o miserável Pereira, e pediram-lhe que tivesse prudência, e a Sá da Bandeira que não respondesse. O coronel mandou o capitão para a frente da sua guarda, e continuou com as suas insolências e grosserias. Depois intimou os portuguezes a retirarem-se para Portugal, onde D. Miguel tinha sido acclamado rei legitimo, accrescentando que na Hespanha morreriam de fome, porque n'ella não teriam mais que um simples alojamento. Os frades e os padres, com a sua costumada manha e perver- sidade, andavam, entretanto, no meio dos soldados, instigando-os a que voltassem para o seu paiz; porque D. Miguel lhes perdoaria. «Dias depois, diz Sá da Bandeira no relatório citado, os solda- dos foram separados dos seus officiaes e sargentos; fomos acam- pados nos mais ásperos logares das serras, e a mutua communica- ção foi-nos rigorosamente prohibida. Estando como bloqueados, aos acampamentos vinham muito poucos viveres e por preços exorbitantes; entretanto officiaes hespanhoes, um sem numero de padres e frades, empregavam todos os meios de seduzirem os sol- dados e sargentos para voltarem para Portugal. Os soldados, firmes na causa que defenderam, conservaram-se em geral por muitos dias, vendendo até a ultima camisa, para comprarem pão; e só quando o excesso da miséria chegou ao seu auge foram submetter-se ás auctoridades da usurpação; e foram, mas chorando e invocando o real nome vossa magestade. Se a conducta dos soldados é digna do maior louvor, não merecem menos elogios os sargentos e offi- ciaes, porque geralmente os que conservaram meios repartiram C(^m os seus camaradas privados d'elles.» E tal foi a primeira recepção que nossas tropas valorosas tive- ram no paiz, onde se dizia dominava a religião, ou o throno c o altar, ou onde imperava o rei nosso senhor com o clero e a nobreza! Vejam nossos leitores como essas ciasses dominantes compre- hendiam o sentimento de hospitalidade para os seus contrários. E C(^mpare-se também esse pr(Kedimento cruel com o acolhimento 40 362 que sempre tiveram na Hespanha as tropas do marquez de Chaves, rebeldes e insubordinadas. Chegou, finalmente, a ordem para os emigrados poderem entrar na Hespanha. Antes de partirem para Orense^ o tal ex-bandido Pereira foi despedir-se de Pizarro, a quem disse que estava disposto a dei- xar passar as bestas e cavallos que por ventura ainda restassem. Depois d'isto, foi collocar-se na estrada com os seus soldados, e rou- bou tudo quanto poude! Pelo caminho os nossos soldados eram constantemente amea- çados de serem todos trucidados, e de morrerem de fome os que escapassem. Os apostólicos e feotas quizeram collocal-os no dilemma: ou morrerem de fome e de frio, ou entregarem-se ao carrasco de D. Miguel. E eram esses os mais zelozos defensores da religião! O governo hespanhol intimou os nossos emigrados a sahirem de Hespanha dentro de um mez, sob pena de os mandar entregar ás auctoridades portuguezas, para os mandarem enforcar e fuzilar. Para pagarem os transportes das tropas, os chefes dos emigra- dos pediram ao capitão general Eguia que lhes restituísse o cofre que lhes tinha sido aprehendido; respondeu-lhes que não lhes ad- mittia reclamações! Foi este um dos principaes cooperadores da queda da constituição de Cadiz, e do restabelecimento em Hespa- nha do reinado do throno e do altar! Os nossos emigrados dirigiram ao perverso Fernando VII uma respeitosa exposição, pedindo-lhe a prorogação do praso para sa- hirem da Hespanha ; não foram attendidos ! «Da Corunha e do Ferrol, diz ainda Sá da Bandeira, no mela- do de agosto, dêmos á vela para Inglaterra em embarcações pagas por aquelles de entre nós a quem a rapacidade apostólica tinha deixado alguma coisa. De Africa não partem certamente os escra- vos tão apinhados nos navios, como nós n'esta viagem.» E taes íoram as inclemências e soffrimentos d'essas tropas aban- donadas pelos geneTaes que se puzezam no seguro a bordo do Belfast ! 363 Palmella c accusado de ter despresado a sorte d^aquelles infeli- zes, náo lhes enviando transportes para se conduzirem para fóra da Hespanha. Essa accusação é injusta. Dos documentos e despachos vê-se que elle em Londres empregou todas as diligencias para lhes accudir. Os nossos fieis alliados recusaram-se brutalmente a auxilial-o n'esse empenho tão santo e nobre. Palmella sentiu remorsos do que fez e condoeu-se da sorte das suas victimas. Esta é que é a verdade, que a justiça manda se diga. Palmella procurou lord Aberdeen, e pediu-lhe que interviesse junto ao governo de Hespanha, para que as tropas portuguezas não fossem maltratadas, nem entregues ao governo de Lisboa, para que não fossem consideradas prisioneiras de guerra, e para que lhes fosse permittido embarcarem para Inglaterra, ou para a Madeira e Açores. Na carta a D. Pedro, datada de 5 d'agosto de 1828, diz Pal- mella que encontrou aquelle ministro em disposição manifesta de contrariar todas as suas propostas com espirito sophistico «que, diz elle, não deveria esperar-se da parte de um gabinete, que não pode afastar de si a responsabilidade moral das desgraças que actual- mente pesam sobre Portugal^ ainda mesmo quando esta responsabi- lidade o não obrigue a sustentar com as armas a causa de sua magestade.» E na carta de 9 exprime-se assim: «Tive com lord Aberdeen uma longa e mui animada conversação, em que lhe não dissimulei o horror que inspira a conducta do governo hespanhol e o oppro- bio de que o gabinete britannico se cobriria, se não acudisse quan- to antes a salvar, se ainda resta tempo para isso, os infelizes refu- giados portuguezes. Achei-o, como sempre, extremamente prevenido contra tudo o que eu allegava, e quasi que me pareceu experimen- tar alguma satisfação pela conducta do governo de Hespanha !>> Palmella dirigiu-se então ao governo francez, a ver se encon- trava n'elle mais humanidade e generosidade do que em peitos de brutos inglezes. Ao principio encontrou bastante retrahimento ; mas em presen- 364 ça dos actos bárbaros praticados na Hespanha mr. Neuville con- sentiu em mandar á Corunha transportes para os nossos emigrados. Andava Palmella n'estas negociações, quando chegaram a Ports- mouth os três navios, conduzindo os emigrados portuguezes, em vista do que Palmella mandou avisar o governo francez, para que suspendesse a ordem da partida dos transportes, agradecendo-lhe as suas generosas intenções. Vê-se, portanto, que Palmella não foi o culpado da demora. Mas porque é que não fez conduzir immediatamente estes na- vios, ou os que o governo francez oíFereceu, para a Madeira e Ter- ceira, que ainda não estavam bloqueadas? E aqui que principiam as responsabilidades d'este diplomata conservador, que de maneira alguma quiz as tropas do Porto n'aquellas duas ilhas, que conside- rava os verdadeiros baluartes da causa da legitimidade. Essas tropas estavam dominadas pelas idéas liberaes, que elle alcunhava de jacobinismo, de democracia e de republicanismo. Não lhe convinham n^aquellas duas ilhas, que elle julgava dois rochedos inexpugnáveis da causa que defendia. Queria primeiro assenho- rear-se d'essas duas posições fortes, como tentou assenhorear-se da situação do Porto, para depois enviar essas tropas que deviam ser commandadas e dirigidas por gente da sua exclusiva con- fiança. A revolução na Terceira por caçadores 5, que Palmella dester- rou para esta ilha pelas suas idéas vintistas^ assustou aquelle cam- peão da legitimidade. E antes de enviar para lá os emigrados, apressou-se a mandar adiante Cabreira, para se tornar dictador. A ilha resistiu, elegendo o governo revolucionário ; Palmella pensou depois em dissolver este governo filho da eleição popular; conse- guiu-o por meio das suas manhas e intrigas, e, por fim, conseguiu também os seus desejos, obtendo da rainha a nomeação do conde de Villa Flor para aquella ilha. Foi por isto que demorou, quanto poude, a expedição para a Madeira e Terceira. Ao chegarem a Inglaterra, os nossos emigrados encontraram as mesmas inclemências, que na Hespanha. Começaram logo a ser vi- 3t>5 ctimas, tanto das perseguições do governo d^aquella nação brutal, como do próprio Palmella, que odeiava esses valentes luctadores dos principios liberaes. Em 24 d'agosto, lord Aberdeen participa a Palmella que vae ordenar ao almirantado que prepare accommodações temporárias em Porstmoiit e Plymout para os emigrados portuguezes, ate que se façam arranjos acerca do ulterior destino d'essas tropas. Decla- rou todavia que a permanência d'ellas em Inglaterra não podia ser tolerada. Diz que^ se Palmella as destina para fazer guerra a Portugal, cumpre-lhe expedil-as desde já para o Brazil, pondo-as á disposição do imperador. E termina a sua carta com a seguinte perfídia: «Se não são destinadas a esse propósito, não poderia a influencia de v. ex/ em- pregar-se especialmente em persuadir aquelles que estão no caso de aproveitar a amnistia concedida pelo infante D. Miguel a accei- tal-a, regressando a Portugal? Aquelles que essa amnistia não comprehende, isto é, os oíficiaes militares superiores e os empregados civis, poderiam ficar em In- glaterra, como particulares. Dcro^ porém^ declarar que nimca con- sentiremos que n'este pai\ se estabeleça o quartel general e o arsenal destinados a levar a guerra a T^ortugal em nome do imperador D. Pedro^ o qual outrosim diniana de pessoas não auctorisadas por este soberano e sem que elle de tal seja sabedor, ou preste o seu C(msenti- nwnto. » A Inglaterra viu sempre em os nossos emigrados os atfeiçoados a Saldanha e os representantes dos homens de 20 pelas suas idéas liberaes. Devem-se ao visconde de Itabayana os soccorros pecuniários aos emigrados. Para a expedição do Belfast e depois para o sus- tento dos emigrados elle poz generosamente á disposição de Pal- mella as avultadas sommas que estavam destinadas para o paga- mento dos juros da divida de Portugal contrahida em Londres, e, que o Brazil. por um contracto no acto da separação, se tinha obri- gado a pagar. A primeira coisa que Palmella fez foi tirar o commando das 366 tropas aos seus chefes, queridos e estimados ! Tiveram ordem para se transportarem para Plymouth, onde ficariam todos sob o com- mando do sabujo Cândido José Xavier, encarregado da sua organi- sação e arranjo ! No ordem do dia de 27 d'agosto, Cândido José Xavier decla- ra que todos os paisanos terão transportes commodos e rações convenientes, para passarem para o Rio de Janeiro, sem despesa sua. Os voluntários e os paisanos abastados serão livres na escolha do seu futuro destino, e gosarão das vantagens das duas classes a que preferirem reunir-se. «Os paisanos, diz a ordem do dia, e os voluntários que ora, por escolha, se reunirem a elles, devem ficar na intelligencia de to- dos os que, confiados nos seus próprios recursos, ou por motivos particulares seus, renunciaram agora a vantagem que se lhes oífe- rece de transporte gratuito para aquelle novo destino (o Brazil), e nada devem contar com outros ulteriores recursos, que a legação de sua magestade, depois de uma tão considerável despeza, não fica em circumstancias de poder continuar-lhes. » Era uma tentativa para se descartarem dos paisanos e voluntá- rios, que tanto deram que fazer á junta do Porto pelo seu caracter independente e idéas liberaes. Depois o mesmo Cândido José Xavier passou a organisar toda a expedição, de modo a contel-a debaixo da sua vigilância e da mais rigorosa disciplina. Os ofíiciaes do deposito geral foram divididos em 4 secções, sob o commando do official mais antigo, excepto os officiaes de artilharia, que ficaram debaixo das ordens do tenente coronel. Os emigrados foram divididos em seis classes com um chefe; a primeira era constituída por ofíiciaes generaes e estado maior ; a segunda por officiaes de primeira linha ; a terceira por officiaes de segunda linha, voluntários e ordenanças; a quarta por empregados civis, magistrados, officiaes de fazenda, de justiça, etc. ; a quinta por sacerdotes, negociantes, proprietários e outras classes não soccorri- das pelo governo; e a sexta por praças de pret da primeira e se- 367 gunda linha, creados de servir e dos voluntários, compostos de es- tudantes e de pessoas de todas as classes sociaes! Diz Silva Maia, nas Memorias já citadas, que as pessoas que compunham as primeiras cinco classes foram habitar em casas par- ticulares e hospedarias, emquanto aos da sexta foram destinados dois armazéns que a administração alugou por loo libras mensaes. Além d'estes dois barracões, havia no porto quatro transportes, que foram destinados a ir á Corunha e Ferrol, antes da chegada dos emigrados, e foram destinados a receber egualmente os da sexta classe, que para ali se destacavam por semanas com um official para os commandar. Eis como Silva Maia descreve os barracões e depósitos : «Os armazéns, diz elle, eram situados á borda do mar e ser- viam antes de recolher madeiras de construcçáo, inteiramente des- abrigados, sem janellas de vidraça, sem qualidade alguma de ban- cos, cadeiras ou camas ; deitaram-lhes avulso uma pouca de palha, que renovavam de quinze em quinze dias, e que se tornava um excellentc esterco, porque, sendo o local dos armazéns pantanoso e cheio de lama, os emigrados, que não tinham onde limpar os sa- patos, com elles enlameados andavam por cima das palhas ; muito peores do que os palheiros da Galliza ; ao menos estes eram enxu- tos, abrigados, e o clima mais temperado, do que o da Inglaterra ; os navios não tinham melhores commodidades, antes estavam os emigrados sujeitos a constipações e ao enjoo do mar, e foram causa da morte de alguns jovens voluntários, que não estavam costuma- dos áquelle tratamento das galés.» E taes os recintos onde Palmella mandou mctter os estudantes de Coimbra e outras pessoas pertencentes aos corpos voluntários, que elle accusava de jacobinos, do demagogos e de terem planos republicanos! A Bclfestada continua, ou não. a ser bem patente? Mas ninda não pára ahi o procedimento de Palmella contra os verdadeiros liberaes, que trahiu no Porto, qucrendn-os entregar ao carrasco. A todos os emigrados dava-se indistinctamente uma ração dia- 368 ria de pão, carne, arroz, etc, avaliada em 6 pences; os de sexta classe recebiam-n'a em espécie, os das outras em dinheiro! Os mi- litares de primeira e segunda linha, voluntários e ordenanças, além do valor d'aquella ração, recebiam mensalmente o soldo, que tinham em Portugal, em libras, ao cambio de 3^^)540 réis, isto é, mais de 6 o/o, porque o cambio entre Inglaterra e Portugal regulava uma libra 5CÍOOO réis. Os empregados civis recebiam os seus ordenados por inteiro e como estivessem no exercicio dos seus empregos ! Os voluntários que não eram officiaes recebiam apenas i^shel- lings por mez ! Aos proprietários, negociantes, médicos e a outros, davam-se 3 libras por mez ! Diz Silva Maia que as quatro primeiras classes recebiam muito mais, do que recebiam em Portugal ; os da quinta eram prejudica- dos, porque, sendo proprietários e negociantes, com seus bens se- questrados em Portugal, eram obrigados a apparecer em publico com a decência das quatro primeiras. Os voluntários e cadetes eram condemnados á miséria. «Esta administração, accrescenta aquelle escriptor, além do chefe supremo em Plymouth^ que era Cândido José Xavier, com amplos poderes e organisador d'estes planos, tinha ainda um outro chefe, que era a patente mais graduada do deposito ; a este se dirigiam os chefes das classes; por este vehiculo se dirigiam todos os requerimentos ao director Xavier, e se publicavam as or- dens do dia, e este segundo chefe recebia uma gratificação mensal, além do seu respectivo soldo. Comtudo esta administração era uma espécie de filial da grande administração que havia em Londres na casa do marqaez de Palmella ; d'ahi é que recebia as ordens ; para ahi enviava os requerimentos das partes que eram de alguma con- sideração ; ahi existia outra contabilidade, na qual se pagavam os subsídios dos que residiam em Londres, França, etc; ahi se faziam empréstimos a quem tinha empenhos e padrinhos; finalmente, d'ahi dimanavam as graças, ou as condemnações.» O mesmo escriptor, apontando os erros e defeitos da adminis- tração, diz o seguinte, que é muito importante e significativo. « I .° Porque nenhum dos membros da administração merecia a 360 « confiança dos administrados, para lhes conciliar respeito e suas ordens serem fielmente executadas. Cândido José Xavier, não só pelo que praticou em 1809, atraiçoando a sua pátria, em 1827, sendo ministro, não querendo abonar as faltas dos voluntários aca- démicos que haviam pegado em armas por ordem da sua mesma secretaria, como pelo recente facto do Porto, este ultimo facto o caracterisava um desertor com todas as circumstancias que classi- ficam este crime nos códigos militares; e emquanto se não justifi- casse em um conselho de guerra, ou o soberano o não agraciasse, não podia exercer cargo publico. Ò marquez de Palmella estava no mesmo caso; Midosi, era alheio á revolução do Porto, havendo emigrado de Lisboa muitos mezes antes ; o thesourciro estava no mesmo caso de Midosi, e além d'isso um negociante sem credito; os outros, uns eram creaturas de Cândido, que para os beneficiar fez a um capitão de voluntários, a outro tenente e aos mais conce- deu gratificações com que escandalisou a todo o deposito. Na administração em Londres acontecia o mesmo. Se o marquez de Palmella obrasse de boa fé devia instaurar uma commissão com- posta de emigrados probos, presidida pelo general Pizarro, para verificar suas classes e prestar-lhes os soccorros, sem ser nenhum dos criminosos do Belfast.» Mas a Palmella convinha sujeitar os que, segundo elle, traziam idéas democráticas e republicanas ás ordens da gente do Belfast. Conta o mesmo escriptor que nos fretamentos dos navios havia ganâncias vergonhosas, que havia viveres arruinados, excessivas commissões a pagar ao Fox, vice-consul do Brasil ; que só na ex- pedição do Belfast gastaram-sc 10:000 libras e 2 5:ooo libras em uma mal dirigida revolução em Lisboa, e que a contabilidade era monstruosa; duas administrações informes em Plymouth e Lon- dres, em tal confusão, que os administradores nunca seriam capazes de apresentar suas contas perante um governo regular, sem que tivessem uma terrível re-^ponsabilidade. \Z argumenlava-se com a falta de dinheiro, para não mandar soccorros á Madeira e Terceira, para o> não darem aos emigrados mais necessitados, e para os mandarem para o Brazil I 47 370 Uma organisação e administração á Palmella, e á maneira bem caracteristica dos conservadores de toda a parte e de todos os tem- pos. Os estudantes, offendidos nos seus brios e na sua dignidade, protestaram contra a maneira brutal como foram tratados, e con- tra a classe em que os collocaram, e pediram para terem um tratamento análogo á sua educação. Muitos pediram para se pas- sarem para França ; e outros, para se sustentarem, appellaram para uma subscripção publica. Em 9 de setembro, Cândido José Xavier publicou uma ordem do dia infamante. N'ella ordena que todos os voluntários que deram o seu nome por escripto para seguirem a sorte dos militares, devem apresentar-se n'esse dia impreterivelmente a bordo do transporte Delfim^ sob pena de deixarem de vencer soldo. Declara que os académicos que pediram para se transportarem para França, ces- sam de receber soldo desde esse dia por diante ; e emquanto não partirem, terão só direito á ração ; que todos os voluntários e ofíi- ciaes inferiores respectivos que desejarem soldo e rações se reco- lherão ao deposito do barracão, e os que até ao dia lo o não fizerem entender-se-ha que renunciam aos recursos; e provando-se por este acto que recusam prestar-se á ordem e disciplina, serão havidos como vadios e tratados como taes ! Os commandantes do deposito do barracão passarão revista a todos os voluntários ahi existentes, e darão a cada um bilhete de residência, assignado por elles com o nome do voluntário. Todos os ajudantes das secções e ofiiciaes de ordens que encontrarem vo- luntários nas ruas sem os bilhetes de residência tomarão seus no- mes, e lhes intimarão que se recolham ao deposito do barracão. Referindo-se á subscripção que os voluntários tencionavam abrir a seu favor, a ordem do dia descompõe-os desabridamente, chamando-os indignos do nome portuguez, dizendo que os volun- tários se recusam a receber os recursos que lhes oíferece o mesmo rei que dizem defender, e que esta contradicção deve envergonhar homens que se pretendem instruídos. E termina: «Um procedi- mento, pois, tão baixo para quem o pratica, como oíTensivo da 371 honra de todos os emigrados em Inglaterra, sobre quem recahiria indevidamente a baixeza de um tal projecto, requer medidas que assegurem a cada um o direito que tem de conservar illesa a honra e o brio que a tanto custo tem conseguido ganhar.» N'este momento chegou a Inglaterra a rainha D. Maria II, de cuja viagem trataremos n'outro capitulo. Houve geral contenta- mento nos emigrados e voluntários. Esperavam todos que ella passasse por Plymouth na sua viagem a Londres; mas Palmella aíastou-a d'aquelle maldito deposito. Foi nomeada uma commissão composta do brigadeiro Pizarro e do coronel Henrique da Silva, para a ir cumprimentar em nome dos emigrados á cidade de Exe- tcr. As casas dos emigrados em Plymouth estiveram illuminadas por espaço de trcs dias. Diz Silva Maia que os voluntários, por isso mesmo que eram os mais desgraçados, foram os que mais se enihusiasmaram. Es- queceram as palhas enlameadas do barracão e suas misérias, e só os occupava a idéa de patentearem a sua alegria. Apesar dos pou- cos recursos que possuiam, abriram uma subscripção entre si e os amigos, e com o producto d'ella armaram um theatro dentro do barracão. O panno de bôcca representava o campo de Lobios, onde foram assaltados e roubados pelo guerrilheiro Pereira. Ensaiaram uma comedia; e a musica foi composta pelos próprios emigrados curiosos. O espectáculo começou com um elogio dra- mático ; assistiram muitas famílias inglezas ; recitaram-se muitas poesias á rainha, a D. Pedro, á carta, a Pizarro e a outros que com- mandaram a expedição. «Porém, diz Maia, o director Cândido José Xavier ninguém o louvou, nem havia de que; antes estes mancebos, em uma edade que é tão natural a indiscreção, tiveram a prudência de não lhe dirigir algum verso epigrammatico pela ignominia com que os tra- tava ; mas este homem pequeno teve a fraqueza, no terceiro dia. de prohibir a peça e fechar o theatro, por isso mesmo que os elogios só se dirigiam ao brigadeiro Pizarr(> c não a elle. • A prohibição, sem que houvesse a menor desordem e distúrbio, nem motivo para ella, irritou os ânimos. L'ma multidão de versos 372 / epigrammaticos cahiu sobre a administração, nos quaes Cândido José Xavier, Palmella e seus adherentes não foram poupados. E accrescenta Maia que teriam passado a vias de facto, se alguns mais prudentes não contivessem os mais exaltados ; porque os administradores quizeram usar da sua auctoridade, ameaçando a uns com prisões, e a outros com os expulsarem do deposito. Ver- dadeiro governo e administração de conservadores, constantes fabri- cas de desordens e revoluções. Felizmente o braço direito de Palmella retirou-se para Londres e foi substituido por Siubbs. Os emigrados alugaram então o theatro particular do conde de Morlei para quatro recitas, e os espectáculos continuaram sem mais algum incidente, reinando antes o maior enthusiasmo, por os vo- luntários verem-se livres do tal director do Belfast. Os emigrados cederam um dia de cada mez dos subsídios que recebiam do deposito, e mandaram fazer um sceptro de oiro e im- primir a carta constitucional no melhor typo que houvesse, para offerecerem á rainha. Com a direcção de Stubbs suavisaram-se os rigores havidos até ahi com os voluntários; mas as suas reclamações continuaram a ser desattendidas. Paliando da substituição de Stubbs, diz Silva Maia o seguinte: «este apenas era um simples executor de ordens; não podia dispor de coisa alguma, nem conferir mesmo subsidio; não sabia mesmo do dinheiro que havia, nem em que elle se dis- tribuía; porque as ordens a tal respeito vinham directamente diri- gidas ao secretario Midosi; somente de sua auctoridade privada melhorou a sorte dos voluntários, mudando-os dos immundos bar- racões para outro melhor e substituindo as palhas sohas em que dormiam por enxergas de linho; e quando embarcaram para a Ter- ceira mandou dar a cada um 2 libras esterlinas. O marquez de Palmella mandou em dezembro instaurar em Londres uma com- missão composta do conde de Linhares, do conselheiro Vasconcel- los e do lente Aguiar, este ultimo foi depois substituido pelo mare- chal Azeredo; esta commissão era destinada a regular os subsídios e as pendências pecuniárias dos emigrados; porém ella era nulla 373 e illusoria para se impor ao deposito e para o marquez de Palmella afastar de si o odioso das injustiças que praticava a este respeito; elle era o único distribuidor dos dinheiros que os mandava dar a quem lhe agradava; é verdade que os requerimentos das partes iam enviados de Plymouth a esta commissão, mas ella nunca defe- riu nenhum ; ninguém jamais viu a assignatura de seus membros em um só despacho; o marquez de Palmella, nos officios que es- crevia ao general Stubbs, é que em paragrapho lhe dizia, como eu muitas vezes vi. «Diga a fulano e a sicrano que seus requerimen- tos tiveram este e aquelle despacho» outras vezes dizia «publique em ordem do dia que fulano e sicrano tiveram tal e tal despacho, de modo que as partes não pudessem ter documento por escripto das injustiças que se lhes faziam, visto que os requerimentos lá fi- cavam e davam-se-lhes os despachos verbaes.^) A Cândido José Xavier deu Palmella plenos poderes, ao gene- ral Stubbs cerceou-os, e ainda por cima quiz lançar sobre elle o odioso dos seus próprios actos e das suas injustiças! Processo mui próprio dos que desejaram comprometter no Porto o general Sal- danha, amigo de Stubbs. São muitos os abusos, os escândalos, as prepotências, os ve- xames e perseguições que da administração do barracão de Ply- mouth nos conta Silva Maia e José Liberato Freire de Carvalho, todos testemunhas occulares dos factos. O que fica exposto é bastante para se conhecer o ódio que Pal- mella e seus partidários votavam sobre tudo aos voluntários, que tinham, segundo elles, projectos revolucionários, e eram liberaes, democratas e republicanos. Pelos factos expostos podem nossos leitores avaliar das diver- gências profundas que Palmella continuava a estabelecer entre os constitucionaes, seguindo os planos da Bclf estada. Por desgraça foi n'essa mesma occasião que appareceu a tal carta da dissolvida junta do Porto ao imperador D. Pedro. Levantou-se um clamor geral de indignação entre os emigrados contra Palmella e os auctores da Bclfcstada. Quasi que não tem conta os protestos e refutações que se publicaram ás aílirmações 374 d'aquella carta. E é coisa para se notar bem : todos os sinceros liberaes correram em defesa de Saldanha, emquanto defenderam Palmella e a junta os sabujos e intrigantes. A polemica que se levantou na imprensa veiu desmascarar com- pletamente a conspiração tramada em Londres, a bordo do Belfast e novamente na embaixada d'aquella cidade contra Saldanha, em cuja pessoa se pretendia ferir o partido liberal. Ao mesmo tempo, veiu produzir novas divergências entre aquelle partido e o da legi- timidade, ou dos conservadores, em permanente conspiração con- tra aquelle. O folheto, ou a defesa de Saldanha, teve muitos coníirmadores dos factos por elle allegados. Albino Pimenta de Aguiar, capitão do regimento de cavallaria n.*^ 12, publicou em Hedé, e em 6 de dezembro de 1828, umas Lem- branças para a historia da junta do Porto. Começa: «A perfídia com que a junta do Porto argue Saldanha, procu- rando d'esta vil maneira desviar de cima de sua cabeça a respon- sabilidade que lhe cabe inteira e cabal., pelo infeliz êxito da revolu- ção do Porto, impõe-me a obrigação de romper o meu silencio, para que os emigrados vejam, e até para que o imperador do Bra- zil saiba, o credito que pode merecer uma junta, cujos membros se conduziram pelo modo que vou dizer. Não foi o general Saldanha quem perdeu a causa do Porto, foi o governo ali installado e com particularidade alguns dos seus membros, de cuja conducta vou fallar com aquelle conhecimento que pode ter um official, que viu e observou muito de perto todas as suas acções.» E conta coisas extraordinárias do coronel Gama Lobo, que pou- co faltou para se passar com todo o regimento para o governador Gabriel António de Castro, no acto de se proclamar a revolução no l^orto. Uma das obras mais notáveis e importantes publicadas a este respeito é intitulada — Observações sobre alguns paragj-aphos da carta da junta. Aqui refutam- se cabalmente todas as allegações da junta. É a 375 verdadeira confirmação da defesa de Saldanha; e ao mesmo tempo um documento illucidativo dos factos passados, l^almella é ahi tra- tado desapiedadamente, e como merece. Nota esta importante pu- blicação que a carta da junta omitte a portaria que investiu Palmei- la de commandante em chefe do exercito. K accrescenta. "A junta, que conta tantos contos ao imperador, tinha obrigação de não omit- tir aquelle. Talvez o marquez de Palmella não seja hoje duque de Grijó, por aquelle esquecimento culpável do negligente dellator. O imperador não podia deixar de ter remunerado já os serviços que o marquez fez n'aquelle commando. Esta reticencia, esta concisão, não se combina com a diífusão em que a junta se deleita, quando nos últimos arrancos da sua malfadada existência arrojou todo o peso do seu desleixo e desvarios aos hombros do conde de Salda- nha. ') Com respeito á defesa do Porto, que a junta allega se podia protrahir por pouco tempo, responde o auctor da seguinte forma: «Também não e exacta similhante exposição. Ninguém duvida que o conde de Saldanha propoz defender a cidade, e que esta propo- sição fora rejeitada, havendo um membro da junta que lamentou logo a ruina da sua casa, se tal defesa se emprehendesse. » Isto está de accôrdocom o depoimento expontâneo que fez Neutel Correia de Mesquita Pimentel em Paris, ao ler, no Paquete de T^or- tiigal^ a carta da junta. Elle declara terminantemente que Saldanha se ofTereccu para defender a cidade ate á ultima extremidade, o que foi regeitado pela junta. N'aquclla primeira obra deparamos com o periodo seguinte: «Esteja certa a junta do Porto que o exercito não se ha de es- quecer nunca do conceito que lhe mereceu em premio da sua obe- diência, patriotismo e lealdade. Não tornaremos a ter pátria; assim o quiseram os diplomatas e seus apani^niados, que desde iS-j'» uãn cessaram de chamar democratas aos servidores mais zelozos, mais fieis e Íntegros de el-rei D. Pedro e de sua augusta filha; mas, se a íii'ermos, o marquei *-^^' 'Pcihnella e a junta não hão de tojJiar a cx- patriar-nos . . . Fntelliífo quid loquar. » Eis a confiança que Palmella e os auctores da Belícstada inspi- 376 ravam ao exercito constitucional, aos emigrados e aos liberaes sin- ceros. A analyse ás observações do general Saldanha por Magalhães veiu ainda provocar novas revelações esmagadoras para Palmella e a junta do Porto, sua adherente. Mencionaremos o Commento do coronel TH^arro á sobredita analyse, escripto em Paris, e a carta que de Plymouth dirigiu Neutal Correia de Mesquita a Saldanha, em desaggravo das calumnias de que fora alvo. Algumas d'estas publicações foram reunidas n'um folheto intitu- lado — A perfídia desmascarada. Em uma nota diz o editor o seguinte : «A junta via-se vilipendiada adoptando o parecer de homens que lhe ensinavam o caminho para salvar a pátria, e pensou hon- rar-se, seguindo cegamente o poto de quem se apressou a perdel-a. «Circumstancias infelizes demoraram consideravelmerte a via- gem da embarcação." «Circumstancias, responde o editor, que o marque^ deTahnella occasioHou, por motivos e para fins que elle sabe e que, os emigrados já não ignoram.» E eis os eífeitos que a Bel/estada foi produzir fora entre os emi- grados, suas primeiras e mais importantes victimas. A conspiração dos moderados, ou conservadores, campeões da legitimidade, con- tra os liberaes, defensores da soberania nacional, continuou ainda no estrangeiro e durante a emigração! Os factos passados em Plymouth e em Londres denunciam bem claramente que foi contra esses voluntários, principalmente, que a junta do Porto, aconselhada por Palmella, não cessou de se preve- nir em todos os seus passos e em todas as suas medidas reaccioná- rias e perseguidoras. Ainda mesmo no estrangeiro persistia a politica seguida desde 1826 a 1828 contra os princípios puros da liberdade, de que tanto se arreceiavam os conservadores, ou defensores da legitimidade constitucional A defesa dos actos da junta, adepta de Palmella, não fez se- não denunciar ainda mais a perfídia dos que dirigiram os desti- 377 nos de Portugal durante o regimen do carta, e a revolução do Porto. E tratamos n'este capitulo da polemica levantada na imprensa de Londres e Paris a respeito da Belf estada, porque ella tem inti- ma connexão com a que se levantou em Plymouth entre os volun- tários e a gente de Palmella, e com a guerra que este lhes fez. 48 CAPITULO II A EXPEDIÇÃO DE SALDANHA Indisposição de Palmella e da Grá-Bretanha contra os emigrados portuguezes.— Um e outro combinam os meios de dissolver o deposito de Plymouth.— A Inglaterra ordena a dispersão d'este deposito; Palmella resc>lve enviar os emigrados para o Brazil. — Effeito produzido por esla ordem. — Ordem de embarque. — Protesto dos emi- grados.— O governo inglez participa que se opporá a qualquer e.xpediçâo a território portuguez. — Palmella muda de súbito, e resolve enviar Saldanha com uma expedição á lerceira.— O governo inglez manda partir uma esquadra para o mar dos Açores; Palmella ordena a Saldanha que parta para o Brazil, tocando na Ter- ceira, para onde o nomeia commandante das forças.— Palmella tem a certeza de que a expedição de Saldanha será aprisionada pelos navios de guerra britannicos. — Sáe a expedição de Plymonth. — Ao chegar á villa da Praia, é atacada pelos navios de guerra inglezes. — Correspondência entre Saldanha e o commandante Wal- pole. — Este intima Saldanha a abandonar a ilha. — Saldanha considera-se prisioneiro de guerra. — Os navios da expedição comboiados pelas fragatas inglezas são por estas atacados a tiros de bala.— Saldanha envia a Walpole um protesto assignado pelos emigrados. — Grosseria do commandante britannico e resposta de Sal- danha.— Os navios de guerra inglezes abandonam os navios da expedição oito dias depois.— Saldanha dirige- se á França.— Palmella fica furioso com esta resolução de Saldanha. — Palmella em desforra envia os emi- grados para o Brazil.- Impressão causada na Europa e na própria Inglaterra pelo aprisionamento da expedi- ção de Saldanha. — Procedimento generoso da França e da Btlgica para com os nossos emigrados. Pelo que nossos leitores acabam de ver e conhecer, é fácil ima- ginar o quanto estava incommodando Palmella a existência era Plymouth d'esses malditos voluntários, homens de caracter inde- pendente e insubjugaveis, e que de mais a mais estavam denuncian- do tão audazmente a perfídia dos seus planos e da sua politica. Os ataques que os emigrados, suas victimas, lhe dirigiam iam ferir, por outro lado, a Grã-Bretanha, que foi quem por detraz d'elle dirigiu essa politica em 1826 a 1828, e durante a revolução do Porto. A defesa de Saldanha veiu aggravar ainda mais as indisposi- ções de Palmella com aquelle general, considerado o chefe do par- tido liberal. O governo inglez ficou furioso com essa polemica, que desvendou a sua intervenção em os negócios de Portugal. 379 Os factos passados em Pylmouth e a discussão acerca da Bel- festada agastaram tanto Palmella, quanto o governo britannico. Se este odiava os liberaes portuguezes e Saldanha, muito mais os ficou odiando d'ahi por diante. O governo inglez não via com bons olhos os ataques dirigidos pelos emigrados a esse que não passou de um instrumento dócil da sua vontade. A um e a outro convinha dissolver o deposito de Plymouth, fosse porque maneira fosse. Para nós é ponto de fé que Palmella n^este momento andou de concerto com o governo inglez, e que foi por insinuação d'elle que este lhe communicou a resolução em que estava de dissolver aquel- le deposito. É não fiar nas cartas e correspondências de Palmella a este res- peito. O seu caracter manhoso e simulado está bem conhecido. O governo inglez indicou-lhe os differentes logares em Ingla- terra para onde tencionava enviar, ou disseminar, os emigrados, se- parando os officiaes dos soldados. Palmella, em continente, resolveu envial-os, não para a Terceira, mas para o Brazil, para bem longe de Portugal, o que já lhe tinha indicado o governo inglez. Fingindo-se mui indignado com isso, no seu officio de 26 de novembro de 1828 a Nuno Barbosa de Figueiredo, nosso ministro em Paris, diz Palmella que considerando o mau eífeito que a dissi- minação do deposito de Plymouth produziria em Portugal, e que os emigrados portuguezes ficariam inhibidos de servir a causa de D. Pedro, por isso que a Inglaterra se opporia a qualquer expedi- ção d'elles, e ponderando as despezas enormes que o deposito de Plymouth acarretava «parece-me. diz elle, mais conveniente evitar a ignominia de sermos aqui tratados como prisioneiros de guerra, fazendo embarcar quanto antes todos os officiaes e soldados para o Rio de Janeiro, e oííerecendo meios de transporte aos refugiados não militares que d'elles se quizessem aproveitar. • Havemos de ver como a Inglaterra embaraçou, dep(/is da ex- pedição de Saldanha, as outras expedições para a ilha Terceira. Aquelle periodo é repassado da mais refinada perfídia. E o mais engraçado c que. no mesmo officio. pede ao mesmo 380 nosso ministro em Paris que faça constar aos militares ahi residen- tes, e que fugiram do barracão de Plymouth, que os transportes chegam também para elles, se quizerem egualmente seguir para o Brazil. Eram também prisioneiros de guerra da Grã-Bretanha ! Pal- mella não quiz n'este momento esquecer a sorte d'elles, a quem tam- bém chegarem n'este momento os seus sentimentos de generosidade! Para o Brazil, para o Brazil, senhores, que lá achareis muitas venturas junto do vosso amado monarcha e dos vossos irmãos bra- zileiros. Eu cá fico, para salvar a liberdade. Em carta régia de i de dezembro, referendada pelo marquez de Palmella, a rainha ordena a este que, em vista da intimação do go- verno inglez para disseminar os emigrados reunidos em T^lymouth^ os mande embarcar para o Rio de Janeiro «onde serão acolhidos por meu augusto pae, com a lealdade que d'elle merecem, e serão por elle empregados como melhor convier ao meu real serviço. » Em cumprimento d'esta carta régia, o general Stubbs, em or- dem do exercito de 7 de dezembro, participa aos emigrados que, não consentindo o governo inglez que se conservem por mais tem- po no deposito, é forçoso que saiam da Inglaterra, e que só no Bra- zil elles acharão hospitalidade e protecção. Previne, por tanto, todos os ofíiciaes superiores e inferiores que se preparem para embarca- rem para aquelle paiz. E convida aos paisanos para seguirem o mesmo destino! Em 1 5 de dezembro, o mesmo general intima os emigrados a embarcarem até ao dia 20 nos quatro transportes que se achavam no porto. Participa a nomeação de Saldanha para director da ex- pedição. Os navios Suiana, Delphim e Lyra receberão os corpos de artilheria e infanteria e os fuzileiros reaes ; o transporte Minerpa receberá os officiaes e os empregados públicos, suas famílias e creados. O visconde d'Itabayana, cremos nós, pediu ao governo britanni- co uma esquadra para comboiar aquellas embarcações, afim de não cahirem em poder da esquadra miguelista. N'uma entrevista com lord Wellington o próprio Palmella pe- diu esse comboio; o lord respondeu que meditaria. Em 27 de no- 381 vembro, escreveu-lhe declarando-lhe que o governo accedia a esse pedido. Depois reconsiderou e retirou essa promessa, como se vê no seu officio de 6 de dezembro ao mesmo Palmella. Traição! traição! gritaram todos. Em i8 de dezembro Palmella pede ao commandante da fragata brazileira Iiabely que, na conformidade das instrucções que rece- beu do ministro do Brazil, dê comboio até ao Rio de Janeiro aos transportes que vão conduzir áquelle império os emigrados portu- guezes. As ordens do embarque para o Brazil produziram geral explo- são de furor entre os emigrados. Diziam elles. «No momento em que nos dizeis que a nossa rai- nha fora recebida por sua magestade britannica com todo o acolhi- mento, que este monarcha lhe vae dar auxilios para expulsar o usurpador da sua coroa, que uma conspiração contra D. Miguel está por instantes a rebentar em Lisboa, é que ordenaes o nosso embarque para o Brazil! Como defenderemos na America uma causa por que pugnamos cá na Europa e pela qual havemos feito tantos sacrifícios? Quem ha de em Portugal exercer nossos cargos!' Os traidores ? Não nos dá isto bem a entender que esta medida e ain- da uma consequência doesse plano perjido que levastes ao 'Porto^ que dissolveu um brilhante exercito^ fazendo padecer na Galliia tantos soffrimentos e ignominias e sacrificando tantos centenares de honra- dos portugueses ? Xós bem vos amhecemos ; quereis transigir com os perjuros aristocratas, j>nss()s parentes em Lisboa; quereis, de accórdo com elles. substituir D. Miguel rei absoluto por D. Maria II rainha absoluta; e por isso é necessário que não vejamos esta ignominosa transacção; porque, defensores da carta, nos havemos de oppor a vossos planos. Quem vos deu o direito de nos mandar? mostrae a ordem que tendes do soberano. Já não sois embaixador, que por isso fostes ao Porto, e ahi desertastes, e, cmquanío }'<>s não justifi- cardes legalmente, sois considerado criminoso. Se é como marquez c par que arrogaes o direito de nos mandar, também temos entre nós marquezes e pares, que, emigrados como v()s, merecem a nossa co;(//j/?a7; se é como militar, temos militares mais dimi^s c graduados 382 do que vós. Se até aqui havemos obedecido ás vossas ordens, é porque queremos defender a causa da nossa rainha, e não deseja- mos motivar questões, até esperar ordens do senhor D. Pedro.» A isto, que extrahimos da obra de Silva Maia, accrescenta este escriptor o seguinte : ' ((A estas murmurações respondiam o marquez de Palmella e seus delegados por um terrivel dilemma — ou obedecei em silen- cio, sem examinar como tomei a iniciativa de vos mandar, ou mor- rereis á fome ; escolhei — Esta lógica é a mais conveniente e a mes:- ma de que usava D. Miguel em Lisboa; só com a diíferença que D. Miguel substituia á palavra fome a palavra forca, e o mais é que o marquez de Palmella empregava esta terrivel arma, não só para punir aquelles que lhe desobedeciam, quando os mandava, em nome da joven rainha, como com oífensas particulares.» O brigadeiro Pizarro apresentou-se em casa de Stubbs e decla- rou-lhe, em nome de todos os commandantes e ofíiciaes do depo- sito, que todos sentiam repugnância em irem para o Brazil e que n'isto viam uma nova traição. Diz Silva Maia que procuraram convencer Pizarro de que, ha- vendo todo o deposito jurado obediência á rainha, era contradi- ctorio recusarem-se a sugeitar-se a uma ordem emanada d'ella. Pizarro recuou diante d'este argumento forte, mas verdadeira vio- lência praticada em nome da mesma rainha, Elle próprio foi pedir aos commandantes que dirigissem á soberana uma protestação de que estavam promptos a obedecer-lhe em tudo: «mas, diz Silva Maia, como a maior parte praticava estes actos por mera contem- plação, e não por convicção, conservavam a reserva de illudirem a ordem de irem para o Brazil, quando chegasse a occasião de a executar, o que assim fizeram.» E emquanto Palmella pensava em mandar as tropas portugue- zas para o Brazil, mandava recrutar na AUemanha soldados para os enviar á Terceira I Estes soldados deviam partir de Plymouth! O governo inglez fez constar ao mesmo diplomata que jamais consentiria que da Inglaterra partissem tropas para domínios por- tuguezes, e que estava disposto a usar da força para obstar a isso. 383 Palmella, tendo conhecimento de semelhante resolução, mudou subitamente de parecer, e decidiu enviar Saldanha á Terceira ! Es- tabeleceu-se então activa correspondência entre elle e o duque da Victoria, persistindo este em sustentar o direito que assistia á In- glaterra para intervir no caso da expedição se dirigir áquella ilha, e insistindo Palmella em fazel-a seguir este destino! Em vista d^isso, em 12 de dezembro, o governo inglez orde- nou que partisse immediatamente uma esquadra para o mar dos Açores, afim de se oppôr ao desembarque da expedição na Ilha Terceira. Palmella, sabendo muito bem tudo isso, nomeia Saldanha, não só commandante da expedição á Terceira, mas também comman- dante de toda a força armada n'esta ilha, ás ordens da junta n'ella estabelecida ! E, sendo Diocleciano Cabreira inimigo pessoal de Saldanha, Palmella fez d'este o portador do ofíicio para aquellc, em que lhe participa a sua nomeação de commandante das forças da ilha ! E para que os nossos leitores possam conhecer melhor esta nova cilada de Palmella ao homem que elle mais temia, basta que leiam o officio que elle dirigiu a Cabreira por esta occasião, e em data de i3 de janeiro de 1829. Dando-lhe parte do que se passou entre elle e o duque de Wel- lington, diz-lhe que tem o mais fundado receio de que o governo inglez chegará a ponto de empregar a força, para impedir o desem- barque das forças de Saldanha «ao menos, diz elle. da í;eiitc de que SC compõe a primeira divisão que sahiu de Plymouth com esse des- tino^ debaixo do cominando do ifcneral Saldanha •> .' Palmella diz que tem apenas o mais fundado receio^ quando tinha a plena certeza d'isso, porque assim lh'o communicou termi- nantemente o mesmo governo inglez ! Tinha apenas receio, e sabia muito bem que foram dadas ordens para partir immediatamente uma esquadra britannica para os Açores! Ainda mais, aquelle oífi- cio tem a data de i3 de janeiro; e a 4 do mesmo mez partiu aquella esquadra dos portos de Inglaterra I Mas o mais importante d'aquelle olficio é o conhecimento que Palmella já tinha de que a 384 Grã-Bretanha só se opporia ao desembarque de Saldanha, como de facto assim aconteceu ! Não ha em tudo isso uma verdadeira comedia representada entre Palmella e o governo inglez, para illudir e occultar a nova traição urdida contra o protector dos vintistas e contra essas mal- ditas tropas e voluntários do Porto, que, segundo o mesmo Palmella e o governo inglez, tinham projectos revolucionários e eram repu- blicanos ? Palmella enviou a expedição para a Terceira na certeza de que ella seria apprehendida no caminho pela esquadra britannica, que a obrigaria a seguir viagem para o Brazil. Foi a desforra que tirou dos discursos que contra elle proferiram os emigrados em Plymouth, ao receberem as ordens para partirem para o Brazil. Chegou a occasião de elle se vingar da defeza de Saldanha, e das publicações a que ella deu origem, desmascarando completa- mente a perfídia da Belfestada^ aconselhada pela Inglaterra. No dia 4 de janeiro, largou ferro do porto de ^ortsmouíh^ a esquadra britannica para os mares dos Açores, e a 6 partiram de Plymouth os quatro transportes, conduzindo seiscentas e quatro praças, sob o commando de Saldanha I Este recebeu instrucções de não navegar em comboio ; mas sim com os navios separados uns dos outros! Devia seguir viagem para o Rio de Janeiro, fazendo escala pela Terceira! E caso encontrasse obstáculo ao desembar- que n'esta ilha, deveria proseguir na sua derrota para o Brazil, visto os transportes levarem viveres em abundância para isso. A administração abriu um credito sobre pessoa idónea de Te- nerife, para fornecer a expedição de tudo quanto precisasse. Prova de que Palmella tinha a certeza de que ella não desembarcaria na Terceira. Saldanha, os officiaes e mais expedicionários, sahiram, porém, resolvidos a não cahirem no laço de partirem para o Brazil, e de navegarem em separado. Mesmo nas aguas de Plymouth os transportes juntaram-se e assim seguiram viagem. Devemos dizer que a expedição ia desar- mada. 385 Durante a viagem não se encontrou com a esquadra britannica. No dia i6 entraram os quatro transportes na villa Praia. Os dois brigues Delphim e Lyra navegavam na proa das duas galeras Mi- nerva e Susana. Repentinamente foram atacados por duas fragatas inglezas a sotavento do porto ; uma d'ellas, a Ran^er^ commandada por W. Walpole, atravessou e rompeu fogo contra os brigues, que se preparavam para fundear. A galera Suiana ficou com dois rombos e com uma lancha des- pedaçada. Um soldado que trabalhava para destracar esta, foi morto e outro ficou gravemente ferido. Em seguida, dirigiu-se uma lancha para a galera Siiiana^ con- duzindo um otficial inglez, que desembarcou e entregou para o commandante da expedição o officio que dizia o seguinte : «Tenho a pedir-vos queiraes communicar-me o motivo da vossa vinda a este porto com a força do vosso commando. Tenho a honra de ser vosso obediente e humilde creado Guilherme Walpole. » Saldanha respondeu : «O motivo da minha chegada a este porto é o de cumprir as ordens de sua magestade fidelíssima, a rainha de Portugal, a qual me ordena que eu conduza á ilha Terceira, desarmados e sem alguma apparencia hostil, os portuguezes que estão a bordo dos quatro transportes á vista da ilha, que nunca deixou de obedecer e reconhecer como sua legitima soberana a rainha D. Maria II. Como súbdito fiel e militar, julgo necessário affirmar-vos que estou determinado a cumprir o meu dever, seja qual fôr o risco. •> O commandante inglez respondeu-lhe que tinha também um de- ver imperioso a cumprir, e que em vista das instrucções do seu go- verno não podia consentir no desembarque. Caso elle o tente, será obrigado a empregar a força. Intima-o a sahir immediatamentcl Saldanha replicou que estava decidido a morrer com todos os soldados, preferindo isso a abandonar o commando. "O sangue, lhe disse elle, dos mais antigos alliados de sua ma- gestade britannica Já foi derramado: um homem foi morto e outro gravemente ferido a bordo d'e>te navio: mais pode correr ainda. Podeis apontar de novo contra n(')s a vossa artilhcria: pívieis met- 4'.i 386 ter-nos a pique; mas ficae certo que de mim, emquanto não fôr feito prisioneiro, e reparae bem que isto se passa debaixo das ba- terias da Villa da Praia, empregarei todas as diligencias que poder para satisfazer o meu imperioso dever. «Permitti-me que vos observe que ides descarregar a vossa arti- Iheria contra quinhentos portuguezes desarmados a bordo de trans- portes inglezes e russos. A Europa e a vossa própria pátria parti- cularmente ficará mais espantada ainda, que os mesmos súbditos de sua magestade fidelíssima. Deixae-me que vos observe também que nós não vimos atacar, nem commetter aggressão alguma ; vimos, completamente desarmados, reunir-nos a nossos irmãos em uma terra que nunca obedeceu ao usurpador, mas que tem, pelo con- trario, reconhecido constantemente a legitima auctoridade da rainha minha soberana. Devo declarar-vos também que não temos previsões, e que, ainda quando o meu dever permittisse alterações, seriamos obriga- dos a recebel-as. Tendes, portanto, em vosso poder duas armas decisivas para destruir-nos.» Walpole não respondeu por escripto ; enviou o capitão Radford intimar verbalmente Saldanha a deixar o porto antes das três horas da tarde, sob pena de empregar de novo a força. Saldanha considerou-se prisioneiro de guerra. Emquanto escre- via um officio em defeza do direito das gentes offendido, e estra- nhando que se lhe não desse a intimação por escripto, approxi- mou-se a fragata Ranger e o commodoro intimou-o a elle e ao capitão da Siiiana^ a que partisse logo, logo. Saldanha mandou a bordo da fragata o capitão Praça com um officio, expondo que, em presença das intimações ameaçadoras, não podia enviar o protesto que estava redigindo. A isto respondeu o commodoro que Saldanha navegasse para onde quizesse, comtanto que sahisse immediatamente dos Açores. Ainda esta intimação foi- verbal. Saldanha entendeu pedir novas explicações por escripto. E quando estava redigindo o officio, a Ranger disparou alguns tiros, cujas balas passaram por entre os mastros da galera Sii-ana. Saldanha terminou á pressa o seu officio ; mandou lançar ao 387 mar um bote ; metieu-se n'elle ; e dirigiu-se á fragata Ranger. Re- cebeu então por escripto as intimações pedidas. Saldanha voltou para bordo, emquanto as fragatas inglezas tomavam posições a barlavento e a sotavento dos transportes, que por ordem d^elle se conservaram sempre atravessados, para mais facilmente poderem ser submergidos pela artilheria inimiga. Considerando-se prisioneiro de guerra, o commandante da expedição mandou-a seguir para onde as fragatas inglezas indi- cavam. Os quatro transportes navegaram á bolina, o que o vento dava, o qual era do norte para o nordeste, amura por bombordo, escolta- dos pelas fragatas, das quaes uma navegava a barlavento da proa dos transportes e outra na mesma alheta. Largaram o porto depois das quatro horas da tarde ; e navega- ram assim até ás 8 horas da noite. Como a Su:[ana fosse obrigada, por um aguaceiro, a ferrar os joanetes., as fragatas descarregaram sobre ella tiros de bala, o que obrigou os marinheiros a largal-os novamente com imminente risco! Pouco tempo depois, descarregaram novos tiros sobre a Mi- nerra pelo mesmo motivo. Foi preciso observar com toda a vigilância as manobras das fragatas britannicas, para evitar o fogo brutal das suas baterias ! No dia 17, Saldanha mandou perguntar ao capitão Walpole a razão porque dispararam tiros sobre os transportes, e enviando-lhe um protesto assignado por todos os emigrados contra a violência de que foram victimas. N'este protesto narram-se todos os factos passados até ahi. N'elle lemos o seguinte commoventc período, refcrindo-se á en- trada na villa da Praia. >• Nossos irmãos estavam nas praias estendcndo-nos os braços, e as cornetas do destacamento, que occupa aqucila villa da Praia, festejavam já a nossa chegada, listávamos tanto sobre a praia, que os portuguezes a bordo do Su-ciii quizcram que o c, mas a indigna- ção. Todo o deposito se mostrou revoltado c inquieto de novo. gri- tando todos, traição, traição! Os emigrados logo comprehenderam que o astuto diplomata e defensor da legitimidade queria desta/.er->e d'elles pela> suas ideas liberaes; por isso o acusaram de desejar substituir D. .Miguel abso- luto por D. Maria 11 absoluta. O procedimento brutal das fra-iatas de guerra inulezas na ilha Terceira f()i objecto de geral cenoura da imprensa européa, que d'elle se occupou. O partido liberal de toJa^ as nações protestou 394 contra essa violência e interferência facciosa a favor do odioso go- verno de D. Miguel. Na própria Inglaterra essa noticia produziu má impressão. O partido wygs levantou no parlamento renhida campanha contra o governo. « A vereda, disse lord Palmerston, seguida pelo governo britan- nico em os negócios de Portugal tem causado o assombro da Eu- ropa e a todo o inglez que presa o bom nome da sua pátria a mais profunda magua. » Referindo-se ao incidente da ilha Terceira, estranhou aquelle estadista que a Inglaterra visse com indiíferença o bloqueio do Por- to e o ataque á ilha da Madeira pelas tropas miguelistas, e agora intervenha na ilha Terceira contra os constitucionaes. Sustentou aquelle orador que a Inglaterra tinha obrigação de exigir que D. Miguel guardasse os seus juramentos e cumprisse as es- tipulações dos contratos e compromissos que tão publicamente con- trahira á face da Europa, e tendo o próprio rei da Grã-Bretanha por testemunha e garantidor d'esses compromissos. «Em primeiro logar, disse elle, pelejar contra D. Miguel não fora pelejar contra a nação portugueza, fora pelejar em seu auxilio e tel-a por nosso lado como alliada e amiga. Mas nem guerra seria absolutamente necessária; uma forte demonstração de nossos sentimentos, uma dicedida expressão de nossas opiniões, teria pro- vavelmente sido bastante, se nós tivéramos animado e apoiado o governo do Porto, em vez, de o ajudar a bloquear ; se tivéssemos soccorrido os portuguezes em Plymouth, em vez de os expulsar e metralhar; em summa, se, em vez de atirarmos com nossa espada á balança do lado de D. Miguel, tivéssemos posto só a bainha, va- sia que fosse, do lado contrario, mui provavelmente houvéramos conseguido nossos fins e seu destino teria tombado o íiel.» E passa a mostrar quão differente fora o proceder da Inglaterra com outras nações em casos eguaes ao que se deu com Portugal. Sir James Mackintosh fez um ataque enérgico e vigoroso ao governo de Wellington. Elle condemnou em termos violentos e de- cididos a protecção que este governo estava dando a um usurpa- 395 dor, cujos crimes privados, diz elle, trazem á memoria as eras de Commodo e Caracalla. E mostrou as responsabilidades que pesa- vam sobre a Inglaterra pelo restabelecimento do absolutismo em Portugal, e o dever que lhe assistia de defender e proteger a causa de D. Maria II. Sustentou o orador que as potencias mediadoras adquiriram o direito de exigir imperiosamente a D. Miguel que renunciasse á auctoridade, para usurpar a qual, diz elle, obtivera d'ellas os meios por fraude e mentira. Essas nações estão obrigadas a exercer esse direito sagrado por sagrado dever para com D. Pedro, que d'ellas fiou o condicional estabelecimento da regência. «A consequência, diz o orador, do nosso proceder para com Portugal n'estes últimos i8 mezes é em politica assombrosa.» E afifirma que em todo este negocio nada o magoa e envergo- nha mais, do que o infeliz acontecimento da Terceira, que foi um grave attentado ao direito das gentes. Toda a imprensa discutiu este grave assumpto. Os absolutistas puros louvaram o procedimento da Inglaterra, os constitucionaes e liberaes unanimemente protestaram contra elle, como uma infracção do direito "das gentes e da guerra, e como um acto de facciosa par- cialidade a favor de D. Miguel. Basta que os nossos leitores se recordem da influencia directa que a Grã-Bretanha exerceu na politica portugueza desde 1826, para conhecerem facilmente a responsabilidade que pesa sobre ella pela usurpação de D. Miguel. Toda a politica cartista foi promovida c inspirada por ella ; e quando viu o tvranno apoiado moralmente pe- las grandes potencias, abandonou aquella causa, e protegeu aquelle. a troco de um tratado de commercio que assignou com elle I Essa períida nação invocou as regras da neutralidade cm favor do seu procedimento nos mares dos Açores. Ora essa neutralidade foi quebrantada com o reconhecimento do bloqueio do Porto e d:i Madeira, e com a protecção escandalosa que deu a O. Miguel. Ain- da mais; a mesma Grã-Bretanha nunca reconheceu oiricialmente o governo de D. Miguel, e até rompeu C(^m elle as relações dipl. Pedro.— Esta embaixada c portadora da representação dos emigrados a E>. Pedro.— Instrucçócs que ella recebe de Palmclla. — N"esta occasiáo é nomeado o conde de VillaFlor dictador da ilha Terceira. — Primeiros passos do conde de Villa Flor na ilha Terceira — Chega a esta ilha a esquadra miguelista. — Ataque a villa da F'raia. — A esquadra retira-sc destroçada completamente.— Desembarca tropas nas outras ilhas.— EtTeitos c consequências da victoria do conde de \'illa Flor. — Chega a Londres o decreto da nomeação da regência. — Este decreto é a aiuiulação de todos os actos que até ahi praticara I*almella em nome da rainha. — D. Pedro assume de novo a soberania de Portugal —Nova jurisprudência em que se funda o decreto da regência. — Or- ganisação e constituição da regência da Terceira. — Palmella pensa em organisar uma regência em nome de D. Pedro. — Palmella quer tornar D. Pedro chefe visivcl do seu partido.— I). .Mariall c mandada regressar ao Bra/il. — D. Pedro envia para Londres D. Thomaz de Mascarenhas para representar a tilha.— Posição em- baraçosa de Palmella.— Os membros da regência partem para a Terceira. — Protestos dos emigrados contra a nomeação da regência da Terceira —Manifesto d"csta. — O anno de l^?<> muda a face politica da Europa no sentido da liberdade — O partido saldanhista pretende fazer a revolução em Portugal e collocar-se á frente d'ella. — .Manifesto dos emigrados aos portugue/es. — Os emigrados rccusamse a prestar juramento á regen - cia lia Terceira— Conilicto com o ministro da regência em Bnixellas. — Polemicas pela imprensa.— Proie>- tos do partido liberal. — Liberaes c conservadores.— O contiicto rebenta na illia Terceira.— .\ regência des- faz tudo quanto fez o governo provisório. -^.Medidas úteis da regência. Quando a rainha D. Maria II chegou á Grã-Bretanha com des- tino á Áustria, afim de ser entregue aos cuidados do imperador, Palmella e seus adeptos pensaram logo em tornal-a o centro do movimento revolucionário contra D. Miguel, para o deslocar dos governos eleitos pelo povo. Para isso Palmella conseguiu que o marquez de Barbacena infrin- gisse as instrucções que recebera do imperador do Brazil, conser- vando a rainha na Imilaterra e abrindo negociações com o gabinete inglez para tornar o monarcha d'esta nação o tutor de H. .Maria II. O mesmo Palmella começou a iníluir nos emigrados, para re- presentarem a D. Pedro contra a ida d"aquella rainha para a Aus- 398 tria, e para que elle nomeasse um governo em nome da mesma rainha menor. Nós já vimos que aquelle estadista foi de opinião que D. Pe- dro, como tutor da filha, podia exercer actos de soberania em Por- tugal. Com eífeito, todos os emigrados adeptos de Palmella e da le- gitimidade dirigiram uma representação a D. Pedro n'aquelle sen- tido, e com data de 19 d'outubro de 1828. Na qualidade de ministro da rainha D. Maria II, Palmella en- viou ao Brazil o conde de Óbidos e de Sabugal com uma carta credencial em nome da mesma rainha para residir na qualidade de seu enviado extraordinário e ministro plenipotenciário junto do im- perador, levando comsigo o dr. Joaquim António de Magalhães como secretario da legação ! Outro sim nomeou Luiz da Silva Mou- sinho d'Albuquerque conselheiro de legação á missão de Portugal no Brazil o qual, como nossos leitores viram, fora também ao Rio de Janeiro informar D. Pedro do estado politico de Portugal. Essa embaixada levou a missão de entregar ao imperador umas instrucções, ou proposições, que o mesmo Palmella assignou de ac- côrdo com o marquez de Barbacena, plenipotenciário da rainha e com approvação do ministro do imperador na corte de Londres, e bem assim de entregar a representação dos taes emigrados. No officio que Palmella n'esta occasião dirigiu ao ministro dos negócios estrangeiros na corte do Rio de Janeiro exprime-se assim : «Nas criticas circumstancias em que se acha a monarchia por- tugueza é indispensável empregar todos os esforços, para conseguir que triíimphe a legitimidade^ sem attender ás difficiddades e ainda ás irregidaridades que inevitavelmente hão de commetter-se. para attingir um tão importante e tão louvável fim!» Na representação dos taes emigrados, na qual figuram muitos nobres, parentes e adeptos da politica palmellista, diz-se que D. Pe- dro se dignou declarar eífectiva a abdicação da coroa de Portugal na filha, e enviar para a Europa este penhor sagrado, dizem elles, da prosperidade de uma nação digna dos paternaes desvelos com qiic D. Pedro tem procurado consolidar a sua felicidade. 399 «Raiou, dizem os signatários, senhor, este luminoso astro entre os muitos portuguezes que, por serem lieis a vossa magesiade, por obedecerem ás reaes determinações^ se acham hoje fora da pátria. »> Pedem, em termos submissos e de vassallos, que D. Pedro não permitta que aquella soberana se separe jamais dos portuguezes, que teem a ventura de a possuir. «Esta separação, dizem elles, destruiria as melhores esperanças^ animaria os inimigos de vossa magestade e esbulharia a nação por- tugueza de uma posse que lhe pertence exclusivamente e lhe cum- pre guardar, como o deposito sagrado da paz, da ventura dos povos que a Providencia confiou ao seu governo. ^^ Pedem a D. Pedro que tome abertamente a defeza da causa da íilha, e lhe preste todos os auxilios possiveis, para a collocar no throno que a Providencia lhe destinou. Esperam que as potencias estrangeiras hão de interceder a fa- vor da rainha D. Maria II. Pedem que D. Pedro declare que D. Miguel se tornou irreconciliável com a nação portugueza, e que providenceie acerca do governo que deve gerir os negócios da na- ção durante a menoridade da rainha D. Maria II. Palmella enviou depois as instrucçôes que serviam de addita- mento á exposição dos emigrados. N'ellas diz-se que' o pedido para o imperador não separar a rainha dos portuguezes entende-se principalmente indicar que por modo algum o imperador persista na intenção de a enviar para a Áustria, porque, observando o procedimento falso e artificioso do gabinete de Vienna, ha todo o logar para recear que a rainha fique ahi detida, debaixo de pretextos maliciosos, caso se não verifique o accordo que se procura eíTectuar por meio do ca^amento d'ella com D. Miguel. Diz Palmella que esse ajuste é para todos o> portuguezes leaes considerado como impraticável e monstruoso. i~*ede que, no La-.o da rainha não poder re>idir na Inglaterra, D. Pedro a mande re- gressar aoBrazil. Pede mais o auxilio de forças elíeciivas para sus- tentar a causa da mesma rainha. «Resulta, diz Palmella. do que líca exposto, a nece->->idade abso- 400 luta de dar alguma existência e forma legal a um governo que de- verá obrar em nome da rainha D. Maria II, emquanto se não puder instaurar a regência da carta ; e para esse fim será opportuno pro- por a sua magestade imperial a adopção do projecto do decreto que vae annexo debaixo do n.° i, no qual se procurou, sobretudo, sanar a irregularidade que resulta de não haver sua magestade im- perial previsto o caso da usurpação do senhor infante D. Miguel, para resignar o governo que havia de substituir-se á regência do dito senhor antes de completar a sua abdicação e de enviar sua augusta filha para paizes estrangeiros. Dignando-se sua magestade imperial promulgar o sobredito de- creto, creará do melhor modo, já agora possível, um governo^ cuja legitimidade ficará dimanando do seu próprio decreto de abdicação^ e delegando ao dito governo a tutela de sua augusta filha, que em todo o caso lhe compete, e revestirá aos olhos d'aquelles mesmos que qui{essem duvidar das suas attribuiçôes como regência^ de outras attribuições quasi egualmente importantes, cuja legalidade ninguém poderá contestar.» Esse decreto será notificado a todas as nações, reclamando-se especialmente a cooperação da Grã-Bretanha, em execução dos tratados em favor da rainha. Propõe um tratado de alliança entre o Brazil e a rainha D. Maria II para soccorrer esta com forças e di- nheiro, e um pacto defamilia, pelo qual se proverá á successão de ambos os estados, no caso da extinção completa de qualquer dos dois ramos reinantes no Brazil e Portugal, e propõe mais um tra- tado de commercio entre estes dois paizes. Tal a politica aconselhada por Palmella, para annullar os eífei- tos da corrente dos acontecimentos impellidos pelos governos revo- lucionários, filhos do exercício da soberania nacional. Notem nossos leitores toda a serie seguinte de disparates, con- tradições e illegalidades praticadas por estes demagogos da legitimi- dade, e defensores da lei que nunca respeitam, quando querem im- por a sua vontade aos povos. D. Maria II era menor e estava na Inglaterra sem tutor nem regência. Palmella não se importou com isso ; e fez assignar á 401 rainha menor, e portanto sem exercício dos direitos politicos, o de- creto que o nomeou a elle conselheiro c secretario d'estado! A mesma rainha, menor, sem tutella e regência ainda, assignou a carta regia nomeando o conde de Villa Flor commandante em chefe das tropas da ilha Terceira com poderes discricionários, e ate nomeou uma embaixada sua na corte do Rio de Janeiro! h!m nome da mesma rainha, Palmeila ordenou ás tropas que embarcassem para o Rio de Janeiro, e começou a governar, como se elle só fosse, ao mesmo tempo, tutor da rainha, regente e minis- tro doestado ! Esse orgulhoso aristocrata, para dar cabo dos governos legíti- mos e filhos da soberania nacional, arrogou a si o direito de sobe- rania, como sendo elle o rei, e arvorou-se em tutor da rainha, cm regente de facto c em conselheiro e ministro d'estado! Elle, o marquez de Barbacena e o visconde d'Itabayana, por sua alta recreação, quizeram formar entre si um conselho de regência de D. Maria II, c começaram a dar leis aos portuguezes e aos emi- grados em nome d'ella, a nomear auctoridades c a exercer direitos de soberania ! Isto é inaudito. Agora vão mais longe. Reconhecem que de facto não existe governo regular em nome da rainha, apezar da existência da junta da Terceira, e pedem que nomeie esse governo e a regência o mesmo D. Pedro, que acaba de tornar etfectiva e completa sua abdicação ! D. Pedro, pelo decreto de 3 de março, reconheceu que nada mais tinha com Portugal, c que a abdicação da coroa d'este reino estava consummada e definitiva. E Palmella, que já assumira a si o papel de soberano, aconselha a D. Pedro que continue a enviar decretos para Portugal e ate a nomear governos para elle I As juntas do Porto e da Terceira eram governos mais irregu- lares e illegaes. do que esses governos nomeados por um soberano estrangeiro, e que já tinha abdicado completamente da conja de Portugal!' Estava próxima a chegada do decreto para a reiícncia pedida, quando Palmella. sem ter aucloridadc para tal. dissolveu a junta Dl 402 da Terceira, e nomeou o conde de Villa Flor para a substituir em nome de uma rainha menor, sem regência nem tutella ! O primeiro passo do dictador da Terceira foi reformar, por uma maneira análoga á do governo em que foi investido, as secreta- rias creadas pela extincta junta provisória, reduzindo-as a três repartições apenas: a de -ajudante general, do quartel-mestre ge- neral, e secretaria militar, pelas quaes todos os negócios lhe deve- riam ser presentes ! E na mesma ordem do dia nomeia os chefes e sub-chefes d'essas repartições e mais pessoal, todo de gente da sua exclusiva confiança ! Na primeira ordem do dia diz que acaba de tomar posse do governo da ilha em nome da rainha D. Maria II, e pede que a guar- nição, e sobre tudo a exacta observância da disciplina, o ponham em circumstancias de completar o íim da sua missão. O conde de Villa Flor entregou o commando dos districtos em que se dividiu o littoral da ilha a pessoas também da sua confiança. Elle tratou depois de assegurar a defeza das fortificações e organi- sou convenientemente a tropa, disciplinando-a e instruindo-a. O governo de Lisboa expediu uma forte esquadra, para blo- quear os Açores, levando tropas de desembarque para a Ilha Ter- ceira. Villa Flor proclamou aos habitantes, animando-os e incitan- do-os a resistirem ao inimigo. A esquadra approximou-se de terra, e retirou-se depois, dei- xando dois bergantins em observação; na tarde do dia 29 de julho de 1829, avistou-se no horisonte grande numero de navios, que avançavam para terra. Na madrugada seguinte, reconheceu-se ser a esquadra que se retirara, composta de 22 navios, uma náo, três fragatas, duas corvetas, quatro bergantins, quatro charruas e alguns transportes armados em guerra. Villa Flor mandou guarnecer todos os pontos accessiveis da ilha; estabeleceu vigias em todos os de impraticável accesso; desi- gnou as guarnições destinadas aos fortes de S. João Baptista e de S. Sebastião, e formou uma columna volante que occupasse os cumes sobranceiros á parte oessudoeste e noroeste da ilha e apoiasse 403 immediatamcnte qualquer ponto sobre o qual a esquadra se diri- gisse. Elle reuniu o grosso das forças em uma columna central ; e col- locou-se á frente d'ella, para marchar sobre o primeiro ponto mais gravemente atacado. A esquadra conservou-se bordejando na costa do sul e sudoeste até ao dia lo de agosto, esperando algum levantamento dos migue- listas que lhe facilitasse o desembarque. N'aquelle dia o vento voltou ao sudoeste ; e toda a esquadra tomou o rumo do sueste. Reconheceu-se então que ella pretendia atacar com vento largo a villa da Praia, e com vento mais escasso as bahias ao oeste da cidade c castello. Villa Flor formou nova columna, a quem mandou occupar com algumas boccas de fogo S. Sebastião, afim de poder correr em au- xilio do batalhão de voluntários da rainha, que guarnecia a villa da Praia, sob o commando do major de caçadores 9, Manuel .Joaquim de Menezes. Ao mesmo tempo, ordenou ao commandante do dis- tricto, á esquerda da villa da Praia, o tenente-coronel de infanteria 16, Pedro José Frederico, levasse a sua força ás alturas que domi- nam aquella bahia ao lado esquerdo. Ao romper do dia seguinte, a esquadra, para disfarçar, apparc- ceu em frente das bahias ao oeste da cidade ; mas soprando-lhe o vento mais fresco c encobrindo-se o horisonte com aguaceiros, voltou súbito de bordo; e costeando cahiu de improviso sobre a villa da Praia, favorecida pelo vento. Os aguaceiros não permiltiram ás tropas de terra ver o movi- mento da esquadra. Só pelas i r horas da manhã, as névoas JÍnsí- param-se, e o vento serenou, descobrindo a não que fazia a \an- guarda da esquadra, e que já entrava aproada á terra, ■^e^uiJa por todtxs os mais navios, á excepção de uma corveta, que licou em frente do porto de Angra. O primeiro tbrte que rompeu o foiro foi o denomina Jo do Porto: a não e mais vascas de guerra responderam com uma Iwida. Aquella náo continuou a navegar até onde achou íunJo: lançou ferro: colheu panno, e continuou n*um fo.:o vi\() c acti\'o. 404 O fogo do forte, commandado pelo alferes de infanteria n.° 3, Simão d'Albuquerque, partiu o pau da retranca e parte do tomba- dilho da náo, e feriu muita gente. Pelas 4 horas da tarde, a esquadra, sem cessar o fogo, lançou uma columna de tropa em lanchas ; e estas accommetteram com Ímpeto e audácia a ponta onde existe o forte do Espirito Santo. O major Menezes mandou immediatamente uma parte dos vo- luntários defender este ponto, reunindo-se á força que do distri- cto immediato se postara junto á base do forte. E debaixo do fogo intenso das baterias de bordo e da metralha de duas canhoneiras que protegiam o desembarque, esse punhado de valentes voluntá- rios, tão guerreados por Palmella, começou uma fuzilaria, tão cer- teira, que obrigou a retroceder alguns dos escaleres completamente arruinados. A maior parte das tropas do desembarque lançou-se arrojadamente sobre os penedos, e trepando ao forte do Espirito Santo, que já se achava evacuado, conseguiu fazer saltar alguns soldados para dentro, emquanto outros conseguiram trepar uma escarpa de pedra quasi vertical ! Os voluntários subiram rápidos ao cume que domina o forte; saltaram n'elle á bayoneta; desalojaram o inimigo; precipitaram-n'o dos rochedos em que tinham desem- barcado e guarneceram a crista da escarpa. A esquadra fez retirar as lanchas destroçadas pela chuva de fu- zilaria que cahiu sobre ellas, com o fim de expedir segunda colum- na contra o flanco direito da linha dos constitucionaes. N'este tempo já a columna central entrava na villa da Praia, emquanto a primeira columna do inimigo, privada do seu com man- dante e de outros officiaes feridos mortalmente, acomettida por um chuveiro de balas, e isolada na base da escarpa, se achava comple- trmente batida e destroçada. Os soldados que tinham desembarca- do chamavam em vão pelas lanchas debaixo do fogo dos que esta- vam de cima. Estavam irremediavelmente perdidos, quando os vo- luntários bradaram do alto que cessassem o togo e se rendessem, que nenhum mal lhes succederia. Alguns voluntários ligaram-se com cordas; e descendo ao longo da escarpa deram as mãos aos ini- migos, para os tirarem do abvsmo em que se haviam mcttido; e ou- 405 tros, descalçando-se, desceram pelos penhascos, e foram salvar mais victimas, não obstante o fogo activo e constante da esquadra e do bergantim. Os soldados miguelistas entrega vam-se; c eram conduzidos prisioneiros para a villa da Praia. Os voluntários voltavam de no- vo ao fogo, ligando com lenços mais de uma ferida recebida para salvar a vida dos próprios inimigos! Duas companhias do 5." batalhão de caçadores, pertencentes á columna central, avançaram para defenderem na esquerda os volun- rios ; o resto da columna estendeu-se ao lado direito da bahia, con- tra o qual o inimigo dispunha o segundo ataque. Nova columna de lanchas desenvolveu-sc da esquadra ; e em linha de ataque dirigiu- se a terra ao abrigo da mesma esquadra. Ao primeiro tiro de terra, virou-se uma das lanchas, o que obri- gou as outras a retroceder cobrindo-se com a náu. Isto causou grande enthusiasmo entre as tropas libcraes, que soltaram gritos de victoria. Chegou então o resto da artilhcria e os obuzes que as difficul- dades das estradas tinham demorado. A primeira granada ameaçou a esquadra de um segundo perigo. p]ra já noite, quando a náo commandante fez signaes ao resto da esquadra para se retirarem. Cada navio, cortando apressadamente as amarras, fez -se ao mar e desapparcceu. O conde de Villa F^lor avalia a perda do inimigo, no primeiro ataque, em 800 a 1:000 homens, dos quaes 3(So foram feitos pri- sioneiros, por terem sido abandonados pela esquadra. l-'oi morlo o tenente coronel Azeredo, commandante em segundo da primeira brigada, e o major D. (jil l-^annes da Crosta. A esquadra abandonou também as quatro canhoneiras com que tinha protegido o desembarque. A perda de gente da seuun Ja ^<>- kimna devia ser lambem considerável pelas muila> lanchas \ iru das e despedaçadas. Muitos cadáveres foram arrojados á praia pelo mar. 0> constiuicionaes perderam apena> 9 h(Mnen>. entre elle> íre,> oUiciaes e lixeram -'3 feridos. 406 Diz o próprio Villa Flor qne a gloria d'este dia pertence princi- palmente ao corpo de voluntários de D. Maria II. O commandante da esquadra convocou conselho de officiaes; e ahi se decidiu que, á vista do máu resultado da acção do dia 1 1 , que fez perder a força moral aos soldados e marinheiros, não con- vinha tentar segundo desembarque, e que se guarnecessem de tro- pas as outras ilhas. Para a ilha do Fayal foram i5o praças do regimento de infan- teria i, e outras tantas do n.° 7; e para as ilhas de S. Jorge e Pico 200 praças dos mesmos corpos e petrechos de guerra. A ilha de S. Miguel foi guarnecida com 3oo praças do regi- mento de infanteria 20 commandadas pelo tenente coronel Doutel, com Soo praças de caçadores n.° 11, commandadas pelo capitão Paula, uma companhia de infanteria n.° i e 120 artilheiros e conductores, tudo debaixo das ordens do tenente coronel de artilheria Silva Reis. O próprio commandante da esquadra declara ao conde de Bas- tos que a ilha Terceira está em respeitável estado de defesa, que os pontos susceptíveis de serem atacados são poucos e de difficil accesso, e que todas as expedições que não forem feitas com força e em regra serão perdidas. Os constitucionaes aprehenderam 1:200 espingardas, 2 boccas de fogo de caHbre 24, e 4 canhoneiras. O conde de Villa Flor proclamou no dia 26 a todos os habitan- tes das ilhas annunciando-lhes a victoria por elle ganha, e a sua importância, e convidando-os a tomarem a causa da rainha e da legitimidade. O effeito que esse desastre produziu em Lisboa foi tal, que o governo mandou prender todo o que desse noticias d'elle. A lin- guagem dos jornaes e das publicações que então se fizeram em Lis- boa mostra o quanto os miguelistas ficaram desesperados com essa monumental derrota, que foi o principio da sua queda. O que Palmella tentou evitar com Saldanha e a favor da liber- dade, tanto em 1826 a 1828, como no Porto e na Terceira, conse- guiu-o agora com o conde de Villa Flor a favor da legitimidade. 407 A victoria da villa da Praia foi um facto de grande trascenden- cia para a causa de D. Pedro e de D. Maria II e para a politica de Palmella. Saldanha não poz os pés na ilha Terceira em nome do partido liberal ; mas o conde de Villa Flor ahi desembarcou em nome da legitimidade, e obteve o que aquelle desejava a bem do seu partido. A victoria da villa da Praia não foi só contra D. Miguel, mas con- tra Saldanha e o partido liberal. Palmella e os seus, ou os homens da Bclfesiada, realisaram na Terceira o que não puderam realisar no Porto, por cujo motivo abandonaram as tropas e fugiram para a Inglaterra. Aquella victoria, foi, sim, uma compensação da Belfestada. ou o começo da ascendência do partido palmellista sobre o partido saldanhista, da legitimidade sobre a liberdade. O conde de Mlla Flor aproveitou-se da victoria, para encorajar os habitantes e mantel-os firmes na resistência ao governo de D. Miguel. O partido d'este ficou na ilha completamente anniquilado, e o governo de Lisboa aterrado e impossibilitado de mandar nova expedição á Terceira. N'este entretempo, chegou a Londres o decreto de i5 de junho para a nomeação da regência definitiva pedida a D. Pedro por Pal- mella e seus adeptos; e retirou-se para o Brazil a rainha D. Maria II ! Juslifica-se D. Pedro d'esse acto de soberania praticado cm Portugal, depois d-e ter tornada completa e definiva a sua abdicação, dizendo que o seu decreto de 3 de março de 1 828 não foi publicado em Lisboa e Portugal, que não havia lei n'este paiz applicavel ao caso, depois da usurpação do irmão; c que não existia no mesmo paiz governo algum, para supprir com formulas legislativas essa omis- são ! Notem os nossos leitores este processo anarchico. tumulliiario c demagógico d*cstes chamados moderados, ou coiisltn adores, para arrancarem o movimento reaccionário ao governo ác I). Miguel das mãos do parliJc^ revolucionário e liberal. (-^s embaixadores de D. Pedro em Londres, brazileiros e pnrtu- guezes. mandaram pôr em execução o decreto de 3 de março. I^m 408 virtude d'isso os emigrados foram intimados a prestar juramento á rainha D. Alaria II, o que elles todos cumpriram da melhor vonta- de. Em seguida, a rainha menor, sem tuteila nem regência, entra logo no exercício da soberania ; nomeia o seu governo, confiando-o unicamente a Palmella, seu ministro e secretario d'estado ; dissolve a junta revolucionaria da Terceira, e substitue-a pelo governo mili- tar do conde de Villa Flor; nomeia auctoridades, por intermédio do mesmo Palmella ; este, em nome da mesma rainha, dá ordem aos emigrados, e obriga-os a retirarem-se para o Brazil ; e, por fim, cria um embaixador n'este paiz, dando-lhe poderes para negociar em nome d'ella com D. Pedro um tratado de allianca e de com- mercio ! Subitamente, por conselho do mesmo Palmella, volta-se para traz, e apparece D. Pedro dizendo que o seu decreto de abdicação não foi posto em execução em Portugal, que n'este não existe governo algum que proteja os direitos da filha ; e manda executar aquelle decreto, porque não ha leis applicaveis ao caso em questão ! D. Pedro torna a assumir o direito de soberania em Portugal, e nomeia uma regência para o governar e cumprir, diz elle, o decreto de 3 de março e que faça, outrosim, reconhecer, respeitar e guar- dar os legítimos e mauferiveis direitos de sua filha D. Maria II. O mais engraçado é que D. Pedro assume essa soberania na qualidade de tutor e natural protector dá filha ! Ora é bom que se saiba que o mesmo Palmella apresentou a D. Pedro a idéa de este pedir ao rei da Inglaterra que acceitasse a tuteila da rainha D. Ma- ria II. E se aquella jurisprudência, inventada á ultima hora por Palmella, fosse verdadeira, seguia-se que, se. com effeito, o rei de Inglaterra tivesse acceitado essa tuteila, tinha direito a praticar actos de soberania em Portugal ! Ainda mais. Quando D. Pedro enviou a filha para Europa, foi na intenção de confiar a tuteila ao imperador da Áustria. E aqui tínhamos nós este a exercer em Portugal actos de soberania na qualidade de tutor da rainha menor! Tudo monstruoso! Para estes conservadores não ha leis, nem consideração alguma, quando tratam de conspirar contra a liberdade. 409 A conclusão que se tira d'aquelle decreto é que D. Pedro não reconheceu nenhum dos actos de soberania praticados pela filha, nem o governo de Palmella por esta nomeado e nem a dictadura do conde de Villa Flor. N'esse decreto o próprio D. Pedro declara que não ha governo que proteja os direitos da filha, e governo es- tabelecido em Portugal em nome d'ella! Isto é a annullação do de- creto que nomeou Palmella ministro e secretario d'estado da rainha D. Maria II e a annullação do decreto que entregou ao governo do conde de Villa Flor a ilha Terceira. A tanto levam estes conservadores o ódio á liberdade! O mais grave não é isso somente; mas, sobretudo, a oífensa feita aos emigrados e voluntários com a nomeação de Palmella para essa regência, que ficou constituída por elle, presidente, o conde de Villa Flor e José António Guerreiro. Estes três membros elegerão um ministro e secretario de estado, que sirva em todas as repartições dos negócios do mesmo estado, emquanto a auctoridade da rainha não for reconhecida em todo o reino, ou não for necessária a sepa- ração d'estas repartições. Os negócios serão decididos á plurali- dade de votos; e na falta, ou impedimento de algum membro da regência, servirá por elle o secretario d'estado, quando for um, e quando for mais de um o mais antigo na data da nomeação. A re- gência poderá nomear algum d'esses membros, no impedimento absoluto de alguns d'elles; mas essa nomeação nunca poderá reca- hir em pessoa que não tenha o titulo de conselho da rainha. E preciso que digamos que esses mesmos moderados, ou con- servadores, pensaram em a nomeação de uma regência pela rainha menor, de edade de dez annos apenas. José António Guerreiro foi encarregado pelo marquez de Barbacena de redigir um decreto, auctorisando a mesma rainha, em nome do pae, a nomear e regu- lar essa regência. Redigiu mais outro decreto dando plenos po- deres ao marquez de liarbacena para no acto da creaçã(~) da rei^en- cia assistir e dirigir a rainha, e especialmente auctori>ar. em nome de D. Pedro o que ahi se fizesse; e redigiu ale uma carta Je gabi- nete, participando ás cortes da Eur(,)pa a resolução tomada e pedindo o reconhecimento do novo governo! P 410 E na carta que o mesmo Guerreiro e Palmella dirigiram a D. Pedro, em data de 2 5 d'abril de 1829 dizem-ihe que «logo que se hajam alcançado os meios pecuniários indispensáveis, a regên- cia vae partir para a ilha Terceira, para ahi estabelecer o centro da emigração e das futuras operações, providenciando desde logo o que for mais urgente, esperando, porém, que cheguem os diplo- mas assignados por vossa magestade, para com a sua publicação se dar a saber a origem e extenção dos poderes da mesma re- gência»! (i) N'essa carta não se diz, porém, quem devia compor essa re- gência. Estavam todos com o rei na barriga. Chegou n'este intervallo o decreto de D. Pedro para o conselho de regência. Em carta de 20 de junho, os membros da regência declaram a D. Pedro que desde já consideram o conselho de regência como virtualmente existente, não obstante a impossibilidade em que se acham de notificar a sua installação, ou de fazer, em nome do mesmo conselho, acto algum publico e formal, emquanto D. Pedro não decidir as questões e não resolver as duvidas que Palmella e Guerreiro exposeram em data de 2 5 d'abril. Uma d'essas duvidas era que a resolução que D. Pedro tomou de reassumir a coroa portugueza, por ter caducado o decreto de 3 de março, pelo qual tornou completa e definitiva a sua abdicação, acha-se em contradícção com actos mui recentes emanados do go- verno do mesmo imperador, cuja natureza torna inexequíveis todos os decretos de que Guerreiro foi portador. Dizem que, por uma nota dirigida a todo o corpo diplomático pelo ministro de D. Pedro em Londres, foi communicado a todos os governos que este queria tornar valioso o seu decreto de 3 de março, e como tal reconhecia D. Maria II como rainha reinante de Portugal. «Uma tal communicação, accrescentam os dois signatários, da qual incluo aqui a copia, presiippôe a ratificação, com inteiro conhe- (i) Documcntjs pjira a Jiistoj-i.j das cortes gerjes. Tomo VI, pag. 343. 411 cimento de caiisa^ d'aqiielle decreto^ e pcríender-se agora annullal-o é contrario a este ultimo acto; cessa de ser fundado em bom direito^ e dá aos gabinetes europeus justa occasião de se queixarem de ser ludibriados^ e até de se opporem por quaesquer meios á execução de tim acto que somente podia ter effeiío^ estando fora do alcahce de toda a objecção bem fundada. n E dizem que, em vista da proclamação que D. Pedro dirigiu aos portuguezes, e de a rainha estar recebida e reconhecida pelo rei de Inglaterra, e tacitamente pelos mais governos europeus, se convenceram da necessidade de adoptarem por base a continuação da qualidade de rainha reinante na pessoa de D. Maria II. E como esta, apesar da sua menoridade, tem em si radicada a plenitude do poder real, n'ella devem residir todas as attribuições e faculdades necessárias para se remediarem os males que aííligem Portugal, e que não podem ser remediados por intervenção das camarás. Por tudo isto lembraram-se da nomeação da regência proveniente da própria auctoridade da rainha D. Maria II! Tal é a duvida que os próprios membros do conselho de re- gência, pedem que D. Pedro, resolva, antes de notificarem a sua installação, ou de fazerem, em nome do mesmo conselho de regên- cia, acto algum publico e formal! Os mesmos membros da regência n'aquella carta pedem e.xcusa da sua nomeação, por não terem a confiança, se não da totalidade. ao menos do maior numero., dizem elles, dos nossos compatriotas. os quaes, irritados c divididos pela má fortuna, estão bem longe de concordarem na opinião que formam de qualquer dos indiriduos sobre quem podia recahir a escolha de vossa mas^esíade.^^ Palmella, no oíiicio de 20 de junho ao conde de Sabugal, ex- pondo as diíHculdades da situação, diz que ellas x') por milagre podererão superar-se, .se D. Pedro não se mostrar chefe visivcl de um partido ! Na carta supra os membros da regência pedem o apoio deci- dido e franco de D. Pedro. uO apoio, dizem elles, que submissa e in>taniemente solicita- m(^s de vossa maiíe.stade condiste, sobre tud->. em nos não deixar 412 apparecer, á face do mundo inteiro, como uns poucos de indivi- dues isolados e sem centro^ sobre os qiiaes a caliimniafai recahir os epithetos de facciosos e revolucionários^ por não se apresentarem até agora cobertos do respeitável escudo sustentado por um braço sobe- rano, e porque se conservaram até agora occultas as ordens expe- didas por vossa magestade, e a approvação que vossa magestade se tem dignado conceder aos serviços de alguns d'elles, dando la- gar assim a que os gabinetes da Europa considerem como actos expon- tâneos e quasi de rebellião contra vossa magestade a execução fiel das suas ordens e os maiores e mais contínuos sacrificios ao serviço de sua augusta filha, y^ A resolução que o marquez de Barbacena tomou de mandar para o Brazil a rainha D. Maria II contrariou altamente os mem- bros da regência e Palmella, que lhe fez sentir os inconvenientes e perigos d'essa retirada. D. Maria II saiu de Inglaterra no mesmo dia em que chegou a esta a noticia da victoria da villa da Praia. O marquez de Barbaéena dirigiu, n'essa occasião, uma carta aos membros da regência definitiva, dizendo-lhes que, em vista d'essa victoria e do empréstimo de 40:000 libras contrahido com Mr. Petters, espera que a regência se apresse a installar-se na ilha Terceira, logo que tenha noticia de se haver retirado a esquadra de D. Miguel. Apesar d'isso, os membros da regência differiram a sua instal- lação, a pretexto de esperarem novas ordens do imperador do Brazil, e de que o empréstimo contrahido se reduzira a 35:ooo li- bras, pela denegação do encarregado de negócios do Brazil de pagar 5 :00o libras devidas a 10 de novembro, o que achavam mui pouco para as despezas que tinham a fazer na Terceira. Parece que D. Pedro não gostou das duvidas oíferecidas aos seus decretos. EUe, em resposta, enviou para a Europa D. Thomaz de Mascarenhas com poderes para reclamar na corte de Londres tudo quanto fosse a bem da rainha e com ordem expressa de nova regência partir immediatamente para o seu destino! Eis como Palmella se exprime no officio de 20 de fevereiro de i83o ao conde de Sabugal. 413 «A chegada, diz cUe, das ordens de sua magestade o impera- dor, pela qual tão anciosamente suspirávamos, teve logar no dia 1 1 do corrente, entregando-nos D. Thomaz de Mascarenhas uma carta do secretario do gabinete imperial do augusto pae e tutor de sua magestade fidelíssima. Não devo, porém, occultar a v. ex.* que minha posição se tor- nou infinitamente mais árdua e complicada, depois da recepção das ditas ordens, as qiiaes se limitam (como v. ex.' sabe) a determi- nar que eu parta immediatamente para a ilha Terceira com os ou- tros individues nomeados para compor a regência, á qual são for- necidas 8:000 libras esterlinas mensaes desde i de fevereiro. Uma prompta obediência ás ordens de sua magestade imperial é, sem duvida, o meu dever, uma vez que ellas sejam exequíveis, o que ainda não sei ao certo pelos motivos que vou brevemente explicar.» E mostra que lhe faltam meios pecuniários, existindo um defi- cit de i:5oo libras do empréstimo contrahido. Parece que recebeu intimação de partir; porquanto, no dia se- guinte, participou a D. Thomaz de Mascarenhas que estava prompto a sahir para a Terceira no praso marcado por D. Pedro. Mas de- clarou que se via obrigado a sahir clandestinamente de Londres, por não poder fazer face ás obrigações pecuniárias contrahidas no ser- viço da rainha, e por causa do acceite de lettras sacadas pelo con- de de Villa Flor. D. Thomaz de Mascarenhas encarregou-se de liquidar essas contas, e de prover ás despezas necessárias. No dia 4 de março de i83o, partiram Palmella e José António Guerreiro para a ilha Terceira, onde chegaram a i 5. Por toda a historia que temos aqui exposto, em que se vc Pal- mella n'uma constante e permanente conspiração contra o partido liberal, é fácil calcular o elfeito explosivo que produziu entre as victimas da Tielfestada. do deposito de Plvmouth, da expedição de Saldanha e do deportamento para o Brazil. a creação e nomeação para a regência da Terceira dos auctores de todos cs->cs tramas. O primeiro que teve a coraiícm para protestar contra tantas arbitrariedades e illegalidades foi Rodrigo Pinto Pizarm. 414 Em i5 de fevereiro de 1829, censurou, em carta dirigida a Palmella, a nomeação d'este para ministro e secretario d'estado da rainha. Com todo o fundamento diz que essa nomeação é illegal, por ter a rainlia apenas 9 annos de edade, e ser, portanto, menor e não ter, por isso, capacidade legal para exercer actos de sobera- nia. E diz que é imprópria, porque disperta ciúme, ainpa recorda- ções pungentes e rasga feridas que o bálsamo do tempo não poude ainda cicatriíar^ e tende a confirmar receios e suspeitas que os de- sastres repetidos fomentam e nutrem. E accrescenta que, produzindo todos estes males, não offerece compensação alguma na situação politica. Em 6 d'abril, declara-lhe que não reconhece a auctoridade d'el- le como ministro da rainha. «Com eífeito, diz elle, nada mais monstruoso e irregular, que ver um homem fazer-se nomear secretario d'estado universal e único para todos os departamentos por uma rainha menor com 10 annos apenas de edade!» Diz-lhe que elle e os mais emigrados obedeceram-lhe até ahi por uma espécie de convenção tacita, mas que, estando agora pro- tegidos pelo governo francez, e cessando toda a organisação militar a que os emigrados estavam sujeitos, cessa de lhe reconhecer essa auctoridade. Ora se a nomeação tumultuaria d'aquelle estadista para minis- tro da rainha encontrou opposição, que desastrosos etfeitos não produziria a nomeação d'elle, egualmente tumultuaria e illegal, para a regência do reino? A carta dos membros da junta do Porto a D. Pedro e a pole- mica que ella levantou em fins do anno de 1829 vieram acabar de fazer explosir todas as paixões e os resentimentos dos emigrados contra esses que desejavam tornar D. Pedro o chefe do seu partido, e cobrir-se do respeitarei escudo sustentado por um braço soberano, em vez de se escudarem na opinião publica e nos governos eleitos pelo povo. A regência, assim que se installou na Terceira, nomeou Luiz da Silva Mousinho dAlbuquerqiie ministro e secretario da mesma re- 415 gencia em todas as repartiçues do estado, e conservou o commando das forças no conde de Villa Flor. Luiz da Silva Mousinho d'Albuquerque participou ás legações portuguezas o cargo para que foi nomeado. Em 20 de março, a regência publicou uma lacónica e fria pro- clamação aos portuguezes. Diz-lhes que D. Pedro tinha todo o direito para reassumir a so- berania de Portugal ; mas que renunciou a esse direito generosa- mente, mantendo a sua abdicação na filha, actualmente rainha rei- nante. E como tutor e natural protector creou a regência, cuja primei- ra iucumbencia é sustentar e defender os inaiifcrivcis da rainha. Pede que os portuguezes se reunam ao centro commum e legal da auctoridade que em nome da rainha se acha installada na ilha. E termina : «Portuguezes, só de wn governo legitimo pode dima- nar a tranquilidade publica e a segurança individual, e só elle pode reunir debaixo de um sceptro paternal todas as classes de cida- dãos.» Diz que á voz da legitimidade a regência verá armarem-se em seu favor todos os corações generosos. Nem uma palavra acerca da carta, e nem a mais ligeira refe- rencia á causa da liberdade ! Não se falia ahi senão em inauferíveis direitos da rainha, em reunir os portuguezes em volta do sceptro e na causa da legitimi- dade ! Esta insonsa proclamação não fez mais do que confirmar as suspeitas que tinham os emigrados de que I\ilmella e os seus ade- ptos pretendiam substituir D. Miguel rei absoluto por D. Maria rai- nha absoluta. Produziu elVeito desastroso entre todos os liberaes, e foi causa do completo rompimento d'elles com I\ilmclia e a regência, tumul- tuaria e illegalmente nomeada, para dissolver a junta da 'Icrccira, e obstar á creação futura de governo^ revolucionários eleitos pelos povos. O anno de iS3o marca uma das épochas mais memoráveis da 416 historia da humanidade. Morre Jorge IV rei da Inglaterra ; morre em Portugal a rainha Carlota Joaquina, braço direito do partido apostólico; e rebenta a revolução de julho em França, deitando por terra a execranda restauração bourbonica. O partido conserva- dor, ou o governo de Wellington na Inglaterra, demitte-se e é sub- stituído pelo partido liberal, ou de lord Palmerston. Por todas as nações passou uma aura de liberdade, que de no- vo acordou os povos escravisados. A revolução de julho teve logar exactamente na occasião em que o governo de Wellington, de accordo com a Áustria e a Hes- nhr, estava prestes a assignar com Polignac o reconhecimento de D. Miguel! O partido liberal portuguez reanimou-se também ; e desde logo os emigrados pensaram em desfazer-se de Palmella e da regência da Terceira, realisando elles mesmos a revolução em Portugal, e marchando para este paiz, tendo á sua testa Saldanha. Foi exactamente n'esta occasião que chegou a Londres o mar- quez de Santo Amaro com plenos poderes de D. Pedro, para aca- bar a questão portugueza com o casamento da rainha com D. Mi- guel, mediante condições! Esta missão acabou de exarcebar os âni- mos do partido liberal portuguez, que desesperou de encontrar re- médio para a sua causa no Rio de Janeiro, e nos homens que até ahi tinham dirigido tão desastradamente a causa da liberdade em Portugal. Esperava- se a cada momento que a revolução rebentasse tam- bém em Hespanha. Em duas cartas que o general Azeredo dirigiu de Bruges a Luiz António de Abreu e Lima, informa-o dos planos dos emigrados. Em uma d'ellas diz o seguinte : «Os partidistas de Saldanha contam muito com elle, e já cal- culam de não reconhecer a regência, nem regente, e faliam em querer ir para França unir-se a elle, porque, dizem, se propõem a ir para a fronteira de Hespanha. Vi hontem, 14, íagosto) uma carta vinda de Paris que diz assim : «qualquer d'estes dias vae D. Fran- cisco d'Almeida ser reconhecido por este governo como ministro 417 da regência; porém não ha de ser elle, nem os seus sócios, que nos hão de levar a Portugal; o plano está feito; brevemente nos vere- mos em Madrid.» «Devo dizer a V. Ex."* que os saldanhistas andam aqui na maior exaltação, e tenho sido informado por algumas pessoas, que me merecem conceito, que Saldanha tem formado com seus adherentes o iniquo plano de, logo que a Hespanha lhes facilite o transito, marcharem sobre Portugal com vistas de promoverem ali a revo- lução e constituírem, a seu bello praiei\ um governo da sua escolha e facção. O alvo principal a que se atira é ao marquez de Palmella, a quem, dizem, íarão declarar réo de lesa-nação, e perseguir de- pois todos os que teem obedecido ao governo legitimamente con- stituído.» Depois vem a cantata do costume, dizendo que os emigrados desejam proclamar a republica, e outros unir-se á. Hespanha, ex- cluindo a rainha D. Maria II ! O mesmo general informa que Francisco António de Campos, e Francisco António Mendes, negociantes residentes em Paris, forne- cem o dinheiro preciso para a realisação d'aquelle plano; informa mais que os emigrados do deposito de Bruges estão prevenidos para correr a Paris, logo que sejam avisados, c que elles contam com o apoio de parte da guarnição da ilha Terceira. Parece que existiu aquelle plano, porquanto, em i5 de setem- bro, os emigrados de Paris publicaram uma enérgica proclamação aos portuguezes, convidando-os a seguirem o exemplo do povo de Paris. "A liberdade, dizem elles, vos dissemos nós ha pouco, partia do coração da Europa ; c hoje que está cumprido nosso vaticínio, por saudação vos annunciámos o resgate á(.^<, bcliías. A França é amiga d(^ género humano; sigamos, pois, seu exemplo; que nas margens do Sena, ou Tejo, os homens são os mesmos, cscravo>, ou livres, segundo seu querer. De nossa grandeza antiga até >c no> toi a lembrança; que se a tivéramos na carreira da gloria e da liber- dade nenhum povo no.s antecedera. 418 «Portuguezes, accudi por a gloria de vosso nome; combatei por a liberdade, como nossos avós; tomae a bandeira nacional; mos- trae o peito e não os rostos a vossos contrários ; pelejae ; vencei, ou ficae no campo; que assim o usavam nossos maiores e assim sabiam vencedores.» E termina «Carta e rainha. Guerra aos assassinos, piedade com os infelizes. A carta, ou a morte.» E assignada por os dois Passos, Manuel de Macedo Pereira Coutinho, Manuel Marçal António Pinto de Soveral e João Manuel Teixeira de Carvalho. Fizeram esses emigrados o que devia ter feito a regência da Terceira, se fosse liberal. Aquella proclamação tende a fortificar nos peitos portuguezes o amor da liberdade e a excital-os a pegarem em armas em defeza d'ella. E como o antídoto da proclamação da regência em nome da legitimidade e dos inauferíveis direitos do throno, de que ella só cuida. E o que imaginam nossos leitores que fizeram os ministros por- tuguezes já acreditados em nome da regência da Terceira ? Intimam a todos os emigrados para que venham ás differentes legações prestar juramento de reconhecimento e obediência á regên- cia da Terceira ! Tendo os emigrados de Paris deliberado protestar contra esse acto, o ministro D. Francisco d'Almeida teve o bom senso de reti- rar o convite. Os emigrados dos Paizes Baixos e de Plymouth protestaram egualmente, fundados em que já tinham prestado juramento á rai- nha, em que não havia leis que auctorisassem semelhante jura- mento, e que ainda que existissem não apparecia um decreto da regência para tal, em que esse juramento não foi exigido aos habi- tantes da Terceira, em que a formula prescripta não excluia uma regência de D. Miguel, e em que rejeitava, ou excluia, qualquer govenio provisório que se pudesse estabelecer por meio de uma revo- lução em Portuífal^ e prendia as mãos aos portugueses, para não der- ribarem a usurpação. 419 Em Corne cPOr também se reuniram os emigrados e resolveram assignar uma declaração e protesto. Luiz António d'Abreu e Lima, ministro em Bruxellas, declarou então ao general Azeredo qual o motivo d'essa exigência. Diz-lhe elle mui claramente o seguinte : «O objecto do juramento, sendo simplesmente evitar que por- tuguezes indignos d\'ste nome, ou fascinados por intrigas, pérfidas e criminosas, não consigam organisar em Portugal alguma espécie de governo illegal e revolucionário, contrario á carta constitucional, fazendo-se cúmplices de seus crimes os portuguezes leaes e honra- dos, podem estes prestar o dito juramento com as clausulas que lhes parecerem, annexando-as ás suas assignaturas, comtanto que aquellas clausulas e restricções não sejam oppostas á fidelidade e obediência devida á regência estabelecida legitimamente na ilha Terceira em nome da senhora D. Maria IL» Os defensores da legitimidade e da regência vieram para a im- prensa reproduzir os insultos e injurias do ministro da Bélgica aos emigrados que se recusaram a jurar. Os dois Passos appareceram nos jornaes Os Debates e Consti- tucional, de Paris, respondendo áquelles insultos reproduzidos nos mesmos jornaes. «O amor, dizem elles, que consagramos a uma pátria adorada, cujas entranhas tantos filhos ingratos querem despedaçar com mão sacrílega e parricida, nos impõe o religioso dever de não abrirmos nas mesmas columnas uma discussão que fora um escândalo para os estranhos, um triumpho para nossos inimigos e um novo niotiv»-) de magua e dor para os bons que gemem nos cárceres de Portugal, ou nos sertões d'Africa, e que nossos braços querem vOr-se arma- dos de espada, para os defender e não para nos gladiarmo>. Mas a questão do juramento é tal em si. e por suas consequências, c mais ainda por o ousio d'aquelles que por esta conta não duvidaram appellidar-nos de desleaes, sobre dencuarem nossa verdade e des- conhecerem nossa rasão. que e para temer que, assim como se es- candalisaram de nossa paciência, nos não façam J"ella um crime e o silencio tenham por contissão. 420 «E cabe aqui repellir a injuriosa asserção dos Debates^ quanda sobre aquelles que assim foram provocados, lança a culpa de alheios desvarios, e o nome de traidores dá aos homens fieis e o de migue- listas aquelles que estão e estiveram sempre prestes a combater contra D. Miguel.» Referindo-se ás juntas que Abreu e Lima diz feitas por cabeças desorganisadoras, estranha que este diplomata assim falle, quando reconheceu a junta do Porto, que outro titulo de legitimidade não tinha que esse que elle agora condemna, e que se não fosse legal e valioso, nem o Mestre d'Aviz, nem o duque de Coimbra, nem o prior do Grato, seriam mais que rebeldes e conspiradores. O próprio Ferreira Borges recusou-se a jurar, e publicou tam- bém uma carta, sustentando que esse juramento era illegal e con- trario á carta constitucional. Em Londres, protestaram egualmente José Liberato Freire de Carvalho, Garrett, António Rodrigues, commissario do exercito, e outros mais. Quasi que não tem conta o numero de declarações, protestos e impressos, que a este respeito se publicaram em França, Bélgica e Grã-Bretanha. E notável a Exposição apologética dos portugueses emigrados na Bélgica que recusaram prestar o juramento, attribuida ao actual sr. visconde de Seabra. E um profundo estudo jurídico da questão que se ventilou. Chamamos a attenção de nossos leitores para o periodo seguinte d'aquella obra. Diz elle : «Que motivos estranhos e ponderosos teem acarretado tão ex- traordinária e inesperada medida? Será ella luna invenção da tor- tuosa politica de gabinetes illiberaes, um laço armado à ignorância e á boa fé? Um visco traidor em que pretendam envolver-nos, para precipitar a decisão de iwssos negócios de um modo lisonjeiro ás pre- tensões despóticas da politica, (m aos interesses de um egoismo^ tão ambicioso, como perjido ? No meio de tantos embaraços e receios a hesitação é já um acerto, o meditar um dever sagrado.» E transcreve as palavras d'um celebre escriptor francez, que 421 diz que o homem que obedece sem pensar precipita-se na servidão. Uns protestaram, não por não reconhecerem a regência da Ter- ceira, mas por julgarem o juramento contrario ás leis do paiz ; e outros por esse juramento excluir a obediência a qualquer governo revolucionário, e filho da soberania popular, que porventura se es- tabelecesse em Portugal. Os palmcllistas prestaram juramento sem rcstricçóes, e os mais que juraram fizeram muitas restricções e declarações após a sua assignatura. Foi um completo rompimento dos liberaes, até ahi perseguidos e vexados, com os conservadores, cm permanente conspiração con- tra aquelle partido, sempre opprimido por elies. Estes factos deviam reper(^utir-se fatalmente na Ilha Terceirai onde a proclamação da regência produziu tão desagradável impres- são nas tropas liberacs. Palmella não foi mais bem acolhido pelos emigrados n'aquella ilha, do que pelos emigrados de França, Bélgica e Grã-Bretanha? todos suas victimas e perseguidos. Os liberaes não tinham confiança alguma n'elle; e os últimos acontecimentos vieram despertar novas suspeitas dos seus tramas contra os princípios da liberdade, que odeiava. Todas as medidas por elle adoptadas eram olhadas com reserva ; qualquer incidente alvoraçava os ânimos das tropas e dos voluntários, que logo viam n'elle uma traição. Tinha antipaihias geraes, e era repellido por muitas das suas victimas que estavam na ilha, para defenderem, não a causa da legitimidade, mas a liber- dade de todos os seus concidadãos, presos c desterrados no conti- nente. O duque da Terceira sahiu com uma expedição contra a ilha do Faval; subitamente voltou á Terceira! Já se sabia das negocia- ções entaboladas pelo governo inglez com o govern(^ franccz para o reconhecimento de D. Miguel, e que <> marquez de Santo Amaro viera com plenos poderes para um arranjo de D. Pedn^ com o irmão. O apparecimento súbito do duque da Terceira causou alaniie 422 entre os liberaes, que se subordinaram á regência contra vontade e se viam opprimidos sob o jugo dos seus inimigos. «O partido descontente, diz o sr. Soriano, como quem presen- tia na expedição do Fayal o primeiro signal de recuperar a pátria e a necessidade de litigar desde logo a gerência dos negócios públi- cos, que quanto antes queria pér nas mãos do seu primeiro caudilho, o general Saldanha^ achou n'este procedimento do conde de Villa Flor um novo abandono dos constitucionaes sacrificados á indis- creção do governo, uma repetição das scenas do Belfast^ e por con- seguinte um excellente thema para azedar mais os ânimos contra a regência, chegando mesmo a promover uma revolta, por meio da qual se trouxesse aquelle general ao poder. » Diz este escriptor que o plano d'essa conspiração fora assassinar Palmella, obrigar a sahir da ilha Guerreiro, e depor o conde de Villa Flor do commando das tropas, substituindo-o por Saldanha. Funda-se este escriptor, para lançar uma nódoa no partido liberal, attribuindo-lhe a idéa de assassinar Palmella, no depoimento do próprio juiz que tratou do processo d'essa conspiração, o qual foi trancado logo em seguida! E uma leviandade indesculpável d'este escriptor. Não se levan- tam accusações graves como aquella, confiado apenas no testemu- nho de um juiz. Todos nós sabemos quão facciosos são os juizes em matéria de processos políticos. A maneira como aquelle escriptor conta o descobrimento d'aque]la conspiração é bastante, para provar quão distante da ver- dade anda n'esta questão, e se mostra parcial. O plano, diz elíe, foi denunciado com todo o sigillo pelo coronel commandante de um dos corpos da guarnição da ilha. A regência mandou proceder ao summario, em que se fez toda a luz sobre os planos concebidos pelos conspiradores com o depoimento, diz o sr. Soriano, do referido coronel e de um dos capitães do seu corpo. E accrescenta o auctor o estranho periodo seguinte : «Dentro em pouco tempo, vendo este mesmo coronel que o seu depoimento compromettia o sigilo a que se obrigou para com o official que previamente lhe revelara os planos da revolta, e tudo 423 isto pelas imprudências do general que então commandava as for- ças na auzencia do conde de Villa Flor, supplicou que o swwuario se fechasse quanto auíes^ o que conseguiu, mandando para aquelle fim a regência uma portaria ao juiz que d'elle se achava encarre- gado, summario de que elle ainda fe^ tirar copia antes da entrega do original^ para que em todo o tempo com ella se pudesse defender de quaesqucr arguições^ que por similhante motivo lhe pudessem diri- gir no futuro. i^ Se tudo isso o que acima fica exposto fosse verdade, não pro- vava senão uma serie de crimes e de abusos de auctoridade prati- cados pela regência, pelo tal coronel commandante do corpo, pro- vavelmente o implicado na revolta, e pelo magistrado encarregado do summario. Apresentam-se ahi doutrinas jurídicas de nova espécie. Dão parte em segredo a um commandante de um corpo que existe uma conspiração grave, para assassinar, não somente Pal- mella, mas o conde de Villa Flor e outras pessoas, como pretende insinuar o sr. Soriano; abrc-se o summario; deseja-se conservar o sigillo; e é intimado o próprio que o pediu para depor no processo! As testemunhas dão prova dos planos de assassínio projectados; e o processo é trancado por causa do tal sigillo, como se o coronel fosse a única testemunha que depuzesse! Ou esse commandante era o do corpo implicado na revolta, ou não era; sendo-o, qual era a sua obrigação, visto que se tratava de um caso gravei' Não havia tantos meios de se proceder, sem com- prometter o denunciante !' Se não era o commandante do próprio corpo revoltado, me- lhor; mais facilmente podia parlicipiliir o occorrido ao comman- dante respectivo. F caso novo que se queira converter um ollicial do exercito cm um clérigo, a quem o- penitente confessa o seu crime. Se esse coronel 'jueria conservar o sigillo, para que \o\ partici- par o tacto ao govcrnui* Logo que fez e^sa parlicipdção, era ^cu Jcvcr auxiliar a iu^liça a cumprir com o seu Jcvcr. 424 E vê-se o caso estupendo de esse ofíicial impor á regência o archivamento de um processo d'esta gravidade. E com que auctoridade a regência ordena que o magistrado, ou o poder judiciário, tranque um processo que lhe fora distri- buído ? De duas uma : ou o juiz reconheceu na regência direito para mandar archivar o summario ; e n'esse caso só ella era responsável por esse acto ; ou o juiz não reconheceu esse direito, e foi um ma- gistrado subserviente e cúmplice no acto que praticou. Se archivou o processo por ordem legal da regência, commet- teu um crime grave, mandando tirar copia para d'ella fazer uso. Em qualquer dos casos um processo archiva-se por despacho do juiz, ou á ordem d'elle; e os réos ficam por esse facto illibados da culpa. Nenhum juiz que deu esse despacho pode mandar tirar copia do processo archivado, para com ella se justificar, e ainda mais para tornar públicos os crimes d'elle constantes. Que auctoridade pode ter o testemunho de um magistrado que procede d'essa maneira, e que tem o impudor de declarar réos de crimes tão execrandos aquelles que elle próprio absolveu com o seu despacho? Não é um juiz, mas um réo incurso no código penal. Nenhum magistrado integro e honrado procedia, como elle diz que procedeu, nem dava como prova de um crime tão grave um processo archivado por ordem d'elle mesmo ; e ainda que o não fosse ; estava archivado, era como não tivesse existido. A tanto leva a cegueira das paixões politicas! Não duvidamos da existência da conspiração, porque todos os factos a comprovam, e os conservadores em lodos os tempos foram promotores de revoltas e insurreições. Duvidamos, porém, dos pla- nos de assassínio; porque os liberaes, sobre tudo portuguezes, fo- ram sempre generosos em suas intenções. Bem o provaram em 1820 e em i836. A conspiração da ilha Terceira é a consequência inevitável de se ter entregado a regência a um homem, que desde 1820 não ces- sou de perseguir e vexar os liberaes, e que desterrou para aquella 425 ilha o regimento de caçadores 5, o auctor da revolução contra D. Miguel na mesma ilha. O exercito que fazia parte da guarnição da Terceira era, na sua maioria, composto de victimas do marquez de Palmclla. Que podia esperar-se em presença de tudo quanto temos narrado até aqui ? Aquella tentativa de revolta, para depor a regência illcgal e tu- multuoriamente nomeada, e substituil-a por Saldanha é uma rami- ficação do que projectavam os emigrados em França, Bélgica e Grã- Bretanha, querendo libertar a sua pátria por si mesmos, e indepen- dentemente d'esses intriguistas, demagogos do throno e da legitimi- dade, e d'esses que alcunhavam os liberaes puros de canalhas. Fora uma tentativa para salvar a liberdade da conspiração que contra ella tramavam esses bajuladores da realeza. O senhor Soriano não tinha necessidade de invocar o testemu- nho doesse magistrado, cuja probidade e honradez lançou pelas ruas da amargura. Klle mesmo se encarrega de explicar as causas d'essa conspiração. Os erros, diz elle muito bem, dos diííerentes ministérios de 1826 a 1828, a demissão acintosa dada n'aquelle tempo ao gene- ral Saldanha, a perseguição que desde logo começaram a solTrer os verdadeiros liberaes^ a vinda de D. Miguel para I^ortugal na quali- dade de regente, a sua usurpação da coroa ; o mallogro da revolu- ção de 16 de maio no Porto, c, linalmente, o completo abandono dos indiridiíos iiella conipromettidos pelo desapparecimento súbito dos generaes e membros da junta provisória, eram as ostensivas causas da divisão entre liberaes. e as que constantemente manti- nham, pelo menos na apparencia, uma grande parte dos emigrados em permanente hostilidade cimtra os liomens do Belfast, a quem no estrani^eiro muito a seu pesar se riam ainda sujeitos, não obstante attribuircm-lhcs todos os seus males presentes e futuros. A suspen- são dos subsidios mandada lazer por Palmella ao general Saldanha. quando em vez de seguir para o Bra/il se apresentou em l'rança com a expedição, que debaixo do seu command(^ sahiu de Ply- mouth jxira a Terceira; a in iisposiçãii ^::eralmen!e eoulra as anu\::()S de Saldanlia e os mais que com eilc se liuham apresentado em Fran- 426 ça; a accusação que os ex-membros da junta do Porto d'elle tinham feito a D. Pedro na carta que de Londres lhe mandaram, em 5 d'a- gosto de 1828, dandoo como causa da derrota, da retirada e emi- gração para Hespanha, e a escandalosa desigualdade da distribui- ção dos dinheiros aos emigrados, nadando uns como na opulência, emquanto outros viviam na mais abjecta penúria, eram outros no- vos motivos que durante o exilio vinham ainda accrescentar mais as queixas contra o marquez de Palmella e os seus partidários.» E o senhor Soriano acha tudo isto pouco, para reprovar e revoltar-se contra os que se insurgiam contra o dominio d'esses ho- mens aborrecidos e odiados com tão justos motivos ! A revolução planeada pelos liberaes não se realisou, nem na Hespanha, nem em Portugal. Saldanha e os emigrados não pude- ram por este motivo marchar para aquelle ultimo paiz, afim de es- tabelecerem o governo provisório em que pensaram. As coisas fica- ram como estavam, continuando a regência installada em nome da legitimidade a dirigir o movimento contra D. Miguel. Foi um gran- de mal para a caíisa da liberdade. O facto de o conde de Villa Flor ter regressado da expedição ao Faval, quando chegara a Londres o marquez de Santo Amaro, e o facto de não ter seguido depois, estão ainda por explicar. Esta é que é a verdade. Foi buscar mais tropas; mas deixou-se ficar na Terceira! Só em abril de i83i, isto é quasi um anno depois, é que se emprehenderam de novo as expedições ás ilhas do occidente, como veremos adiante! A regência da Terceira desfez tudo quanto a junta tinha crea- do! Ella deu nova organisação ao supremo conselho militar, crean- do em logar d'elle um conselho de justiça, composto de gente nova por ella nomeada! Fez mais; deu por impraticável a instauração da relação creada pela mesma junta, e substituiu-a por outro con- selho de justiça para conhecer em ultima instancia dos factos cri- mes e eiveis! Que ciúmes pelas instituições filhas do exercício da soberania nacional I 427 Por decreto de i d'abnl, manda a regência que aos feitos per- tencente ás fazenda publica se de appellação, ou aggravo, para a junta da justiça, confundindo assim o eivei com o administrativo, conforme a velha jurisprudência! Publicou, no entanto, alguns decretos úteis, como o que estabe- leceu uma escola militar, em que se ensinassem também as noções elementares de engenheria e artilheria, e como a portaria que esta- beleceu uma escola para ensinar as primeiras lettras aos aprendi- zes das ofíicinas do trem no castcllo de S. João Baptista. É também louvável o decreto que instituiu as juntas de paro- chia electivas, e o que manda pòr em execução a carta constitucio- nal no que respeito á organisação dos municipios. Foi uma transi- gência com o espirito liberal, e talvez destinada a acalmar os espí- ritos. Não devemos esquecer o decreto sensato que mandou archivar todos os processos crimes, por occasião das occorrencias de 1 8 de maio de 1828 nas aldeias dos Biscoutos c Altares c na \'\\\ix áa Praia no mesmo anno. O conde de Villa Flor não descurou a organisação e disciplina do exercito, que soube elevar á altura da sua missão. No entretanto a regência luctava com immensas ditficuldades financeiras, pelo abandono cm que a deixou o imperador D. Pedro. Diz o sr. Soriano que o paga-ncnto das lettras da Terceira teve de ser espaçado para d'ahi a um anno, por accordo dos interessa- dos e com o juro de 6 " „, com que tomaram um caracter de em- préstimo. Ainda no fim do praso ajustado não se poude ellectuar o pagamento. CAPITULO III D. PEDRO E A QUESTÃO PORTUGUEZA D. Pedro hostilisa a revolução democrática de 20, tanto em Portugal como no Brazil. — O seu reinado é um per- manente conflicto entre a legitimidade e a democracia. — D. Pedro inimigo dos portuguezes. — Entrega estes ás tyrannias de D. Miguel. — D. Pedro abandona os revolucionados do Porto, -Madeira e Terceira. — Cartas supplicantes de Palmella ao imperador D. Pedro. — Missão «ie lord Strangford ao Brazil. —D. Pedro envia para a Europa a filha D. Maria II para a casar com D. Miguel. — Os emigrados obstam a que D. Ma- ria II vá para a Áustria e protestam contra o casamento d'ella com o tio — D. Pedro muda de parecer manda retirar a filha da Europa. — D. Pedro proclama aos portuguezes animando-os a defender a liberdade. — Recusa-se depois d'isso a soccorrei-os. — Respostas desabridas de D. Pedro e seu abandono pela causa portugueza. — Missão do marquez de Santo Amaro. — Protestos dos ministros representantes da regência da Terceira.— Os emigrados protestam egualmente contra a missão do marquez de Santo Amaro. — A re- volução de julho fez lograr essa missão. — A Inglaterra abandona a causa de D. Miguel. — Attifiide da regên- cia ante aquella missão. — Recepção dos emigrados portuguezes pelos brazileiros e D. Pedro. — Guerra dVsses emigrados a D. Pedro que os abandonara. — A lucta de D. Pedro com o partido libera] obriga-o a abdicar. — Parte D. Pedro para a Europa. — Carta de D. Pedro ao conde de Villa Flor. — Chega D. Pedro á Inglaterra. Será bom recordar aqui a altitude que D. Pedro assumiu no Brazil perante a revolução de 1820. Na historia d'esta revolução parece-nos termos levado á evidencia que aquelle principe fez a separação, para dar cabo das cortes constituintes de Lisboa. Foi o reaccionário e ambicioso José Bonitacio quem levantou a questão da independência. Quiz-se por meio d'esta evitar que as idéas de- mocráticas triumphantes em Portugal passassem para o Brazil. D. Pedro, principe de raça, altivo e soberbo, odiou toda a sua vida a democracia. São bem conhecidos os insultos e injurias que dÍQgiu ás cortes constituintes e soberanas de Lisboa em linguagem descomposta c ordinária. No Brazil fez a guerra mais brutal ás jun- tas provinciaes eleitas pelo povo. Tentou a principio estabelecer o realismo constitucional com a outori^a de uma carta : mas os bra- zileiros impozcram-lhe cortes constituintes. E porque estas fizessem uma constituição democrática, á semelhança da de Portugal, dis- solveu-as violentamente, e conseguiu os seus desejos, impondo aos brazileiros uma carta constitucional por elle outorgada. 429 D. Pedr(^ não quiz governar senão sob os princípios da cha- mada legitimidade, ou da Sanla Alliança. Julgou oíTensivas da sua dignidade e dos direitos da sua coroa imperial as constituições democráticas. Ao inaugurar as sessões das cortes constituintes, de- clarou altivamente que desejava que os brazileiros fizessem uma constituição digna d'elle. Estas palavras provocaram enérgicos protestos da parte da assembléa. Os eleitos do povo não quizeram fazer a vontade ao imperador; as cortes constituintes approvaram uma constituição só digna de um povo livre e independente. D. Pedro dissolveu-as; e, imitando Luiz XVIII, outorgou aos brazileiros o tal código politico digno d'elle e da sua coroa imperial. Desde então por diante, abriu-se um pcriodo de lucta entre D. Pedro e o partido liberal, a qual só terminou com a sabida d'elle do Brazil. O reinado de D. Pedro foi um conflicto permanente entre a le- gitimidade por elle defendida e o partida liberal, ou democrático. O imperador manteve-se até ao ultimo soldado fiel á sua causa. Cahiu só quando lhe faltou quem o pudesse sustentar n'cssa lucta ingrata que tem feito baquear tantos monarchas. A revolução portugucza contra D. .Miguel teve logar quasi no periodo mais agudo d'aquella lucta de D. Pedro com o partido libe- ral, ou democrático brazileiro. no qual concentrara todas as suas attenções. Aquelle príncipe fora mui novo para o l^razil. e cedo se iden- tificou com os seus hábitos e costumes. Quando se collocou á testa do partido da separação, bem m()>trou que já então os >eus sentimentos com respeito aos portuguezcs e.^lavam confundivlo> C(^m os naturaes. nossos inimigos. 1-] preciso Lidverlir aos nossos leitores que o oJio ao> poru:-;.;c- zes dá-se principahnente entre os nuilat(^>. raça inferior que não tem a compreb.en^ão dos aitos sentimentos moraes. l-'>>a raça cni- sada constitue uma pequena [virle da clas>e media e a> Liltin"!a> ca- madas da S(K"iedade. 430 As classes instruídas e cultas e os brazileiros de puro sangue estão mui longe de partilhar d'esse ódio mesquinho e vil. Nenhuma colónia do mundo foi tratada com o respeito, estima e consideração que o Brazil sempre mereceu a Portugal. Desde o século passado, ou do marquez de Pombal, deixou de ser colónia. D. João VI elevou-o a reino. Havia já muito tempo que n^elle ti- nham desapparecido todos os vestigios de colónia, quando se sepa- rou de Portugal. Era então um povo livre e independente, como este. Todo o mundo sabe como Portugal trata as suas colónias. Nunca fomos tyrannicos, nem cruéis, com os povos que estão sob as nossas bandeiras. Pelo contrario, peccamos por demasiada benevolência, tolerância e brandura. As classes instruídas do Brazil conhecem isso, e por este mo- tivo não querem confundir-se com a raça mulata e a ralé nas suas luctas com os portuguezes, que são os colonos mais úteis que tem o Brazil. Diremos mesmo que são o musculo mais vigoroso e im- portante d'este povo. Ora foi exactamente dos pretos escravos, dos mulatos e da ralé, que D. Pedro se serviu, para levantar a guerra contra os portu- guezes. Foi com regimentos de pretos e mulatos que D. Pedro conse- guiu derribar em todas as províncias as juntas revolucionarias eleitas pelo povo, que proclamaram a liberdade e a união com Portugal. E com esses mulatos e pretos embriagados organisou sociedades e phalanges de sicários e caceteiros, para assassinarem os portugue- zes e todos os brazileiros que defendiam a união, (i) Para se conh(ícer o ódio que D. Pedro nos tinha, basta somente a vTganisação d'aquellas sociedades de assassinos, os jornaes por elle fundados para provocar o ódio dos naturaes contra nós, e bas- tam os insultos, calumnias e injurias que nos dirigiu nas suas car- tas ao pae, nos seus manifestos e proclamações. Expulsou os portuguezes do Brazil; perseguiu-os como a cães, e mandou-lhes sequestrar todos os bens e mercadorias! f ] ) Vide, Historia da Revolução foi-luffiíe^a de 1820, tomo 111 e iv, por José d Arriaga. 431 Desde então por diante, o imperador D. Pedro desligou-se in- teiramente da mãe pátria; e não mais quiz saber d'ella e dos por- tuguezes. Identificou-se inteiramente com os naturaes que nos odiavam e nos odeiam ainda. Quando morreu o pae, preferiu ficar brazileiro a ser portuguez. Outorgou a carta constitucional; porque não podia deixar de o fazer, como vimos e mostrámos. E para se ver livre das complica- çc5es da politica portugueza, não trepidou em nos entregar ao san- guinário irmão, que elle sabia perfeitamente abrigava pensamentos de rancor e vingança, e desejava anniquilar a ferro e fogo todos os liberaes. D. Pedro olhou com inteira indifFercnça para a usurpação de D. Miguel. Foram precisas as muitas instancias impertinentes de Palmella e dos liberaes, para que elle se resolvesse a pronunciar-se a favor da causa da filha. Os revolucionários do Porto dirigiram-lhe supplicas para os auxiliar; não lhes respondeu; Valdez na Madeira communicou-Ihe a sua resolução; também não se dignou dirigir-lhe uma palavra só de reconhecimento e de conforto; e os revolucionários da Terceira mereceram-lhe egual silencio, retrahimento e abandono! Fizeram-se todas estas importantes revoluções, sem que appa- reça nos documentos da épocha um só acto de D. Pedro adherindo a ellas, animando os povos, proclamando aos habitantes do Porto. Madeira e Terc3Íra, e agradecendo-lhes a sua fidelidade! Retrahimento e silencio absoluto! Commove ver as incessantes cartas de Palmella, pedindo c ins- tando com D. Pedro, para que se pronuncie, se mostre a favor da filha e proteja tantos portuguezes, que por causa d'elle estavam derramando seu sangue e sacrificando suas vidas e fortunas. Na collecção d'essas cartas não vimos uma só resposta de D. Pedro! Na carta de o d'agosto de i(S28, Palmella exprime muito bem a afflicção que lhe causou o abandono e isolamento em que o dei- xou D. Pedro. «F]m nome, lhe diz elle, de um grande numero de portuguezes 432 illustres pelo nascimento, pelos talentos, pelos empregos, que vie- ram buscar asylo a este paiz, antes do que faltarem ao seu jura- mento e reconhecerem a usurpação, em nome das tropas fieis que derramaram o sangue pela causa de sua magestade, e ora se acham perseguidos em Hespanha, em "nome de um immenso numero da melhor parte da nação portugueza que forma votos em segredo e debaixo do cutello da tyrannia, para que vossa magestade venha sal- val-a, supplico instantemente a vossa magestade que não nos aban- done, que escute a voz da sua própria gloria, do interesse de sua augusta filha e da protecção que devem esperar de vossa mages- tade os que se teem sacrificado e continuam, cheios de zelo, a sa- crificar-se por tão justa e honrosa causa.» Chega mesmo a dizer-lhe, ou a lembrar-lhe, que pelo seu nasci- mento contrahiu para com Portugal deveres que nunca podem ex- tinguir-sc. Contrahiu-os ainda mais, quando dispoz do reino a favor da filha e outorgou a carta constitucional. Metternich enviou uma nota ao governo inglez, convidando-o a interceder junto de D. Pedro, para que este consentisse no casa- mento da filha com D. Miguel, afim de se pôr termo á contenda, que estava compromettendo a paz europea. O pérfido governo bri- tannico annuiu immediatamente. Para esse fim partiu para o Rio de Janeiro lord Strangford. Levou este instrucções para significar a D. Pedro que não podia efficazmente sustentar os seus direitos, e que n^este caso convinha tirar o melhor partido possível das circumstancias e transigir, con- sentindo no casamento da filha com D. Miguel, e dando amnistia aos indivíduos compromettidos por haverem sustentado a causa d'elle. O mesmo lord levou instrucções para aconselhar ao impera- dor que enviasse logo á Europa a filha D. Maria II, confiando-a ao imperador da Áustria. X'este caso a Grã-Bretanha estava disposta a reconhecer a mesma rainha. Disse lord Wellington que o melhor meio de se obter um ac- cordo era unia fusão dos direitos de D. Maria II com os de D. Mi- guel I D. Pedro não esteve com meias medidas; e em acto continuo 433 enviou para a Europa a filha com o marquez de Barbaccna, orde- nando a este que a confiasse aos cuidados do imperador da Áus- tria. Um clamor geral se levantou entre os emigrados contra a ida da rainha para a Áustria, e contra qualquer transacção com o usur- pador dos seus direitos. D. Maria II foi recebida de braços abertos pelos portuguezes emigrados, que lhe supplicaram que os não abandonasse. Filies prestaram-lhe juramento de fidelidade com o maior enthusiasmo. O marquez de Barbacena reconheceu tanto o inconveniente do passo dado por D. Pedro, que não se atreveu a levar a rainha para a Áustria, conforme as instrucções que recebera n'esse sentido ! Palmella escreveu a D. Pedro, mostrando-lhe quão indecorosa era qualquer transacção com o irmão, que usurpara os direitos da filha e perseguia tão cruelmente os que a defendiam. O emigrados representaram-lhe n'csse sentido. O marquez de Barbacena pediu a lord Aberdeen que soccor- resse, cm presença dos tratados existentes entre Portugal e Grã- Bretanha, a causa de D. Maria II. Entre outras coisas respondeu aquelle lord o seguinte : «O abaixo assignado, em replica á nota que teve a honra de receber do marquez de Barbacena no dia 3o de novembro, não pode deixar de observar a extraordinária circumstancia que, em- quanto o embaixador de sua magestade na corte do Rio de Janeiro se acha encarregado de uma commissáo especial, tendo por objecto a reamciliação do imperador D. Pedro com seu irmão o infante D. Miguel^ o plenipotenciário de sua magestade brazileira n'este paiz reclame oíficialmente do soberano d'este reino etfectivos soc- corros, afim de pôr sua magestade fidelissima D. Maria II sobre o throno de Portugal ; e isto no mesmo no momento cm que lord Sírang- ford e o ministro de sua magestade imperial o imperador da Áustria recebia))! da bocca do i))iperad()r do Bra-il declarações da sua i)itenção de oitregar aos C(»isellios e julgado de seu augusto sog)-o, e do rei da (jrã-Breta)iha. o arra)ijo das iiifeli\es desai'euças occorridas na casa de Braalbino de Barbosa e Araújo, datado de Londres, em 24 de julho e para Mousinho d'Al- buquerque, diz-se muito bem o seguinte: «Como isto possa ter lo- gar depois da installação da regência do reino, ou como sua mages- tade o imperador do Brazil possa ceder do que lhe não pertence, desde que declarou a sua abdicação completa., e que eu não entendo. ■' D. Francisco dWlmeida, no seu protesto, cini;e-se a não reco- nhecer qualquer transacção feita com D. Miiíucl que prejudique os direitos de D. Maria II e a sua causa, e sem que os representantes da regência sejam ouvidos e consultados, e inter\cnham n"csse ne- uocio. 438 No protesto, desenvolvidamente fundamentado, de José Mau- rício Correia, ministro em S. Petersburgo, lê-se também o se- guinte : «A coroa de Portugal foi sempre independente dos estados es- trangeiros; o senhor D. Pedro IV a devolveu a siia augusta filha ^ como elle a recebeu dos seus soberanos progenitores; e a regência de Portugal, governando em nome e na menoridade de sua magestade a rainha, sem limitação alguma de poder, representa os direitos d'es- ta soberana, os quaes são inaliaveis, e só a mesma soberana senhora, chegando á sua maioridade, os pode alterar, emquanto o permittirem as leis fundamentaes da monarchia.y> Os deputados das cortes de 1826, emigrados em Paris, assi- gnaram outro protesto enérgico, declarando D. Miguel incompatí- vel com a prosperidade da nação portugueza, e com a dignidade e segurança da rainha D. Maria II, que elles reconhecem como sua soberana. Declaram que não cumprirão qualquer accordo que o marquez de Santo Amaro assignar com os governos perante quem vem acreditado. Os emigrados portuguezes juntam os seus protestos ao dos de- putados, que, dizem elles, está conforme com seus sentimentos. O marquez de Santo Amaro viu-se aíílicto, ao receber diaria- mente tantos protestos contra a sua missão. O encarregado de negócios do Brazil em Paris declarou a Bar- bosa Araújo que os protestos haviam escandalisado muito o mar- quez de Santo Amaro, que produziriam muito máu effeito no Rio, e que egualmcnte o imperador levaria muito a mal outros papeis que se tinham escripto a respeito da missão d'aquelle embaixador, e que elle se via obrigado a remetter para aquella corte ! Tem logar a queda de Carlos X, e, portanto, do ministério Polignac; o ministério britannico muda logo de idéas 1 Barbosa e Araújo foi avisado, por pessoa de influencia no go- verno britannico, de que a Inglaterra, receiosa de que a França to- masse a iniciativa em os negócios de Portugal, e fizesse perder com isso a preponderância que ella até ahi tivera n'este paiz, estava ago- ra disposta a fazer concessões e a tratar com o marquez de Santo '439 Amaro algum arranjo, para evitar-se uma commoção popular em Portugal que puzesse em risco a pessoa de D. Miguel! Barbosa Araújo preveniu d'isso o embaixador de D. Pedro, que teve muita difíiculdade em se decidir a fallar com Wellington. Lord Hytesbury manifestou-se perante o marquez de Rezende a favor de D. Maria II contra D. Miguel; o marquez disse-lhe então que o seu gabinete não partilhava dos mesmos sentimentos. «O duque de Wellington, lhe replicou o lord, de agora não c o mesmo que conhecestes ha dezoito mezes, porque já está persua- dido, como todos, que D. Miguel não deve mais continuar a gover- nar Portugal; elle hoje quer acabar com esta questão; entretanto as suas relações intimas com a Hespanha complicam um pouco este ponto; fazer sahir D. Miguel de Portugal c coisa fácil: um re- cado de Inglaterra e a oífcrta da passagem em uma embarcação para ir para aquelle estado, aplanariam todas as difficuldades; a maior é a carta; D. Miguel ha de sahir de Portugal; e deve vir a rainha reger o reino com um governo formado de pessoas capazes, que c fácil encontrar no numero d'aquellas que não perjuraram; a minha corte está muito disposta; e como o Santo Amaro traz ple- nos poderes, é mister concluir-se isto, proclamar a rainha, intimi- dar a Hespanha com os tratados, fazer um pacto de familia, para regular a successão da coroa, fazer um conveniente tratado de commercio entre ambos os estados e publicar uma amnistia, ex- cluiudo só os exaltados. » Os exaltados eram os pintistas e saldaiihistas ! O mesmo embaixador britannico na corte de S. Petersburgo teve uma conferencia com o imperador Nicolau. Dizendo-lhe este que era preciso acabar com o escândalo de D. Miguel, que não po- dia continuar a governar, respondeu que a rainha D. Maria II de- via ir immediatamente para Portugal, sem rcceiar cahir em poder do usurpador; porquanto a Iiiíflatcrra c que Li a Icjwia! Tal é o que em 2 3 d'agoslo Barbosa Araújo informa Mousinho d' Albuquerque ! Muito desprcsivcis estes senhores ingle/es. (^nno que a revolu- ção de julho em França transtornasse todos os plano.^^ do governo 440 britannico a favor de D, Miguel, e receioso de que o governo da revolução intercedesse a favor dos liberaes portuguezes, voltou-se subitamente para a causa de D. Maria II contra D. Miguel 1 Nada de conflictos com a França poderosa. O duque de Wellington viu que a morte de Jorge IV da Ingla- terra e a revolução de julho tornaram impossível sustentar no thro- no D. Miguel ; mudou repentinamente de parecer e sentimentos, e voltou-se contra elle, que ainda na véspera sustentara e defendera com tanto ardor e interesse! Tudo fazia prever a queda próxima de D. Miguel e a victoria da causa da rainha. A Grã-Bretanha, que mesmo na véspera trama- ra contra os direitos d'esta, agora já se offerece para a conduzir a Portugal e collocal-a no throno ! Estar bem com os poderosos e vencedores, e exercer a sua va- lentia com os pequenos e vencidos, tal tem sido sempre a politica de mercancia d'essa nação inferior e tão baixa em sentimentos mo- raes. Pouco se distingue das raças pretas dos sertões africanos. Todos esses factos fizeram lograr inteiramente a missão do marquez de Santo Amaro, que suspendeu por isso as negociações. A Europa tinha mudado de face com a revolução de julho em França. Mas, não se fosse este inesperado acontecimento, não teria sido D. Miguel reconhecido pelas potencias e pelo próprio D. Pedro? Qual a sorte que teria tido a causa d'este e da filha, quando elle foi expulso do Brazil ? Consummado esse acto, haveria ainda algum portuguez que se collocasse ao lado d'esse principe que abandonara e atraiçoara tão execrandamente a causa dos emigrados e dos liberaes, vexados, per- seguidos, expatriados e encarcerados por causa d'elle? Temos mesmo a certeza de que D. Pedro não se atreveria a pôr mais os pés em Portugal, depois d'essa nova traição. E se a não realisou não foi por vontade d'elle; mas porque as coisas na Europa mudaram de phase, e impossibilitaram o reconhecimento de D. Miguel, Em todo o caso, a missão do marquez de Santo Amaro creou bastantes indisposições contra D. Pedro, e revoltou ainda mesmo 441 OS mais moderados e súbditos obedientes. Os inniimeros protestos que então se publicaram não deixaram D. Pedro em boa situação. Então mostrou-se á evidencia que elle continuava a manifestar des- preso por Portugal e pelos portuguezes, e que, para se ver livre das exigências d'esies, não duvidara entregal-os ao déspota D. Miguel, e até casar a íilha com o usurpador dos seus direitos! Devemos notar que a regência da Terceira não quiz acompa- nhar os seus agentes diplomáticos nos protestos contra as negocia- ções para o accordo entre D. Pedro e D. Miguel. Conservou-se n'este momento silenciosa! Chegou mesmo a notar a Abreu e Lima que o protesto d'elle não fora opportuno e necessitado pelas circum- stancias ! E como no Brazil foram recebidos os emigrados que o mar- quez de Palmella para lá desterrou ? Eis como a este respeito escre- ve o senhor Soriano, nada suspeito. «No Brazil, diz elle, onde as cortes d'esse tempo apresentavam uma opposição exaltada e violenta contra o imperador D. Pedro, tinham sido os emigrados portuguezes muito mal recebidos^ tião só por este soberano^ como pelos braiileiros^ que os olharam como vindo engrossar os corpos estrangeiros que ahi havia e dar força ao par- tido do mesmo D. Pedro, do qual ainda assim não receberam^ nem do seu governo^ o mais pequeno subsidio para alimento. Por meio de uma subscripção se lhes apromptou para quartel de residência um convento arruinado, fiel copia do antigo barracão de Plymouth, sustentando-se no primeiro tempo de umas mesquinhas quantias, resultado de duas loterias que se permittiram extrahir a seu tavor!» Isto deu origem a que os emigrados portuguezes, offendidos com essa recepção de D. Pedro, se revoltassem contra elle. Muitos íiliaram-se na seita dos invisiveis e em outras sociedades formadas secretamente para derribarem o imperador. Esses emigrados deram bom contigente ao partido adversiirio de D. Pedro. O que este nunca previu é que estava mui próxima a sua queda. Era teimoso e persistente, como todos os Braganças. Elle entendeu que não devia governar senão sob os princípios pu- ros da legitimidade. Olhou sempre com maus olhos para a demo- 442 cracia que detestava, e por causa da qual levantou até o império do Brazil. O reinado de D. Pedro foi uma persistente lucta entre a legiti- midade, ou o realismo constitucional e a democracia, como já dis- semos. Para sustentar-se D. Pedro organisou as legiões estrangeiras, que foram uma das causas da sua impopularidade e da guerra com que no Brazil foram recebidos os emigrados portuguezes. Todos os meios empregou D. Pedro para evitar que o partido democrático ascendesse ao poder. Vendo este partido que pelos meios legaes nada alcançava, porque todas as leis eram contra elle, lançou-se na caminho da revolução. Organisaram-se sociedades secretas para desacreditarem e des- auctorisarem o imperador por todos os modos. São bem conhecidos os effeitos terríveis d'essas sociedades. De tudo se serviam ellas para levantarem opposição a D. Pedro. Este não dava um passo e não proferia uma palavra em que não vissem pérfidas intenções. A impopularidade e descrédito de D. Pedro chegou a ponto de o alcunharem Pedro Panaca, um salteador ! A guerra de Buenos Ayres serviu de pretexto para a opposição. D. Pedro fez a paz; a paz veio dar novos motivos de clamor con- tra elle! Isto mostra os desejos que tinham os brazileiros de o obri- gar a sahir do Brazil. Ainda mais. Aquelle príncipe fez a separação por meios violen- tos, de facções atrevidas e da calumnia; com estes mesmos meios cahiu. Em S. Paulo foi morto um redactor de um jornal da opposi- ção; as sociedades secretas fizeram espalhar que foi D. Pedro quem o mandou assassinar! E como este príncipe empregou este meio contra os portuguezes na guerra da separação, todos o acreditaram. Fizeram-se exéquias pomposas áquella victima, como protesto diri- gido directamente a D. Pedro, a quem attribuiram o assassínio. Na rua da Quitanda houve grave conflicto entre pedristas e os das sociedades secretas, no qual estes foram batidos, havendo mui- tos mortos e feridos. Espalhou-se na cidade que D. Pedro appareceu entre a multidão de jaleca c chapéo de abas largas, c que foi elle que deu o signal para a matança, disparando um tiro de pistola. E como 443 foi também por meio de tumultos eguaes que elle fez a separação, mais uma vez acreditaram n'essa accusação. O povo fazia opposição a todos os ministérios nomeados por D. Pedro, como este outr'ora fizera opposição systematica a todas juntas revolucionarias que desejavam a união com Portugal. No dia 7 de dezembro de i83o, o imperador cahiu de um car- rinho que guiava e partiu uma costella ; o povo, em vez de se con- tristar, quiz aproveitar-se d'essa occasião para o obrigar a abdicar ! Por outro lado, as eleições tinham levado ao parlamento uma maioria de pessoas filiadas nas sociedades secretas. Este parlamen- to não cessou de hostilisar systematicamente todas as medidas e passos do imperador, para o desconsiderar e desgostar. D. Pedro sahiu do Rio de Janeiro e dirigiu-se a Minas, onde publicou uma proclamação contra o partido desorganisador que, aproveitando-se das circumstancias peculiares da França, diz elle, pretende derribar a constituição, para a substituir pela democracia e pela federação. Aquella proclamação foi rasgada, quando appareceu afixada na cidade do Rio. Foi no regresso a esta que teve logar o grave con- flicto na rua da Quitanda^ em que o povo derribou os postes desti- nados íxo fogo preso no meio de vivas á republica e á federação. No dia 25 de março de i83i, anniversario da constituição, o partido revolucionário, por accinte, mandou celebrar um Tc-Deum, para o qual não foi convidado o imperador. Este compareceu na igreja; ia sendo assassinado! O dia anniversario da rainha D. Maria II foi o escolhido para a revolução contra 1). Pedro. Este foi avisado pela policia, e como o ministério lhe tivesse respondido que nada havia, c tudo estava em plena paz, demittiu-o, e nomeou o ministério Paranaguá, para reprimir o movimento revolucionário. Este ministério foi o ministério do visconde do Ouro Preto de D. Pedro II. Foi elle que deu cabo de D. Pedro I. A revolução rebentou na cidade do Rio; c as tropas passaram- se para o lado do povo, que exigia a demissão Jo novo ministério. D. Pedro recusou-se terminantemente a isso. I] reconhecendo então -w 444 que o queriam obrigar a abdicar, fosse por que maneira fosse, no dia 7 d'abril de i83i assignou o decreto da sua abdicação no filho D. Pedro, e partiu para a Europa no dia seguinte. D. Pedro na viagem tocou na ilha do Fayal, d'onde escreveu uma carta ao conde de Villa Flor, dizendo-lhe que vinha disposto, como pae é simples particular, a votar-se do coração á causa da le- gitimidade da filha e da carta. Havemos de ver no capitulo seguinte a sinceridade d'aquellas declarações e as ambições que o acompa- nharam. Do Fayal D. Pedro seguiu para a Inglaterra, onde desembarcou em Cherbourgo no dia 12 de junho. CAPITULO IV A QUESTÃO DA REGÊNCIA DE D. PEDRO Forma-se cm volta de D. Pedro uma corte de aduladores e de s-alidos.— l). l'edro pensa em reassumir a coroa de Portugal.— Desconsideração feita á deputação dos emigrados.— I). Pedro chama para seu lado os persegui- dores dos emigrados liberacs.— Etfcitos d'csse passo provocador.— O ministério inglez c o ministro francez em Londres protegem as pretensões de D. Pedro.- Reunião diplomática cm casa do priíicipc de Tayllerand. — D. Pedro nomeia um conselho de lamilia á rainha D. Maria II.— Parte para Paris com o titulo de duque de Bragança.— Palmella apresenta-se em Paris em deputação da regência, pedindo a D. Pedro que assuma esta auctoridade. —Os validos de D. Pedro continuam a animar-lhe as suas prctciis<')cs ao throno. — O attentado contra a vida de I). Maria II desconcerta aquclles planos usurpadores. — Os validos e cortesãos, alem de que- rerem dar a regência a H. Pedro, querem tornalo chefe ostensivo do seu partido.— Opúsculo dos F^assos con- tra a regência de D. Pedro e a favor da liberdade ameaçada — Defesa da revolução de 20 e dos seus andores, — Defesa dos direitos de D. Maria II.— Novos conselheiros de D. Pedro.— Este convoca a uma reunião os seus novos conselheiros.— Parecer de Silvestre Pinheiro Ferreira e de Araújo e Castro a favor da regência de D. Pedro e da carta constitucional. — D. Pedro não podia legalmente ser regente do reino. — Xorw<3 Ja regenaa poT Vizarro contra a regência de D. Pedro.— Cândido José Xavier participa-lhe que deu ordem á regência da Terceira para o mandar prender. — Resposta de Pizarro. — Defesa d"este pelos Passos. — Addita- mente á norma da rcgcncia por Leonel Tavares. — OfiniJo Jurídica sobre a questão quem deve ser regente de 'l'ortugal por P*erreira Borges. Assim que D. Pedro chegou a Londres, começaram a rodeal-o aduladores e cortesãos, que logo viram ahi o novo senhor dos des- tinos de Portugal. Em volta d'elle formou-se immediatamente uma corte de incensadores e de sabujos, que estão promptos a adorar todo aquelle príncipe que subitamente se vê collocado n'uma situa- ção importante e lhes pode valer no futuro. D. Pedro era de si orgulhoso e ambicioso do poder, chegando mesmo a ter o vicio d'elle; era altivo e soberbo. Além d'iss(). acre- ditava-se indispensável em tudo; tinha muita opinião de si mesmo; e os seus aduladores fizeram-n'o crer que ninguém via as coisas com mais perspicácia e entendimento. 446 Pode-se, portanto, imaginar a influencia que sobre elle exerce- ram os que se acercaram d'esse futuro senhor, mal elle se installou em Londres. Diz o senhor Soriano que D. Pedro a principio foi rodeado quasi exclusivamente por Francisco Gomes da Silva, João da Ro- cha Pinto, Silva Carvalho e Abreu e Lima, que tiveram toda a pre- ponderância e domínio nos seus conselhos públicos e particulares. E accrescenta: «Ainda por este tempo não havia pátria para os liberaes portuguezes ; não havia corte, nem palácios reaes ; não ha- via empregos que dar em qualquer ramo do serviço publico, nas igrejas, no foro, na administração e fazenda ; mas houve desde logo um simulacro de governo^ e isto foi por si o bastante para sefa\er promptajnente em volta d'elle um circulo de adoradores que^ esperan- çados no futuro pelas probabilidades que viam no presente^ começaram desde logo a acatar um poder que talve^ viesse a constituir-se^ e ro- dearam por toda a parte a magestade de um rei que podia vir a ser ; tamanha é a magia dos governantes, que ainda fora da situação a que aspiram teem dependentes que aos seus dictames se cur- vam (i). Diz ainda o mesmo escriptor que começaram a espalhar dou- trinas que, motejando os partidistas do rei mulher^ se oppunham aos juramentos que todos tinham prestado á rainha «e despertaram ao mesmo tempo em seu pae adojinecidas paixões e desejos^ na verda- de difíiceis de realisar, fazendo-lhe acreditar como possível pôr novamente a coroa d'este reino sobre sua cabeça, não obstante a sua formal abdicação, feita sem restricção alguma para todo o sem- pre.» E accrescenta o auctor que isso collocou logo em desvio uma boa parte do partido saldanhista, que, pondo em D. Pedro olhos de desconfiança, não podia ver n'elle o governo defensor da causa constitucional. D. Pedro não podia estar sem governar; era o seu vicio. A perda da coroa imperial, que fora os sonhos dourados dos seus vinte annos, chocou-o fortemente. Sem poder, era como viuva ( I ) Cerco do Porto. Tomo I, pag. 38o. 447 ^íí vaidosa sem marido. D. l^edro não podia conformar-se com essa viuvez. Os conselhos que lhe davam os seus aduladores em Londres agradavam-lhe. Esses mesmos futuros intriguistas da corte come- çaram logo a excitar o ódio natural que D. Pedro votava aos libe- raes, aggravado agora com a sua expulsão do Brazil. Taes cousas disseram a D. Pedro d'esses canalhas^ que ellc se recusou por muito tempo a recebel-os. Foi somente no dia 3 de julho que elle se dignou dar audiência á deputação que os emi- grados residentes em Londres lhe enviaram para o comprimentar. E qual foi o espanto de todos, quando elle, com modos bruscos, e mostrando-se enfadado, subitamente voltou-lhes as costas e reti- rou-se, sem dizer uma palavra! Causou-lhe tal repugnância o ver na sua presença os revolucionários do Porto, os emigrados de Hes- panha, e os homens do deposito de Plymouth, que não a poude vencer e voltou-lhe as costas com tédio! Imaginc-se o etfeito que produziu entre esses emigrados tama- nha desconsideração. Não estava ahi o monarcha expulso do Brazil pela seu ódio á liberdade e á democracia? A resposta única que D. Pedro deu a esses canalhas foi mandar vir para junto de si, Palmella, Cândido José Xavier e Mousinho da Silveira ! "Com esta marcha, diz ainda o sr. Soriano, se tornou impossi- vel a D. Pedro desvanecer os antigos preconceitos que muitos emi- grados tinham sempre mostrado contra elle, não só pela grande parte que tomou na independência do Brazil e modo como o li/cra, como também por ter nomeado a D. xMiguel para seu lof^ar fenen/e. pela sua completa c extemporânea abdicação da coroa d'esle reino, e, finalmente, pela missão que por ultimo coníiou ao marquez de Santo Amaro." E diz que todas estas circumstancias, juntas ag(^ra á preferencia a um dos partidos, necessariamente o ha^'iam de indispor no animo do outro. As accusações começaram a ser mais :;ravL's. quando elle se pvestoii a dar ouvidos aos que lhe persuadiam da possibilidade 448 de annular sem desaire a sua abdicação, ficando outra vez rei de Portugal. Tal é a opinião d'aquelle escriptor nada suspeito. A nós quer-nos parecer que D. Pedro tratou tão grosseiramente os emigrados, porque logo viu n'elles os seus inimigos futuros e um obstáculo aos seus projectos, usurpadores dos direitos da filha, que elle nunca estimou. D. Pedro convenceu-se da possibilidade de recuperar a coroa de Portugal; e ficou desde logo com essa ambição. Lord Palmerston, lord Grey e o principe de Talleyrand, este renegado e auctor da restauração bourbonica, apoiaram aquellas novas pretensões de D. Pedro. Aquelle ultimo saudou-o um dia como rei de Portugal ; porque para nós é ponto de fé que alguns arranjos se fizeram para isso. Diz Sousa Monteiro, sempre bajulador de D. Pedro, que este respondera ao ministro francez na corte de Londres que estava re- solvido a manter a abdicação; mas duvidamos d'essa resposta, porque tudo confirma a opinião do sr. Soriano de que D. Pedro deu ouvidos aos que o persuadiram da possibilidade de tornar a ser rei de Portugal. Diz José Liberato Freire de Carvalho que em casa do principe de Talleyrand houve um conselho diplomático, a que assistiram al- guns ministros inglezes, no qual se decidiu não ser possível a pre- tenção de D. Pedro de reassumir a coroa de Portugal. O Courier, jornal da épocha, fallando d'essa reunião, diz que falhara a primeira negociação em que D. T^edro entrara depois da sua chegada a Londres. O mesmo Monteiro dá como certa essa reunião diplomática, bem como o sr. Soriano. Parece estar provado que foi D. Pedro o promotor d'esse con- selho. É preciso notar que a segunda esposa d'elle estava de espe- ranças, e que a D. Pedro agradaria mais passar a coroa de Portu- gal para o ramo varonil. Segundo parece, no conselho diplomático ficou resolvido que D. Pedro deveria assumir a regência do reino em nome da filha . 449 D. Maria II, e collocar-sc á frente de uma expedição contra o go- verno de D. Miguel. D. Pedro constituiu um conselho de familia á rainha, no qual entrou Silva Carvalho. E partiu depois para Paris, deixando em Londres uma commissão encarregada de reunir recursos para a expedição. «Frustradas, diz o sr. Soriano, definitivamente as esperanças de que D. Pedro pudesse retomar a coroa de Portugal, c collocando-se ostensivamente á frente da causa de sua filha, começou desde en- tão a ser considerado no publico unicamente regente de facto na minoridade da rainha.» D. Pedro tomou o titulo de duque de Bragança. Palmella, antes mesmo que recebesse a ordem de D. Pedro, apresentou-se em Londres, com uma mensagem da regência, pe- dindo áquelle, em nome dos povos da Terceira, que assumisse essa auctoridade, como pae e tutor da filha. Mas parece que a causa verdadeira d'essa viagem foram os fun- dos que recebeu para soccorrer os emigrados. Diz o senhor Soriano que elle apresentou uma conta de reis 2.160:648.^000 gastos com os emigrados, e que foi creada uma commissão para examinar essa conta ; mas ella nada poude veri- ficar por falta de decumentos! Palmella apressou-se a apresentar-se pessoalmente a D. Pedro, para desfazer perante elle as accusaçócs que lhe eram feitas. D. Pedro afastou-o de si, mandando-o n\ima commissão a Lon- dres, onde se conservou. Apesar de o conselho diplomático ler regcitado a possibilidade de D. Pedro reassumir a soberania de Portugal, os que o cercavam continuaram a formar partido n'esse sentido. Os liberaes, vendo esse trama odioso, começaram então a fazer calorosos pronunciamentos a favor de D. Maria 11. l'm dia toram comprimentar esta princeza, a quem signiticaram em lermos enthu- siasticos a mais decidida fidelidade d causa d'ella, por que estavam promptos a sacrificar as suas vidas. Os amigos de D. Pedro vieram então jxira a imprensa de Lon- 450 dres e Paris atacar a infeliz rainha, para quem D. Pedro era um verdadeiro padrasto, identificando-se com a segunda esposa, que sempre maltratou a enteada. Todas as aífeições de D. Pedro estavam n'este momento con- centradas n'essa princeza com quem contrahiu segundas núpcias. E quem sabe mesmo se elle desejou casar com D. Miguel a filha do primeiro matrimonio, para ver-se livre d'ella, a quem a esposa, como madrasta, votou sempre grande ódio ? Estava accesa a lucta entre os partidários de D. Pedro e os de D. Maria II, quando teve logar o attentado contra a vida d'esta. De uma casa fronteira foi disparado um tiro, que partiu um espelho, junto ao qual estava aquella princeza. E lemos n'um jornal que n'essa casa morava um amigo de D. Pedro. Os ambiciosos cortezãos são capazes de tudo. Morta a rainha, estava resolvida a questão da abdicação. Além d'isso, tirava-se aos liberaes, não só pretexto para guerrearem D. Pedro, como também essa princeza, que elles queriam tornar o centro do seu partido, como os moderados, ou conservadores, D. Pedro. Aquelle attentado encheu de indignação todos os liberaes. Não houve processo e o auctor não foi perseguido ! No entanto aquelle acto criminoso e imprudente feriu mortalmente a causa da usurpação em que se pensava. Depois d'elle tornou-se impossível a realisação d'esses planos. O próprio D. Pedro, temos a certeza, foi o primeiro que se revol- tou contra aquelle attentado. Se reassumisse a coroa n'esta occasião grave, mostraria que era cúmplice. Forçoso foi abandonar completamente esse projecto. Os liberaes é que não mais se esqueceram d'esse attentado com- mettido por causa d'elles. Os aggravos contra D. Pedro augmenta- ram ainda mais. Desde então por diante fez-se completa scisão en- tre os partidários d'aquelle e os de D. Maria II. Impossibilitados de collocarem no throno portuguez o duque de Bragança, os moderados, ou conservadores, esforçaram-se por lhe dar a regência e tornal-o seu chefe visivel. Em presença de tudo o que temos exposto, o partido liberal e 461 democrático repellia D. Pedro, que tinha sido expulso do Brazil pelo seu ódio constante a este partido e aos seus princípios politicos. Elle reconheceu que a influencia d'esse principc ambicioso e com o vicio do mando devia ser bem funesta á causa da liberdade por- tugueza. Os emigrados reuniram-se e decidiram combater por todos os modos a regência de D. Pedro, que inevitavelmente viria para Portugal estabelecer o mesmo eterno conflicto que sustentou no Brazil. Os primeiros que levantaram a cruzada a favor da liberdade ameaçada foram os dois Passos. Estes publicaram um celebre opúsculo sobre os meios que se deviam empregar, para se derribar o governo de D. Miguel. N'essa obra desenvolvem com desasombro e arrojo o seu credo democrático. Elles dizem que o governo da Terceira está bloqueado de tre- vas, e que n'esta ilha estão quatro mil cidadãos livres, sem poderem escrever uma só linha, tendo apenas por guia a Clironica. Por isso é preciso que elles venham a publico mostrar o caminho que se deve seguir. São de opinião que se organise uma expedição poderosa, que sem delongas de cabo do tyranno, e que se não confie o commando a um estrangeiro, porque em Portugal não faltam \jriatos e Albu- qucrqucs. Dizem que não basta derribar o tyranno; mas que é preciso, alem d'isso, pugnar pela liberdade, grande, generosa, progressiva, como o espirito humano, verdadeira, pura, sem mescla Jc Icí^^ituni- ciadc^ c sem nódoa de anarchia, ou despotismo. E accrescentam : «Em consequência declaramos: '« I." — que somos partidários obstinados do principio Ja sobe- rania popular, velhos democratas incorrigíveis que n\">tf ponto nada aprendemos, nem esquecemos, como disse o sr. ('h.Ueaubriand em agosto de i83o, principio grande, generoso c protector, que a nos- sos pães guiou como uma estrella no campo de Ourique e na sala 452 de Almacave, principio que atravessou intacto em duas dynastias os melhores séculos de nossa gloria, e depois os 6o annos da es- cravidão da pátria, principio que derrubou os déspotas estrangeiros do throno portuguez, para collocar o duque de Bragança, ao depois reivindicado por a nação em 1820. «2.° — Que reconhecemos a legalidade da revolução de 1820 e a carta de 26 como a sua continuação e cumprimento das promessas de Villa Franca, e que o governo de Portugal desde essa épocha até á publicação da nova carta temos por constitucional de direito e só absoluto de facto, «E dos principios que deixamos expostos segue-se: i.° que que- remos a carta de 26, mas reformada^ já por o principio da omnipo- tência parlamentar, já porque o periodo marcado para a sua reforma está completo, e na verdade a carta, tal como está bastante para 26 e para outhorgada por um rei, é muito pouco para i83i e para de- cretada por a nação. » Sustentam que as leis de 20 só parlamentarmente podiam ser revogadas, e que teem em conta de golpes d'estado os decretos de 23, a que não pode obedecer nenhum cidadão livre, sob pena de se tornar digno do publico despreso. Pedem a organisação da guarda nacional, liberdade de imprensa com jury e sem caução, e camarás municipaes electivas e annuaes. Segue-se depois uma apologia da Revolução de 20 e dos seus auctores. Mas dizem que aquella revolução, generosa como fora, acabou por débil e fraca. Paliando de Fernandes Thomaz, dizem elles : «Sua voz tinha alguma coisa de santa ; resoava como um trovão pelos ângulos da sala ; parecia que o Eterno fallava por sua bocca : o cahos parava ; as trevas desappareciam ; brilhava a luz ; e a nação adorava pros- trada a face do seu libertador. Esses nomes ficarão largo tempo entre nós, como as pyramides do Egypto, objecto de pasmo e admi- ração. E nem por isso deveis, mancebos, esmorecer; que inda em nossos dias se viram do alto d'cssas pyramides 40 séculos saudar um homem tão grande como ellas. 463 Isto c muito importante, porque é a primeira vez que os libe- raes se pronunciam tão clara e enthusiasticamente a favor da Revo- lução de 20. Os auctores mostram os seguintes defeitos da carta constitucio- nal: i.", conselho d'estado — 2.", eleições indirectas — 3.", attentado contra a liberdade de consciência — 4.", legislaturas quadriennaes — 5.°, deficiência no direito de convocar as cortes á falta do poder moderador. No segundo Memorial tratam da questão entre D. Pedro e D. Maria II, e declaram que estão promptos a fazer por esta todo o oííicio de bons súbditos. Embora democratas protestam fidelidade a ella. «Na flor da sua cdade, dizem elles, infeliz proscripta, como nós, cheia de graças, bellezas e virtudes, que mal nos tem feito essa jo- ven princeza, essa adorada rainha?» E apontam os actos de juramento que lhe prestaram e as de- monstrações que lhe teem feito os emigrados. Accrescentam de- pois : «Sem duvida que não são os republicanos os que machinam traições^ porque o livre sabe ser mais leal que o escravo, n D. Maria II pagou-lhes bem essa defeza e dedicação! Paliando de D. Pedro, pedem-lhe que siga do coração a causa da liberdade e da Revolução, que é isto o que lhe pede também o povo. «O exemplo da França e dos doutrinários não colhe; que não havemos nós de ser domados, como o foram os heroes das barricadas. > Sustentam que a rainha menor não pode abdicar dos seus di- reitos no pae, porque a isso se oppõem as leis do reino. «O que, dizem os auctores, o illustre principe de Bragança deve determinadamente fazer c lançar de si os maus que entre elle e a nação portugueza levantam um muro de bronze. Não queremos nós aggravar os infortúnios do ex-imperador com as memorias do passado, e até um throno lhe daremos, se podessc ser; ma-> não o portuguez ; que esse é da sr.^ D. Maria II. ^^^i) (1) Mcmorijl s ibrc J ucccssÍlIjJc c tncms ,íe Jcsírmr yronifí.inicnt,' n íy-rjimo Jr Portuí^al c restabelecer j c.irt.i de Jh. 454 Ahi ficam perfeitamente definidos os principios dos liberaes portuguezes, e a attitude que tomaram ante D. Pedro, ao vir para a Europa com desejo de dirigir o movimento contra o irmão. Levantou- se depois a questão da regência. O primeiro que rompeu o fogo foi o ousado Rodrigo Pinto Pizarro, que já d'antes se oppoz á nomeação illegal de Palmella para ministro de D. Ma- ria II. D. Pedro, para reagir e para se vingar d'esses que tão ousada- mente faziam a apologia da Revolução de 20 e dos seus homens, que elle insultara e hostilisara, chamou para seu lado, Silvestre Pi- nheiro Ferreira e José da Silva Carvalho, estes dois ministros que atraiçoaram aquella Revolução, Mousinho da Silveira, um dos che- fes da contra-revolução, e que nas cortes de 26 aggredira, como vimos, o mesmo movimento nacional. Cândido José Xavier, o braço direito de Palmella, o ministro de 26, perseguidor dos vintistas e o déspota e perseguidor de Plymouth, e outros moderados, ou con- servadores. Palmella foi arredado, como dissemos, para Londres, talvez por causa das suas contas, que o não honram muito. Substituiu-o o não menos ardiloso Silvestre Pinheiro Ferreira, este outro ini- migo dos vintistas^ que atraiçoara, (i) No dia 8 de setembro de i83i, D. Francisco d'Almeida, minis- tro da regência, convidou, cm nome de D. Pedro, Silvestre Pinheiro Ferreira, Filippe Ferreira Araújo e Castro, marquez de Rezende, Cândido José Xavier, e marquez de Lavradio, pae, para uma reu- nião, que se verificou com a presença de D. Pedro e do ministro da regência. D. Pedro ordenou ao marquez de Rezende lesse um relatório do que elle tinha feito em favor da causa da filha. Como não appa- recesse esse relatório, cxpoz verbalmente os factos. O príncipe diri- giu-se aos governos inglez e francez, solicitando a sua cooperação; ambos responderam que sobre tal assumpto não lhes era licito in- tervir. O mesmo príncipe dirigiu-se a varias casas commerciaes, e (1) Vidé Historia da revolução portuguesa de 1820. 4Õ5 fez-lhcs propostas vantajosas, para se promover nas praças de Londres e Paris um empréstimo que lhe desse meios para organisar uma expedição. Nada conseguiu. Concluiu D. Pedro por pedir a cada um dos assistentes o seu parecer, depois de se lhes apresentar o relatório, servindo esta re- união apenas para elle tomar conhecimento com as pessoas pre- sentes. Levantou-se a conferencia, e os convidados não foram cha- mados a nova. No entretanto Silvestre Pinheiro Ferreira e Araújo e Ca^tro apressaram-se a apresentar ao principe os seus pareceres por es- cripto, que foram por elle bem acolhidos e acceites. Os pontos principaes são os seguintes : Proceder-se-ha a uma reunião prévia para deliberar: i." com que caracter o duque de Bragança deve figurar n'essa deliberação ê nas medidas adoptadas? 2." Qual o caracter politico das pessoas reunidas ea parte que cada uma deve tomar 'n'essas medidas? Quem ha de fazer uso das medidas? 4." Que principio será invo- cado, para se qualificar de illegitimo o governo usurpador? 5.° Tra- tar-se-ha da mudança do governo directamente, ou por intervenção diplomática das nações? 6° Intentar-se-hão medidas de força? 7." Debaixo de que plano? 8." Com que meios? 9." Debaixo de que commando? io.° No caso de bom êxito, que systema se ha de ado- ptar, o de 20, ou o de 26? i i.'^ Um systema diverso de ambos? 12." O da monarchia absoluta? i3." Na ultima hvpothese, como se haverá o governo com os constitucionaes que manifestam opiniões oppostas? 14." Adoptando-sc a constituição de 20, coíno se poJon dissimular os defeitos c evitar os iiiconrenientes da primeira tenta- tiva y i5." Adoptando-se a carta de 26, Ljual e o systejiia de leis or- gânicas e quaes as preparatórias indispensáveis para a ^ua execu- ção e introducção? Os pares cúmplices da conspiração voltarão aos seus logares? Ao I . " quesito respondem : 'ão de opi- niões, complicação de intero^cs e appreheiísão. ou i-c^cio-^ Jc -lover- no.s estrangeiros, é de urgente necessidade uma pessoa que repre- 456 sente os interesses geraes da nação com caracter legal e capacidade politica^ afim de inspirar confiança a todas as partes dissidentes e aos governos desconfiados. Estas condições parecem verificar-se na pes- soa do príncipe D. ^edro d' Alcântara. Este príncipe.^ depois da sua abdicação á coroa de Portugal, em que devia succeder pela disposição das leis, e succedeu de facto pelo livre e voluntário consentimento da nação portuguesa, tem figurado até agora com a qualidade pura- mente civil de tutor de sua filha ; mas é forçoso reconhecer que com este caracter, que por sua natureza não pode ser senão civil, tam- bém não pode representar senão direitos civis e interesses particu- lares. Portanto deve o príncipe tomar um caracter politico, mas qual? « Havendo cessado o impedimento constitucional que o retinha em paii estrangeiro, e tendo sido frustradas, como é notório, as condições da abdicação (casamento) é evidente que a podia reclamar e reas- sumir a realeza. Mas aquelle príncipe, para remover toda a suspeita de ajnbição, para dar mais uma prova de desinteresse c firmeza de caracter e inspirar confiança a todos os partidos dissidentes, tem declarado ser sua magnânima intenção ratificar e manter aquella abdicação, e portanto o caracter politico em que lhe compete re- presentar, assim dentro como fora do reino, é o de regente na me- noridade da rainha sua filha, como parente mais próximo, segundo a carta constitucional, que clle mesmo outorgara e a nação accei- tou. » São de opinião que o príncipe deve communicar á regência da Terceira que assume esse caracter politico que pela carta lhe com- pete, succedendo a ella, que passa á cathegoria de simples governo territorial, salvo se o regente, depois de proclamado pelo povo das ilhas, segundo um decreto da mesma regência, quizer nomear iwi simples governador general. Propõem o governo inglez para mediador na mudança do go- verno de D. Miguel. E, nada conseguindo-se, que se recorra á força. Dizem que o regimen da carta é o único admissível, e que o príncipe deve proclamar a sua manutenção, e que, logo que se ex- 457 pulse O usurpador, promulgue immediatamente um systcma de leis preparatórias, que habilitem o governo e a nação a pôr em exe- cução a carta constitucional por via de leis orgânicas, que o prin- cipe, de accordo com a representação nacional, deve promulgar, logo depois de postas em execução as leis preparatórias. Essas leis preparatórias e orgânicas devem ser taes, que mos- trem ás classes privilegiadas que a carta não tende a esbulhal-as dos seus interesses e honras, mas, muito pelo contrario, lhes tra- zem vantagens! Cumpre que D. Pedro faça um manifesto d'estes principios á nação portugueza. As leis preparatórias são um decreto de amnis- tia para todos os crimes politicos, inclusive para os que pegaram em armas contra D. Miguel e os que figuraram na Revolução de 20, decretos sobre a repressão dos abusos da liberdade de impren- sa, sobre a divisão territorial e sobre eleições. D. Pedro, sem convocar, ao menos, a reunião prévia lembrada, acceitou aquellas propostas e alvitres por seu livre arbitrio! E esses homens que não queriam governos eleitos pelo povo, continuavam a lançar mão dos processos demagógicos e tumultua- dos, para chegarem a seus fins, contrários á liberdade e á demo- cracia ! D. Pedro é investido do caracter politico e da auctoridade em negócios de Portugal por um conselho diplomático e simples pare- cer de dois validos I Estes são de opinião que o mesmo príncipe, depois de tornar a sua abdicação completa e definitiva, pode reas- sumir a soberania de Portugal, mas que o não faz, para não se mostrar ambicioso e sem Jirmeia de caracter I Logo esse acto não era um direito, mas uma ambição e, portanto, usurpação; não era um acto honesto e honroso, porque os mesmos validos confessam que elle mostraria pouca Jirme\a de caracter. Que mais querem :* E se D. Pedro não podia reassumir a soberania do reino de Portugal, que auctoridade tinha para investir-se cllc {Toprio na re- gência do reino, e para mandar dissolver a rcucncia da Terceira. Dizem os validos que lh'a dá a carta constitucional. Porque c que 5H 458 então não se investiu n'esse cargo quando estava no Brazil? Veda- va-o a constituição brazileira e a carta constitucional? Mas estas duas leis fundamentaes não estavam revogadas. D. Pedro nomeou a regência da Terceira, em virtude do seu decreto que tornou a sua abdicação da coroa e soberania de Portu- gal completa e definitiva. Além d'isso, a carta constitucional exclue clara e terminante- mente da regência do reino os ascendentes. E o motivo é obvio. Esses demagogos eternos do constitucionalismo invocavam fal- samente a carta constitucional. E tinham tanta consciência d'essa falsidade, que o decreto que investiu D. Pedro na regência, faz depender esse acto da approva- ção posterior das cortes do reino. Agora é occasião de recordar aos nossos leitores as duvidas que os antigos membros da regência offereceram acerca da sua nomea- ção pelo próprio D. Pedro, querendo que ella fosse feita em nome da rainha ; porque era o novo soberano de facto e de direito. E chegada também a occasião de recordar aos nossos leitores os protestos que os ministros e agentes da mesma regência da Ter- ceira fizeram contra a missão do marquez de Santo Amaro e as doutrinas ahi expostas. Todos declararam que não reconheciam em D. Pedro o direito de intervir em os negócios de Portugal, e de en- trar em transacções com o irmão no que diz respeito á nação portu- gueza. Disse Abreu e Lima «Sua magestade o senhor D. Pedro IV, tendo abdicado a coroa de Portugal a favor da senhora D. Maria II, e declarando consummada a sua abdicação, despojoií-se ipso facto de lodos os direitos e deveres que como rei de Portugal lhe pertenciam. » O ministro de S. Petersburgo declara que D. Pedro devolveu a coroa de Portugal á filha, que esta coroa foi sempre independente dos estados estrangeiros, e que n'esta qualidade o mesmo D. Pedro não podia nomear embaixador para resolver com as potencias a questão portugueza. D. Pedro, pelo facto de abdicar da coroa do Brazil, não perdeu a qualidade de brazileiro; era-o pela constituição d'cste paiz c pela carta conslilucional. 459 Qualquer portui;uez nato que se tornou brazileiro pelo acto da independência e pela constituição brazileira, e que exerceu impor- tantes carfíos politicos no império, tornava-se, por ventura, portu- fíuez pelo facto da sua demissão d'esses cargos ;' Até onde nos levaria a estranha jurisprudência que, á ultima hora, defenderam esses demai^ogos do throno? A carta constitucional diz terminantemente que são portuguezes os que tiverem nascido em Portugal, e que hoje^ diz cila, não forem cidadãos bra{ileiros. D. Pedro foi o primeiro que declarou que pre- feria ficar cidadão brazileiro, a tornar-se cidadão porluguez. E con- tinuou a reinar no Brazil n'essa qualidade até i83i, em que abdi- cou, mas sem nacionalisar-se cidadão portuguez. E quando o fizesse, como cidadão nacionalisado, não podia exercer o importante cargo da regência. Mas os validos do throno queriam um direito ditiérente e especial para D. Pedro, que, segun- do elles, não era cidadão como outro qualquer. Girava n'elle o san- gue divino. O que esses validos, demagogos e futuros corrilhos de palácio, quizeram foi tornar, por todos os modos, D. l^edro o chefe osten- sivo do seu partido, ainda que saltassem por cima das leis. Recordem-se os nossos leitores do proceder de Palmella, quan- do arbitrariamente se fez nomear pela rainha menor e sem regência ministro e conselheiro d'estado. O parecer de Silvestre Pinheiro Ferreira, adoptado por D. Pe- dro, foi uma ostensiva reacção á obra publicada pelos dois Passos e aos planos dos liberaes c saldanhistas. Antes que estes organisas- sem alguma expedição contra Portugal e á sua custa, para proclama- rem governos revolucionários eleitos pelo povo, e para. depois de de- ribarem o tvranno, estabelecerem o regimen democrático de 20 sem mescla de legitimidade, como dizem os Passos, os defensores d'esta apressaram-se a collocar na reirencia D. Pedro, a entreí^ar-lhe o commando da expedição á Terceira, e accelerar esta. atim de se manter a carta e o seu regimen. As probabilidades eram todas por elles. Os liberaes não podiam com tanta facilidade obter meios pecuniários, para porem em execução seus planos. 460 A grande riqueza e o nome do ex-imperador do Brazil davam mais garantias aos capitalistas, do que os Saldanhas e os Passos. Silvestre Pinheiro Ferreira e Araújo e Castro publicaram o seu parecer sob o titulo — Parecer sobre os meios de se restaurar o go- verno representativo em Portugal. Essa publicação levantou logo enérgicos protestos dos liberaes e democratas, contra os quaes se dirigia, e levantou novas polemi- cas, dando origem a outras publicações em sentido contrario. O primeiro que se apresentou em campo foi o audacioso Ro- drigo Pinto Pizarro. Elle publicou a sua celebre Norma da regência de Portugal^ mostrando a illegalidade da regência de D. Pedro e a sua inconsti- tucionalidade; porquanto a carta excluia aquelle príncipe da re- gência. Não nega a D. Pedro a qualidade de tutor da filha, mas nega a sua auctoridade politica como regente. Sustenta também, e com razão, que D. Pedro é brazileiro e não cidadão portuguez. E diz que D. Pedro, por decoro e politica, deve rejeitar a re- gência, que só servirá de pretexto aos inimigos da rainha. Diz que .só as cortes e mais ninguém, sem perjúrio e usurpação, teem direito para conferir a regência. E cita as antigas leis portuguezas a este respeito. Com eíTeito desde tempos immemoriaes a regência do reino competiu á reunião dos três estados. Pizarro redigiu o seu protesto e dirigiu-o a Cândido José Xa- vier, para este o entregar a D. Pedro. A resposta foi que este não só o excluia da expedição que se estava organisando, mas ordenou que se remetesse á regência da Terceira o seu escripto, afim de que, no caso que elle se apresentasse em qualquer território sob o poder da mesma regência, fosse preso, processado e julgado! Inaudito ! Pizarro respondeu, estranhando muito bem que um simples se- cretario particular de D. Pedro ousasse mandal-o prender, processar e julgar. Pergunta se a regência da Terceira já está reduzida á baixa condição de receber ordens de quem não tem ainda caracter politi- co reconhecido, ou proclamado, pelos portuguezes. E essa é a verdade pura. D. Pedro ainda não estava investido 461 na regência, que isso o fez elle a bordo da fragata Rainha de Por- tugal. Cândido João Xavier diz na sua carta que Pizarro tem ordem de prisão, não tanto pelo seu escripto, como por elle provocar as tropas leaes á rebellião contra D. Maria II! A isto responde muito bem Pizarro. «Contra quem chamo eu á rebellião? Contra a rainha, parece-me que não; contra a regência, não vejo onde; contra o tutor e pae da senhora D. Maria II? a ultima linha do meu pobre escripto desmente tal asserção. Então contra quem? Contra os Grachos corrompidos que andam por ahi insensando toda a divindade que o sacerdócio lhes oíferece.» Pizarro dirigiu-se aos Passos, para lhe darem a sua opinião como jurisconsultos. Estes responderam com o seu Parecer. É bem notável esta publicação. Todos a devem ler. E um dos escriptos mais característicos da épocha. Depois de fazerem a apotheose dos magistrados independentes, accrescentam : «E se ao coronel nosso cliente lhe não treme a espada nas mãos, quando afifronta no campo os inimigos, também a nós, seus patro- nos, nos não treme, nem a voz, nem penna, quando se ha mister pelejar pela innoccncia, o que mais monta, por a lealdade oppri- mida c por as leis com sacrilégio violadas.» Citam o exemplo de N. Gonçalves, juiz no tempo de D. João II, quando este quiz assistir á votação de uma causa em que era parte, e aquelle lhe disse : Fora d'aqui, senhor; saia já, para darmos nossos votos com liberdade.» |] dizem que o silencio d'elles na questão ventilada ^eria grande quebra da sua honra. Atíirmam que D. Pedro não c rei, nem regente, para mandar e dar ordens aos portuguezes. "Não é rei, dizem elles, i." porque abdicou e a sua abdicação já foi cumprida, publicada, acceite e jurada; 2.' porque a carta é indestructivel») Sustentam muito bem que uma coisa é tutella, outra regência. 462 Cândido José Xavier não é ministro da regência provisional. «Dar ordem, dizem os auctores, a uma regência portugueza, boa ou má, é loucura, ou desaforo; ordenar-lhe que prenda é fazer descer a regência á condição de alcaide menor do quadrilheiro^ e so- bre isso usurpou as attribuições que só ao poder judicial cabem.» E dizem que a causa de Pizarro é uma causa nacional, como foram na Inglaterra as de Hampden, Jenck e Wiikes, porque n'ella se violaram todos os princípios da liberdade constitucional. Paliando de muitos artigos publicados nos jornaes em defeza de Pizarro, dizem que a honra do imperador não pode salvar-se, sem que elle lance de si Cândido José Xavier e outros, que o fazem descer da sua alta dignidade, para vir luctar, braço a braço, com um sim- cidadão. Citam o exemplo de Carlos I, que também tinha a seu lado liberaes renegados, homens violentos e atrevidos, que prenderam lord Kinbolton e cinco deputados, o que foi o annuncio dos seus desastres. E terminam: «Príncipe augusto, não se deixe vossa magestade imperial ir por esse errado caminho, que é o da perdição. Fuja dos homens odiados.» E faz gosto vêr surgir no meio de tantos sabujos e aduladores dos príncipes esses dois elementos austeros, inspirando-se nos vul- tos respeitáveis da nossa velha historia pátria, para os tomarem para exemplo da sua conducta. E conheçam nossos leitores de que lado está a independência, a dignidade, o respeito pelas leis e o sentimento patriótico, se do lado dos da legitimidade, ou conservadores, ou se do lado dos democra- tas, ou liberaes, alcunhados de canalhas. Outros escriptos se publicaram contra a regência de D. Pedro e em resposta ao parecer de Silvestre Pinheiro como o — Additameuto á Norma da Regência^ por Leonel Tavares Cabral — Opinião jurí- dica sobre a questão quem deve ser regente de Portugal^ por Fer- reira Borges. Este fallando da celebre amnistia aos revolucionários de 20, aos do Porto em 1828, e aos da Madeira e Terceira, diz o seguinte: 463 «Eu cuidei ate hoje que linha feito uma acção nobre de patrio- tismo, arriscando-me com os meus companheiros a reclamar e a fazer restituir aos portuguezes os seus foros usurpados, quando no dia 24 de agosto de 1 820 acordámos a nação portugueza do lethargo em que jazia ; eu vi que essa nação inteira no continente de Portu- gal, nas suas ilhas, nos mais remotos dominios, como tocada de electricidade, deu como um só brado vivas ao nosso feito.» Pedimos aos nossos leitores que tomem nota d'aquellas pala- vras, para as confrontarem depois com o procedimento do mesmo Ferreira Borges em 1836 contra a Revolução de Setembro. Diz aquelle escriptor que o único crime de todos aquclles para quem se pede a amnistia é o terem pegado em armas contra D. Mi- guel. Termina o opúsculo : «Oxalá que os portuguczes, a quem chegar a sua licção, se nã£> identifiquem com as máximas do escriptor. Oxalá que o principe a quem o Parecer se endereça o não escute, e siga aquella vereda da justiça que só pode fazel-o immortal.» Apesar de todas estas advertências e conselhos, D. Pedro escu- tou e seguiu o tal Parecer! A hostilidade contra D. Pedro torna-se mais sensivel em duas obras, uma publicada em Brest no anno de 1 832, intitulada — Bio- graphia de T). Pedro^ e outra datada de Anidra, mas parece impressa em França, intitulada — O usurpador D. Mi^niel justificado por seu irmão. Na primeira d'aquellas obras diz-se que D. Pedro lyranno pre- tende roubar a liberdade aos portuguezes, como roubou aos brazi- leiros a constituição que havia sido forçado a dar-lhes. Na sei;unda ataca-se o mesmo principe por querer usurpar os direitos da íilha, como D. Miguel usurpou os d'elle. CAPITULO V A EXPEDIÇÃO DE D. PEDRO o conde de Villa Flor apressa as operações militares nas ilhas dos Açores, de que se apodera. — D. Pedro activa a expedição aos Açores. — Esta expedição foi d'antes tentada pelos membros da regência da I erceira. — Estes pensaram em excluir da expedição os emigrados liberaes e democratas. — Silvestre Pinheiro Ferreira aconselha D. Pedro que organise uma expedição composta de estrangeiros e por estrangeiros commandada. — Os jornaes inglezes levantam novamente a campanha contra Saldanha e os emigrados democratas, ou vintistas —D. Pedro declara a Saldanha que a diplomacia europea oppóese a que elle tome parte na expe- dição. — Saldanha communica aos seus partidários a resolução de D. Pedro. — Os Passos respondem ás in- trigas e calumnias do Tunes contra Saldanha. —D. Pedro e os seus validos pretendem voltar á politica de 1826. — A expedição de D. Pedro não foi a favor da liberdade, mas da causa de um throno. — São excluídos da expedição todos os generaes affeiçoados a Saldanha. — Declaração d'estes ofRciaes — São recrutados . para a expedição os vadios de Londres e Paris. — E organisada uma esquadra de navios de guerra e de transportes sob o commando do almirante inglez Síirtorius. — Dá-se o commando das tropas estrangeiras ao coronel Hodges. — D. Pedro participa aos emigrados que, se quizerem ir para a Terceira, o façam á sua custa. — Todos apresentaram-se em Belle-Isle. — D. Pedro sai de Paris. — Juramento do almirante Sar- íoriíis. — A esquadra suspende ferro. — D. Pedro assume a regência a bordo da Rainha de Portugal e pu- blica o seu manifesto. Emquanto todos estes importantes acontecimentos se davam no Brazil, na Inglaterra e na França, a regência da Terceira activava as operações militares, até ahi paralysadas! Ella quiz aplanar e pre- parar o terreno para o projecto da regência de D. Pedro. O duque da Terceira emprehende novamente a tomada das outras ilhas, e parte contra ellas com forças importantes. A 23 de abril de i83i é tomada a ilha do Pico, a 9 de maio a ilha de S. Jorge e a 24 a do Faval. A 2 de agosto o conde de Villa Flor desembarca na ilha de S. -Miguel, apesar das importantes forças miguelistas que a guarne- 465 cem, e desbarata-as completamente na Ladeira da Velha. Os habi- tantes acolheram com enthusiasmo esta importante victoria. • E assim o conde de Villa Flor, que até ahi se conservara iner- me, subitamente desenvolveu valor e actividade, e apoderou-se de todo o archipelago dos Açores com importantes armamentos e mu- nições de guerra que para lá enviou o governo de D. Miguel ! N'estas favoráveis circumstancias, D. Pedro activou também a sua expedição aos Açores. Por felicidade d'elle e da sua causa, ou da causa da legitimidade, aquelle principe encontrou um homem hábil em finanças e um excellente negociador de empréstimos, José da Silva Carvalho. Este estadista prestou serviços importantes á causa de D. Pedro na realisação dos empréstimos necessários para o bom êxito d'ella. Já muito anteriormente os agentes da regência da Terceira pen- saram em excluir de qualquer expedição aquelles que se recusaram a prestar-lhes juramento de fidelidade á mesma regência. Elles tentaram organisar uma expedição composta de uma fra- gata, duas corvetas e alguns transportes de guerra, conduzindo forças sufficientes para não deixar receio algum de mau exilo. Em oíficio de i5 de dezembro de i83o, Abreu e Lima informa Mousinho d\Albuquerque de que lord Palmerston mostrou desejos de que Saldanha fosse posto de parte na expedição projectada, e pede-lhc que a regência mande ordem positiva nV'sse sentido. "Parece-me, diz o representante da regência, também que aquelles emigrados que, tendo sido convidados, se recusaram a prestar o juramento de obediência á regência, não deverão pelo mesmo motivo ser encorporados na expedição, a qual só poderiam prejudicar.» 1^ remette três listas que lhe mandou o general Azeredo, sendo duas dos emigrados que elle julga poderem ir para a ilha e outra dos que juraram com reslricçíjes. faltando ainda (.utra dos que se recusaram a jurar! A expedição devia ser composta só dos puros, ou >abuj(j> de- fensores da legitimidade. (guando D. Pedro chegou á Europa. foran>lhe entregues e--sas 50 466 listas dos proscriptos, dos revolucionários, dos jacobinos, dos de- magogos, ou dos canalhocratas. Essa expedição não se realisou, porque se gorou o empréstimo para ella. No T^arecer citado de Silvestre Pinheiro Ferreira aconselha-se D. Pedro que organise uma expedição considerável de forças e bem dirigida. «... tropas estrangeiras, dizem os signatários, não ás ordens d'outra potencia, mas a soldo da nação portugueza e unicamente destinada a supprir a falta da nacional, com a condição de ser des- pedida, logo que o governo legitimo seja restabelecido. «Quanto ao commando da força naval que ha de conduzir a tropa de desembarque, deve ser confiado a official estrangeiro, que mereça a confiança nacional por sua intelligencia e probidade.» Emquanto ao commando da força de terra dizem os conse- lheiros que egualmente deve ser confiado a um official estrangeiro, «por ser assas numerosa e pela maior parte estrangeira !» A divisão portugueza deverá, no emtanto, ser commandada por official portuguez ! Ahi teem os nossos leitores o patriotismo d'esses demagogos defensores do throno e da legitimidade. A mesma politica que em 1826 chamou a divisão ingleza a Portugal, para excluir Saldanha e o exercito portuguez da defeza da carta e da legitimidade. N'este momento o Times, e mais jornaes inglezes, começam a atacar, injuriar e calumniar Saldanha. E teem a ousadia de voltar á carga com a Bel/estada, lançando sobre este a vergonha d'essa traição, que só contra elle foi tramada ! Mas vejam os nossos leitores o que são os inglezes. Liberaes e conservadores todos se mostram inimigos dos homens de 20 e dos seus defensores ! Não teem estes maior titulo de gloria. Está ahi a me- lhor prova do quanto seriam úteis á causa da pátria, se por ventura lhes consentissem que dirigissem os seus destinos. Todos os inglezes lhes votaram, e ainda hoje votam, ódio eterno, porque eram patriotas, como Gomes Freire de Andrade, que el- 407 les enforcaram, por ser um obstáculo aos seus projectos contra Portugal. Os realistas constitucionaes, fortes com o apoio de I). Pedro, tornam a repetir a cantata de 2(3.— É preciso aííastar Saldanha, por- que elie c perigoso para a nossa causa, e as nações não querem vel-o á frente dos negócios de Portugal e dos liberaes. No dia i3 de janeiro de i832, D. Pedro convidou aquclle gene- ral para uma audiência particular. Declarou-lhe que a diplomacia se oppuuJia a que elle tomasse parte na projectada expedição, para se restaurar a carta e a rainha D. Maria II. I:m virtude d' essa opposi- ção. elle não podia empregal-o. O general n'esse mesmo dia declarou aos seus amigos e parti- dários a resolução do imperador. Na carta que lhes dirigiu diz- Ihes que acaba de receber o mais funesto golpe que o podia ferir. Em i8 do mesmo mez, pede aos seus amigos c partidários com bastantes meios c recursos que se transportem aos Açores, e que não percam a occasião de sustentar a causa da liberdade, e que lhe cc-n- sintam juntar seus votos aos desejos d'elles e aos esforços dos bons portuguezes. Manuel e José Passos vêem então com uma eloquente defesa Jo general Saldanha, e respondem ás calumnias e accusaçóes do 77/;7t'.s\ Dizem esses honrados democratas e patriotas : « Parabéns! K porque? Porque ao nosso exercito leal se tira seu cabo. d'elle mais amado c dos inimigos mais temido. Não agrada aos inglezes. dizem. E que temos n(')s com os inglezes'.' Nunca e-ies deviam fallar no nome de Napoleão, a quem prenderam com tanta vilania, nem no nome do general Saldanha, a quem íizeram fogo no meio do occeano, quando estava desprecatado. sem espada, nem arcabuz. "\'amos, portuguezes, vamos todos ao tumulo de Píjmbal j^cdir justiça contra aquellcs que j"jnde)n a pátria c pa/^auiforo ao reino de Leão. \'elhos liberaes de Almacave. que vos levantastes então, lq- mo um só homem, com a espada na mão, vinde ver no.ssa \ergoriha e nossa dòr. ■' 468 Paliando da opposição que affirmavam os realistas constitucio- naes fazia a Hespanha, dizem aquelles honrados escriptpres que já em 1827 o ministério portuguez promettera ao governo de Madrid que nunca o general Saldanha entraria de novo no gabinete, o que é pagar foro ao reino de Leão. Dizem que a mesma Hespanha não declarou guerra a Portugal, porque teve receio do valente gene- ral Saldanha, que tomou de assalto a praça d'Elvas revoltada. A falta d'este general vae desalentar o exercito que o viu batalhar na Eu- rapa e na America, e que é o único capaz de levantar Portugal. Perguntam se elle não foi sacrificado por sua lealdade á rainha; e dizem a esta que se não desconsole; que o Porto ha de defendel-a á guisa de Saragoça^ Numancia e Sagunto; e Lisboa ha de ajudar o Porto. «Ou vossa magestade ha de ser rainha, ou elles hão de reinar sobre um vasto cemitério. « Respondendo ás calumnias do Times e com respeito á Belfes- tada^ dizem aquelles homens honrados e sempre verdadeiros e leaes o seguinte, que é muito importante : «Mas n'esse mesmo deplorável acontecimento tão culpados co- mo o general Saldanha são todos os ministros que embarcaram no Belfast e n'outros navios, deixando-nos sós em campo contra todo o exercito miguelista, quando havíamos mister de suas valentes es- padas. E muito mais culpados que o general Saldanha são os se- nhores conde de Villa Flor e marquez de Palmella, que já tinham vergonhosamente fugido de Grijó., deixando o conde de Saldanha^ o qual com seus ajudantes foi juntar-se ao exercito constitucional. Nem ao general., nem ao exercito foi communicada a portaria que desone- rava o generalíssimo Palmella, nem se sabe que fosse cm nenhuma ordem do dia publicada, e por consequência não podia o exercito co- checer, nem executar, as decisões furtivas e camarárias da junta do Porto.» Dizem que Saldanha foi sempre alFecto ao systema constitucio- nal, proclamando-o no Brazil e por clle protestando em Villa Fran- ca c Lisboa. Alli em Villa Franca instou pela proclamação de 3 i de maio, e impoz silencio a um marquez que, ao entrar o rei em Lis- 469 boa, soltou um viva ao rei absoluto. Em 1821 foi partidário da so- berania nacional com duas camarás e pcto absoluto. Dizem que o Titiies levanta uma accusação calumniosa, quando affirma que Saldanha pisara aos pés o laço constitucional, quan- do voltou de Villa Franca. Foi elle que, salvou muitos valentes e briosos guardas nacionaes, que os realistas queriam assassinar. De- pois de ter reprimido os aggressores, supplicou aos patriotas que tirassem o laço e atravessassem por entre a divisão, para que a geíitallia^ que corria desenfreada por toda a cidade, os não moles- tasse. Quando commandou o exercito no Alemlejo, oppoz-se sem- pre a cumprir as ordens do conde de Subserra, que lhe mandara prender e demittir os oíficiaes alfectos á Revolução de 20. A sua resposta foi sempre esta : «Não cumpro; e se alguém em Portugal não merece perdão por seu amor á liberdade sou eu.» lestas revelações são importantes; porque provam que Saldanha foi um dos muitos que em i823 obstaram aos projectos terroristas dos realistas puros. Os mesmos honrados patriotas apontam o factíj de ter sido Sal- danha o primeiro que no Porto proclamou a carta. I^ dizem muito bem que no seu ministério foi o único que apoiou os patriotas de 20, reintegrando nos seus postos, Claudino, Barros, Pimentel, Ikirrc- to l*\'io. Moura, Rangel, Stubbs. (Quevedo Pizarro. Isento da l'ran- ça, conde de ^Sampaio e outros. ('F até. dizem os Passos, por sua inlluencia ioi reintegrado o patriarcha da revolução, o senhor Francisco Simões Margiochi. que por seus talentos fez no congresso adoptar todos os bons prin- cípios da liberdade, e que com o senhor Xa\ier Monteiro tinha res- tabelecido o credito publico.» Mas era por causa de Saldanha ter sido o protector dos rinfis- tas. que os inglezes e os seus ailiados reaH^las con>iitUci<)nae> pi >r- luguezes não queriam vel-o inlluir nos de^linos de Portugal. Os mesmos Passos indignani-se por o 1'iincs dizer que S;ilda- nha lica bem substituído pelo conde de \'illa 1 lor, que não passa de uni neophito da liberdade. 470 Terminam o seu escripto: «Como, imperador? Vossa magestade é surdo a tantas vozes? Saia d'esse circulo vicioso; lorne-se aos bons» (i). Eram homens como estes, independentes, honrados, e patrio- tas, que não convinham, nem á Inglaterra, nem a D. Pedro, e nem aos seus partidários e sabujos realistas constitucionaes. O que temos exposto prova que a expedição de D. Pedro tinha •em vista voltar á politica de 1826, reaccionária e obedecendo á in- fluencia do estrangeiro, que tão funesta nos tem sido desde D. João IV para cá, á excepção do reinado de D. José que a repelliu. A expedição de D. Pedro não foi organisada para a defesa da liberdade e da Revolução, mas para a da causa de legitimidade, ou do realismo constitucional e para a da causa exclusiva da rainha. Não foi uma expedição liberal, mas a favor de um throno; nada mais. Diz o próprio senhor Soriano o seguinte: <íTodos os conselhei- ros e amigos de D. Pedro, homens de grande facilidade em tudo, contavam como certa a victoria, logo que, escudados no seu nome, e por elle capitaneados, se apresentassem nas terras de Portugal; esta convicção os levou desde então a ser demasiadamente desde- nhosos para com os seus antagonistas políticos, concedendo-lhes como um grande favor e honra o fazerem parte da expedição liber- tadora da pátria ; de modo que, se o partido do regente, humano como pareceu mostrar-se para com os miguelistas; possuía^ com ejfeito intenções moderadas^ é certo que para com os seus rivaes da emigra- ção ostentou algum tanto medidas de paixão e arrebatadamento (2).» D. Francisco d'Almeida, por meio de uma circular, convidou todos os fidalgos que estavam em Paris para acompanhar D. Pedro, sendo feito convites especiaes aos ofíiciaes generaes os puros, os quaes, diz o senhor Soriano, receberam ajudas de custas de algum (ij Parecer. Parte ii. — Vide Repouse uux accitsations publiées dernièrement dans le Times contre le general comte de Saldanha dediée a ses amis personnelks et politiques par les citoyens furtiif^ais Joseph et Manuel da Silva Passos — Paris — iSSi' — Bibliotheca Nacional de Lisboa. (2) Obra citida. Tomo i. pag. 404. 471 vulto para as apoucadas circumstancias do tempo, emquanto que íoram esquecidos, Stubbs, Cabreira, José Maria de Moura, e Cor- reia de Mello, que foram excluídos, como Saldanha. Diz o mesmo escriptor que somente o general Cabreira mere- ceu a attenção de lhe levantarem posteriormente o interdicto. E ao passo que excluiam assim da expedição ofíiciaes e portu- guezes distinctos, valorosos e patriotas, alistavam n'eila, francezes, inglczes, italianos, polacos, vadios e bêbedos ! I-^ram os puros defensores da legitimidade! Os Passos e Salda-* nha não serviam; que estes eram illustrados e independentes; os vadios de Londres e Paris eram melhores. Aqueiles briosos generaes, otíendidos na sua honra, como Sal- danha, fizeram uma declaração publica, dizendo que, por falta de convite, e não de desejos e boa vontade, achavam-se privados de servir na restauração da pátria, como o haviam feito desde a guer- ra peninsular até á ultima campanha de 1826 a i82(S. Diz ainda o sr. Soriano: «Uma exclusão tão cheia de flagrante injustiça não podia deixar de fazer uma forte impressão no publico, e attrahir sobre os seus auctores novos motivos de queixa, que elles, ou por indiscretos, ou por acinte de partido, d'este modo forneciam aos seus adversários. l^ara cumulo d'este murmúrio e descontentamento geral da opposi- ção. fez D. Pedro constar nos depósitos dos emigrados de França, gente que quasi toda partilhava aquellas idéas, que em Belle-Isle teriam transporte gratuito para a Terceira todos aqueiles individuos que ali se apresentassem á sua custa, por isso que a grande escas- sez de meios não permittia ao governo franquear-lhes as dcspezas de semelhante jornada.» ("ontinuavam a ser mãos rotas para os amigos e a negar lodo o auxilio pecuniário aos que não pensavam como elles I Aos bêbedos e vadios de Londres e Paris não faltou dinheiro. mas faltou aos emigrados portugueses honrados, livres e indepen- dentes! D. Pedro obteve em Paris um credito de duas mil libras para os primeiros gastos da expedição. 472 Foi concertada a escuna Ilha Terceira e aprestou-se a fragata Urania. Fretaram-se dois transportes Tyrian e Edwards para cor;» duzirem as tropas estrangeiras alistadas em Londres e Paris, que constituiram um batalhão de marinha denominado também de au- xiliares inglezes, sob o commando do coronel Hodges. Organisou-se uma esquadra de 3 fragatas, i escuna e 2 transportes, sob o com- mando do vice-almirante Sartorius, á qual se satisfizeram soldos desde o i.° de outubro de i83i até 3i de março de i832. Conta o sr. Soriano que os emigrados a quem se convidou para irem para a Terceira, mas sem lhes darem meios para isso, não obstante a sua miséria, correram todos a Belle-Isle á sua custa, e em tamanho numero, que não houve transportes para os recebe- rem ; porque não contavam com esse rasgo de patriotismo. E ac- crescenta aquelle escriptor que isto impressionou tanto D. Pedro, que este, por seu secretario particular, lhes annunciou por um ofíi- cio que se achava penhorado por tanta extrema devoção civica ! Ficou sabendo de que lado estavam os sentimentos nobres e patrió- ticos. Foi -lhes mandado abonar 5o soldos por dia, e deu-se-lhes um commandante, até que a commissão dos aprestos lhes fretou a ga- lera Fluminense^ que estava surta em Brest, e veiu a Belle-Isle e os conduziu á Terceira. D. Pedro, antes de partir, foi despedir-se de Luiz Filippe ; e para nós é ponto de fé que conferenciou com os governos de Londres e Paris e com o ministro de Hespanha n'esia ultima corte, dando- Ihes segurança de que a expedição era somente para manter a filha e a carta, tal e qual fora outorgada por elle, e de que se não fa- riam innovações a favor da democracia e da liberdade. Pelas 7 horas da manhã do dia 25 de janeiro de i832, D. Pe- dro partiu de Paris para Orleans e chegou a Belle-Isle a 2 de feve- reiro. O almirante Sartorius foi visital-o e conduziu-o depois á fra- gata Rainha de ^^ortugal^ onde se içou o pavilhão real, e se deu a competente salva, a que corresponderam todos os navios de guerra surtos n'aquelle porto e os fortes de terra. Parece que essa fragata tinha recebido o verdadeiro rei de Por- tugal. 473 No dia 5 estavam iodos os otficiaes da armada em grande uni- 1brme, bem como todí) o batalhão de marinha. O duque de Bra- gança appareceu vestido de general portuguez e ornado com as insignias de ditFerentes ordens militares. Kra o dia destinado ao ju- ramento do vice-almirante Sartorius. Este, sustentando a bandeira portugueza, pronunciou a formula do juramento seguinte: "Juro fidelidade e obediência a sua magestade fidelissima a senhora D. Maria II, á regência que governa em seu nome e á carta constitu- cional dada por sua magestade imperial D. Pedro, emquanlo eu permanecer ao serviço de sua magestade fidelissima, com tanto que esta obediência não seja nunca exigida para ser empregada contra os interesses da min/ia pátria.» Xo dia IO a esquadra suspendeu ferro; a fragata Rainha de Portugal içou a bandeira franceza, salvou-a com 21 tiros, e deu signal á fragata D. Maria II para comboiar os dois transportes, e seguir o seu destino. A corveta Juno ficou para comboiar o restante dos emigrados que deviam partir n ) transporte, ou galera Flumi- nense. N'esta occasião, ou em fins de janeiro, fez-se um tratado uJJi- cional ao empréstimo que subiu a i 19:000 libras, de que a com- missão poz á disposição de D. Pedro 10:000; e abriu um credito ao vice-almirante Sartorius de 3:ooo para despezas eventuaes. Devemos notar que D. Pedro preferiu o batalhão de marinliu, composto de inglezcs e francezes, para guarnecer a fragata cm que embarcou, ao corpo de tropas portuguezas ! D. Pedro a bcrdo da fragata Rainha de Portugal assumiu a re- gência e publicou o seu manifesto politico, com data de 2 Jc ícvc- reiro. Faz uma historia, a seu modo, desde o dia em que >ucccJca á coroa de Portugal até ao dia em que tornou completa e dL'iinin\ a a sua abdicação na pessoa da íilha, e de novo reassumiu a au^iuriJdJc politica em os negócios de Portugal. Diz que abdic^jii na lilha, para não unir em si as duas coroas de Portugal e Bra/il. lallando da outorga da carta, diz que esta é a conlirmação e um >egu;n,cnt(> das cortes de Lamego, e que n"ella se acha rc\aliJaJa a ..;iii-;a forma do governo portuguez e constituição do calado. Diz qiic rcu- *" 474 niu n^um só os dois braços do clero e da nobreza e n'uma só ca- mará, pelos inconvenientes que resultavam da sua separação, per- manecendo assim as três antigas ordens do reino. Justifica a no- meação do irmão para regente do reino, porque desejou com ella segurar os direitos da filha ; mas bem depressa os factos desmen- tiram as suas esperanças. Falia, em seguida, da usurpação de D. Miguel, que condemna. Nem uma só palavra acerca da missão do marquez de Santo Amaro ! Faz um quadro de Portugal durante o regimen do irmão, e af- firma que Deus dispensador dos thronos concede visivel protecção á nobre e justa causa que defende. Fundamenta a sua regência na representação que a regência da Terceira lhe dirigiu em nome dos povos das ilhas ; e diz que a conservará, até que as cortes do reino digam se elle a deve continuar, ou não. Promette não exercer vin- ganças nos protectores e defensores da usurpação, e que publicará um decreto de amnistia. Declara que se occupará das relações po- liticas e commerciaes entre Portugal e os mais estados, e do credito publico. E assegura que o exercito do usurpador será por elle bem acolhido, se se passar para as suas bandeiras. Não vae levar a Portugal os horrores da guerra civil, mas a paz e a reconciliação. Não diz D. Pedro se leva intenção de mandar cumprir a carta constitucional, e não quiz referir-se ás leis preparatórias da carta, como lhe aconselhou José Silv(ístre Pinheiro Ferreira. LIVRO 1\' A REGÊNCIA DE D. PEDRO CAPITULO 1 A DICTADURA DA TERCEIRA Clicgada da expedição a S. Miiinel. — Recopçái) de I). Pedro. — l-!>tc c iiive. IVdro aos portiigiiezcs — Iiidi%'idii(is que cercaiam [). l'edio na leiveiia. — Mou-,iiilii) da Silveira rompe com a-, tradicvj-óes de Talmella e da politica cartista. — 1'almjlla asM)^ia >e á di^t.idiiia. — I'rim>.'iros pas do ministério da ref^ciicia de 1). Pedro. — A dictadiira da lerccira tem mesqiiinh'» alcaiue revolucionário. — Pretende lianiioni^ar a sociedade porin^ueza v.oin o rei;imen nionarchico da carta. — I)ecretos da dKta. dura acerca da propriedade territorial. - A diciadura nái reforma a constituição da tamilia e o direito civil propriamente dito. — Hetbrmas de iustrucção pul-ilica — l)ecretOb regulando os direitos de entrada e sahida do> géneros nacionaes e reorganisando a fazenda publica. — Reforma admitiistrativa. — Refcirma judiciaria. — .\ dictadura não é inspirada n'um vasto programma de reformas nacionaes. N\) dia 2 2 de fevereiro chegou a e.Kpedição á ilha de S. Miguel. D. Pedro foi recebido pelos habitantes com o maior enthusiasmo. A ilha e.steve em festas continuas todo o tempo cm que o imperador n'ella permaneceu. Os povos deram- lhe todas as provas do seu re- gosijo, por o verem collocado á frente da causa da íilha. Foram as primeiras auras de popularidade que principiaram a manifestar-se em volta d(^ nome de 1^. Pedro. Ahi ignorava-se completamente o que se tinha passadf) no Brazil, em Londres e Paris. A expedição, passados dias, deixou aquclla ilha e aproou á Terceira. Aqui estavam-lhe preparados grandes e solem nes feste- jos. .\ cidade de Angra via-se toda embandeirada e cheia de arcos de triumpho. C<»nla o sr. Soriano que na IVTceira cnnstDU que O. Pcdr<) ne- nhum viva dera em S. Miguel á caria conflituei' inal. <> que [^odu- 476 ziu mau eífeito. Foi elle o encarregado de fazer lembrar ao impe- rador aquelles vivas, mal elle puzesse os pés em terra, o que fez da melhor vontade. Pelas 9 horas da manhã do dia 3 de março, appareceu no porto de Angra a fragata Rainha de Portugal, que içou o pavilhão real e salvou-o com 2 i tiros. Eram 1 1 horas, quando chegaram a bordo os membros da regência, que foram logo recebidos em audiência por D. Pedro. Palmella, na qualidade de presidente, proferiu um discurso apropriado ás circumstancias, e dando as boas vindas ao futuro regente. D. Pedro entregou áquelle o decreto que o investia n'essa au- ctoridade, o qual Palmella leu em voz alta, e em seguida poz o ciímpj'a-se. N'esse decreto funda-se D. Pedro na representação que a re- gência lhe enviou em nome dos povos dos Açores, para tomar parte em os negócios da filha, como pae, tutor, e natural defensor, e como chefe da casa de Bragança. E considerando elle que todos estes títulos sagrados e a suprema lei de sahmção publica lhe impu- nham o dever de annuir áquella representação, houve por bem reas- sumir a mesma auctoridade que por força das circumstancias havia depositado na mesma regência, dando esta por dissolvida. Declara que assume aquella auctoridade, até que, restabelecido em Portu- gal o governo da filha, as cortes, a cuja convocação mandará pro- ceder immediatamente, deliberem se elle deve, ou não, continuar na regência. O próprio D. Pedro passou a ler uma proclamação aos portu- guezes. Narra-lhes tudo o que fez em Londres e Paris a favor da íilha, e para organisar a expedição que sahiu de Belle-Isle; mas occulta o que se passou no tal conselho diplomático em casa do príncipe de Tavllerand e as suas tentativas para reassumir a coroa de Portugal. Diz que accudiu ao chamamento dos povos das ilhas dos Açores, e vem, em nome da filha, agradecer a elles, á regência e ás tropas constitucionaes, tanta constância na defesa da causa d'ella. Faz-lhes nova declaração de que assume a regência, até que as cortes futuras deliberem sobre o facto. E, firme nos seus princi- 477 pios, gloria-se de tomar parte activa com os portuguezes em a no- bre empreza de derribar a tyrannia. de marchar á testa de tantas tropas valorosas, com o íim único de livrar a humanidide opprimi- da, de estabelecer o império da lei e de Jirniar a aiictoridade c o throno da filha, que, educada nos preceitos constiiucionaes, quando reinar, não deixará de reconhecer que a carta tanto rege a ella, co- mo a seus súbditos fieis. Ima proclamação de verdadeiro e puro realista constitucional, ou defensor da legitimidade. Imanto no manifesto, como n'essa proclamação, I). Pedro não falia na liberdade dos povos e nos seus direitos políticos; c não al- lude sequer ás reformas aconselhadas por Silvestre Pinheiro Fer- reira, o que prova que não estava ainda decidido a entrar n'esse caminho. Todos os principies manifestados n'esses documentos tendem a firmar o throno c a auctoridadc da rainha. \í este o único norte de D. Pedro, as suas aspirações, e a orientação de toda a sua politica. D. Pedro fez a vontade a Palmella e a todos os seus adeptos; tornou -se o chefe ostensivo do seu partido contra os liberaes e de- mocratas. A expedição, composta de tantos íldalgos, cortesãos e bajulado- res, não foi uma expedição popular, como a que j^ensaram os Pas- sos e Saldanha: mas uma expedição para defesa exclu-ixa de um throno e dos seus inaiifcri]'cis ; nada mais. Foi uma expedição a favor da causa da legitimidade, tendo por chefe um imperador, ou um príncipe de raça. Para isso alistaram-se tr«:)pas estrangeiras commandadas por olficiaes estrangeiros, á imitação djs i,'iiardas siiissas. A causa de D. Maria II não convinha fosse sustentada por tropas nacionaes, como não conveio também em 182Í'). O. Pedro, depois de ter acabado de ler a sua proclamação, des- ceu para um escaler, que o transportou para terra. .Aqui \n\ recebi- do no meio de festas enthusiasticas e ^los vivas á carta e á liberdade, soltados pelos emigrados \-inJ(^s dellespanha. de França c da (]rã- Bretanha, os quaes foram mmpidos pelo senhor Soriano. como já dissemos. 478 D. Pedro passou logo a nomear o seu ministério. Foi assim composto: Palmella, reino e estrangeiros; Mousinho da Silveira, fa- zenda e justiça; e Agostinho José Freire, marinha e guerra. Este foi depois substituido por Mousimho d'Albuquerque. Fallando dos muitos fidalgos e officiaes generaes que conduzi- ra a fragata D. Maria 11^ accrescenta o senhor Soriano o seguinte : «Por estes indivíduos se soube então da exclusão de Saldanha, Stubbs, José Maria de Moura, e José Correia de xVIello. Desde este momento o espirito de partido começou também a dividir os defenso- res da Terceira^ exacerbados particularmente pelo contraste que com aquella exclusão fa{ia o valimento que junto de D. Pedro tinham achado alguns indivíduos tão desconceituados e mal havidos no pu- blico. » Não somos nós que o dizemos, mas o próprio senhor Soriano, que ás vezes não tem papas na lingua, e em muitas occasiões lhe re- pugna associar-se ás bajulações dos escriptores sem probidade e in- dependência. O espirito de partido não começou pelos liberaes, mas por D. Pedro, que facciosamente se pronunciou pelos defensores da le- gitimidade, tornando-se chete ostensivo d'esse partido inimigo da liberdade, e cercando-se de Palmella, Cândido José Xavier e de ou- tros indivíduos desconceituados na opinião publica. A exclusão acintosa de Saldanha, de Stubbs e de outros chefes do partido liberal, devia fatalmente produzir na Terceira aquelles funeste s resultados. Continuava-se a conspirar contra a liberdade e a democracia com infernal constância. E não queriam que este partido se revol- tasse ! E não temos só o testemunho do senhor Soriano, que foi con- temporâneo dos factos; temos um outro acerca das pessoas que cercaram D. Pedro na Terceira ; exprime-se assim : '(Sem entrar na analyse das pessoas que acompanharam sua magestade imperial, e que pela primeira vez ahi vimos, não deixa- rei de dizer que alguns melhor Jóra que íii'cssem ficado no continen- te. Aulicos., sem popularidade., intrigantes, sem caracter e manhosos 479 que SC diiem liomcus d'estad()^ apesar do pouco conceito que mereciam do próprio imperador^ sem pejo, nem vergonha, lá nos appareceram. Desde então a ordem de coisas mudou completamente; a fraternida- de, que ahi nos susteve ligadoíi, começou a ser aheraáa pela desme- dida ambição e presumpção dos aulicos, que^ não tendo feito sacrifí- cios al^nins pela liberdade^ começaram a desenvolver o seu bem conhecido patriotismo de jesuitas.» (i). Foi um partido de uulicos quem sustentou a dictadura c toda a regência de D. Pedro. Oeve-se á intelligencia, illustração e bom senso de Mousinho da Silveira, o ter D. Pedro rompido com Palmella e sua politica mesquinha Como vimos, tudo mostra que D. Pedro, ate esse momento, não estava resolvido a seguir os conselhos de Silvestre Pinheiro Ferreira pelo que diz respeito ás reformas politicas por elle aconse- lhadas. No Parecer citado pede-se a D. Pedro que decrete as leis preparatórias e orgânicas da carta, e que assim o declare em seu manifesto. Ora n'este não apparece uma palavra só a este respeito. Prova de que D. Pedro rejeitou esse alvitre. Mousinho da Silveira tornou-se partidário acérrimo d'essa idéa, porque era o meio mais efficaz de attrahir os povos para a causa de D. Maria II e de alFastal-os de V). Miguel. Tornava-se mesmo urgente mostrar-lhes as vantagens do regimen da carta sobre o re- gimen do absolutismo puro, já então completamente desacreditado. A abolição das antigas leis odiosas, restauradas pela conira-revolu- ção de 23, dava grande prestigio á causa de O. Maria II. \'enccria o partido que desse aos povos mais garantias e \'antagens. e os libertasse dos vexames que sollriain ha tantos annos. As leis Ja dictadura de Mousinho da Silveira foi o primeiro golpe mortal que recebeu o iioverno de V). Miguel. .Alem d'isso. todos os C(,Mistitucionaes illustrados estavam j^i con- vencidos de que a carta constitucional cahiu. porque o po\«> não chegou a conhecer as suas vantagens. .A opposição que Palniella e i^i) Hcvi-ta Hiítorica, pa^. 17:. 480 a Grã-Bretanha fizeram a que as camarás de 26 concluíssem as leis regulamentares da carta por ellas propostas foi uma das causas da queda do realismo constitucional. Mousinho da Silveira quiz romper com os surtos dos conserva- dores e emendar todos os erros passados, afim de se entrar em no- vo caminho. As liberdades reaes concedidas pela carta constitucional não eram, com effeito, para assustar ninguém, ou os defensores do thro- no. Todo esse código fundamental é filho, como vimos, da legitimi- dade, ou da escola doutrinaria e conservadora. Elle está redigido de modo a garantir todos os direitos absolutos do throno, divino e feudal, contra as pretenções do partido liberal e democrático. Os direitos políticos concedidos ao povo e á nação são nullos, ou insignificantes. Tudo está disposto a sophismar a representação nacional e a annullar completamente o exercício da soberania coUe- ctiva. O único soberano de facto e de direito é o rei. D. Pedro sabia, além d'isso, o que fez, e até onde a carta leva- va a liberdade. O realismo constitucional adoptado por Luiz XVIII e seguido por Napoleão I, com mais firmeza e desassombro, consiste em dar aos povos algumas liberdades civis importantes, e cercear-lhes to- das as liberdades politicas. Mousinho da Silveira quiz imitar o tyranno de Santa Helena. Não sabemos a batalha que elle emprehendeu, não tanto para convencer D. Pedro; mas para vencer as repugnancias do reaccio- nário Palmella, o inspirador e director occulto da politica de 1826 a 1828. Parece, no emtanto, que Mousinho da Silveira encontrou deci- dido apoio em Mousinho d'Albuquerque, e que Palmella se viu só e abandonado no ministério; e por isso não lhe foi fácil resistir ao programma politico d'aquelle estadista. Ou fosse porque se viu só, ou porque D. Pedro se impuzesse, o certo é que o vemos associado aos decretos da dictadura da Ter- ceira. O primeiro passo do novo ministério foi a nomeação de D. Pe- 481 dro para commandante em chefe das tropas, do conde de Villa Flor para o commando das tropas de terra, e do almirante Sarto- rius para commandante da esquadra. Passou depois a estabelecer o formulário que se devia usar nas leis e nos actos do governo da regência. Nas leis, decretos e cartas patentes^ o formulário era o seguinte: «D. Pedro duque de Bragança^ regente dos reinos de Portugal e Algarve e seus domínios^ etc. A formula dos alvarás e cartas régias, era a seguinte: lui du- que regente em nome da rainha faço saber. Os requerimentos e mais papeis dirigidos ao regente deviam empregar o tratamento de magestade imperial. Seguem-se os decretos da dictadura. iMuito se tem exaggerado a importância politica d'estcs decretos; não a negamos em parte; mas desconhece-se geralmente o seu verdadeiro alcance. Como dissemos, Mousinho da Silveira quiz imitar Napoleão I, mas sem introduzir as grandes e profundas reformas civis que este tão arrojadamente introduziu em França. O que aquclle estadista fez foi harmonisar a sociedade portu- gueza com a carta constitucional, esta pequena transigência com o espirito do século. Os seus decretos estão mui longe de terem o al- cance revolucionário das reformas civis de Napoleão I e dos decre- tos das cortes de 20. Elie não sahiu dos estreitos limites da carta constitucional. Mousinho da Silveira cingiu-se a abolir as leis mais obsoletas e vexatórias que a Revolução de 20 já tinha deitado por terra, e que a contra-revolução ineptamente restaurou. Kra preciso mostrar aos povos que o regimen da carta algumas vantagens tinha sobre o regimen de D. .Miguel. d'aqui a abolição de certas leis mais odiosas e oppressoras. Mas em nada se otlcndeu o principio monarchico, nem os interesses da grande e poderosa aristocracia e do clero, co- mo aconteceu em 20. .A carta mantinha as antii;a.s ires ordens do estado, o principio da hereditariedade e a^ reualias do clero e no- breza, indispensáveis á monarchia. Reformas mais importantes emf^rehendeu o marqiicz de Pom- 482 bal, sem que a moiiarchia deixasse de ser absoluta. Esta mesma monarchia algumas reformas tentou no sentido em que Mousinho fez as suas. A carta constitucional diz terminantemente que garante a no- breza hereditária e suas regalias, e assim o declarou D. Pedro mui- tas vezes. Sem ella não se podia constituir a camará alta, nem se mantém o principio monarchico, base das cartas outorgadas. Nem Mousinho da Silveira, nem D. Pedro, podiam descarre- gar sobre a alta nobreza e o clero os golpes profundos que lhes deu a revolução democrática de 20. A importância da dictadura da Terceira está em ter legislado no civil, na administração da fazenda e na organisação administra- tiva do paiz, sob um pensamento único. Abrange a abolição de leis mais vexatórias, a organisação da fazenda publica, o novo có- digo de processo civil e o novo código administrativo e algumas reformas da instrucção publica. E todas estas leis não tiveram se- não em vista facilitar a futura execução da carta constitucional. Teem um mesquinho alcance revolucionário. O primeiro decreto é que o manda levantar o sequestro man- dado fazer nos bens dos constitucionaes. O segundo aboliu os dizi- mos nos Açores; mas não na sua totalidade, porquanto ficou sub- sistindo nos seguintes géneros importantes: cereaes, laranja, fructos de espinho, vinho, feijão e passa; isto é, os artigos mais importan- tes da producção dos Açores. O decreto n.^ 7 aboliu os pequenos morgados e capellas, isto é os que não tivessem um rendimento liquido de 200:000 réis, e os que excedessem esta taxa, quando o actual administrador falle- cesse sem successores. Isto já tinha feito o marquez de Pombal. Essa lei feriu somente os pequenos e insignificantes morgados. Ra- ríssimos eram os casos em que um morgado deixava de ter succes- sores. Foi também prohibida a accumulação de dois ou mais morga- dos, o que tombem já tinha feito marquez de Pombal. A lei sobre morgados de Mousinho da Silveira é uma lei aca- nhada e sem grande alcance revolucionário; porque não prejudicou 483 em nada a alta e poderosa aristocracia, cuja existência era indispen- sável á manutenção do regimen da carta. Se esta dictadura fosse dictada pela revolução em que pensa- ram os Passos e outros liberaes, a abolição dos morgados teria sido completa e absoluta. E não se ficaria só por ahi ; teria cabido por terra a hereditariedade e todos os mais privilégios da nobreza feu- dal e do clero; completar-se-hia a Revolução de 1820. Mousinho da Silveira concluiu no Porto a sua obra de libertar a pr(^priedade territorial com o decreto de 1 3 d'agosto, que extin- guiu os foraes e os direitos senhoriaes n'elles impostos aos povos. Foram egualmente extinctos os prasos da coroa, os relengos, os re- guengos, os senhorios das terras c as alcaidarias mores. Diz o rela- tório que os povos não auxiliaram os inimigos da carta de Luiz XVIII, porque esta aboliu tudo quanto era feudal e estava assente em leis de interesse material, e que outro tanto se precisava em Portugal, para se manter a carta constitucional contra seus inimigos. Diz no relatório o próprio Mousinho da Silveira que no decreto ficam aos povos tudo quanto pagavam de tributos parciaes impos- tos nos foraes; e aos donatários ficam os bens como próprios, quan- do não provenham de contribuições, das quaes nenhum individuo pode ser proprietário. A estes impostos senhoriaes cingiu-se a refor- ma de Mousinho da Silveira. Este não cortou pela raiz os direitos senhoriaes ; foi uma meia medida. P^oi abolida a pena de confisco e todas as sisas então pagas, re- duzindo-se ás vendas e trocas somente dos bens de raiz. e pagan- do-se apenas 5 porcento- A isto se cingiram as reformas de Mousinho da Silveira com respeito á propriedade territorial, a que elle sobre tudo prestou a sua attenção. Mas ainda restava muito que fazer, não somente para libertar a terra, como também para acabar de uma vez com os odio- sos privilégios da nobreza e do clero. A Revolução de 1820 lez muito mais a este respeito, do que Mou- sinho da Silveira, tendo na sua frente D. Pedro cercado de liJalgos, validos e reaccionários, os quaes conseguiram expulsal-o do poder por causa d'esses mesmos decretos. 484 Mousinho da Silveira nada reformou na constituição da familia e no direito civil propriamente dito, como o fizeram Pombal e Napo- leão I ; não se atreveu a levar até ahi as luzes e progressos do sé- culo, talvez com receio justificado de que o regimen da carta não permittia tanto. As suas reformas reduzem-se principalmente ao direito de pro- priedade, mas dentro de limites acanhados da lei fundamental do estado. Mousinho da Silveira está muito longe de ser um revolucioná- rio, como é tido geralmente. E não podia sel-o; porque legislava, não em nome da Revolução, mas da legitimidade^ não em pró da liberdade e da democracia, ou da collectividade, mas em pró dos interesses individuaes dynasticos. Foi uma dictadura para firmar um throno somente e não para levantar um povo, ou uma nação. Uma das causas que mais desacreditavam o regimen miguelino eram os abusos e excessos das auctoridades. Mousinho da Silveira quiz mostrar ao paiz que o regimen da carta ia pôr termo a esses abusos e vexames. Por isso publicou um decreto, declarando que os juizes abusam do seu poder e auctoridade, quando prendem sem culpa formada, quando o fazem nos casos em que a lei o não per- mitte, quando não dão ao preso uma nota por escripto dos motivos da prisão, declarando o nome das testemunhas e dos accusados den- tro de 24 horas, e quando reteem os presos absolvidos por sentença passada em julgado por mais de 24 horas desde a publicação em audiência da sentença. O terceiro decreto da dictadura permitte o livre ensino particu- lar, como o fez a Revolução de 20, e auctorisa as camarás munici- paes e juntas de parochia para nomearem os professores que lhes convierem e darem-lhes ordenado. Este decreto nas circumstancias em que estava todo o paiz era illusorio, ou também poeira lançada aos olhos; uma medida pal- mellista. Todos sabem a guerra que se fez no paiz, e o próprio Palmella, aos decretos sobre instrucção publica publicados cm 20. 485 Desde a contra-revolução até aos fins do reinado de D. Miguel, os padres, os frades, os morgados e capitães mores, e todas as au- ctoridades, não fizeram out^a cousa, senão lançar o descrédito sobre a instrucção do povo e do paiz, considerada como o maior dos perigos para a religião, para o throno e para a ordem social. Foi uma propaganda systematica, persistente e vigorosa. Os povos já sen- tiam horror ás escolas, taes cousas ouviram dizer d'ellas. N'estas condições, que valor tinha aquelle decreto, que entre- gava o ensino á simples iniciativa particular!* Depois do violento reinado miguclino só a poderosa iniciativa do estado era capaz de dar impulso á instrucção publica. E bem mesquinhos foram, e teem sido, os cartistas a este res- peito. A instrucção publica foi completamente dcspresada cm 34 e durante todo o largo governo cartista de Costa Cabral. Se aquelle decreto deu bons resultados em 20, foi porque esta época pertenceu ao povo e ao paiz, e foi dominada pelo espirito publico, que sempre a vcvificou. Além d'isso. as próprias leis con- correram para despertar no povo o desejo de se instruir, e as asso- ciações particulares vieram em auxilio do estado, como mostramos na historia d'aquella revolução. Tomou-se a serio a questão da ins- trucção do povo. A excepção dos curtos períodos revolucionários, todas as situa- ções da carta não pertencem ao povo e ao paiz, mas á con')a exclu- sivamente. Os decretos de Palmella sobre a instrucção são lettra mearia. E nem podia tomar a peito a instrucção d-j povo quem J^to^ou a este respeito as leis de 20, por ellc consideradas como dando ori^u^em a irreligião e a ideas perigosas para a boa ordem social. Porque não tez uma reforma cc^mpleta no ensino primário, secundário e superior, onde havia tanto que fazer? Porque não reformou a uni- versidade!' porque não estabeleceu Ivceus nas principaes cidades, e j^orque não creou as escolas primarias precisas em todo o reino!' Não fez nada d'isso; porque não te\e corai;em. nem animo, para tal, e porque não se tratava, com essas reforma>. de lirmar a aucto- ridade do throno. pensamento único da dieta Jura da Terceira. 486 Essas reformas eram bens com que se dotava o povo exclusi- vamente; não pertenciam portanto á situação creada na Terceira, mas a uma situação democrática, como a que planearam os emi- grados em Paris. Verdade é que foram creadas 5 aulas de primeiras lettras em toda a ilha Terceira. Na cidade de Angra foi creada uma aula de latinidade e de historia portugueza, outra de rethorica, philosophia e historia universal, e outra de mathematica e de princípios de phy- sica geral; mas tudo isto ficou no papel. São mui importantes os decretos n.° 14 e 22. O primeiro regu- lou os direitos de entrada e sahida dos géneros, de modo a facilitar o commercio e o trabalho nacional, e o segundo organisa amplamente toda a administracção da fazenda publica. Este decreto faz honra ao seu auctor. Foi extincto o Erário Ré- gio; estabeleceu-se o principio de que só os talentos e virtudes de- cidiriam a escolha dos empregados da fazenda; e os oííiciaes d'esta deixaram de ser proprietários dos logares que possuíam. E um extenso e vasto decreto coUocando a administração da fazenda publica em harmonia com os modernos princípios políticos, económicos e financeiros. Aqui, sim, é que a ditadura da Terceira reformou largamente e sem receio. Não se tratava de ferir os interesses da primeira nobreza e do clero, nem de cercear os direitos absolutos do throno. Os reforma- dores acharam-se á vontade e podendo levar as suas reformas o mais longe possível. Se o mesmo espirito dominasse as reformas civis e politicas, muito teriam que fazer ainda os legisladores da Terceira. ♦ Ainda assim o primeiro d'aquelles decretos está muito áquem dos que sahiram da Revolução de 20, para animarem a navegação do reino e das colónias. Elle só não bastava; eram precisas ainda muitas outras medidas a este respeito. Mousinho da Silveira passou a dotar o paiz com um código administrativo e um código de processo civil c criminal, ou com uma reforma judicial, tudo de accordo com o espirito da carta 487 constitucional. São dois importantes documentos do espirito reac- cionários da dictadura da Terceira. Tanto o código administrativo, ccmo a reforma judiciaria de 32, definem muito bem a Índole da carta, ou o direito administrativo e as leis judiciaes sahidas d'esse código doutrinário e auctoriíario. N'essas duas leis teem nossos leitores uma prova do que disse- mos e demonstrámos no primeiro capitulo d'esta obra. 1-^m 1826 não se quiz pôr em pratica as leis regulamentares da carta no que respeita ao administrativo e judicial; o que se devia fazer então, segundo a escola dos conservadores, fel-o a dictadura da Terceira. O código administrativo de Mousinho da Silveira tende a cen- tralisar na coroa toda a vida administrativa, e a sulfocar as auto- nomias locaes sob o peso esmagador do poder central ; perfeita cópia do regimen administrativo do tyranno de Santa Helena. Com todo o desassombro iMousinho da Silveira subordina as communas, os municipios e as províncias a uma ordem hierarchica monarchica, que faz recordar o systema do antigo império persa e dos impérios divinos do Oriente. A auctoridade do monarcha as- siste a tudo c cm todos os actos importantes da vida administra- tiva, concentrada inteiramente nas mãos dos ministros da con^a, ou no poder ministerial. Pela primeira vez rompe-se com máximo arrojo com as tradi- ções nacionaes. para se introduzir no paiz o direito estrangeiro, ou as celebres prefeituras do império napoleónico! O reino c dividido em províncias, ou prefeituras, em comarcas, ou concelhos. Diz esse código, doutrinário e aucloritario, que a província c adiuiuistrada por uni chefe único, o qual tem o nome de prefeito. Este tem um sub-prefeíto. O artigo 3o." define prefeilo o chefe uníjo de toda a administra- ção da província, o deleitado da auctm-idadc do rci\ e para tudo quanto é do bem estar e commodidade dos po\-os inrjstido de todas as attrihuieóes ! V. assim é a única via legal e ordinária de corres- pondência com o governo e as C(')rtes para todas as aucoridades da província, tanto civis como ecclesíasticas. tanto indíviduacs 488 como coUectivas, de qualquer ordem e hierarchia. Elle só se cor- responde directamente com o governo. Um rei pequeno. O mesmo código define concelho o que é administrado por um provedor. E define esta auctoridade o que dentro do concelho é o depositorio iinico e exclusipo da auctoridade administratipa. Escu- sado dizer-se que é de nomeação regia, e immediato em ordem hierarchica ao perfeito e sub-perfeito. Diz ainda o mesmo código. «Junto de cada um dos magistrados administrativos .^ e segundo a ordem da sua hierarchia.^ ha uma junta de cidadãos da confiança dos povos e por elle eleitas, para promo- ver seus interesses, vigiar no emprego dos cabedaes públicos que aos magistrados são confiados, deliberando, ou representando, se- gundo a matéria o pedir, sobre quanto for de utilidade dos povos que os elegem.» São estes corpos administrativos: i .°, junto ao provedor^ a camará municipal do concelho ; 2.°, junto ao sub prefeito., a junta de comarca; 3.°, junto ao prefeito^ a junta geral da província. De modo qua a única auctoridade administrativa é a do rei, delegada hierarchicamente no prefeito, sub-prefeito e provedor. Os corpos de eleição, incluindo as camarás municipaes, não passam de meros corpos consultivos juntos a essas auctoridades delegadas da soberania regia, ou do poder central! Ha também um tribunal administrativo denominado conselho de prefeitura^ de nomeação regia, sob proposta do conselho d'estado, o qual é encarregado de decidir as questões do contencioso admi- nistrativo. As eleições para as camarás municipaes são, está claro, em dois gráos. ou indirectas, de modo a cercear e concentrar o mais possível o voto popular, e a subordinal-o ás influencias das aucto- r"dadcs centraes, ou reaes. Segundo esse systema eleitoral, não são os povos que votam, mas os prefeitos, sub-perfeitos e provedores do concelho, representantes dos ministros da coroa. Diz o artigo 23.^ ('As camarás municipaes são para o provedor do concelho o mesmo que as juntas de províncias e comarca são para o prefeito e sub-prefeito.» Isto basta. E segundo o artigo 27." 489 as camarás municipacs tanto podem ser dissolvidas pelo rei, como pelo prefeito, que manda n'ellas como um perfeito satapra! As juntas de comarca são compostas de procuradores eleitos pelas camarás municipaes dos concelhos de que constam as comar- cas, na proporção de dois procuradores por cada concelho. Ao juntas geraes de provincia são compostas de procuradores eleitos pelas juntas de comarca na proporção de um procurador por cada concelho. O código estabelece, porem, uma útil instituição, o registo ci- vil; mas não consta que elle tivesse sido posto em pratica; e pouco tempo depois foi abolido pelos próprios cartistas. Havemos de ver mais adiante o que foram os prefeitos, sub- prefeitos e provedores com poderes discricionários sobre os povos. A reforma judiciaria afma pelo mesmo tom do código adminis- trativo. Ahi conccntra-se egualmente toda a administração da justiça na auctoridade do rei, deixando-sc ao povo apenas a pequena ma- gistratura, e ainda assim bem cerceada e amesquinhada. O poder judicial está sujeito á mesma ordem hierarchica do poder administrativo, occupando o rei o primeiro logar na escalla, como o único soberano de facto e de direito. A organisação do poder judicial lem-sc conservado sempre a mesma até nossos dias. Mousinho da Silveira creou as mesmas três instancias. O reino foi dividido em círculos judiciaes, estes em comarcas, as comarcas em julgados, e os julgados em freguezias. O poder judicial c dividido em duas magistraturas, a alta e biiixa; aquclla todd concentrada em volta da auctf^ridaJc real, como a única soberana de facto c de dircit(^. c c-ta conliada ao povo. A prinieir.i, segunJa e terceira instancias pertencem ;i alia ma- gistratura suborJiiiaJa. l">ta e.^tá ^ajeita á mesma orJcm hi.Tarchica do poder ad[ninistrati\'o. f) rei reí^rescnia a auctoriJaJe ^iiprc.rja Jo toro judicial: segue->e a elle o supremo tribunal de i;is'.ica. ap>''> a e--te as relações, e em ordem interi()r ns tribuiiacs de primeira in^Mncia. ou osjui/.es deJireiux den );ueacão rc-;ia. e Niijcii' >., tamlvm ;! cla^- 490 siíicação de comarca de primeira, segunda e terceira classe. Em todos estes tribunaes a administração de justiça faz-se em nome- do rei, como sendo a auctoridade única do poder judicial, exacta- mente como nos regimens absolutos. Todos os magistrados são de- legações d'essa auctoridade suprema e inspiradora da justiça. As auctoridades judiciarias vão subindo de importância, de honras e de titulos pomposos, á medida que se vão approximando da mages- tade do poder conforme a carta. Os conselheiros do supremo tribunal de justiça representam o grau supremo da magistratura civil. Estão immediatamente ao rei. Junto a cada um d'esses tribunaes ha um delegado do rei e do governo, no supremo tribunal de justiça o procurador geral da co- roa, nas relações o procurador régio, e nos tribunaes de primeira instancia os delegados do procurador régio. Como se vê, esta organisação dos tribunaes civis, própria do constitucionalismo das cartas outorgadas, é perfeita imitação da organisação dos tribunaes dos velhos im.perios do Oriente, do im- pério romano e do regimen absoluto puro. Vae ainda mais alem ; porque em Portugal, e nos primeiros tempos da monarchia sobre tudo, a magistratura civil não estava sujeita a essa hyerarchia íilha da iheocracia e dos antigos impérios. O povo tomava parte activa e importante na administração da justiça, e tinha auctori- dades suas e próprias, que não permitúam nunca a invasão do poder real em suas attribuições e jurisdicção. As monarchias constitucionaes levaram até ás ultimas conse- quências a invasão do poder real nos tribunaes do reino. Todas as auctoridades da primeira, segunda e terceira instancia, são de nomeação regia; ahi administra-se a justiça e dão-se as sentenças em nome do rei, como dissemos. A reforma judiciaria de Mousinho da Silveira introduziu o jury nos tribunaes de primeira instancia, o que foi importante conquis- ta: ainda fez mais, instituiu o jury de pronuncia, que tanto deu que fcizer aos cartistas puros, a ponto de não descançarem, em- quanto não deram cabo d'elle. 491 E devemos notar a série de investidas que a monarchia cons- titucional tem teito contra o jury desde a sua origem até aos nos- sos dias. A instituição do jury foi uma importante concessão ; mas perde de importância diante da mesquinha organisação dos tribunaes indivi- duaes. Mousinho da Silveira quiz imitar Napoleão I ; mas trepidou em introduzir em Portugal os tribunaes collectivos, que são uma das glorias, e das maiores conquistas da Revolução As formas e formulas do processo civil e criminal d'csta refor- ma judiciaria são duras, severas e intolerantes. Bem sabemos que substituíram o arbítrio com que no tempo de D. Miguel se admi- nistrava a justiça; mas poucas garantias oíícrcce ás partes litigan- tes e aos que estão sujeitos á acção da justiça. O processo civil e criminal d'cssa reforma está muito longe dos progressos da jurisprudência de então e das luzes do século. As partes litigantes c os presos íicam ainda bem sujeitos aos abusos das auctoridades judiciarias e administrativas, ou policiaes. Além d'isso são mui deíicientes as formas de processo. I-] o minimo que se podia conceder aos povos, afim de que as garantias individuaes e os direitos do cidadão não fossem alem dos limites traçados pela carta constitucional. Se exceptuarmos o jurv de pronuncia, a reforma judiciaria de Mousinho e toda similhante á reforma judiciaria cabralina, que a imitou: uma perfeita reforma á carta constitucional. A magistratura popular com[^õe-se de juizes ordinários, de jui- zes de paz e de juizes padaneos. Os primeiros julgam das caudas de \'alor inferior a r_>rooo réis em bens de raiz e de ■J4-:^oo() reis em bens moveis, e preparam os pr(K'cssos crimes e ci\'eis para os tribu- naes da primeira instancia. Podem ser suspensos c processados por ordem do governo, bem como os juizes de paz I Os juizes padaneos eram olílciaes de policia judicial e encarrega- dos de julgar dos crimes de datnno causado-- pnr pe^^oas. ou gados, dos moradores da parochia. Podiam ser suspens')S pulo presidente do tribunal de segunda instancia respectivo. O decreto n.'' 2'"> estabeleceu o juizo dos (^rphã<^s. que íoi entre- 492 gue aos juizes de paz com o conselho de família, afim de tratar dos inventários de menores, da tutella e da emancipação, O decreto n.*^ 27 creou e organisou o supremo tribunal de justiça. E em todas estas reformas Mousinho da Silveira imprimiu o espirito essencialmente monarchico, ou ante-democratico da carta divina e feudal. A dictadura de D. Pedro não é inspirada no pensamento nacio- nal das reformas pombalinas, da Revolução de 20 e da dictadura de Passos Manuel, que tiveram em vista reorganisar o trabalho nacio- nal, levar a revolução a todos os ramos da actividade social e reju- venescer as sciencias, as lettras e as artes pátrias, tudo para levan- tar o povo abatido. Aquella dictadura é mais limitada no campo da sua acção; porque apenas se cinge a firmar o throno de D. Maria II por meio de pequenas transigências com os povos, para conquistar as sympathias d'elles e affastal-os da causa de D. Miguel. Nada mais. As revoluções de 20 e de 36 tiveram por pensamento exclu- sivo levantar o povo e a nação, inspirando-se para isso no interes- se collectivo. Por esta rasão uma e outra tentaram dar vida nova ao commercio, ás industrias, á agricultura, ás sciencias, ás lettras e ás artes pátrias, abrangendo-as todas n'um vasto programma de re- formas. A dictadura de D. Pedro é acanhada e incompleta. Não visa a ampliar as liberdades e garantias dos cidadãos sem importância politica no regimen da carta, todo do throno em que se inspira. CAPITULO II QUEDA DO ABSOLUTISMO PURO O5 govci !103 de I). Miguel caracterisain os govoriios loi tos.— O reinado miguclino é uma imitarão dos reinado^ anteriores ao marquez de fombal— Para se manter o tbrono e o altar são satrificados todos o> interesse» geraes e nacionacs. — Empregamse para isso todos os meios violentos c de aiiniquilaváo. — Decadência mo- ral e intcliectiial do paiz.— Kste é ontrei^ue a mediocridades e validos do rei.— Campeia a desordem, a anar- chia e a demapogia do tlirono c do altar. — Immoralidades das aiictoridades e funccionarios do estado— Re- voltas e conspirações nicessantes. - Surge a crise económica e financeira como consequência natural do re- gimon absoluto.— O governo miguelino lança mão dos meios violentos para conjurar a crise — A peste e 1 tomo. — Conílictos com a Inglaterra e França.— Denuncia se a traqueza do governo torto. — .V esquadra fran- ccza aprisiona a esquadra portugueza e li-va-a para a França, depois de liumiUiar o governo tofe de D. .M;- gucl. — D. I'odio activa a expedição.— Ksia sae dos Açoi es.— Desembarque no Mlndello.— ICutrada de D. Pe- dto na cidade do Porto. — I-"n!iad:i das trora- ^■iii--ii;ii^ion les na cidade Lisboa.- Triuniplia a cau^a da rainlii e da carta. O reinado de D. Miguel é bem característico dos ciiamados go- vernos tortes. A medida que as coisas se complicavam e que as dit- ficuldades da situação augmentavam, mais se appellava para go- vernos fortes. Só estes eram capazes de salvar tudo. Os governos, com eíFeito, fortaleciam-se na rasão directa das complicações e na rasão inversa da prosperidade publica. Para manter a auctoridade real contra os que se oppunham, ou se revoltavam contra ella, metteram-se nos cárceres perlo de 40:000 pessoas, a quem foram sequestrados os bens; emigraram para o estrangeiro para cima de 10:000 patriotas, que egualmentc perde- ram suas fortunas; e outros abandonaram suas emprczas. indus- trias e prolissões, para homisiarem-se, atim de escaparem á^ p<,'rse- seiíuicões das auctoridades encarregadas de manter os governos fortes e da ordem. 494 A acção da justiça não recahia sobre os pobres e humildes, mas exactamente sobre as classes instruídas e ricas, que eram as que animavam o trabalho nacional. As victimas dos governos fortes e da ordem forami negociantes, industriaes, proprietários, magistrados, advogados, médicos, pro- fessores, etc. Centenas de mil pessoas pertencentes a essas classes do traba- lho ficaram reduzidas á miséria. Para se fortalecer a auctoridade real, os governos fortes não trepidaram em fechar casas de commercio importantes, em arrasar fabricas e estabelecimentos industriaes, em arruinar milhares de proprietários e lavradores, e em afugentar e desgraçar outras tantas pessoas dedicadas a differentes profissões rendosas e úteis. O governo de D. Miguel imitou os antigos governos de D. João III e D. João V, que, para manterem a unidade da fé catholica, ex- pulsaram do paiz os ricos e laboriosos judeus, e arrasaram as in- dustrias, o commercio e a agricultura com os autos de /í/, com os cárceres do santo officio e com as perseguições religiosas e politi- cas, que duraram entre nós por espaço de séculos! O absolutismo miguelino, sustentado pelo clero e pelas velhas classes, foi copia fiel do absolutismo inaugurado em Portugal por D. Manuel, para se manter a unidade na igreja, e salvar-se a reli- gião dos seus inimigos, Desejou-se firmar solidamente a auctoridade do throno e do altar. Este novo ensaio reproduziu todas as scenas e todos os eíTeitos anniquiladores do regimen anterior á Revolução de 20. Por- tugal recuou de um salto ás épochas desgraçadas de D. João III, de D. Sebastião, do cardeal D. Henrique, dos Filippes e de D. João V. Foram as consequências inevitáveis de se ter impedido a obra de regeneração nacional emprehendida pelos revolucionários e pa- triotas de 20. A contra-revolução de 23 marca uma época de luto para Portugal, como a introducção da inquisição e dos jesuítas, como o desastre de Alcacerquibir, a invasão franceza e outras cala- midades nacionaes. 495 O violento reinado miguelino foi a ultima consequência d'es.se passo funesto, a que se prende o realismo constitucional de 1826 a 1828, que verdadeiramente o preparou, como vimos. Portugal perdeu em 1820 excellente occasião de se regenerar e de se elevar á altura a que aspiraram os homens da Revolução. A Jllla/raiicaiia precipitou o paiz no caminho da sua ruina e perdição. Este voltou de novo ao reinado do throno e do altar, e re- começaram as antigas perseguições e os processos violentos de go- vernar. Tudo foi sacrificado á auctoridade do throno. As riquezas publicas e particulares foram novamente consideradas como coi- sas insignilicantes c de nenhum valor ante esses objectos sagra- dos do regimen absoluto. S(j no throno e no altar se via a salvação publica c da pátria. A perda do commercio, das industrias e da agricultura, das scicncias, das lettras e das artes, pouco importava^ isso era secundário. O essencial e principal era que se mantivessem de pe aquellas duas instituições, que só podiam tornar felizes os por- tuguezes. Havia muitos inimigos a combater!* que importa? Anni- quilem-se todos. Os meios legaes não bastam!' empregucm-se as \iolcncias e reine o terror. O castigo dos rebeldes emendará uns e conterá os outros no devido respeito e obediência Fechem-se as escolas do reino, e apaguc-se a luz Ja scinncia. Façam-se trevas sobre o povo, de modo que elle não veja a sua miséria e nem conheça o seu estado degradante e de aviltamento. O reinado de D. Miguel anniquilou completamente as scieiuias, as lettras e as artes, cahindo o paiz na mais profunda ignorância, es- tupidez e barbarismo, como nos séculos anteriores ao marquez de Pombal. () p()vo foi expulso das escolas creadas pela Pevokiçáo do _>o e abolidas em 'jS, por serem nocivas c [Perigosas, como diz o decreto que prohibiu o livre ensiuí^. O reinado miguelino, ou do ihrono o do altar, bestilicou o {^o\-o completamente. Foi redu/ido ma:> uma á condição de besta de carga, ou de escra\'o. As classes ricas e laboriosas debalde projura\"ani in-^truir->e yina os seus misteres, porque se fecharam todas a> escolas d''' reino. 496 e a universidade de Coimbra foi collocada no pé em que estava ante- riormente ao marquez de Pombal. Ahi foi novamente adoptado o ensino jesuítico, que atrophia as intelligencias, e cria só fanáticos e supersticiosos. A decadência intellectuai do paiz foi rápida e immediata. Ao mesmo tempo, o reinado do throno e do altar tentou, como nos tempos da Inquisição e dos jesuitas. perverter completamente os sentimentos moraes do povo portuguez. O púlpito, o confessio- nário e a imprensa, únicos meios de instrucção do povo, espalha- ram por elle doutrinas subversivas, anarchicas e sanguinárias. Não fizeram outra cousa, senão pregar a morte, o extermínio, e a perse- guição dos que não pensavam conformemente á egreja e á vontade do rei; e não fizeram outra cousa senão excitar odíos, vinganças e as paixões mais ruins. O estado vinha em auxilio d'essa propaganda, dando ao povo os espectáculos da forca, dos cárceres, das campanhas do cacete e dos massacres dos presos, quando eram conduzidos para as cadeias. O povo portuguez endureceu-se e bestificou-se diante d"esses espectáculos cruéis e de sangue. A decadência moral do paiz acompanhava a sua decadência intellectuai. Portugal desceu ao ní- vel dos povos bárbaros da Africa e Azia: tornou-se uma nação des- presivel aos olhos da Europa e do mundo cívilísado Todos os dias era este surprehendído pelas notícias horripílanies das execuções em Lisboa, Porto, Coimbra, \'izeu e n'outras terras do reino, em que o carrasco não descançava na sua missão de mo:"te e de anniquilação. Todos os dias o surprchendiam as scenas brutaes das caças aos malhados^ mortos e espancados pelas infinitas sociedades de cace- teiros e malfeitores, as sentenças iníquas e de requintada perversi- dade das Alçadas, os artigos da Besta esfolada^ os sermões pregados no púlpito, e as obras sabidas dos prelos n esta cpocha de odiosa expurgação. Portugal era assim apontado como um paiz de selvagens c uni povo feroz. Os interesses públicos foram completamente desprcsados c es- 497 quecidos, exactamente como nos tempos anteriores á Revolução de 20. Esses interesses estavam confundidos e identificados com a pes- soa do rei. Era o bem estar d'este que se procurava acima de tudo. Todos deviam trabalhar para o bem e felicidade do rei nosso senhor; todos os sacrifícios eram poucos c todos os meios legitimos. Arruinava-se o commercio, as industrias e agricultura? que im- portava isso? O essencial era salvar-se a causa do rei e da religião, como seu esteio principal. Os ministros d'estado, as auctoridades civis, militares e eccle- siasticas, e todos os funccionarios públicos, não pensaram, durante os sete annos do reinado miguelino, senão em defender a causa do rei contra os inimigos d'elle. O governo de D. Miguel, como o governo absoluto, caracteri- sa-se pelo absoluto despreso pelo bem publico. O conde de Basto nunca se preoccupou com medidas geraes tendentes a beneficiar o commercio, as industrias, a agricultura, as sciencias, as lettras e as artes. Em todo este longo pcriodo não apparece uma medida se- quer n'esse sentido. Toda a attenção do governo forte do conde de I^asto se concentrou exclusivamente na manutenção do rei e na defesa da sua causa. As mais auctoridades do reino seguiram-lhe o exemplo. Para se subir aos altos cargos do estado, não era precisa a con- fiança publica, o mérito, a probidade e a intelligencia, mas o favor real. E para se obter este. bastava apenas a bajulação e o servi- lismo. K por essa f(')rma vemos nó^ subir ao cargo de ministro does- tado, aos cargos diplomáticos, aos logares da magistratura, aos commandos do exercito, ao alto funccionalismo e ate aos paçns epis- copaes. tantas nullidades e os homens mais perdidos na opinião publica, mas sabujos do rei. Gente mediocre, ambiciosa e i^L'rvcr>a ao ultimo ponto, foi quem se cercou do throno de D. Miguel. (^au>a espanto ver as pessoas a quem cste ivranno confiou o go\-crr:(i Ji') paiz, a administração publica e da justiça c os importaiue^ cir-^s diplomáticos. As notas c otficios enviados ao gr~)vcrno pclo^ nf.ifistro de D. 498 Miguel no estrangeiro revelam a mais crassa ignorância, falta de tino e de competência d'esses validos. Junto áquelle monarcha não figura um homem só com talento, virtudes, patriotismo e zelo pelo bem publico. Foram as mediocridades ambiciosas e pervertidas moralmente as que obtiveram o favor real, para subirem aos altos cargos. Os condes de Basto, os Telles Jordão, os Veríssimos e outros homens perversos é que constituíram o governo forte, ou do posso^ quero e mando. E até subiram aos paços episcopaes os Boaventuras, que enfu- recidos e coléricos pregaram na cadeira de Christo a montaria e o extermínio de todos os liberaes! Com tal gente como podia o paiz ser bem governado e pros- perar? Os ministros do tyranno, entretidos unicamente com o conser- .val-o no poder, a elle que os protegia e engrandecia, desviaram as attenções de tudo quanto diz respeito á prosperidade publica. O conde de Basto concentrara todas as suas vistas na lucta contra os malhados^ ou liberaes. E não pensou n'outra coisa. N'isto os ministros do puro e característico absolutismo não dif- ferem dos ministros do absolutismo constitucional, na mesma lucta contra os puros liberaes. ou democratas. As situações fortes do constitucionalismo teem sido n'este ponto cópia fiel das situações fortes do reinado miguelino. Os Cabraes também desviaram as attenções do bem publico, para as concentrarem exclusivamente no throno e na politica. Afim de manter o seu rei, o conde de Basto empregou todos os meios, a violência, o terror, o arbítrio, e os processos demagógicos e jacobinicos. Para elle a lei fora lettra morta; a lei era a vontade do rei e dos seus ministros. O mesmo fizeram as auctoridades judiciaes, ou os magistrados da justiça, quen'esta cpocha se aviltaram ao ultimo ponto. Para elles não havia lei, nem justiça, quando se tratava de sentenciar um réo politico, ou um liberal. Saltava se por cima de todas as mais rudi- mentares formas de processo civil e criminal; punha-se de parte a 499 lei, que era lettra morta ; protegiam-se os denunciantes e testemu- nhas falsas; e condemnava-se somente para agradar ao rei nosso se- nhor^ que tão pródigo era em graças e mercês para os que o ser- viam bem. Os juizes condemnavam e absolviam a seu livre arbitrio, sem que lhes pedissem contas dos seus abusos, antes premiando-se as suas revoltantes injustiças. Havia um direito para os miguelistas e outro para os liberaes. Os bandidos e salteadores, os assassinos e criminosos, ofFere- ceram-se para servir a causa do throno e do altar, afim de não se- rem perseguidos pela acção da justiça como já dissemos. Foram bem acolhidos e até lhe deram auctorisação para assaltarem as casas dos liberaes, para lhes darem saque, para as incendiarem e para assassinarem todas as pessoas que ahi encontrassem. Roubar e matar malhados, pedreiros Urres e maçons, não era crime, mas um acto louvável e de justiça ! Fm Lisboa e nas provindas campeava á solta o roubo, o as- sassínio e o crime, emquanto gemiam nas prisões perto de 40:000 liberaes! O único crime severamente punido pelo governo da tyrannia era o de rebellião contra a ordem do estado e o scr-se liberal. Sousa Monteiro, contemporâneo dos factos, descreve, em pou- cos traços, o estado do paiz n'esta épocha nefanda. Fallando da ca- pital do reino, diz o seguinte: «Estava subjugada por uma matilha de salteadores e assassi- nos em numero de três mil, a que se dava o nome de policia, para não desmerecer dos seus antepassados no tempo dos francezes, por mil e quinhentos realistas, verdadeiros facinoras, por diversos corpos de milícia e voluntários da capital e do reino, alem de ma- gotes de vadios armados de cacetes, os quaes tinham todos ampla liberdade de prender e espancar a quem bem lhes parecia. .-\hi não havia segurança pessoal, nem de propriedade; a qualquer hora do dia, ou da noite, emissários da tyrannia iam arrancar o cidadão pa- cifico do interior de sua casa, dos braços da espi^sa e d'entre seus filhos, para o maltratarem na rua, ou instigar os outros a que o mal- 500 tratassem, até entrar na cadeia, onde era lançado em segredos he- diondos e empestadas e doentias masmorras, onde jazia semanas, mezes, e annos mesmo, sem nunca saber qual o seu crime. a Se alginna doestas victimas era chamado aos tribimaes, ahi a sós com os seus accusadores^ que eram ao mesmo tempo seus juizes, ia ouvir negros insultos^ infames convicios ; e sem se lhe permittir de- fesa esperava silencioso a sua sentença^ que era^ ou morte ignominosa de garrote^ ou um degredo perpetuo para as regiões pestíferas da Africa.» (i) Esse quadro é fidedigno e nada exaggerado. Nas provincias o mal era maior. Aquelle estado de coisas durou por espaço de 7 an- nos. Imaginem, pois, nossos leitores o quanto elle arruinou o paiz. Nos cargos públicos e na administração da fazenda, a mesma desordem, anarchia e a mesma corrupção. Não se servia o publico e o paiz, mas o rei nosso senhor unicamente. Os empregos eram dados aos validos, ou aos que mais salientes se mostravam na de- fesa de D. Miguel e no cacete. Quantos caracteres deshonestos existiam por esse paiz íóra, todos os homens arruinados de fortuna, todos os desconceituados na opinião publica por seus crimes e vicios, todo o aventureiro e especulador, mostravam-se mui solícitos e zelosos na defesa do nosso rei e senhor.^ ora denunciando os liberaes, ora espionando os seus actos e palavras, ora exercendo o santo mister do cacete, e ora descompondo nos jornaes os inimigos do throno e do altar. Immediatamente o governo e auctoridades lançavam mão d'elles, e recompensavam-n'os com bons empregos. Por essa maneira innundaram as repartições do estado e da ad- ministração da fazenda homens sem vergonha, devassos e capazes de tudo. Nenhum d'esses empregados cumpria com seus deveres, porque estavam nas graças regias. Ninguém zelava o interesse publico ; os logares eram dados em recompensa de serviços prestados á coroa, e portanto pro- priedade de quem os occupava. 11) Historia de Portugal, vol. iv pag. 270. ÕfJl A devassidão dos empregados do estado chegou ao gráo mais subido. Commettiam-se roubos e delapidações dos dinheiros públi- cos com o maior descaro, desde os mais altos íunccionarios até aos mais baixos. Não se cobravam os impostos, porque os empregados eram desleixados e relapsos ; o pouco que se recebia ia parar ás mãos d'elles, que roubavam impunemente. Kram leaes servidores do rei íiosso sciilior ; isto bastava, para não serem processados e tudo se lhes permittir. O governo, todo attento em combater os liberaes, não fazia caso d'essas bagatellas. Faltava dinheiro nos cofres públicos? lance-se uma derrama, porque os vassallos teem obrigação de pagar as despezas necessárias ao seu rei, ainda que para isso vendam todos os seus bens e fazendas. Esse desleixo na administração publica e essa corrupção e im- moralidade do funccionalismo são consequências immediatas de todos os governos fortes, quer sejam absolutos, quer sejam consti- tucionaes. O tempo de Costa Cabral é ainda bem recente. Por outro lado, a anarchia e demagogia andaram soltas por todo o paiz por espaço de 7 annos, ou durante este reinado cha- mado da ordem. Todos os dias havia desordens e tumultos provocados pelos sicários e caceteiros. A tranquillidade publica era constantemente alterada em Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, Vizeu e nas mais ter- ras do reino. Espancamentos nas ruas e praças publicas, casas as- saltadas de dia e de noite, e massacres constantes dos preso> que em levas eram conduzido.^ para as cadeias. O governo forte e de violências foi uma fabrica de re\()lias, conspiraç(jes e de revoluções, como vimos. (^uasi se não passava um anno sem que hou\e>se uma tenta- tiva de revolta do partido liberal, perseguido e \'cxado. Desde 1828,0 paiz fira sobresaliado por conlinua> con>piraçõc> e revoluções. l'^ quanto mais o governo se esforçava por manter a ordem publica, mais esta se alterava e annunciava ^crio> conllicios futuros. 502 O governo forte empenhava-se por mostrar ao mundo e aos capi- talistas que era um governo estável e solido, mas não fazia senão de- nunciar a sua fraqueza e ameaçar o paiz de futuros confiictos e com- plicações. Cada revolta e revolução que suffocava era prenuncio de novas revoltas e futuras revoluções. Manifestou-se então a crise económica e financeira após a crise politica. E a ultima consequência de todos os governos fortes. Por tudo quanto temos exposto aos nossos leitores pode calcu- lar-se o estado de ruina a que o governo de D. Miguel arrastou o paiz. Quem ainda hoje fôr sincero defensor d'esses governos, concen- trados em mãos de poucos, tem no reinado de D. Miguel um bello e eloquente exemplo, que oxalá nunca se perdesse na memoria do povo portuguez. Dizem os actuaes especuladores políticos que as questões econó- micas e financeiras são indifferentes ás formas de governo. Nada mais falso e errado. O estado económico e financeiro de um paiz serve de thermo- metro,. para se avaliar a bondade d'este e d'aquelle systema politico. A prosperidade de um povo depende intimamente das suas for- mas de governo. Todos os governos absolutos, no Oriente, em Roma e na Europa moderna, teem sido fataes para os povos e nações. O exemplo de Luiz XIV, que deixou a França em lucta com uma crise económica medonha é exemplo bem frisante. Todos os governos absolutos, quer sejam puros, quer sejam constitucionaes, vêem a dar nos mesmos resultados d'aquelle reinado calamitoso. O reinado de D. Miguel foi um governo absoluto com todos os seus característicos e com todas as suas naturaes consequências. O seu primeiro inimigo não foram os exércitos constitucionaes, mas a ruina do paiz que elle promoveu. D. xMiguel e seu governo eram como parasitas que viviam á custa do sangue da nação ; mantiveram-se emquanto esta os pôde alimentar. Porfim, estava sugada inteiramente ; não tinha mais que dar. O parasita, depois de matar "o organismo á custa de que se 503 alimenta, morre também. Foi o que sucgedeu a D. Miguel. Este exhauriu as forças do paiz, e desde logo começou também a faltar- Ihe as suas e a debilitar-se. Centenas de milhares de familias ricas ficaram arruinadas e po- bres com as perseguiçíjes politicas ; á falta de segurança e de pro- tecção, os poucos capitães retrahiram-se e fugiram do commercio, das industrias e da agricultura, que se arrasaram por isso. Ninguém tinha certeza do dia de amanhã, porque os governos fortes não pro- duzem senão revoluções. As receitas do estado não podiam deixar de diminuir espanto- samente, e as que se cobravam desappareciam com as delapidações dos empregados relapsos e infiéis. Os titulos da divida publica ficaram sem valor no mercado. As lettras dos contractos reaes andavam protestadas ; as apólices bai- xaram a 20 por cento ; os padrões dos juros reaes não tinham valor. Os recibos do Monte-Pio e reformados e os do exercito não encon- travam compradores ! Havia 8 annos que se não pagava aos funccionarios e pensio- nistas do estado; os otticiaes do exercito estavam 10 mezes sem receber o soldo, e desde 1827 que se não pagava aos otficiaes refor- mad(^s, ás viuvas e orphãos que recebiam Monte-l^iol N'estas circumstancias, pensou o governo em contrahir um em- préstimo em França I Os capitalistas d'este paiz não cahiram no logro; o empréstimo foi rcpellido. O governo do fossn, quero e maudo recorreu então ao emprés- timo forçado de dois mil contos, (^uem não pagasse dcntn^ de 3 o dias era condemnaio a pagar o dobro. Por este motivo toram con- fiscados e vendidos muitos bens dos que não quizcram dar dinheiro a esse governo esbanjador e tyrannico. Apesar das violências. d(~»s sequestros e das prisões, o governo dl) fi)SS(), quero c luaiidn não conseguiu obter a quantia desejada I Alllicto mandou empenhar o,-> brilhantes da coroa; mas o seu [^ro- ducto apenas cheg(Ui para as me/aJas do rei ims.so scuhnr e para al-,'un> adiantamentos que havia leito o Contriíctn do Tjí\ko .' , 504 A Junta do Commercio procedeu a uma derrama de 200 contos para as urgências do estado, e cotisou os cidadãos que lhe pareceu, os quaes foram obrigados a pagar a sua parte, sob pena de seus bens serem confiscados ! Por fim, o mesmo governo da força impoz uma decima de 480 réis por cada porta e janella ! Para cumulo de tantas desgraças e calamidades, rebentou o cho- lera no paiz e a fome em Cabo Verde, da qual morreram para mais de 3:ooo pessoas por falta de soccorros de Lisboa! Foi preciso que os Estados-Unidos da America do Norte soccorressem aquelles in- felizes ! Eis o verdadeiro inimigo do governo absoluto e forte de D. Mi- guel, diante do qual caiu. Gerou-o no seu próprio seio ; foi a conse- quência ultima das suas loucuras, desvarios e processos de gover- nar. Foi também diante d'esse mesmo inimigo que caiu Costa Cabral, este conde de Basto do absolutismo constitucional, que em nada differe do de D. Miguel. Ao lado da crise económica e financeira, ao lado das complica- ções da politica interna, surgem as complicaçães da politica inter- nacional, ou os conflictos com a França e Grã-Bretanha. Os annos de t83o e i83i foram bem fataes para D. Miguel. Morre o rei de Inglaterra e cae o ministério de Wellington protector do tyranno portuguez. A revolução de 3o desthrona o tyranno da França, Carlos X. O partido liberal triumpha n'aquelles dois paizes, tirando ao conde de Basto a protecção moral que os reis anteriores lhe dispensaram. O apoio faltou-lhe por estes dois lados. Ao mesmo tempo morreu Carlota Joaquina e José Agostinho de Macedo, esta alma diabólica do regimen do terror e do cacete. Foi uma perda irreparável para o absolutismo, por isso que fcjra a única intelligen- cia do paiz que se poz ao serviço d'elle. D. Miguel, tanto o reconheceu, que ordenou se fizessem honras fúnebres com assistência de toda a corte a esse homem perverso, que tantos serviços prestou á sua causa, ou á causa do throno e do altar. 506 A morte da rainha Carlota Joaquina e a de José Agostinho de Macedo foram golpes profundos recebidos pelo regimen do terror e da violência, na occasião em que a politica da F^uropa mudara de face, e se tornara hostil a todos os governos tvrannicos. Kmquanto governou Wellington, o gabinete inglez tolerou todos os desacatos á bandeira da sua nação, e todos os attentados comet- tidos pelos agentes de D. Miguel em súbditos d'aquelle paiz. A esquadra de D. Miguel aprehendeu nos mares dos Açores vá- rios navios inglezes. Veio a Lisboa um navio de guerra d'esta na- ção reclamal-os e levou-os comsigo ! Veríssimo, empregado da policia, prendeu arbitrariamente, como vimos, um 0'Neil ; Leonardo invadiu uma cordoaria em Pedroiços pertencente a outro inglez CaíTary; espancou os empregados; devas- sou os livros; deu saque aos armazéns; prostrou o feitor com uma coronhada na cabeça; prendeu-o, pondo-lhe nas mãos au^inlios; obrigou-o a dar vivas a D. Miguel e levou-o de rastos para a torre de S. Julião da Barra. Era o governo de cl-rci Xosso Senhor. O novo governo inglez exigiu séria satisfação, e o governo forte de D. Miguel curvou-se submisso e humilhante ante o estrangeiro! Não só deu todas as satisfações pedidas, mas demittiu o valido \'erissimo, o celebre Leonardo, e todos os mais que altentaram con- tra os súbditos britannicosi A força era só para os nacionaes, indefesos e desarmados I Mas não param por ahi as humilhações sotfridas pelo governo absoluto e forte de D. Miguel ante o estrangeiro. I^m principio d'abril de iNSi, estavam para sahir para Angola 400 condemnados, entre elles dois cidadãos francezes, um por no- me Bonhome, que fora açoitado e voltara á cadeia, para cumprir aquella sentença, e um outro por nome Sauvinet. accusado de con- spiração, por ter dado cerveja no seu estabelecimento ao-> S(,lJaJos e marinheiros im[Micados na conspinição Je fevereiro! () cônsul trancez protestou e retirou-se de Lisboa. ri)mpenJo as suas rtlaçiVvs com o goxerno. Os Jois condeninaJ' »s não seguiram o seu destino. ■■•1 506 Em maio, appareceu uma esquadra franceza bloqueando o Tejo, a qual dirigiu um ultimatum^ pedindo a soltura dos presos, a annul- lação das sentenças, a demissão dos juizes, uma indemnisação de 65:ooo francos para as victimas e que os súbditos francezes resi- dentes em Portugal ficassem sob a protecção do juiz conservador da Inglaterra. Para se provar a fraqueza e inépcia do governo forte, basta di- zer que dirigiu uma nota ao visconde d'Asseca, para pedir servil- mente a lord Palmerston um auxilio contra a França ! A resposta natural d'este ministro foi que o governo de D. Miguel acceitas- se resignado todas as propostas da França. Então o valente conde de Basto mandou apromptar uma es- quadra de 1 1 navios com 33o peças; chamou as milícias e mandou fortificar a costa até á Figueira. Com auxilio do rei nosso senhor e a benção da igreja quem lhe podia resistir.^ Agora, sim, é que D. Miguel vae dar uma prova do valor dos seus antepassados, e que a coroa vae cobrir-se de gloria, para oífuscar e confundir todos os seus contrários e mostrar quanto pode e quanto vale. O conde de Basto fez um plano de campanha, que consistia em deixar entrar a esquadra franceza, e depois fazer cahir sobre ella a esquadra portugueza com 33o peças, e o fogo dos fortes de terra ! No dia 1 1 entrou no Tejo parte da esquadra, isto é 3 fragatas, 3 corvetas e um brigue, estando as peças de terra de morrões acce- sos e promptas para o ataque. Diz o senhor Oliveira Martins que o conde de Basto, de óculo em punho, observava a entrada dos na- vios, esfregando as mãos de contentamento, dizendo — já cá está mais um. Ás 5 horas da tarde, avançou toda a esquadra composta de i5 navios, desde Belém até ao Terreiro do Paço, em linha de combate e prompta para bombardear a cidade. Só depois de cila ter entrado, é que o conde de Basto reparou no erro que praticara. Como resistir a toda essa força já dentro do próprio Tejo? Aterrado ante o desastre imminente, o governo ca- B07 pitulou. Foi içada no castello de S. Jorge a bandeira franceza e salvada com 21 tiros; os presos obtiveram a sua liberdade; e o go- verno forte teve que pagar uma indemnisação de 800:000 francos. A esquadra franceza não se contentou só com isso; e no dia i3 d'agosto aprisionou toda a esquadra portugueza em linha de com- bate e levou-a para França ! Estava, portanto, descoberta inteiramente a fraqueza do gover- no forte. Era tal a certeza de que elle estava prestes a cahir, que D. Pe- dro na Terceira recebeu de Lisboa muitas cartas, convidando-o a partir contra Portugal, porque bastava o apparecimento de qual- quer pequena força do exercito constitucional, para derribar o ty- ranno. E essas cartas não o enganaram. Quando D. Pedro sahiu d'aquella ilha, o governo de D. Miguel estava nos últimos arrancos. Se não fosse elle. seria a revolução li- beral que o expulsaria do throno. E antes que os Passos e Saldanha entrassem em Portugal em nome d'essa revolução, funesta para a causa da legitimidade, D. Pe- dro apressou-se a partir com a sua expedição. Por isto se explica a actividade e o enthusiasmo que elle desenvolveu na organisação dessa expedição. Elle mesmo dirigiu os trabalhos e andou em via- gem constante da Terceira para S. Miguel, e de S. Miguel para o Faval, onde tinha organisado um arsenal para as construcções na- vaes precisas; e com a sua presença conseguiu accelerar os aprestos, as munições de guerra e tudo o mais para a esquadra e para o exercito. Esta actividade grangeou-lhe muitas sympaihias, c inspirou con- fiança nas tropas, que viram n'elle um chefe decidido e prompto para todos os sacrifícios. D. Pedro conseguiu reunir em S. Miguel 8:3oo homens. No dia 27 de julho de i832. largou a ilha a expedição com a esquadra. Compunha-se esta da fragata RdinJia de Porfiii^dl com 4^1 peças, D. Maria //com 42 peças, brigue Gnidc de Villa Fior Kl peças, brigue-escuna Liberal 9. escuna Juii^vnia 10, escuna 7\'rccii'a 7. e escuna Coquctc 7. Para se armarem em cnr\'etas iam 508 a galera Jiino^ que conduzia D. Pedro e a barca Regência de Portu- gal. Esta esquadra era commandada por Sartorius. Vinham tam- bém para se armarem em navios de guerra as escunas Fayal^i G?'a- ciosa., Esperança^ Prudência e S. Bernardo. Seguiam também i8 lanchões de fundo chato, cada um com sua peça, e uma barca a vapor. Os transportes das tropas eram ao todo 40. O exercito vinha bem organisado, instruido, fardado e discipli- nado. Infanteria e caçadores constituíam 3 divisões, uma ligeira com- mandada pelo tenente coronel Schwalbach e duas de linha, uma commandada pelo coronel Henrique da Silva da Fonseca, e outra pelo coronel António Pedro de Brito. Até se organisou um quadro de três corpos de cavallaria, e um corpo de engenheria. Foi abandonada a idéa de se ir atacar a cidade de Lisboa, o que nos parece acertado, porque para se forçar a barra d'aquella cidade eram precisas maiores forças e uma esquadra mais pode- rosa. Foi escolhido o Porto para base das operações. No dia 27 de julho, ancorava a esquadra defronte da Villa do Conde. Foi mandado o almirante Sartorius em companhia dos oííi- ciaes do estado maior, o conde de Villa Flor., o capitão de caça- dores Balthasar de Almeida Pimentel, e Luiz Mousinho d'Albu- querque, para examinar o ponto mais conveniente para o desem- barque. Foi escolhida a praia dos Ladrões^ próximo ao logar de Arenoza de Pampellido, e junto á praia do Mindello. Assim que a esquadra appareceu, a guarnição do Porto, as au- ctoridades civis e ecclesiasticas e os funccionarios públicos, fugiram e abandonaram a cidade, refugiando-se em Villa Nova de Gaya e cortando a ponte da barca ; tal foi o terror que se apoderou d'elles, e tal o estado de desanimo, de descrença e de desmoralisação em que estava todo o paiz a cahir de podre. O desembarque das forças constitucionaes eífectuou-se, sem se disparar um tiro ! No dia seguinte, entravam as forças de D. Pedro na cidade do Porto, este novo baluarte da causa constitucional. 509 Santa Martha^ commandante das forças do norte, estabeleceu uma linha de atiradores sobre as margens do rio; coroou as alturas com tropas, e por espaço de dois dias esteve em tiroteios constan- tes sobre a cidade. Foi preciso desalojal-o d'essas posições. Ao terceiro dia uma divisão ligeira, commandada por Schwalbach, passou o rio em barcas e expulsou as tropas miguelistas de Villa Nova de Gaya, estendendo assim o campo de operações do exercito constitucional. Então começou a campanha do chamado exercito libertador. Não cabe nos limites d'esta obra fazer a historia d'essa cam- panha começada apenas com 7:5oo homens. Dá cila margem a grossos volumes; e está bem desenvolvida na historia citada do se- nhor Soriano. Basta dizer que a 24 de julho de i(S33 entrava em Lisboa o pequeno exercito do duque da Terceira, diante do qual fugiu o du- que de Cadaval com , polacos e allemães. ou de vadios dVvssas duas cidade^ e-stranuc;ras. e afastados d*ella todos os homens liberae> e democrata^, o re>i;!tadi) era fatalmente o apontado pelo almirante Napier. O con\'ite que a regência de Palmella tez a O. Pedro para ■^e 512 collocar á frente da questão portugueza, não teve outro pensamento, senão o impellir os acontecimentos n'aquelle sentido, ou o reagir ás pretensões dos malditos emigrados de Plymouth e de Paris. O que Palmella conseguiu com a sua ida ao Porto no ^elfast^ conseguiu D. Pedro com as taes campanhas da liberdade. Evi- tou-se com estas o que os realistas constitucionaes evitaram em 1826, o que evitou Palmella com a Bel/estada, lord Wellington com o aprisionamento da expedição de Saldanha á Terceira, e D. Pedro com exclusão d'este general, de Stubhs e de outros liberaes, da sua expedição á Terceira e a Portugal. Foram os realistas constitucionaes, ou esses aulicos da realeza, os que triumpharam com as campanhas da liberdade. E seria mesmo absurdo admittir-se que veiu defender a liber- dade em Portugal quem por causa d'ella fora expulso do Brazil. A attitude que tomou D. Pedro ante a Revolução de 1820 e todo o seu reinado posterior no Brazil são provas mais que suffi- cientes do ódio que elle votava á soberania do povo, a única e legi- tima base do regimen liberal. Além d'isso, era o dador da carta e não devia consentir que se bulisse n'um só artigo d'ella. O próprio sr. Soriano diz seguinte : «D. Pedro, educado com todos os velhos preceitos dos príncipes absolutos, e arrastado egualmente pelas tendências da natureza hu- mana, aspirava a dominar coju influencia bem pronunciada sobre todos os poderes poíiíicos do estado. >^ Diz que a dictadura, necessária nas circumstancias do paiz e da guerra, favoreceu as tendências do mesmo D. Pedro para o arbítrio, ainda depois da terminação da lucta, de modo que a regência teve mais em vista respeitar as formas, do que manter a essência do go- verno representativo, havendo falta de harmonia entre a sua con- ducta e o seu enthusiasmo pela liberdade. O ministério de D. Pedro, em vez de imitar a Inglaterra, respeitando o principio da munici- palidade, inclinou-se para a centralisação da França. E o grande numero de empregados que este systema demanda, junto á grande importância da classe militar, dava o mais decidido ascendente aos membros da administração. 613 E accrescenta depois o seguinte : «Com estas idéas trabalhou pois entre nós o ministério para crear uma egual centra lisação, e supprir a falta de uma aristocracia poderosa e influente pela clientella que buscava ter em grande nu- mero de empregados, com quem evidentemente aspirou a reunir nas suas mãos um poder torte, que assoberbasse todos os outros e lhe desse a faculdade de obrar mais por auctoridade própria, do que pela influencia moral e dictames da lei, ou mais por pontada sua, do que por condescendcncia com a opinião publica^ de modo que, para se evitar a extrema debilidade do governo, cahiu-se no extremo op- posto, propendendo-sc, no desmantelamento geral das antigas insti- tuições, mais para o arlntrio, do que para o regimen constitucio- nal», (i) Eis as primeiras tendências reveladas pela regência de D. Pedro, mal este se installou em Portugal. E não devem causar admiração aos nossos leitores que tiverem seguido attentos á corrente dos aconlccimentos até aqui expostos. (3 que nos diz Napier e o sr. Soriano são consequências lógicas e legitimas da historia até aqui desenvolvida, do regimen da legiti- midade, da carta constitucional e do realismo constitucional, defen- dido pelos homens da Bclfestada, do deposito de IMymouth, da regência da Terceira e das intrigas e conspirações em Londres e Paris contra os liberaes e democratas. E devemos notar um facto importante succeJido com as victo- rias ganhas por D. Pedro, que se tornou o homem da situação e que tudo punha e dispunha a seu arbitrio; é o seguinte: Apesar de não ter commandado nenhuma batalha importante, e de não ter revelado génio militar, nem valor extraordinário, por- que nas campanhas da liberdade ligura como uma mediocridade, ou em ultima plana, todas as glorias d'essa campanha foram atiri- buidas por seus aduladores e adoradores a D. Pedro. Tudo quanto li/.eram os generaes que mai.s se distinguiram na guerra, c a quem >e devem todas as victorias. serviu para galard >er\iço> do ( ! f Cerco do l'ii'''>, t<>:y.o ii. p :^. 5o- c 5u~". 514 immortal libertador^ a cuja presença, dizem, se deve o desfecho da campanha contra D. Miguel. Por esse meio conseguiram dar a D. Pedro um prestigio no povo que elle não mereceu, nem merece. Assim era preciso, para que os do seu partido se impuzessem á opinião publica, com quem não queriam governar, porque o seu regimen politico baseava-se na legitimidade, ou na auctoridade real, e não no suffragio do povo e na opinião publica, como temos visto. Os realistas constitucionaes valeram-se das campanhas da liber- dade, para darem prestigio á espada do imperador, e com el'a go- vernarem o paiz. Por isso todo o seu governo baseou-se no sup- posto prestigio militar de D. Pedro, como se este fosse um Cezar, ou Napoleão I. O que é certo é que os servis e validos conseguiram tornar D. Pedro o verdadeiro rei de Portugal e um verdadeiro César. Era a espada d'elle que fazia peso em todos os negócios e tudo decidia. Diante doesse arbitro supremo dos destinos do paiz, e d'esse príncipe tornado poderoso e forte todos começaram a curvar-se submissos. Muitos desertaram das fileiras da liberdade, para se con- verterem também em aulicos do dispensador das graças e mercês, dos empregos rendosos e das altas posições sociaes. O mesmo que no reinado de D. Miguel. Quem desejava engran- decer-se não tinha mais do que tornar-se adorador do novo astro que se levanta^^a. Obtinha logo as graças régias e estava servido. D. Pedro conheceu muito bem essa triste e abjecta condição da humanidade, e quiz ser generoso e de mãos largas para todos que se prestaram a servil-o. Por esse meio chamou a si e á sua causa muitos ferrenhos defensores do povo e da liberdade. Assim se pas- saram para elle alguns vintistas e muitos dos que d'antes lhes fize- ram opposição ! D. Pedro mandou dar grandes gratificações aos generaes que mais se distinguiram nas campanhas contra D. Miguel. Ao duque da Terceira e ao marechal Saldanha ordenou que se lhes desiC a bagatella de ioo:ooo-rooo réis a cada um! Uma fortuna! M desde então por diante que Saldanha começa a revellar a vo- 615 lubilidade do seu caracter. Acceitou esse presente valioso ; beijou a mão ao seu bemfeitor, e mandou o povo e a liberdade ao diabo. O que succedeu a Saldanha succedeu a muitos outros. O nome e o prestigio militar conquistados por D. Pedro nas campanhas da liberdade foram bem fatacs para esta, que perdeu muitos dos seus chefes mais prestimosos e importantes. D. Pedro, cercado dos ambiciosos que o acompanharam na ex- pedição, continuou em Portugal o systema de prodigalidades se- guido por Palmella na emigração e em Plymouth. O dinheiro mal chegava para os validos e proselytos, que estavam sempre de mãos estendidas para elle. — Real senhor! cá estamos para servir a vossa magestade e a vossa causa gloriosa — Servindo a vossa magestade, servimos a pá- tria, que tudo deve a vossa magestade. E grande parte do dinheiro dos empréstimos foi parar ás mãos d'esses leaes servidores da causa real. Nunca os governos deram contas d'esses empréstimos, como Palmella nunca deu contas dos dinheiros que recebeu para o sus- tento dos emigrados ! O grande numero de empregos de que se queixa o senhor 5o- riano, não é tanto proveniente do svsiema centralisador, mas da necessidade de satisfazer as muitas ambições pessoaes que pulula- ram em volta de D. Pedro, e para se attrahir á causa da legitimida- de os adversários d'ella, ou os defensores do povo. Depois da campanha da liberdade cahiu sobre o paiz uma chu- va de títulos, de graças e de mercês e bem assim de decretos, met- tendo nas repartições publicas os servidores da causa da rainha e da carta. Um dos primeiros passos da regência no Porto foi o decreto da amnistia geral, excluindo d'ella o duque de Cadaval, primeiro ministro do usurpador e os mais ministros d'estado d'este, o duque de Lafões, em cuja casa se redigiu a representação a D. Mi-:uol para se proclamar rei absoluto, o marquez d'01hã(), presidente da camará municipal de Lisboa, que foi a primeira a proclamar D. Mi- guel, o bispo de \'izeu e Accurcio das Neves, primeiros procurad*^- 516 res dos três estados e os juizes das Alçadas que sentenciaram á morte os constitucionaes. Estes seriam processados e punidos pelos crimes que praticaram. Depois suspenderam o decreto da Terceira sobre os sequestros, pondo-os em vigor nos crimes de rebellião, ou de alta traição ! Alguns decretos importantes sahiram, afim de ampliarem a di- ctadura da Terceira e estendel-a a Portugal. Muitos são os ministérios que se succederam uns aos outros durante a campanha contra D. Miguel e por causa dos vários inci- dentes da guerra, que se tornou tenaz. E inteiramente impossível seguirmos todas essas differentes si- tuações, porque mesmo em nada alteraram a essência das coisas. Houve apenas mudança de nomes e não de princípios. Palmella de uma certa épocha por diante começou a decahir no conceito de D. Pedro. E a sorte de todos os validos. As preferencias á ultima hora manifestadas para com Saldanha, nomeado chefe do estado maior do exercito, desagradaram áquelle estadista seu inimigo e rival. D. Pedro reconheceu que Saldanha não era Catão, de quem se temesse; não lhe escapou a volubilidade do caracter d'este general vaidoso e cheio de ambições. Era mais temível na opposição do que no poder. Em 12 de janeiro de i833 pediu a demissão todo o ministério da regência da Terceira. D. Pedro voltou-se então para os novos validos que lhe forma- ram a corte em Paris, e o cercaram na ausência de Palmella. O ministério ficou constituído com o íntríguísta e sabujo Cândido José Xavier na pasta do reino, com outro auctor da Belfestada^ Joaquim António de Magalhães na pasta da justiça, Silva Carvalho na fazen- da e marquez de Loulé nos estrangeiros. Sá da Bandeira foi nomeado ministro da marinha, mas por fe- licidade d'elle estava gravemente ferido pelo combate das Antas, e por isso não chegou a tomar posse da sua pasta, que talvez mesmo recusasse, se estivesse com saúde. Não era possível que quizesse associar seu nome áquelle ministério de validos. Mesmo Loulé 517 pouco tempo esteve no ministério, saindo d'elle, por não desejar to- mar a responsabilidade dos seus actos e da sua politica. Por causa da questão Soliguac Magalhães foi demittido da sua pasta, que passou interinamente para Silva Carvalho. O programma d'este ministério foi a continuação da dictadura da Terceira, fazendo-se as reformas precisas para se harmonisar a sociedade portugueza como o novo regimen da carta. I^ foi este o programma de todos os ministérios subsequentes. O novo ministério successor do de Palniella entendeu que tinha chegado o momento de se incetar enérgica campanha contra os mi- guelistas. Foram reintegrados os funccionarios públicos demittidos por D. Miguel pelo seu aífecto ao constitucionalismo, ao passo que fo- ram demittidos os que pegaram em armas para defenderem o usur- pador, e processados os que se ausentaram de Lisboa, quando n'el- le entrou o exercito constitucional. Este ministério levou a sua intolerância, e o espirito de vin- gança, ao ponto de publicar o celebre e immoral decreto das indem- nisações. Por este decreto mandou-se proceder a sequestro em todos os bens dos miguelistas, para indemnisar os damnos causados aos conslitucionaes pelo governo de D. Miguel. Os summarios, juntamente com os autos de sequestro, deve- riam ser levados pelos respectivos juizes ás camarás municipaes, para ratificarem a pronuncia, e veritlcarem os sequestros, servindo os juizes de relatores dos processos! A reizencia de D. Pedro não se contentou só com o cercear as attribuições dos municipios, entregando-os ao despotismo e arbitra- riedades dos prefeitos e provedores: quiz também tornal-os MiliJa- rios com um dos seus actos mais violentos, e lançar euualmente o odioso sobre estas instituições populares. O governo tira aos municipios suas mais importantes altribui- ções administrativas, e agora quer onceder-lhes attribuicncs "udi- ciarias, quando se trata de um acto re}ni-:nante c perseguidor I O governo dirige depois as suas aiieiKÕc.s ]\ira o ^cu maior 518 inimigo, e o maior inimigo de todo o progresso da humanidade, a igreja. Foi o clero que verdadeiramente animou a guerra contra D. Pe- dro, e levantou em massa os povos rústicos a favor da causa de D. Miguel. Se não fosse a attitude do clero e dos frades, este teria cabido logo ao primeiro impulso das tropas constitucionaes. Assim que estas entraram no Porto o alto e o baixo clero prin- cipiaram a animar as populações, a excitar-lhes o fanatismo religio- so e a levantal-as contra o exercito de D. Pedro. O próprio patriarcha concedeu licença ao clero secular e regular para se armar em defe- sa da capital e da causa de D. Miguel! Quem verdadeiramente susteve o impulso das tropas constitu- cionaes foi o clero; a elle somente se deve o não ter o governo mi- guelista desanimado aos primeiros ataques. O incêndio lançado pelos frades ao convento de S. Francisco do Porto, onde se aquartelara o regimento de caçadores 5, veiu mostrar até onde os membros da igreja pretendiam levar a guerra contra os constitucionaes. N'esta mesma occasião foi apprehendida uma carta dirigida ao abbade dos benedictinos, na qual se dizia que foi pena que D. Pedro não tivesse accudido ao fogo, para dar-se cabo d'elle; e pedia-se ao mesmo abbade que não desistisse d'esta tentativa, porque D. ^Miguel o remuneraria bem. Em presença d'estes e de muitos outros factos idênticos, D. Pe- dro reconheceu que se tornava preciso derribar esse poderoso ini- migo, e que sem isto seria difficil terminar-se a guerra. Nem o cle- ro, nem os frades, jamais pactuariam com D. Pedro, com os con- stitucionaes e com os liberaes. Toda a mudança politica seria por elles energicamente com- batida e hostilisada. Era preciso abatel-os. Cabem as honras a Silva Carvalho; foi elle que ousadamente arrostou com esse inimigo. Até o próprio núncio se poz em campo na defeza do anjo pro- tegido por S. Miguel. Por decreto de 29 de junho de i833 foi abolido o foro eccle- 619 siasiico; na mesma data foi mandado sahir do reino o núncio do papa. Silva Carvalho, dois dias depois, nomeou uma commissáo de reforma geral do clero e da igreja portugueza, a fim de propor ao governo as reformas que julgasse convenientes. Foram declarados rebeldes e traidores todos os ecclesiasticos seculares e regalares que na occasião da acclamação do governo da rainha D. Maria II se ausentaram das suas residências; e na mesma data foram declarados vagos os arcebispados, bispados, di- gnidades e empregos ecclesiasticos providos por D. Miguel, e foram egualmente prohibidas as admissões a ordens sacras e a novicia- dos. Kxtinguiram-sc todos os padroados ecclesiasticos. Todos estes decretos originaram um rompimento com a santa sé, que tão escandalosamente se pronunciou a favor de D. Miguel, como veremos em logar competente. Com a entrada de Joaquim António d'Aguiar para o ministério da justiça, em 23 d'abril de 1834, c por proposta da commissáo nomeada por Silva Carvalho, foram extinctas cm todo o reino as ordens religiosas. Justificando esta medida importantíssima, entre outras coisas diz o relatório o seguinte : «As casas religiosas foram convertidas em asscmbléas revolu- cionarias; os púlpitos em tribunaes de calumnias facciosas e san- iiuinolentas e o confissionario em oráculo de fanatismo e de traição. A nação inteira vira uma parte do clero regular trcK^ando a mi- licia de Deus pela milicia secular, abandonando eíFectivamentc o sanctuario, cuja potencia o não secundava, despojando o culto das suas opulências para as converter em meios e estímulos de guerra.» Eis, pois, a razão porque D. Pedro consentiu na extincção das ordens relií;iosas c nas reformas ecclesiasticas. Não f(M para beneficiar a causa da liberdade, mas porque se viu obrigado a desarmar esse poderoso inimigo, que o não deixava so- cegado e era o maior apoio da causa de I). Mijuel. Se o clero e os frades não se armassem e armassem os povos a fa\'or de D. Mii^uel, ainda hoje teriamr)s o- ^onNcntíXs. 520 Todos esses passos e medidas arrojadas foram uma necessida- de de occasião, medidas de guerra, de que a regência de D. Pedro viu-se obrigada a lançar mão, para salvar a sua causa, ou a causa da rainha D. Maria II; nada mais. No emtanto devemos felicitar- nos por essas medidas originadas das circumstancias forçadas. Ou D. Pedro acabava com os conventos, ou os conventos acabavam com D. Pedro e a causa da rainha. Na continuação das medidas dictatoriaes a regência aboliu a Casa da Supplicação. substituindo-a pela relação de Lisboa ; extin- guiu o Desembargo do Paço e creou o Supremo Tribunal de Justi- ça; fez a divisão territorial de accordo com a reforma judiciaria da Terceira, e, por fim, creou os celebres tribunaes de policia cor- reccional, em que sanccionou o verdadeiro despotismo judicial! Esses tribunaes foram encarregados especialmente de julgarem verbal e summariamente os delictos de ordem publica, de ataque á segurança individual e offensa á moral e costumes, punidos com a pena correccional. Só no verso do corpo de delicto é que se escreviam os nomes das testemunhas, não excedendo a ires! Os cidadãos eram presos pelos prefeitos, sub-prefeitos e prove- dores, com amplos poderes policiaes; eram levados aos tribunaes correccionaes de nomeação regia, e aqui processados summaria e verbalmente, quasi como no tempo de D. Miguel! Isto caracterisa o espirito liberal da regência de D. Pedro. Foram creadas as prefeituras e nomeados prefeitos cm todo o paiz com poderes de pachás. E ainda não contente com isto, a regência declara que as ca- marás municipaes não tcem a faculdade de impor tributos aos mu- nícipes para occorrerem ás despezas do concelho ( i). No mesmo mez Silva Carvalho manda estabelecer commis- sões municipaes nas terras em que estiver reconhecido o governo da rainha ! Por seu lado, Joaquim António d'Aguiar, para fazer a vontade (i) Portaria de 3 de março de i'^34. 521 a seu real amo e senhor, restaura a censura previa para todos os escriptos, por decreto de 21 de novembro de i833. Reacção em toda a linha. Toda esta regência de D. Pedro tem o cunho auctoritario e disciplinario d'este. Vê-se em todas essas medidas a influencia pessoal de D. Pedro, impondo a sua vontade aos ministros. No administrativo a vontade despótica dos prefeitos, sub-pre- feitos e provedores, todos de nomeação regia, ou dos ministros, aos quacs se deram amplas attribuições, não somente administrativas, mas attribuições policiaes as mais e.xtensas, ficando a liberdade de cada um na dependência da vontade d'esses satrapas, no foro civil a auctoridade dos tribunaes correccionaes, dominando com egual des- potismo e arbítrio! Faltava só a imprensa; e esta cahiu immediatamente sob a an- tiga censura prévia, abolida pela própria carta constitucional I 1'^ tudo isso para centralisar o systema politico na auctoridade real, d'onde tudo devia emanar. A nova organisação politica, administrativa, policial e judicial, obedece áquelle pensamento, de modo a sujeitar todos os cidadãos á vontade única e central e dos ministros. Para se conhecer o regimen de ferro a que estava sujeito o paiz, basta citar o facto de o ministro Cândido José Xavier, em 27 d'a- bril de i883, ordenar, em nome do regente, ao encarregado da po- licia preventiva que mandasse recolher á cadeia para sotlrer uma prisão correccional de 45 dias a António Pereira dos Reis, ollicial da secretaria da justiça, por ter extrahido de um jornal um artigo otTensivo, diz a portaria, de muitos ofliciaes generaes em quem sua magestade imperial tem posto a sua coníiança ! Também em 1S26 a 1828 não f(')ra permittida a menor dis- cussão dos actos dos ministros da regente Izabcl Maria, (^uem a tal se arriscava era preso. Para tirarem o contracto do tabaco a Paulo Cordeiro, inimigo dos constitucionaes. para se vingarem do que elle praticou contra estes e para darem o contracto a um valido, os ministros de D. Pe- dro saltaram por cima de todas as leis e de todas as considerações. 522 O contracto foi concedido tumultuariamente ao barão de Quin- tella. O conde da Taipa, ao ver tantos desmandos em nome do impe- rador, ousou dirigir-Ihe uma carta, mostrando-lhe os abusos dos seus ministros. Começa essa carta por dizer que em Inglaterra os pares costu- mam dirigir-se ao rei em negócios que dizem respeito ao interesse publico, e que, sendo investido no pariato, toma aquelle exemplo, para levar ao conhecimento de D. Pedro um negocio de tanta im- portância, tanto para o crédito do imperador, como para o interes- se do povo, que elle salvou com tanta gloria que maus conselhei- ros pretendem denegrir, fazendo cahir sobre elie manchas que não lhe pertencem. Diz que a suspensão das garantias tem sido prostituída com ra- pinas, sequestros e com prisões arbitrarias e reconhecidamente des- necessárias. O imperador tem a sorte de todos os imperantes; a verdade nunca chega a elles, ou aos paços reaes, quando não ha liberdade de Imprensa, mas elle fará por a descobrir. Não o move o espirito de partido, nem a predilecção por este, ou aquelle minis- tério. Diz que o contracto do tabaco tem escandallsado Lisboa Intei- ra, pelos despotismos praticados pelo ministério e pelas execuções tyrannlcas desconhecidas dos procônsules romanos. O contracto foi dado por 1:200 contos de réis annuaes, quando havia quem oífere- cesse 1:400 contos; o governo, sabendo multo bem que as provin- das estavam occupadas pelos miguelistas e que por Isso os antigos contractadores não podiam entrar por Inteiro com as mensalidades, por não estarem de posse do contracto, mandou repentinamente fazer sequestro nos bens d'elles pela quantia de quinhentos contos, total da divida, no caso de estar livre o commerclo de Portugal. Classifica Isto de tyrannla. Diz que é opinião geral que o sequestro ordenado foi uma vingança pelo lanço com que os contractadores cobriram com 200 contos annuaes o preço por que o contracto foi dado camararlamente. Os processos de governar e administrar próprios dos realistas _5^ constitucionacs são já bem conhecidos dos nossos leitores. Nada espanta o que diz o conde da Taipa. Este escreveu ainda outra carta, pedindo amnistia plena e geral, a annullação da escandalosa e immoral lei das indemnisações e a nomeação de um novo ministério. O resultado foi um mandado de captura passado contra aquelle par do reino, a qual não se cííectuou por ter fugido. O mesmo que em 182(3. O duque da Terceira, o duque de F^almella, marquez de Fron- teira, marquez de Ponte de Lima, marquez de Santa Iria, conde de Lumiares, conde de Ficalho e conde de Paraty, em nome das im- munidades dos pares do reino, dirigiram a D. Pedro um protesto contra aquella ordem de prisão, por ser uma infracção da carta constitucional. Pedem ao imperador lhes mande declarar se também a carta está suspensa nos artigos que dizem respeito ás immunida- des dos pares, para elles saberem como se devam conduzir. Silva Carvalho no despacho declarou que a ordem de prisão teve logar em virtude de pronuncia, e que, se o pronunciado alguma coisa tinha a reclamar, usasse dos meios que as leis lhe faculta- vam. Declarou mais que o decreto da suspensão das garantias abrangia todos sem excepção alguma, c que a lei é egual para todos. Os pares manifestantes protestaram novamente contra aquella errada doutrina, porque suspensão não é derogação da carta; e pr*.- testaram também contra o facto de o seu protesto ter sido publicado na Chnmica com o titulo de requerimento. O conflicto tornou-se tão grave, que foi preciso que Joaquim António d\\ guiar interviesse, declarando, em nome do regente, que a este não competia interpretar os artigos da carta, e que o protesto seria levado á presença das cortes. logo que estivessem reunidas, para ellas decidirem, á vista d'elle e do despacho do ministro da justiça, se a carta foi, ou não. \iolada. Isto fez serenar os ânimos: o caso caiu no esquecimento, e a ordem de captura não se rea'isou. F suJceJcu isto, porque se tra- tava de um personagem importante: mas o governo, para se \-in- 524 gar, mandou prender o impressor da carta, José Baptista Morando, que esteve preso três mezes, apezar de o auctor assumir a si toda a responsabilidade ! Foi fazer companhia ao redactor da Chronica^ preso por simples ordem do ministro de D. Pedro, arvorado em juiz, como os anteriores ministros da regência de Isabel Maria. A pretexto de qualquer coisa, prendia- se um cidadão. Os pre- feitos estavam com o rei na barriga ; eram delegados da omnipo- tência ministerial ; tudo podiam fazer. Continuaram as perseguições, as prisões e os sequestros, exa- ctamente como no primeiro reinado do realismo constitucional, e como no reinado posterior do realismo puro. Quem contrariava o regente e seus ministros ia parar ás enxo- vias. O Commerciante Politico, jornal da épocha, referindo-se ás cartas do conde da Taipa, sustenta que o simples maldizer do governo é caso de devassa! Exactamente o mesmo que em 1827. Dizer mal dos ministros é atacar a augusta pessoa do immortal libertador, a quem a nação tudo deve. Havemos de ver no capitulo seguinte o procedimento do go- verno com Rodrigo Pinto Pizarro, preso também arbitrariamente. Rompem-se novos conflictos entre a omnipotência ministerial, delegada da auctoridade augusta e suprema da nação, e as corpora- ções municipaes, representantes da auctoridade popular. O código administrativo da dictadura de Mousinho da Silveira devia produzir das suas; isto era inevitável. O primeiro conflicto teve logar em novembro de 33. e a pretexto da odiosa lei das in- demnisações. No dia 28, reuniu-se a commissáo municipal do Porto para a ratificação da pronuncia de José Luiz da Silva Souto e Freitas, tenente-coronel de cavallaria reformado, proprietário e capitalista do Porto. Antes de tudo, é preciso que nossos leitores saibam os abusos que os constitucionaes realistas, ambiciosos e violentos em todos os seus actos, praticaram nos sequestros ordenados para os indemni- sarem dos prejuizos causados pelo governo de D. Miguel. 625 Não sejamos nós quem tenha a palavra ; deixemos fallar, mais uma vez, o sr. Soriano, que tem o valor de ter presenceado os factos. Diz este historiador o seguinte: ((Os sequestros mandados fazer nos bens dos denominados fau- tores, agentes, ou cúmplices, da usurpação, oíFendendo a moral pela medida em si mesma, foram, além d'isso, uma arma de parcialidade nas mãos de quem os dera á execução, ou uma verdadeira rapina, tanto pela injustiça com que sobre alguns recahira a medida, como pelo escândalo com que se absolveu outros; sequestros houve que, fazendo-se pela noite, só dias depois se dava ao inventario o que se tinha achado. Por esta forma se viram certos depositários roda- rem em carruagens alheias, aposentar-se em bons palácios, ser- vir-se com ricas mobilias e ostentar, finalmente, com grandeza e fausto de outrem a pequenez de quem mal tinha ainda para trajar impunemente; das muitas vendas que por este tempo se íizeram illegaes, dos objectos sequestrados também não concorreram pouco para mais se desmoralisar o paiz, pela rapacidade que cm tudo isto andou e desairosas historias que por então se contaram sobre este assumpto.» (i) K preciso advertir que os ministros de D. Pedro só empregaram no serviço do estado os seus atilhados. os do seu partido exclusiva- mente, e os que se passaram para elles em troca d'esses empregos. Os verdadeiros liberaes, ou democratas, foram tão hostilisados como os miguelistas. Km presença d'aquella medida odiosa e de todos aquelles factos escandalosos a que ella deu origem, pela qualidade das pe>>oas a quem foi incumbida a execução, houve em todo o paiz, e sobretudo no partido liberal, geral reprovação e indignação. A camará do Porto, inspirando-se na opinião publica, quiz dai" um exemplo de moralidade e honestidade ao> homen^ da governa- ção no primeiro processo que lhe foi parar á^ mãos. 0 reu foi absolvido. Os reali>ta.s constitucionaes. que e-^pLM•avam enriquecer->e com taes indemnisaçõo. ficaram Jescs[^craJo> com 1 II Obra citada, {on^o u. pa^-. J ;,\ 526 esse precedente, que podia animar as mais municipalidades a pro- cederem com justiça e a oppôrem-se á sua rapacidade. Os ministros de D. Pedro, a quem este transmittiu o seu génio mandão e despótico, e acostumados até ahi a serem obedecidos em tudo, não gostaram que o exemplo de moralidade partisse de uma corporação representante do elemento popular. A camará do Porto era uma commissão nomeada pelo governo, e como tal, na opinião d'elles, devia ser subserviente e dócil. O prefeito da província do Douro, no dia seguinte ao que a commissão municipal deu o seu veredictiim. publicou uma portaria, dissolvendo-a e nomeando outra composta dos juizes de paz que acabavam de ser eleitos pelos habitantes da cidade. Ordena o prefeito, representante da omnipotência do poder executivo, que a presidência da camará nomeada pertença ao juiz mais velho e o cargo de procurador do conselho ao mais novo, de- cidindo-se os negócios á pluralidade de votos, tendo o presidente o de desempate ! No dia anterior, o omnipotente perfeito dirigiu uma proclamação aos habitantes do Porto, dizendo-lhes que a commissão municipal não merecia a confiança publica (do governo devia elle dizer) e por isso acabaram as suas funcções. «Amanhã eu elegerei cidadãos que mereçam a publica confiança, em quanto se não nomeia a camará electiva, cuja necessidade e urgência vou immediatamente repre- sentar ao governo de sua magestade fidelíssima a senhora D. Ma- ria II.)) Pede aos habitantes que se tranquillisem ; e termina: «Confiae em que velo pelo interesse publico, que nunca deixará de merecer o maior cuidado do vosso prefeito. Querem nossos leitores ter um acto mais característico do regi- men absoluto dos realistas constitucionaes que estiveram no poder em 1826? É elle consequência legitima da tão decantada dictadura da Terceira, c do systema centralisador próprio da carta. Im^gine-se a impressão que na cidade causou aquelle acto de despotismo dimanado do palácio da prefeitura. No mesmo dia em que fez a nomeação da camará, o prefeito 627 dirigiu á cidade outra proclamação, dizendo-lhe que ia cumprir a sua promessa da véspera, IV'las 4 horas da tarde, acompanhado do secretario geral da prefeitura, dirigiu-se aos paços do concelho, onde já estavam reunidos os juizes de paz, e tomando a direita da meza da vereação installou a commissão municipal, prestando nas mãos d'elle o competente juramento cada um dos membros da mesma commissão. Para tranquillisar os ânimos irritados, o governo viu-i»e na ne cessidade de publicar, em 9 de janeiro de 1834, a lei regulando a forma das eleições municipaes, segundo o systema da cana. As eleições veri libaram- se em 4 de março. Apesar do systema eleitoral da carta, venceu a opposição por grande maioria. Sahiram eleitos José da Silva l^assos, um dos chefes do partido democrá- tico, Leonel Tavares Cabral, João Manuel Teixeira de Carvalho, Josc Plácido Campeão, João José Coelho, Joaquim \'elloso da Cruz, José Alves Pinto \'illar, Jo>é Maria Brandão de Mello e Francisco da Rocha Soares. Os habitantes da cidade aproveitaram a coincidência de ser aquelle o dia annivcrsario da victoria de Saldanha ganha no redu- cto do pinhal do Pastelieiro, para manifestarem o seu rego.MJo pela victoria iranha nas eleições. Logo de manhã, os oíliciaes e soldados da guarnição da cidade appareceram vestidos de grande uniforme. As 2 horas da tarde, rcr.niram-se os otHciaes no quartel de Santo (Jvidio. e d"ahi dirigi- ram-se para o Cqfc do Coiumcrcio. onde se realisou um banquete em honra d'elles. dado pelo corpo commercial. Findo o jantar, o capitão Couto recitou um elogio a Saldanha, que foi coberto de muii(js vivas a este general, em cuja lealdade todos ainda conlia- vam com a maior cegueira. Os theatros foram todos mui frequentados. .Aqui e.\poz-se o retraio de Saldanha: cantou-se o h\nino dV'lle; recilarani-se y<>c- sias, que lhe lorani dedicadas: e dcrani-se niuitos \i\'as ao lieroe das campanhas da liberdade. Em todo este dia reinou na ciJaJe grande regosijo. A camará eleita entendeu qi;e de\ia cria. Mas desde que a urna eleitoral proclama os nomes vencedores, as generosas opiniões vencidas emmudecem, para reconhecer na maioria a justa e inevitável condição do systema representativo. Cidadãos, v()s todos sois nossos constituintes. A vossa honra e da cidade heróica estão ligadas com nó indissolúvel á honra de vossos mandatários. Ajudae-os, pois, e allumiae-os com vossas lu- zes e conselhos. Se a vossa camará errar, ou se esquecer das suas obrigações, fallae-lhes com a soltura e liberdade de \ossos maiores. A camará será sempre leal aos interesses do povo, inda que nunca das suas paixões será lisongeira. Portuenses, mostrae-vos tão bons na paz, como o fostjs na guerra, e desde que não ha titulo mais glorioso que o de ser bom cidadão. O amor do bem publico vos reiína a todo> em volta Ja camará, e por os esforços de seu^ constituintes possa cila honrar-se a si e lambem engrandecendo a vossa gloria, concnrrend(j para vossa telicidade. » Reconhcce-se nV'ste importante documento a ligara nobre e respeitável do seu auctor, José da Silva Passos. \'è-se ahi o dcp.io- crata con\icto. Diz n senhor S(>riano que (■< auto de accKimação da rai:ih:i \<']'.\ muito censurado pelos periódicos ministeriaes, como cojsa umi e ác nenhuma importância. Os \-ereaJores qui/erani dar-!he rii- blijidaJe, p.ias, ou f. .s-^c mai entendido capricho do go\-cnio c:n querer medir com elies piques dj auci Tid.iJj. ou tos>c porqr.e n'elle se encontrassem exp^cs^õcs que pareciam oílensi\\i> á ^U'^- cciMibiliJaJe .ic^s minisTos, o 'iM-ellit-» Jo D-^uro, não x'» ob>to-.; A 530 sua publicação pela imprensa, mas até deu ordem para ser arran- cado e rasí^ado onde quer que fosse afixado por edital ! A camará eleita protestou e dirigiu ao governo representações a favor da liberdade da imprensa, acerca da isempção dos abolota- mentos, pela violação que traziam á casa do cidadão, e contra as odiosas funcções judiciaes que o decreto das indemnisações lançou sobre as camarás municipaes. «Estas supplicas, diz o sr. Soriano, sendo pelo ministério olha- das como obra do partido contrario e uma verdadeira aggressão á sua auctoridade, pela inconstitucionalidade de que éra accusado nas suas medidas, ou não mereceram resposta, ou se lhes deu por modo tal, que os da camará do Porto a tomaram como um aggregado de insultos e injurias pessoaes contra elles dirigidas.» No dia 1 5 de março, o prefeito féz saber á commissão de cen- sura prévia que será responsável por todos os actos públicos das auctoridades que lhe são subordinadas, e que nenhuina publicação pela imprensa terá logar, sem a approvação e licença do palácio da prefeitura ! No dia 2 I, dirigiu um oííicio ao provedor interino, dizendo que, sendo da competência d'elle a afíixação dos editaes, ou outros quaesquer annuncios relativos a actos, ou mandados, das auctorida- des administrativas do concelho, não permitta que nenhum d'esses editaes, ou annuncios, sejam afiixados senão á sua ordem, ou dos seus delegados, mandando arrancar todos quantos apparecerem sem isso. Tudo para obstar a que a camará tornasse publico o auto de acclamação da rainha D. Maria II I No dia 4 d'abril, anniversario d'esta, o prefeito convidou a ca- mará municipal para um Te Dciiin que se devia celebrar na egrcja da Lapa ; a camará escusou-sc allegando que a essa hora tinha de- liberado commemorar o dia com um jantar á custa dos vereadores aos orphãos do real collegio de Nossa Senhora da Graça. (Js ministros do rei soldadt) e do immortal libertador e dador da carta ordenaram ao prefeito do Douro dissolvesse a ousada corporação filha da soberania popular. (>om elfeito. em 14 d"abril, aquelle prefeito mandou os rcpre- 531 sentantes do povo para suas casas; dissolveu a camará; c tornou a encarregar esta a uma commissão, até novas eleições ! O presidente, ao acabar de ouvir lêr o decreto da dissolução, quiz abrir discussão sobre a sua legalidade; mas o provedor protes- tou, dizendo que depois do decreto da dissolução não existia mais camará. O presidente não fez caso d'esse protesto ; leu segunda vez o decreto, e pol-o á discussão, resolvendo a camará que elle era legal. E assim começou o paiz a experimentar as novas bellezas do regimen da carta e da dictadura da Terceira, que collocou o sys- terna administrativo em harmonia com a mesma carta. O governo do regente investiu também contra a camará muni- cipal de Lisboa. Esta pediu auctorisação para crear commissarios municipaes que vigiassem pela execução das suas posturas. Ao mesmo tempo representou no sentido de ser reintegrada na sua primitiva auctoridade, usurpada pelo código administrativo da Ter- ceira. I^or portaria de 22 de junho de 34. o governo mandou censu- rar a camará, por ter interpretado mal o artigo i33. da carta, que diz que o governo económico e municipal das cidades e villas compete ás camarás, porquanto deve coiiibijiar-sc com o artiiso : 3S.'\ que dii que as suas attribuições serão marcadas por uma lei especial, e que esta lei c o código da Terceira, que não se pôde considerar usurpação alguma. Diz que os corpos electivos deliberam, mas não executam, e que para isso o código administrativo creou os provedores, a quem somente incumbe a execução das pí^sturas mu- nicipaes, e que de outra maneira seriaiu as camarás um estada den- tro do estado. A carta não reconhece senão quatro poderes, e não auctorisa a camará a usar da linguagem de que se serve, quando allude ao poder municipal. E adverte que será muim para de^c-ar que se não mais abuse das palavras, para se não confundirem as ideas. e que sobre tudo se tenha em vista que as attribuições das camarás municipaes ditlerem muito da auctoridade das camarás antigas, que ate exerciam tuncções politicas e iuJiciaes. 1-^ aceres- 632 centa: «Sua magestade imperial confia, portanto, que a camará se limitará aos objectos da sua competência, segundo o decreto n.° 28 de 16 de maio de i832, que nada tem de subversivo e de inconsti- tucional.» Diz que o imperador espera que todas as aucloridades o coad- juvem, em vez de o empecerem. A camará protestou contra as doutrinas politicas e administra- tivas expendidas n'aquella portaria, e contra as censuras que lhe foram feitas. «A camará, diz ella. reconhecendo no governo de vossa mages- tade imperial o direito de reprimir, censurar e mesmo de punir seus actos, se ella prevaricar, não reconhece, comtudo, n'elle o di- reito de condemnar suas opiniões; porque as opiniões do governo não são o symbolo que deve regular a opinião publica. Não reco- nhece também n'elle o direito de interpretar as leis ; e á opinião do governo de vossa magestade imperial pôde a camará oppor a sua, que pôde ser tão boa, emquanto a auctoridade competente o não decidir. «A camará está persuadida, e persiste na sua persuação, de que o poder municipal, o primeiro elemento da ordem social, a mais bella e mais livre das instituições da nossa pátria, foi viciada pelo decreto n." 28 de 18 de maio de i832; que este decreto, dando attribuições municipaes aos provedores, extinguiu de facto as camarás, reduzin- do-as a simples conselhos municipaes.» A camará erradamente sustenta que o código administrativo está em desharmonia com a carta, e que não pôde ser a lei regula- mentar a que ella se refere. Se assim fosse, diz ella, a carta constitucional denominaria as comarcas concelhos municipaes; e só por manifesto abuso de pala- vras podem continuar a denominar-se camarás municipaes. Não é argumento bastante. O auctor da carta evidentemente quiz reduzir as camarás a simples concelhos municipaes, quando as tornou dependentes de uma lei regulamentar ao arbítrio do po- der executivo, que somente tem iniciativa nas propostas de lei. O systema centralisador c o único compatível com o regimen da carta. 533 O protesto sustenta, porém, doutrina verdadeira, quando aítir- ma, em contrario da portaria, que os corpos collectivos de eleição popular geralmente não só deliberam, como executam as suas deli- berações. A camará pedia para nomear vigias e olheiros, ou inspectores da observância das suas posturas, e para terem lé nos autos das contravenções ; c negar-lhe isto é amesquinhar ao ultimo ponto as suas attribuições. O decreto da dictadura da Terceira não se con- tentou com o fazer depender da sancçâo do provedor as posturas municipaes, mas entregou a elles a execução d'essas posturas! A camará municipal de Lisboa, vendo-se impossibilitada de ge- rir, como desejava, os negócios do municipio. e desattendida nas suas reclamações, pediu a sua demissão. Declarou que, estand(j re- duzida a simples conselho municipal, não podia preencher as vistas dos seus constituintes. O governo não respondeu ; instou a camará pela sua dissolu- ção; e não obteve ainda despacho. No dia nj de junho, houve uma sessão tumultuosa e violenta, chegando alguns vereadores a propor que se não cumprisse a portaria, e que a camará usasse dos seus direitos. Depois de agitada discussão, em que o governo foi vivamente atacado, a camará resolveu instar de novo pela sua diíiso lucão. N'esie sentido diriíiiu ao regente uma ener:;ica representação. Respondeu-lhe que só lançaria mão d'esse remédio, quando/ o inte- resse publico imperiíxsamente o exigisse. 1-^ preciso notar que, como na camará do Porto, estavam na camará de Lisboa chefes importantes do partido liberal, como An- selmo José Braamcamp. l-'rancisco António de Campos. Manuel Ferreira Lima e outros. Mis o primeiro prenuncio da Revolução de Setembro íeiía per aquelles homens, que se convenceram, alinal, da nece>>iJade de uni nov*) código politico que satisli/e^se as novas aspiraçúc-^ d^ > pai/. A camíira municipal de Lisboa continuou a ser victima Ja> pre[^()teivias do governo, l-^lja [^oz du\iJa em paga- a uma \iu\a uma pensão de doo-ooo reis concedida por D. João \ I ^om sobrc- vi\'encia para a me^ma. e [xu^^ P*-''^^ tolha di i extiuvi'» scnaJ'i. íaii 534 17 de julho o governo dos afilhados e das prodigalidades dos di- nheiros públicos ordenou á camará que satisfizesse de prompto essa pensão! Não foi só contra as camarás municipaes das duas primeiras ci- dades do reino que investiu o governo da regência de D. Pedro, para assoberbar todos os poderes do estado. Não tem conta o nu- mero de portarias que n'esta épocha baixaram ás diíTerentes camarás municipaes do paiz, advertindo-as e censurando-as rudemente, a pretexto de qualquer falta que o governo imaginava. Algumas camarás seguiram o exemplo do Porto e Lisboa, e acclamaram D. Maria II; o governo da regência de D. Pedro não gostou d'isso. A pretexto de que n'esse acto se não fez referencia á carta constitucional, baixaram portarias, censurando e estranhando essa omissão. Na portaria dirigida á camará municipal de Alcáçovas lemos o seguinte : «Não se fallando uma só vez no sobredito auto na carta cons- titucional da monarchia, segura garantia da ventura nacional^ com a qual está identificado o throno da mesma augusta senhora^ sua magestade imperial manda egualmente estranhar á dita camará uma falta que elle não deseja rêr reproduzida em acto algum das suas fujicçõesf» Acclamando essas camarás a rainha D. Maria II, subentendia-se que aceitavam a carta constitucional; não era omissão que mere- cesse reparo, nem censura. O governo quiz aproveitar essa occa- sião, para fallar ás camarás n'aquelle tom de arrogância, e signifi- car-lhes que estavam subordinadas á auctoridade do regente e dos seus ministros. E assim, mal se constituíram as camarás municipaes do reino, íilhas do voto popular, estabeleceu-se conflicto entre ellas c a omni- potência do poder executivo, filha do systema da carta. D. Pedro IV tinha tanta consciência da sua força e poder, que, de uma certa épocha por deante, não duvidou chamar ao governo, não somente os não emigrados, até ahi repellidos, mas os chefes mais importantes dos vintistas! 535 (]om este passo, não só humilhou a seus pé^ esses que tanto o hostihsaram, como também roubou ás lileií^as do partido democrá- tico as suas intelli^encias mais vaHosas. Margiochi e Bento [^ereira do Carmo não duvidaram acceiíar pastas d'esse que os insultara de uma maneira tão desabrida, e que nunca cessara de desacreditar as suas idéjN e o seu partido! ICn- traram no ministério, e associaram seus nomes a todos esses at ten- tados contra a liberdade que nossos leitores acabam de conhecer! A entrada d'aquelles dois chefes do partido democrático para os ministérios da ret^encia de D. l^edro foi uma verfíonhosa e inde- cente apostasia politica, a troco de uma pasta e do poder! D. Pe- dro obrigou por essa forma aquello dois chefes do partido vintista a tornarem-se subservientes da sua vontade despótica e do> seus caprichos. Assim se vingou d'elles ! O prepotente prefeito do Douro era Gonçalves de Miranda, um dcs ornamentos das ctVles de 20 e dos mais zelosos defensores da soberania popular e da causa do povo 1 D. Pedro, chamando ao poder os homens de 20. teve em vi>>ta deshonrar e inutilisar para o partido democrata os seu> h(jmens mais importantes. l']sle pa^so foi tão fatal para a causa da liberdade, como as ex- pedições á Terceira e Porto, e como todas essa^ leis e medidas que sahiram das dictaduras do mesmo D. Pedro. A re:^en^ia d"e>le príncipe altivo e inimigo da democracia conseguiu di/imar as lilci- ras do [mrtido liberal. Saldanha estava conquistado, embora os seus partidários Cm;> tinuassem a nutrir \'ãs illusões a respeito da sua lealdade politica. C(»risiderando-o ainda o chefe do partido a\ançado. j-^lle ja não se alrexeu a assignar o j^rotesto contra a pi^isão do conde d.i 'rai{\i. Os principacs honiens de 2(^ cur\"aram-se ^ubmis^(ls ante <> prcstigif) militar do iniuiin-Uil iiufcvúdo)- c rei solJjJo. e t' HKirani-^e Í!i>''\i!nenlos dóceis Ja si;a vontade. l"stas \'ergonho^as ajMstasias politicas \'ieram exacerbar iv.ais Os aiiim(~)s dos libcracs sinceros contra D. Pedr(X l'cii/.mente w > nic;<' d"essa corrupção prum» aí Ja [^cla Ji^taJura 536 de D. Pedro, tornado poderoso e forte, surgia uma geração nova de valentes luctadores da causa democrática. Os conflictos com as ca- marás municipaes do Porto e Lisboa são os primeiros indícios do apparecimento d'essa nova camada de defensores da liberdade. Emquanto os antigos defensores do povo se prostravam reve- rentes ante o novo e poderoso senhor, que substituia D. Miguel, e emquanto em Portugal lavrava a maior corrupção politica dos seus homens mais importantes ante o novo idolo que o prestigio das bayonetas elevara, em Eaubourne os dois Passos erguiam ousada- mente a sua voz contra as dictaduras e o estado de coisas que viam na sua pátria. «Os coriolanos, dizem elles, gente de ganhar, estão no animo e nas forças tão quebrados, que não ousam de novo com os seus salcos accommetter a liberdade em campo aberto. Mais haveria que temer do seu ódio, se não estivéssemos tão bem apercebidos. Suas desmaiadas esperanças estão postas na organisação da regên- cia, n'uma enxurrada de pares, no estabelecimento da censura e na traidora suspensão da carta.)) Elles dizem que esta suspensão, com o jesuítico pretexto de or- denar á austríaca as leis regulamentares e mais reformas necessá- rias, e um verdadeiro golpe d'esta.do. «Os martyres do Loiívre. e até o nietralliador por modos diversos, sabem o que taes dictaduras significam e o que aproveitam.» Depois de citarem exemplos da Inglaterra, dizem: «Ha já passante de 1 1 annos nos quaes os bons portuguezes trazemos soffridas muitas guerras e apertos, muitas mortes, desterros e captiveiros : e tudo isso para c]ue? para que as leis sejam feitas por a sabedoria das cortes e não por o beneplácito de ministros ignorantes. Da suspensão da carta para a sua extinc- ção o caminho é tão curto e fácil, como da regência para a realeza. Priucipiis obsta. Acabada a liberdade, não ha mais fortaleza que defenda o throno da senhora D. Maria 11.» Dizem que é preciso começar em 20, porque os i 1 annos de- corridos foram perdidos: e, em vez de se a\-ançar, reírocedeu-se. <'A revolução, accresccntam, não é apostolo que sacuda o pó 537 dos sapatos e sííia em paz, quando a não queiram. \'ae sempre por diante, sem pavor e apostolando; e, se a atacarem, faz trincheiras e barricadas com as cabeças dos reis, e até com as nossas, pois é diabo, como Saturno, que até seus próprios filhos devora. Deixal-a correr; não assanhal-a ; que não ha fazel-a parar senão de cançada; é como lume que deu em alcatrão.» Paliando da corrupção para que appellaram os chamorros, di- zem : «Não a tememos; que não é dado aos taes arrancar pela raiz a virtude no coração dos livres, segundo famoso expressar de um antigo, ipsum exscindere virlutem; não, não temos medo, nem do vosso ferro, nem do vosso oiro, nem havemos comprar servidão, nem vender liberdade. Podem comprar alguns bens insignificantes; mas cá também não fazem mingua, sobre que não ha dinheiro nem logares que bastem. « Fibra popular que sympathise com a do povo, que ahi está a força dos nossos Samsões. Nunca as apostasias damnaram á causa da liberdade, antes a servem melhor, como escreve Walpole» (i). Verdadeiras prophecias da revolução de 36. Os Passos ainda teem a ingenuidade de apontar como dos in- corruptiveis Saldanha e Margiochi, que ainda não tinham sido cha- mados ao poder! '1 odos os actos da dictadura de D. Pedro, servido por validos e apóstatas da liberdade, indispozeram os ânimos contra elle, que era quem tudo dirigia e a todos impunha a sua vontade poderosa. A guerra c\\\\ terminou em llns de maio de iS34 com a con- venção de I^vora Monte. K fácil calcular o estadia de tensão dos espiritou debaixo do rc- uimcn de ferro da dictadura. ou dos iiovernos fortes d'esta. O que temos exposto e bastante para se conhecer a que ponto a regência de I). Pedro excitara as paixões, em ve/ Jc as acalmar. Km Lisboa e Porto, sobre tudo, havia grandj ellers essência, os t I I Tircvc >\:sojni(.'n!o a f.ivor do libcrd.iAc lunl.mj. 538 ânimos mostravam-se irritados e fermentavam muitas indisposições, muitos resentimentos e muitas offensas á liberdade. Aquella convenção veiu lançar a faisca, que produziu explosão immediata. Por essa convenção deu-se amnistia geral a todos os delictos políticos desde 1826, podendo os amnistiados entrar na posse dos seus bens, que todavia não receberiam sem licença das cortes, e sair do reino, promettendo não tomar parte nos negócios políticos. Aos militares foram garantidos os seus postos, obrigando-se o governo a prover á sua subsistência na proporção das suas graduações. Os empregos ecclesiasticos e civis seriam pelo mesmo governo contem- plados segundo o serviço e merecimento. A D. Miguel era garanti- da a pensão annual de 60 contos de réis e permittiu-se-lhe dispor livremente da sua propriedade particular e pessoal e sahir do reino em qualquer navio das potencias da Quadrupla Alliança com a declaração de não mais voltar a Portugal, nem concorrer para a alteração da ordem publica, sob pena de perder o direito a pen- são! Que se desse amnistia aos miguelistas não é cousa que mereça censura, antes louvor; mas que se garantissem os postos e empre- gos a esses que tantos males causaram ao reino e fizeram tantas victimas era, com effeito, para fazer levantar estas, e até as pró- prias pedras das ruas. A pensão a D. Miguel nada a justifica. Foi um novo arranjo de realistas constitucionaes com realistas absolutos, para reforçar a causa do absolutismo constitucional, e foi um verdadeiro desafio aos liberaes. D. Pedro e seus ministros quizeram conquistar a benevolência dos realistas puros; e mostraram com essa convenção completo desprcso pela causa dos liberaes perseguidos e desgraçados pelo tyranno. Havia por todo o paiz milhares de famílias em lucto; orphãos que choravam a perda de seus pães mortos no campo da batalha e na forca; havia milhares de famílias arruinadas e lançadas na mi- séria pelos confiscos e sequestros; muitos filhos que viram as ca- 539 becas de seus infelizes pães espetadas em altos postes, pedindo vin- gança e desaíiVonta. Tinham acabado de sahir das cadeias perto de 3o:ooo presos que passaram pelas torturas, tormentos e maliratos dos Telles Jor- dão, e por nossos leitores já conhecidos. Quem podia esquecer tantas aífrontas recebidas, tantos maus tratos, tyrannias e crueldades ? Os que sahiram d'essas prisões tinham direito a pedir contas aos seus algozes. Perto de 3o:ooo victimas andavam dispersas por todo o paiz esperando o momento de um justo desaggravo. Além d'ellas, via-se em Lisboa, Porto, Coimbra e outras cidades, muita gente de braço ao peito, com as cabeças e costellas partidas por esses malvados a quem deram amnistia e seguraram seus pos- tos e empregos. No exercito constitucional estavam os emigrados de Hespanha e Grá-Bretanha c as victimas da Bel/estada^ de Ply- month e da expatriação para o Brazil. D. Pedro abandonou a causa de todas estas numerosas victi- mas, c mais uma vez só cuidou em conquistar a benevolência do irmão e dos seus partidários. No pacifico goso da realeza e do po- der, que lhe importava a elle e aos seus ministros, engrandecidos em empregos, honras e tilulos, a sorte dos liberaes, que alcunhavam de canalhas? Firmava-se com a convenção de Evora-Monte o throno da rai- nha? Era quanto bastava. E emquanto centenares de mil liberaes morriam de fome, a re- gência de D. Pedro compromettia-se a sustentar á custa do estado os auctores de todas as suas desgraças I Ainda mais, essas victimas deviam contribuir com o seu bolso para os 6o.ooo-rooo réis destinados a D. Miguel! Imagine-se, portanto, o clamor geral que a convenção de Evora- Monte provocou em todo o paiz. Em a noite de 27 de maio, o theatro de S. Carlos enchcu-sc de espectadores. No salão da entrada c na platéa não se ouviam senão commentarios e murmurações C(>ntra os ministros e o próprio D. Pedro. Por toda a parte ^oltavam->c i;rit()s ác indignação; for- mavam-se grupos em estado de agitação e tumulto; os ministros e 540 D. Pedro eram ahi tratados com phrases duras e irreverentes. Na platéa espalharam-se vários impressos contra a convenção. Quando os ânimos estavam mais exaltados, appareceu no ca- marote D. Pedro, com a rainha e a esposa d'elle. N'este momento ouviu-se uma voz unanime — Abaixo o ministério! abaixo o minis- tério! De uma frisa fronteira apostropharam o imperador por con- servar um ministério que era odiado. Elle indignou-se; e voltando-se para a platea gritou-ltie — Fora canalhas! Da bôcca do imperador sahiu a phrase com que os realistas constitucionaes mimoseavam os liberaes e defensores do povo. N'este momento o tumulto da platéa foi indescriptivel. Do alto dos camarotes cahiu uma procla- mação contra D. Pedro; os espectadores de pé respondiam ao in- sulto com outros insultos e palavras injuriosas, até que os mais exaltados atiraram contra o imperador patacos, que foram cahir no seu camarote impellidos com grande força. Ainda dois ajudantes d'ordens de D. Pedro e o general da força armada vieram ao salão, para serenarem os ânimos; mas foram mal recebidos. O imperador, a esposa e a filha retiraram-se precipitadamente do camarote; e quizeram sahir pela porta do Picadeiro; mas encon- traram-n'a tomada pelos populares. Então o general da corte e o secretario da prefeitura dirigiram-se ao capitão do piquete e disse- ram-lhe : - — Senhor commandante, mande carregar armas á sua gente. — Contra quem ? — Para socegar este motim. — A tropa não se fez para descarregar sobre o povo. E teria sido uma calamidade, se o capitão obedecesse a essa ordem imprudente. D. Pedro poude evadir-se; mas o povo correu atraz d'elle, ape- sar do carro partir a toda a brida. Conseguiu assim escapar ao furor da multidão. Tal foi o remate da regência e da dictadura de D. Pedro, que veiu para Portugal estabelecer o mesmo conflicto que o obrigou a sahir do Brazil. 541 A proclamação espalhada em S. Carlos c o documento mais expressivo da indignação geral, provocada pela escandalosa e vio- lenta dictadura de D. Pedro e da indisposição que havia contra elle. O abuso chegou a tal ponto, que o immortal dador mandou cunhar moeda de prata em Londres por sua alta recreação, o que nem os antii;os reis absolutos se atreveram a fazer. Foi agente d'es- te negocio o celebre Mendizabal, que se enriqueceu á custa d'este paiz. Os cruzados vieram para Portugal, e reconheceu-sc que não tinham o peso legal! Mas mandava o imperador, era quanto bas- tava ! CAPITULO IV ELEIÇÕES DE 1834 É mandada pôr em vigor a iei eleitoral de 1826. — São excluídos os pares que se pronunciaram por D. Miguel.— As eleições realisam-se no meio da suspensão de garantias e da imprensa.— Só é permittida a imprensa governamental.— Partidos da opposiçáo.— O partido democrático cresce. — Orientação d'este partido. — Ma- nifestos.—Guerra aos emigrados. — Os ministeriaes apoiam-se em o nome de D. Pedro — Allocuçáo d'este aos batalháos voluntários.— Reclames a D. Pedro pela imprensa ministerial— Campanha d'esta imprensa contra os iiberaes. — Violências. — Viagem de D. Pedro ao Porto.— Prisão de Rodrigo Pinto Pizarro candi- dato pelo Douro. — Resultado das eleições. — Pizarro é eleito pelos povos. — O governo obtém maioria, sobre tudo nas povoações ruraes. O governo da dictadura addiou as eleições para deputados tanto quanto poude. Só um anno depois da entrada das tropas con- stitucionaes em Lisboa é que ellas se realisaram. Por. decreto de 28 de maio de 1884 foi posta em vigor a lei eleitoral de 1826 por nos- sos leitores já bem conhecida ! Xo emtanto esta lei é fiel interprete do systema politico da carta constitucional. Aquelle decreto manda que as eleições tenham logar, de modo que a abertura das camarás se verifique no dia 1 5 d'agosto. Não terão assento na camará dos pares os que em 1828 assignaram a representação para D. Miguel se proclamar rei absoluto. As eleições realisaram-se em julho. Por tudo o que temos ex- posto até aqui podem nossos leitores avaliar a opposição que o go- verno da dictadura, ou o governo forte, provocou em todo o paiz. Estavam suspensas as garantias constitucionaes; a imprensa gemia sob o regimen da censura, tão querido dos realistas constitu- cionaes, ou conservadores, e as celebres leis regulamentares da car- ta publicadas em dictadura tendiam, como nossos leitores viram, a concentrar toda a vida politica na auctoridade central e suprema em 043 que assenta o regimen cartista, ou da legitimidade. A auctoridade do imperador regente estendia-se desde o palácio real ate ás mais remotas aldeias por intermédio da hierarchia de ministros, prefeitos, sub-perfeitos e provedores, em cujas mãos estava encerrada toda a politica e administração do paiz. Quem podia resistir-lhes? Por outro lado, a organisação dos trihunaes e a ordem do pro- cesso civil e criminal obedeciam áquella mesma ordem hierarchica, de modo a concentrar toda a administração da justiça na pessoa do rei, ou na omnipotência ministerial. Os tribunaes de policia correc- cional eram como a guarda avançada d'esta campanha permanente contra os direitos e garantias individuaes dos cidadãos, que nada valem perante a carta, por isso que não são soberanos, mas vassal- los de facto e de direito. As leis eleitoraes, tanto municipaes como para deputados, em dois grãos, e sujeitas ao censo, tendem egualmente, como vimos, a concentrar no poder supremo e dos ministros todo o movimento das eleições, de modo que o voto nacional seja a expressão da vontade omnipotente dos governos e não dos povos. As províncias estavam nas mãos dos prefeitos com seu magcs- loso cortejo de sub-prefeitos, secretários, concelho de prefeitura e provedores. O palácio da prefeitura era uma miniatura do palácio real: o prefeito um rei pequeno. Com as leis eleitoraes em dois í;ráos e cerceando o voto o mais possivel, os prefeitos tinham as eleições nas suas mãos; sahia eleito quem elles muito bem queriam, ou o candidato imposto pelo gnxer- no. Uma verdadeira copia do império de Napoleão I. que se tor- nou arbitro supremo da I^Vança. que governou como monarcha abs(^lut(\ conservando as formas e apparcncias de liberal, com- < (le- sar conservou as formas da republica. Tal o regimen de ferro a que os realistas constitucionaes, (HI càt- tistas puros, mais uma ve/. sujeUaram o pai/, e ^ob o qu-,\l se reali- saram as primeiras eleições, depois da queda do re^inieii absoluto puro. O anno de i^^^q e assim copia liei do periodo de i^^j'' a i'^-''^, 544 O pleno reinado dos realistas constiiucionaes em guerra aberta con- tra as liberdades. No tempo de D. Miguel só a imprensa realista pura gosava de inteira liberdade; durante a dictadura de D. Pedro só tinha inteira liberdade a imprensa realista constitucional. Os jornaes do parti- do democrático mal podiam respirar sob o regimen da censura. De modo que foram innumeros os jornaes que se puseram ao serviço do governo, para o defend.rem em todos os seus actos, e em todas as suas arbitrariedades. Toda esta imprensa foi creada pelos altos burocratas, a quem D. Pedro encheu a barriga com bons empregos e engrandeceu em honras e distincções. Em todos os ataques d'esta imprensa aos liberaes se reconhece a penna mercenária, e o furor de quem deseja conservar os seus logares rendosos, obtidos á custa de adulações ao immortal liber- tador. Esta imprensa servil e sabuja foi um valioso reforço das candi- daturas oííiciaes, e outro órgão importante da vontade omnipo- tente dos ministros. E tal foi a machina eleitoral que se poz em acção no anno de i834, estando em vigor a carta e todas as suas leis regulamentares, que faltaram em 1826. Apesar de tudo isso, e em virtude mesmo d'essa organisação politica, judiciaria e administrativa tendente a formar governos for- tes, a opposição cresceu espantosamente, como vimos. Ao lado do partido liberal e democrático combatia o governo da dictadura de D. Pedro o partido dos nobres, que, não obstante as suas idéas constitucionaes, ainda julgavam que o poder era pri- vilegio d'elles e da realeza. Era chefe d'este partido Palmella. Este diplomata e estadista, cioso da governação, não via com bons olhos D. Pedro cercado de vintistas apóstatas e de gente plebea. Além d'isso, considerava-se o único homem capaz de tudo dirigir, e em tudo dar leis. Como até ahi fora o arbitro dos destinos do paiz, suppoz-se superior ao próprio D. Pedro. Este não quiz tutores; e por isso poz de parte Palmella, e cercou-se de novos validos mais dóceis á sua vontade. 645 A chamada ao poder dos vintistas renegados acabou de exas- perar Palmella e toda a sua gente, que se passaram para as fileiras da opposição. A politica de Silva Carvalho, Aguiar, Bento Pereira do (]armo e Margiochi, que descarregou profundos golpes no clero e deu outros passos arrojados, não agradou a Palmella, todo con- servador e amigo das velhas classes. Era partidário das pequenas reformas, e não queria que se fosse tão longe. As medidas d'aquel- les ministros tinham o quer que fosse de revolucionarias; recorda- vam a épocha de 20 que elle tanto odeiava. E attribuia-as á origem plebea dos novos validos. O partido liberal e democrático, apesar do regimen de ferro a que estava sujeito o paiz, e apesar de as suas fileiras estarem tão dizimadas peia deserção de tantos chefes importantes, entrou na lucta eleitoral com animo e energia. Elle desejou dar batalha ao governo, que tantos attentados commettera contra a liberdade e con- tra as garantias constitucionaes. não obstante algumas medidas úteis que adoptou e dignas de louvor. Emquanto o governo metlia o paiz dentro das formas estreitas e acanhadas da carta constituci(3nal, os homens de idéas mais avan- çadas tentavam dar ao publico uma nova orientação no sentido das mais amplas liberdades. As obras que então se publicaram mostram já tendências para se voltar a 20, como queriam os Passos. O Jr. (juilhcrme J. A. D. Pegado publicou, em 1S34, um opús- culo, em que se mostram aqucllas tendências Discorrendo sobre o systema das monarchias mixtas. diz aquelle auctor que n'ellas muitas vezes se viu reproduzirem-se os mesmos males que atormentaram os povos no regimen absoluto. ■ Imas vezes, diz elle, se tem visto o rei, que com o tempo tinha já adqui- rido interesses oppostos aos do povo, trabalhar no sentido contra- rio ao da assembléa legislativa da nação e frustrar assim todas a,-, boas intenç(5es. Ella gritava contra o rei ; mas sem poder disp(^r de f(")rça para o obrigar a executar as boas leis que fazia e a sati>fa/er d'esta forma ás precisões da nação, porquanto, como pnJer execu- tivo, tinha o rei debaixo das suas ordens a ínrçã armada. l>a elle, pois. quem acabava por iriumphar da a>semblea, que esma-:a\'a 546 primeiro, para depois esmagar o povo. Assim vimos em 182 3 o rei dispor do exercito, para entrar á sua frente em Lisboa e derribar o governo constitucional ; porque as cortes não tinliam forças suas para oppor ás do rei. E todas as esperanças que o povo portuguez tinha posto no memorável acontecimento politico de 1820 se dis- siparam ; e elle recahiu mais uma vez na antiga miséria e oppres- são. » Diz que as duas camarás são origem das maiores calamidades, lançando nas sociedades modernas os vicios antigos e interesses particulares contrários a ellas. «Não foi outra coisa o que vimos entre nós na camará dos pares desde i82(5. EUa oppunha-se cons- tantemente ás reformas propostas pela camará dos deputados, ou alterava de tal maneira o plano d'ellas, que nenhum bem resultou á nação.» Tratando do poder moderador, diz que por este poder o rei pôde dissolver a camará dos deputados e convocar outra, e que é elle que nomeia a camará dos pares. Tudo depende da deliberação da coroa ; se esta é pelo povo, pôde constituir uma camará de pares reformista; se a pretensão de uma das camarás, ou de ambas ao mesmo tempo, forem desarasoaveis, pôde o mesmo monarcha mo- deral-as; porém os reis teem quasi sempre feito d'esta prerogaiiva um uso funesto ás nações. Cita o exemplo de D. Miguel, que estando revestido d'esse poder pela regência dissolveu as camarás, decla- rou-se absoluto. Pede a organisação das guardas uacionaes, para o povo se armar e estar sempre armado, não sô para combater os seus inimi- gos, oppondo força contra força, mas também para não deixar a menor esperança de tentativa contra elle. (i) Este mesmo escriptor publicou uma Carta aos eleitores de de- putados. Diz elle: cSem esquecerdes jamais o passado, pensae agora no presente e no futuro. Julgaes que os nossos inimigos internos e ex- (i ) Discurso politico sobre a orí^anisação da í^uardi iijcioiul otLreciJo''á nação por- tuyueza. 547 ternos, os nossos falsos amigos, estão anniquilado.s? Se o acreditar- des, não tardareis a pagar o crime da vossa credulidade.» N'esta carta lemos as seguintes propheticas palavras : «Se não tivermos estas três garantias fundamentaes: a guarda nacional organisada em todo o reino, a inteira liberdade de imprensa e a solidariedade dos ministros, a desconfiança geral será a conse- quência necessária. D'esta desconfiança resultará logo para o com- mercio a estaganação e para a industria o desalento e nenhum pro- gresso. Os patriotas indignados por um justo resentimento rompe- rão n'uma santa cólera. «Os absolutistas, farão do descontentamento geral e da pertur- bação do estado o ponto de apoio para as suas machinações. Oí> immensos fragmentos da hydra decepada e disseminados por tantos pontos virão a reunir-se e veviíicar; mil outros partidos se forma- rão; e uma nova serie de calamidades envolverá a pátria em luto e miséria.» Passa depois a expor a sua profissão de fé politica. Proclamará e defenderá, com todas as suas forças, no seio da representação nacional a mais inteira e ampla independência do seu paiz ; jamais consentirá governos portuguezes sujeitos a governos estrangeiros. Denunciará á execração publica todos os que de novo queiram sujeitar a nação a esse dominio estrangeiro, d'onde teem provindo todas as nossas desgraças. Nas importantes questões da regência e do casamento da rainha manterá a mais perfeita inde- pendência, que protesta á face do céo e da terra. Quer que o braço do imperador que libertou o paiz do jugo externo e interno seja ainda aquelle que sustente e íirme a liberdade nascente. É este o seu voto na questão da regência. Deseja para esposo da rainha quem se una estreitamente aos interesses, sentimentos e patrim<) dos portuguezes. '■ r^mquanto, diz elle, não vir organisados em todo o reino (3^ batalhões civicos, não cessarei de clamar pela execUçfK:) da lei da sua creação, porque estou convencido que >em e>ia l«'irça. que e a ba^e principal da^ instituições livres, a sei;urança individual e d'> e>taJ() será nenhuma; a voz da tribuna publica emmuJecerá e a 548 imprensa aterrada desapparecerá. Também não cessarei de pedir a liberdade da imprensa e a responsabilidade dos ministros.» Um proscripto dirigiu aos eleitores outra carta, atacando os que renegaram dos seus principios políticos e se tornaram sabujos do poder, a troco de rendosos empregos. Diz elle : «Ha, porém, no meio de nós homens mui perigosos e terríveis, que se cobrem com o nitido manto da constituição, dizendo-se liberaes, mas que, effectivamente, o não são, nem nunca o foram, e que entretanto inculcam a quem os não conhece que seguem o caminho liberal, o caminho da honra e da virtude, só para empol- gar o poder e gozar de altos empregos, fazendo a ridícula figura de cata-veiitos^ trajando librés segundo as circumstancias, quero dizer, sendo servis no tempo do servilismo, e perseguindo e mesmo pro- nunciando como juizes os liberaes no infeliz tempo da usurpação, e ostentando de constitucionaes, e até de republicanos, no tempo da constituição. Vós os conheceis muito bem ; e seus nomes, a par de muitos outros dignos, estão escriptos nos Diários das Cortes e mais pe- riódicos desde 1820 até 1828.» Quer também a liberdade da imprensa, as guardas nacionaes e a lei de responsabilidade ministerial. E contra os que serviram o governo de D. iMiguel. E accrescenta : «E não vos sirva de estorvo para elegerdes vossos dignos re- presentantes a decantada denominação de demagogos, que os escra- vos do poder e fautores do despotismo dão agora aos liberaes Jionra- dos e independentes^ para osfa^er odiosos aos povos e desvial-os da urna eleitoral. A estes, pois., é que deveis confiar vossos dictames., ele- gendo-os vossos representantes, quando por seus talentos, honra, probidade e amor da pátria, o tenham merecido. E ficae certos que n'isto fareis um grande e mui importante serviço a vós mesmos e á vossa pátria.» Todos estes escriptos e manifestos políticos nem uma só palavra dedicam á defesa da carta; guardam absoluta reserva a este respeito, talvez com receio da censura prévia ; mas a sua linguagem e os principios expendidos indicam claramente pouco aífecto a ella, e o 540 desejo de um código politico mais amplo e tolerante, que mais ga- rantias desse a esses principios. Sob o prestigio das armas de D. Pedro e sob o regimen da di- ctadura seria arriscado pugnar perante os eleitores pela reforma da carta constitucional, dadiva do immortal libertador. Reconhcce-se no emtanto n'essas obras pouca sympathia pelo regimen d'ella, e também se vê a cada momento a idéa da sua reforma, ou substi- tuição. O facto de seus auctores não escreverem uma só palavra cm de- fesa d'aquelle código politico, e ao mesmo tempo a defesa dos prin- cipios rasgadamente liberaes, mostram que houve receio de se fallar claramente aos eleitores. A censura não toleraria o minimo ataque, nem á pessoa do imperador, nem á sua obra chamada immor- tal, código sagra Jo, precioso thesouro, dom divino, etc. etc. Mas os ataques indirectos d'aquelles manifestos politicos são bem sensí- veis e claros. O dr. António José de Lima Leitão também se dirigiu aos elei- tores, para os orientar no seu voto. No seu cscripto manifesiu-se claramente pela carta constitucional ; mas colloca-se nas fileiras do partido avançado, cuja causa defende. Pertence aos cartistas con- tradictoriamente liberaes e democratas. Foi eleito deputado ás cur- tes legislativas de 20; mas não chegou a tomar assento; porque, ao chegar a Lisboa, encontrou a Revolução por terra. Como democrata faz a apologia d'essa Revolução. Expondo as tradicç(5es liberaes do povo portuguez e a sua historia antiga, passa ã nossa historia moderna. F diz: «Rebentou em Portui;al, como fresco exemplo da Hespanha, a brilhante épocha de 1S20: viu o mundo em nós. a par de um forte e honroso enthusiasmo nacional, quanto as idcas de liberdade e de ordem se haviam incutido n*a- quelles que a revolução franceza instruirá primeiro de longe c de- pois bem perto. Todas as partes da monarchia resp()nderam loj^o e com jubilo ao brado da mãe pátria; os portuguczes da (^hin.i. Jo Indostão, do Zanguebar. da (luiné, do Brazil, e das divcr>as ilhas, fizeram causa commum com os da luiropa c começaram a íazel-a de boa fé. .Mas, p^>r desgraça c ludibrio no.s^o, apagou- se em brL'\'e 550 esse facho de honra e de prosperidade nacional que poderá ficar acceso e medrar. A crédula e imprevidente confiança de represen- tantes novéis e a própria incapacidade da administração abysma- ram Portugal de novo no pélago do despotismo.» Diz que o acaso nos trouxe a carta constitucional em 1826; mas, em vez de nos curar as feridas ainda frescas, metteu-nos em casa a guerra civil, e, afinal, abriu caminho á usurpação e á mais fe- roz e louca das tyrannias. E depois d'isto sustenta que a parte sen- sata da nação quer o systema representativo segundo a lettra e o espirito da carta ! Não tem explicação possível esta contradicção do auctor; mas não é só elle; todos os cartistas liberaes e democratas são contradictorios, porque sustentam um absurdo e uma contra- dicção. A liberdade e a democracia são irreconciliáveis com a carta. Passa o auctor a fazer a apologia da liberdade, apontando o exemplo da Inglaterra como digno de se seguir. Paliando da escolha dos eleitores, pede ao paiz se acautelle das seducções e meios de corrupção do poder, que é tanto mais para te- mer, quanto dispõe de muitos meios de seducção, de toda a sorte de dadivas, de promessas e até de ameaças. O ministério é um meio necessário, pelo qual obra o poder real; é para o corpo politico, como o braço para o corpo humano ; mas sujeito á fraqueza e cançasso; cumpre vigial-o. E um agente de um poder que por sua natureza tende a estender-se e a exorbitar; é preciso obstar a que elle passe alem dos limJtes que a constitui- ção lhe marca. Mas o auctor ignora que isso é impossível dentro da carta, que tende a dar toda a preponderância ao poder execu- tivo. O mesmo auctor, ao ver que D. Pedro trouxera comsigo os emigrados mudados em idéas e sentimentos, e que os tornara sa- bujos das suas vontades e caprichos, investe contra elles, e pede aos eleitores que os excluam, extremando-os porém dos honrados e inde- pendentes. Diz que a liberdade tem inimigos ostensivos e encobertos; os primeiros são dignos de respeito; mas os segundos teem só na bôcca 661 O nome do bem publico; uns soltam arteiramente expressões con- tra esta ou aquella disposição da carta, e outros mais ou menos se ufanam em obstar a ellas d'este ou d^aquelle modo, com egual pre- texto, ou com o de ainda serem de execução extemporânea; e ainda outros, com os palavrões sediços de exaltação e moderação, preten- dem coarctar todos os voos do espitito publico endereçados á sus- tentação firme da liberdade, e reduzir-nos ao quietismo e indiífe- rença, que só se compadecem com as formulas mortiferas em que assenta o regimen absoluto, (i) A allusão aos realistas constitucionaes. ou conservadores, c bem frisante. Vê-se, portanto, que o partido liberal, apesar da censura prévia e das leis draconianas da regência de D. Pedro, sahiu-se com uma campanha enérgica contra esta, e a favor dos seus principies. O governo e o partido ministerial compostos de renegados e de validos, a quem foram distribuidos bons empregos e muitas graças regias, encostaram-se ao nome do iiiwun-tal libertador, para com elle exercerem pressão sobre os eleitores, e desacreditarem os da opposição. O próprio D. Pedro interveio a favor dos seus validos. No dia 14 de junho passou revista aos batalhões voluntários, e aproveitou esta occasião para lhes proclamar, pcdindo-lhes obediência a elle e ás suas auctoridades, como seu primeiro dever. Depois de lhes agradecer a cooperação que lhe deram na de- fjsa da causa da rainha, termina: «H mister que todos os portugue- zes se mostrem cada dia mais dignos de gosar d'aquella liberdade que eu muito folgo de lhes ter ajudado a adquirir, e que pela obe- diência e respeito ás leis e auctoridades constituidas dcsnuiitain jx caluniiiias que os ininiissos intenuis e externos das instituiçnes liberaes lhes assaeani. Ku e^pero que v(')s tereis sempre presente o que \')S recommendo.» Pede a(\s batalhões que \ão dcscançar para suas casas, e que seja >cu primcin; de\'er a manutenção Ja ordem publica contra os 552 seus pertubadores e a manutenção das auctoridades constituídas em nome da sua legitima rainlia e da carta. A imprensa ministerial tomou logo aquellas palavras do immor- íjI dador, para chamar os eleitores á obediência ao governo e suas auctoridades. Com ellas fez grande barulho e reclames ao seu pro- tector. É mui característico um artigo que a este respeito escreve a Chrotúca de Lisboa. Por elle conhecerão os nossos leitores que para os realistas constitucionaes a substituição de D. Miguel por D. Pe- dro foi apenas uma mudança de pessoas. Já exposemos os artigos louvaminheiros que os jornaes realistas puros dirigiram a D. Mi- guel; bom é que se conheça a linguagem que os cartistas constitu- cionaes empregaram n'este momento para com D. Pedro. E fatigante acompanhar a Chronica em toda a longa série de adjectivos incensadores dirigidos a D. Pedro. Pedimos aos nossos leitores paciência, para lerem o que se segue. E importante conhe- cerem-se os reclames que se fizeram ao chamado libertador dos portuguezes. Diz o jornal realista constitucional o seguinte: "O guerreiro invicto, o dador das pátrias liberdades, o restau- rador d'ellas, o defensor do Porto e de Lisboa, o príncipe de cujo braço estiveram pendentes os destinos da pátria, o heroe mais que nunca admirável, portentoso no meio dos horrores da miséria e da funesta perda de esperanças que a nossa situação fazia extin- guir em todos os corações, o duque de Bragança, depois de ter sal- vado a nação, anniquilado as forças do usurpador, instituindo a paz e a ordem do seu paiz natal, e lançar n'elle o mais solido alicerce da sua futura prosperidade, dirige aos cidadãos soldados da capital que o ajudaram na mais gloriosa de quantas empregas se tem aca- bado no mundo, algumas palavras, cuja simplicidade sublime arran- cou lagrimas a esses homens que se sacrificaram, que abandonaram todos os interesses humanos, para acudirem á voz do augusto re- gente.» Diz que só o imperador podia fallar d'aquella maneira, e pede o respeito ás leis e auctoridades recommendado por elle; porque 563 SÓ d'esta maneira se poderá manter o império da lei e da justiça em substituição da anarchia, «e até^ diz o jornal, /'ort/z/e uos tornamos ap-adareis ao príncipe que nos salvou da escravidão, e que ficará plenamente satisfeito e pago dos sacrifícios que por nós fez.») I^ergunta o que dariam os portuguezes desde 1828 a i83i a quem, pela sua preponderância, pela elevação do seu nascimento, pelo influxo do seu nome, e pelo seu alto valor e constância, apparecesse em campo a debellar o usurpador? Dar-lhe-hiam tudo, responde o jornal. Esse homem no emtanto não apparecia e impossivel fora achal-o. Nenhum nome da Europa era tamanho que bastasse para tal em- prega. Os jornaes realistas puros disseram que a vinda de D. Miguel á terra fora annunciada por uma prophecia muito antes do seu nas- cimente; chamavam -lhe o enviado celeste sob a protecção do ar- chanjo S. Miguel, e o enviado do Senhor. Eis o que diz o jornal realista constitucional que blasona de defensor do povo e da liber- dade. «No meio, diz ainda a Chronica, das nossas maiores angustias a Providencia fez apparecer entre nós o duque de Bragança; depois da sua apparição succederani-sc os prodigios: e operando-os^ o qual mais espantoso^ consegue sua magestade imperial, á testa dos seus valentes, derribar o eJiticio da tvrannia em Portugal, edifício enco- rado no absolutismo da Europa e fundado no terreno da ignorân- cia, do fanatismo e da mais desmedida ambição. E cotun quer o generoso príncipe, a quem Portugal deve a sua existência politica, que os portuguezes paguem tamanhos serviços? • Obedecendo ás leis e ás auctoridadcs da rainha, mantendo a ordem e observand'> a carta, dando-se de si bom nome e fama en- tre as nações civilisadas, a cujo grémio ha pouco foram chamados, e deixando por falsarios e mentir(^s(\s os nos.sos inimigos.-^ E diz o jornal que não crê que os portugue/.cs. depois de ^al- vos, neguem ao seu libertador e>ta única recon^ípcnsa que exige d"el- Ics. Nunca os portuguezes foram ingratas a neu-> i^rincipc^. fi ( I ('.líruui .7 ./'■ lj>bf^>J. :: " 14 i. 554 Em presença d'este artigo ninguém dirá que se não estava em pleno reinado de D. Miguel. Elle tem mais importância, do que parece á primeira vista; e por isso o transcrevemos. Ahi estão as legitimas consequências da intervenção de D. Pedro na questão portugueza e pedida por Palmella; e ahi estão também as legitimas consequências da exclusão dos liberaes da expedição ao Porto. Com esses reclames os realistas constitucionaes pretenderam attri- buir exclusivamente a D. Pedro as victorias da campanha contra D. Miguel, ou a liberdade do povo portuguez. Não foi este que se libertou por suas mãos; nenhum nome da Europa era tamanho que bastasse para tal empreia; foi precisa a intervenção miraculosa da Providencia, que fez apparecer um príncipe de sangue divino. E de- pois da suaapparição succederam-se, eífectivamente, prodígios, que foram o espanto de todo o mundo ! Isto caracterisá muito bem o realismo constitucional, que no fundo em nada diíTere do realismo puro. O governo e o partido ministerial estavam orgulhosos com o apoio d'esse a quem, segundo elles, cabiam as glorias da maior em- preza que se tem acabado no mundo, e para a qual não havia na Europa nome tamanho; por isso falavam do partido liberal com tanto desprezo. Referindo-se aos candidatos da opposição na cidade do Porto, diz a Revista de Rodrigo da Fonseca Magalhães o seguinte: «Dizei de boa fé homens crédulos que vos deixaes levar das lamurias dos Leoneis, de antigalhas nojentas dos Passos e de ser- mões soporiferos de seus confrades em politica e ambições, dariam esses obscuros e despresiveis entes garantias eguaes para o credito nacional ás que dá o governo de sua magestade imperial? A per- gunta é oífensiva» (\). Eis como os realistas constitucionaes, successores dos pahnellis- tas, tratavam o partido do povo em comparação com os do partido do throno, que só era capaz de manter o credito nacional. Os ho- mens do partido popular eram entes obscuros e despresiveis I O mesmo diziam os realistas puros, (i I J\c}'isía n." 44. 555 Toda a imprensa governamental começou a denegrir o caracter dos mais honrados e austeros chefes do partido liberal e democrá- tico, acusando-os de ingratos para com o libertador dos portugue- zes, de ambiciosos do poder, de amigos da desordem e da anar- chia. de pretendentes a empregos, como os membros tamintos d'es- sa imprensa, e até de anti-patriotas! A Revista^ emquanto defende os emigrados que se acercaram de D. Pedro, prestando, diz ella, relevantes serviços ao paiz, e por isso são os únicos dignos do sufTragio popular, dirige todos os no- mes injuriosos aos que atacaram D. Pedro no estrangeiro e oppo- zeram-se ás suas arbitrariedades. Alludindo a Francisco António de Campos diz que, emquanto o duque de Bragança empenha- va as suas jóias para resgatar do captiveiro a nação portugueza, emi- grados houve que renegaram da pátria, dizendo que tanto viviam em Paris, como cm outra capital do mundo, que nem um real gastariam com Portugal, e que não acompanhariam a expedição de D. Pedro, que não serviria senão para engordar o matadouro de D. Miguel! íi). A calumnia c a arma de que se servem c se serviram sempre os validos, quer sejam realistas puros, quer sejam realistas consti- tucionaes. Diz o senhor Soriano que todas as attenç(5es dos ministros, dos seus delegados e clientes, se dirigiram a conseguir deputados seus partidários. Foi por isso que o governo mandou pôr em execução a lei eleitoral que um ministro das mais altas tendências despóticas publicara para as eleições de 182'). Os prefeitos, sub-prcfeitos e provedores acarretaram sobre a indispcxsição que já tinham a de odiosos instrumentos das eleições, convencidos de que o mérito para estes trabalhos devia estar a par das suas respectivas func- ções administrativas. ('('.ontando, diz o aiictor, com a impunidade, como bons agentes eleitoraes, sobre os povos seus subordinados forçosamente liaviam de fazer recahir então todas as vexações e arbitrios a(^ seu alcance, favorecendo-se os amigos, e opprimindo-se os inimi^'o.s politios I I ' Rcrist.t n." .^v 556 por toda a forma e maneira, até ao ponto de equivaler a sua au- ctoridade á despótica dos antigos juizes de fora e capitães-mores. Era assim que se manifestavam já todas as tendências para se con- stituir este reino nhima espécie defendo eleitoral^ de que os minis- tros queriam dispor em seu próprio proveito e no dos seus clientes, plantando-se com similliaute feudo uma boa parte dos vicios da anti- ga orgauisação social^ posto que debaixo de outras formulas.» (i) Tal o que nos diz um contemporâneo dos factos! Por acaso o senhor Soriano descobriu uma phrase feliz, para se exprimir a substituição do realismo puro pelo realismo constitucio- nal. Este implantou no paiz um feudo eleitoral. As eleições deviam ser a expressão da vontade suprema e augusta que presidia aos destinos do paiz e que era a única soberania de direito e de facto, filha do direito divino e feudal. A vontade absoluta do imperante foi substituída por um feudo eleitoral., o verdadeiro regimen da legi- timidade em que assentava a carta constitucional. O governo e os seus partidários empenharam-se por excluir por todos os modos os emigrados, que em Plymouth, em Paris e na Bélgica, fizeram opposição a D. Pedro, e que foram excluídos da expedição á Terceira e ao Porto. Quizeram tornar-se agradáveis ao príncipe que nos salvou. Empregaram para isso a calumnia, as in- jurias e todos os meios que esses aduladores dos reis até hoje não cessaram de empregar contra os liberaes e defensores do povo. D. Pedro tentou derrotar os seus adversários, indo em pessoa ao Porto, onde a opposição era mais forte, e por onde se propu- nham os Passos e outros chefes do partido popular. Vendo que o prestigio do seu nome até ahi vencera todos os obstáculos, e que diante da sua presença se curvaram ainda os mais independentes, julgou que os povos do norte não se atreveriam a contrariar-lhe a vontade. A cidade do Porto portou-se admiravelmente; recebeu o seu hospede com todas as provas de respeito e estima; obsequiou-o o mais possível; mas a sahida, diz o senhor Soriano. elle levou com- iT) Cerco do Porto. Tomo ii, pag. 548. 657 sigo a convicção de que a sua presença pessoal nada influirá nara amortecer a opposição á sua politica e aos seus ministros. l^m facto por si só caracterisa as arbitrariedades do governo durante as eleições. D. I^edro, como vimos, deu amnistia plena, não só aos miguelistas, como a todos os crimes politicos. Ao abrigo d'essa lei vieram para l^ortugal todos os emigrados. Entre estes havia um a quem D. Pedro votava ódio profundo, por causa dos seus escriptos a respeito da regência que elle assumiu. Rodrigo I^into Pizarro veiu para Portugal, para se apresentar aos eleitores. D. Pedro tolerava tudo, menos que esse homem fosse eleito pelo povo. O governo, para se lhe tornar agradável^ na linguagem da Chronica de Lisboa, remetteu ao tribunal de policia correccional o processo que D. Pedro cm Paris mandou instaurar contra elle. Os juizes de nomeação régia promptamente pronunciaram aquelle ho- mem que se pretendia atfastar do parlamento. Antes, porém, que o jury ratificasse a pronuncia, ou mesmo antes que a considerasse contra lei, o ministro do reino, em nome do imperador regente ordcn(3U ao prefeito da Extremadura que intimasse Pizarro a sahir immedialamente do reino 1 A vontade do immorlal duque de Bragança estava acima da lei e da própria constituição d'elle emanada. O prefeito, para também se tornar agradável ao immortal liberta- dor, não esteve com meias medidas; e do palácio da prefeitura expe- diu uma portaria ao provedor do 2." districto de Lisboa, ordenan- do-lhe que procedesse á captura de Pizarn^, e que o conduzisse á torre de S. Julião da Barra, acompanhado por uma escoltai Pizarro estava hospedado na hospedaria de Maria l. na rua do Prior, n." 3. \\s\d foi cercada de soldados, e n'ella entrou o provedor com a ordem de captura. Pizarro declarou que nã<> reco- nhecia a auctoridade de quem emanava a ordem, por não í>cr daí> constituidas pela carta. () duque de P)ragança era um príncipe estran-íciro, que arbitra- riamente assumira a regência que elle nunca rcLoiiliccera e a quem nunca jurara obediência. Declarou mais que tinha recebido carta> de Londres, em que o a\i-^a\"am de que o queriam a>sas>>inar eir. 558 Portugal, e que D. Pedro era mui capaz d'isso, como provam os assassinatos que no Brazil mandou praticar contra portuguezes e brazileiros; que outro assassinato estava premeditado; mas que tinha duas pistolas para responder a quem ousasse leval-o d'onde estava. E pegou n'ellas. Disse que o governo o perseguia, porque se oppoz sempre aos seus actos, que todos os empregados públicos estavam vendidos ao governo e que os que ainda o não estavam era porque não tinham chegado ao preço. O provedor, em vista da resistência, sahiu, deixando a casa com sentinellas á porta, e deu parte á prefeitura, perguntando se devia empregar a força ; foi-lhe respondido que sim. Pizarro foi agarrado e preso á força, e posto em incommunica- bilidade! Xão foram os homens de 26 que praticaram essa violência; mas novos personagens que entraram na scena politica em serviço da legitimidade e do regimen da carta, os quaes ninguém pode ac- cusar de miguelistas, como falsamente accusam aos que serviram a regência de Izabel Maria. Os servidores de D. Pedro entraram no mesmo caminho de violências dos servidores d'esta princeza. Aquel- la desculpa não serve, para livrar os cartistas puros das responsa- bilidades dos ministros de 1826 a 1828. A regência de D. Pedro foi o que foi a regência de Izabel Maria e a regência de Palmella em nome da rainha e da carta, e o que foram todos os governos que desejaram interpretar esta fielmente. Apesar de todos os meios acima expostos e empregados pelo governo para vencer as eleições, a opposiçã^ obteve no Douro 27 deputados e o governo apenas 1. Este ganhou as eleições no primei- ro escrutínio de Lisboa, mas no segundo a opposição obteve o mes- mo numero de deputados! Pizarro sahiu eleito pela província do Douro. Continuou no se- gredo por espaço de 40 dias, e esteve preso seis mezes, sendo de- pois absolvido pelo jury, o maldicto jurv sempre prompto a resistir ás prepotências dos governos e auctoridades. No capitulo seguinte veremos o que se passou na camará com respeito a esta eleição. 659 Os Passos e Leonel e todos os que I). I^edro não queria vér no parlamento mereceram a confiança dos povos e foram eleitos depu- tados ! Imagine-sc que esforços heróicos não empreitaram os 1 beraes, para levarem ao parlamento todos os seus chefes, não obstante o rei^imen politico da carta, o regimen administrativo e judiciário da dictadura, não obstante a lei eleitoral em dois giáos e o censo, não obstante a imprensa estar sob o regimen da censura, e não obstante, finalmente, a violência do governo, dos prefeitos, sub-prefeitos, provedores e juizes dos tribunaes correccionaes. Foi uma victoria de que se podem gabar poucas nações. A espada de D. Pedro, a dictadura de D. Pedro e o prestigio pessoal de D. Pedro, não conseguiram corromper a nação, como corromperam os chefes mais importantes dos i>iníislcis^ que, para agradarem a seu senhor, se deshonraram c praticaram todas aquel- las violências e tropelias! O governo obteve maioria nas povoações ruraes, mais sujeitas ao poder e influencia dos palácios das prefeituras, a que não podiam resistir, como os centros populosos. I-^stes deram á opposição uma grande e valente minoria. CAPITULO V O IMPERADOR E O PARLAMENTO Sessão real. — Discurso do throno. — Passos Manuel o leader da opposiçâo. Rodrigo da Fonseca Magalhães o da maioria. — O governo propõe a continuação da regência. — O ministro competente pede dispensa do regi- mento: a opposiçâo insurge se, e o parlamento não a concede. — E nomeada uma commissáo especial para dar o seu parecer. — Este é apresentado immediatamente no sentido do projecto do governo. — Saldanha defende a regência e faz a apologia do imperador. — Discursos servis e bajuladores, em que se pretende im- por a regência com os seus serviços do imperador. — Passos Manuel combate a regência por illegal e contra a carta e insurgese contra as bajulices. — Questão do casamento da rainha. — Parecer da commissáo. — Leo- nel Tavares quer saber quem é o principe a quem D. Pedro destina a filha; a maioria reputa isso otfensivo da pessoa do imperador. — Mais uma vez é rasgada a carta constitucional.— No dia 6 de setembro é apre- sentado o parecer da commissão, dando por nulla a eleição de Pizarro. —Os deputados da opposiçâo mostram as contradicções dos documentos apresentados e dizem que não satisfazem a camará. — O ministro da justiça responde que não auctorisa nenhum deputado a fazer essa declaração. — O governo defende o procedimento arbitrário e illegal do prefeito. — E negado á camará o direito de inquerir se Pizarro foi, ou não, legalmente preso.— A prisão eiTectuou-se não por mandado judicial, mas administrativamente.- Passos Manuel propõe que Pizarro seja chamado á barra. -Os deputados da maioria oppõem-se. — Saldanha defende a eleição de Pizarro.— Informações importantes do deputado que foi p.esidente da meza eleitoral.— A camará rejeita a proposta de Passos Manuel. — Prosegue a discussão sobre a validade da eleição. — Sessão tumultuosa — O mi. nistro do reino declara Pizarro homem perigoso. — O governo manda torças para o largo das Còrics — Pro- testo dos deputados. — Incidente sobre a votação dos ministros.— A eleição é declarada nulla apenas por b votos de maioria. Assim que os deputados chegaram a Lisboa, o governo empre- gou todos os meios de seducção, para dizimar as fileiras da oppo- siçâo ; tratou depois de organisar a maioria, de modo que ella se dobrasse facilmente á sua vontade e approvasse todas as suas me- didas. Três importantes questões se. iam ventilar, e todas ellas refe- rentes á pessoa do duque de Bragança : a questão da regência, a questão da eleição de Pizarro, e a do casamento da rainha. P^m qualquer d'ellas o governo queria tornar-se agradável ao immortal libertador, e por isso empenhava-se por obter votação com grandes maiorias. 661 Tratava-se de mostrar que os homens da opposição eram entes obscuros e despresiveis diante do augusto ve^^eiitt'^ e que só este podia salvar o paiz. Vimos como os validos se serviram do nome e prestigio de D. Pedro, para obterem dos povos deputados seus; agora vejamos como elles procederam n'aquellas tclo importantes questões. A sessão real de abertura das cortes teve logar no dia marcado, isto é. no dia i 5 de agosto, no meio das solemnidades pomposas dos velhos tempos, e á similhança da abertura dos três estados por D. Miguel. D. Pedro appareceu, como se fosse realmente o verdadeiro rei, rodeado da sua corte. Proferiu o discurso do throno. Fez a historia da usurpação do irmão e da guerra civil, dos actos da sua regência e das reformas encetadas em dictadura; e passou depois a indicar as medidas que o seu governo tencionava apresentar. A primeira ques- tão que as cortes tcem deseoccupar éa da continuação da regência d'elle ; a segunda a do casamento da filha, isto é, a auctorisação para ella casar com um príncipe estrangeiro. Fallou da necessidade da lei da responsabilidade ministerial, da que deve estabelecer os casos da inviolabilidade da casa do cidadão, da lei regulando a expro- priação por utilidade publica, do estabelecimento de casas de cari- dade, das leis protectoras do commercio e das industrias e de me- didas sobre as províncias ultramarinas: mas tudo isto para armar ao elíeito somente ; porque o governo nunca teve intenção de apre- sentar projectos em tal sentido. O mesmo discurso do throno diz que pelo ministério da fazenda será apresentado o relatório do es- tado da fazenda publica : mas também ficou S(') em promessa. l'ma perfeita comedia este discurso da coroa. () verdadeiro chefe da opposição era já Passos Manuel, apegar de novo. Saldanha continuou a mí)strar a doblez do ^ou caracter, a sua volubilidade e dissimulação, depois que 1). Pedro o n'>mcou chefe do estado maior e lhe deu ion:o lo-ooo reis. A[^es:ir d"i->so. os homens do partido liberal consiJcravan"i-n"o ci imo seu chefe, e ainda contiavam n"elle I O chefe d:i maioria era Rodrigo Ja 1'onseca Ma-:alhrie>. homem 71 562 intelligente, de espirito agudo e sagaz, instruído e orador dis- tincto. No dia 2 I de agosto foi apresentada a proposta do governo para a continuação da regência. Os ministros de D. Pedro, como se tratasse do immoríal libertador^ do grande homem cuio nome é ta- manho que não ha egual em toda a Europa, os ministros de D. Pedro, repetimos, quizeram n'esta questão dispensar o regimento da camará. O ministro competente pediu que se entrasse logo em dis- cussão, sem que a sua proposta fosse subordinada ao parecer da res- pectiva commissão. Isto era offender a auctoridade da pessoa de quem se tratava. A proposta do governo não era mais do que uma formalidade, para se não otfender a carta; de resto, o governo não admittia a possibilidade de ella ser rejeitada. A maioria estava se- gura ; mas desejava-se obter uma grande votação favorável, para ainda se tornarem agradáveis ao alto príncipe. Leonel Tavares e Silva Sanches oppozeram-se a que a pro- posta fosse posta á discussão, visto a sua importância ; foram de parecer que se devia nomear primeiro a respectiva commissão da camará, porque sem as commissões esta não estava constituída, nem podia funccionar, conforme o seu regulamento. Rodrigo da Fonseca Magalhães pediu a palavra, e disse que se devia entrar immediatamente na discussão da proposta do governo, porque tratava-se de um príncipe que havia dado á pátria a liberdade, e que o negocio era urgente, por ser este o voto geral da nação, em que era apoiado ; e disse mais que era este um assumpto sobre que se liaria já meditado muito! Apesar d'estas sabujices para com o regente, a camará decidiu nomear uma commissão especial, o que equivalia a outra sabujice, porque se creou um caso excepcional para a excepcional pessoa do immortal rei soldado, e^ do príncipe augusto que a Providencia en- viara a Portugal para o salvar da tvrannia. tleita a commissão, retirou-se logo da sala, e pouco tempo de- pois appareceu com o seu parecer favorável á proposta governa- mental. Ainda assim este parecer só no dia 2 5 foi discutido. É então que Saldanha, teito já marquez, descobriu as mudan- 563 ças que se operaram n'elle, depois que entrou nas campanhas da guerra civil ao lado de D. Pedro, que o presenteou bem, e que o augmeniou em honras e grandezas. Saldanha tez um enthusiastico panegyrico do imperador, que elevou ás nuvens, e cujos serviçf)s engrandeceu, como os seus va- lidos e afilhados. Sustentou que o artigo q2," da carta, que exclue da regência o imperador, não é artigo constitucional, e que, ainda que o fosse, deveria ceder-se á suprema lei da salvação publica, em que se teem fundado todos os déspotas e tyrannos. Saldanha che- gou a atlirmar que em todo o Portugal não havia quem o pudesse salvar e governar bem, senão o immortal e divino imperador! Sousa Azevedo sustentou que a regência competia ao duque de Bragança, por gratidão, justiça e vontade nacional. Dirige incensos áquelle príncipe, como um servo a seu senhor, e sustenta que. as- sim como o imperador podia succeder á coroa por morte da filha, assim também lhe compete a regência na menoridade d'ella. Os artigos da carta que regulam a ordem da successão c só de D. Maria II por diante^ mas não excluem D. Pedro, que não S() foi rei de Portugal, mas até o immortal dador da mesma carta. Alem d'isso era essa a vontade unanime da nação. «Este heroe, disse o orador, que foi o nosso rei, deixou de o ser por abdicar em sua augusta rilha, é pae da rainha menor, e o dador da carta, é o restaurador da nação, é com tantos titulos credor á nossa gratidão. Só temos a lamentar não podermos galar- doar em devida proporção os benelicios de que lhe somos deve- dores.» (i) N'isto levantou-se a íigura nobre, altiva e independente do de- mocrata Passos Manuel, successor de Fernandes Thomaz. F>a bondoso em extremo i;ráo, iieneroso como nini^uem, mas como ninguém incorruptível e incapaz de baixo servilismo. Respondeu a Saldanha já com um pe no realismo constitucional e outro no partido democrata, ou popular, que abandonou depois em pouvO tempo. 564 Com a carta na mão, Passos Manuel mostrou que a regência pertencia aos descendentes e coUateraes e não aos ascendentes, como D. Pedro. Não quer, como Saldanha, que se reformem os artigos constitucionaes da carta senão pelos processos que esta indica, os quaes são uma das mais importantes garantias dos modernos regi- mens políticos. Como membro do parlamento, saberá defender os princípios constitucionaes que se oppõem a essa regência. O povo quer a carta, e quem defende e deseja a carta não pôde desejar a regência em D. Pedro. «Esta contradicção, senhor presidente, disse o orador, vem de que esta grave questão não foi sobejamente discutida, nem a nação so- bejamente lllustrada. Digo que a questão não foi sobejamente dis- cutida, nem a nação sobejamente lllustrada. «Não fol»sobejamente discutida nem dentro, nem fora do reino, e digo as razões. Não o foi dentro do reino, porque a Imprensa es- tava nas mãos do governo e a nação com a mordaça da cen- sura, (i) «O ministério reservou para si o monopólio e o privilegio ex- clusivo da discussão e da imprensa. O ministério podia publicar francamente as suas opiniões, e nós não a podíamos combater, nem contradizer. D'ahl é que velu o extravio da opinião. «Eu preso-me de ser cidadão livre, e aqui declaro com a minha lealdade que antes quero vêr espedaçada minha pessoa, calumnlar e estragar meus princípios, que abater-me a defendel-os, vergan- do-me diante das forças caudlnas de uma commlssão de censura. A questão não foi também sufíiclentemente discutida fora do reino, porque os pamphletos que se publicaram contra a regência de sua magestade Imperial quasl que não serviram, senão de corpo de dellcto aos cidadãos corajosos, aos escriptores Intrépidos que ousaram ter uma opinião Independente e publlcal-a pela imprensa, seja para pedir a execução da carta, seja para Invocar a auctorl- dade do parlamento.^) {]') r^ecordem-se nossos leitores do que se passou a este respeito em 1827. 565 Defende Pizarro, o major Quintino e Saldanha, todos guerrea- dos pela regência da Terceira. Referindo-se ás doutrinas expostas por Sousa Azevedo a res- peito da ordem da successão á coroa, disse o orador : "Senhor presidente, um reino, e sobretudo um reino constitucio- nal, não é propriedade, nem património, de nenhuma pessoa, ou íamilia, e por isso não se pode applicar completamente á successão da coroa a legislação que regula a successão dos bens allediaes; a successão da coroa, segundo a fundada opinião do sr. Silvestre Pinheiro Ferreira, no seu Ensaio de Direito Publico, não se pôde regular senão pela lei constitucional de cada paiz.» O orador não regateia os elogios feitos a D. Pedro. Diz elle: «Senhor presidente, eu dou a minha plena approvação aos me- recidos elogios que se teem dado ao nobre principe; mas a honra e a gravidade d'esta casa não permiitem que nós assim oííendamo:» sua rara modéstia. Sua magestade imperial rejeita o incenso d'esses livres; para seu coração basta-lhe a approvação da sua consciência e o juizo da posteridade.» Depois de provar que o duque de Bragança constitucionalmente não pode ser regente do reino, propõe um alvitre para resolver a questão, e é que a camará envie uma mensagem á coroa, pedin- do-lhe que revogue o decreto que suspendeu a liberdade de im- prensa, o decreto das prefeituras, e o decreto que suspendeu as garan- tias individuaes, e que mande executar o decreto sobre as eleiçõe-^ municipaes; e, usando da sua prerogativa, dissolva immediatamente a camará eleita sob o dominio de todos aquelies decretos violentos, e que por isso não representa a vontade nacional, e que mande em seguida convocar um congresso constituinte. H partidário da sobe- rania do povo, e entende que s() por este meio se póJe airosamente resolver a questão e cicatrisar as feridas da pátria. > i •. l^iliaram ainda muitos deputados a favor e outros contra. .A questão dividiu os membros da op[^()sição, alguns do> quaes julga- ram ter graves consequências para o paiz o tirar-í>c a O. PcJrc^ a ( I I ^e^^ão de 25 de iiL;i»>to. 566 regência que elle arrogara a si mesmo e por seu moto próprio. En- tenderam que era melhor acceitar um facto consummado, do que estabelecer conflicto com D. Pedro. Além d'isso, as considerações pessoaes invocadas pela direita fizeram muito peso sobre a maioria parlamentar. E muitos deputados da opposição recuaram diante da idéa de ingratidão. Por esse motivo o parecer da commissão íoi approvado por grande maioria. Levantou-se, em seguida, a questão do casamento da rainha D. Maria II. Diz o artigo 90.° da carta constitucional que o casa- mento da princeza herdeira presumptiva da coroa nunca será feito com estrangeiro, e que, não existindo o rei ao tempo em que se tratar este consorcio^ não poderá effectuar-se sem approvação das cortes geraes. D. Pedro não queria casar a filha com portuguez e desejava á viva força casal-a com um príncipe estrangeiro seu predilecto, não obstante a carta. Os ministros renegados, e por isso tornados servis do principe poderoso, quizeram fazer-lhe a vontade. A carta não o consentia? rasgue-se a carta, porque é esse o de- sejo do seu immorlal dador e libertador dos portuguezes, o qual está superior á lei; representa a auctoridade suprema e soberana da nação. No dia 27 de agosto, o governo apresentou ás camarás a se- guinte proposta: "Sendo necessário dar a conveniente providencia para que sua magestade fidelíssima a senhora D. Maria II, rainha de Portugal, possa casar com principe estrangeiro, manda sua 7nagestade impe- rial o duque de Bragança^ regente, em nome da mesma augusta se- nhora^ propor á camará dos deputados da nação portugueza este importante negocio.» A proposta foi para a competente commissão, que apresentou o seu parecer no dia seguinte. Diz ella que cm Portugal não ha pessoa idónea para casar com a rainha, e que seguir-se-hiam grandes ca- lamidades^ se se executasse á risca o artigo da carta. 667 E accrescenta : «E attendendo a que um negocio de tão grande importância não pôde ser eífectuado melhor, do que a apt'a{miento de sua majes- tade imperial regente^ pae e natural protector de sua majestade Jide- lissima^ é de parecer que o casamento da rainha reinante, a senhora D. Maria II, se trate com j^^rincipe estrangeiro, e possa eílectuar-se a aprazimento de seu pae, o senhor duque de Bragança, regente em nome da mesma augusta senhora, declarando e dispensando para este caso, e por esta ve^ sãmente^ o artigo (jo." da carta consti- tucional. » Houve renhida discussão, querendo os deputados da opposição que se não rasgasse a carta, logo no principio da sua execução, o que era tirar-lhe toda a sua auctoridade. Outros deputados concor- daram na dispensa do artigo, mas exigiam, em compensação, que o casamento se etfectuasse depois com o consentimento das côrte>; e o deputado Leonel Tavares disse que era preciso que se >oubesse quem era o principe a quem D. Pedro destinava a filha, para as cortes consentirem no casamento. O partido ministerial empregou os seus costumados sophismas e argumentos sabujos, para sustentar o parecer. (>omo na ques- tão da regência, houve até quem sustentasse que o parecer não era contra a carta constitucional, e que não era precisa a dispensa pe- dida, porque o artigo 90." não tinha applicação ao ca.so sujeito ! Outros sustentaram que rejeitar o projecto era ir contra a coiifuinça que a nação devia ter na pessoa de D. Pedro, que por um acto generoso da sua vontade outorgara a carta, e que libertara com a sua espada o povo portuguez. O deputado Aleixo, combatendo indignado a exigência Jc Leo- nel Tavares, disse que contestar que a nação deposita toda a sua conliança em D. Pedro, nas suas virtudes e sabedoria, seria negar o bom senso. "Sim, disse este servil, exigir de uni pae. cmjio <> sc- ii/mr D. Pedro, que diga a esta camará quem e o espn>() que Jc>- lina a sua filha, ou que apresente uma lista de candidatos. [\ira que Os senhores deputados os escolham, e suppor que o senhor 1). Pe- dro, nem cc^no regente, neni como pae, é capaz d"esta esòjjha: e 568 feril-o no mais sensível da sua alma; é, além d'isso, uma contra- dicção escandalosa; é uma injuria atroz para elle e para nós. Digo mais, não quero saber quem é esse príncipe para quem sua magestade destina a mão de sua augusta filha. Quem abdicou duas coroas, quem plantou a liberdade nos dois mundos, quem superou os obstáculos de uma iniquidade systematíca, quem, n'uma palavra, sacrificou toda a sua existência á liberdade^ não depe dar mais ex- plicações a esta camará; porque é esta mesma camará que o não deve querer. Sim^ isto é que é nobre., isto é que é generoso^ excepto para aquelles, com magua o digo, que, recebendo do sr. D. Pedro pátrios bens e honras conjunctamente com a carta, pretendiam, violando essa mesma carta., pôr limites e restrícções á sua regên- cia.» E com esta pressão e especulação com o nome e serviços de D. Pedro conseguiram os validos que a camará approvasse o pare- cer por 70 votos contra 28 ! D. Pedro respondeu á deputação que lhe foi levar a approvação das camarás, dizendo que agradecia a prova de illimítada confiança que as cortes acabavam de lhe dar. Declarou que escolheria um príncipe todo dos seus princípios, disse elle, que faça a felicidade da filha e da nação e que seja capai ^^ defender com a espada a independência nacional, o throno da rainha e a carta constitucio- nal. Passou-se á questão Pizarro, talvez mais grave que a da regên- cia. Era uma questão mais pessoal do que aquella. D. Pedro não queria, por modo algum, que fosse validada a eleição de um homem que o hostílisara com tanta audácia. A Norma da regência estava- Ihe atravessada na garganta ; queria vingar-se e empregaria todos os meios para isso. Os validos, sabujos e cortezãos, redobraram de esforços para se tornarem agradáveis a seu amo e senhor. Os mi- nistros, executores da auctoridade augusta da nação, segundo a linguagem de 1826, puzeram-se em campo, para darem renhida campanha no parlamento contra a eleição de Pizarro. Todos os meios se empregaram perante a maioria e a minoria, a seducção, 569 a especulação com os serviços prestados por D. Pedro, ea ameaça. Tudo indica que o governo estava disposto a dissolver as camarás, caso tosse approvada aquella eleiçãí). Na sessão de C) de setembro, a commissão dos poderes apre- sent(Ai o seu parecer. Diz que a eleição toi posterior á pronuncia e que. portanto, não pôde o pronunciado tomar assento na camará. Elle toi intimado para comparecer perante o jury de ratificação de pronuncia ; mas deu parte de doente, e por isso não se pôde eííe- ctuar a audiência! Leonel Tavares e Silva Sanches notaram a contradicção que havia entre a portaria do ministro do reino que ordenara a expul- são do reino e o auto de dilii^encia do provedor que j^irocedeu á prisão; e notaram que entre os documentos apresentados não se encontrava a ordem pela qual se ettectuou a prisão. O ministro do reino declarou que do seu ministério não baixou nenhuma portaria n'esse sentido. Lcvantou-se então o ministro da justiça e, com os modos arrogantes dos ministros da regência de Izabel Maria, declarou que não auctorisava o deputado Leonel para atlirmar que a camará não estava satisfeita com os documen- tos apresentados. "JAi, disse o ministro com o rei na barriga, sou um membro da camará ; nem lhe dei semelhante auctorisação, nem lhe darei ja- mais poderes para me representar. " instava forte com a auctoridade augusta do regente que repre- sentava. Ca mo o visconde de Santarém e D. Francisco d"AImeida em 1827, não admittia censuras dos deputados da nação. (J ministro da justiça não quiz explicar a razão porque o pro- vedor procedeu ã prisão, em \ez de intimar ao dejnitadu eleito a expulsão do reino < seguiu, disse o ministro, aquella ordem .jitc jul- i!ou couvciiiciitc, attentas as circunislancias. para execução d"clla. Xão c c.s/a (iccasião propiia Jc iihjiicrir se o prcfciti) í'c~ l\iu. oii mal. ainda que á vista dV'lhis eu entenderia que Jc\ia ta/cr o iiie>mo: c e necessário não considerar o tacto isolado das circiini^taiicia.s de que se resestiu. O que me parece e .jiic, Jcyois auc sj Jcclarait que não liaria ou/i-a yoiiaria. iiãn tem lo^ar pcdir-sc, c qiicfnssc qual 670 qual fosse o procedimento do prefeito^ isto nada injlue na ques- tão. » Diz que a questão está em saber se Pizarro foi, ou não, pronun- ciado, e que não compete á camará entrar na questão se foi bem., ou mal., pronunciado ; que isso compete aos tribunaes! A mesma doutrina de 1826 a 1828: os ministros não teem que dar contas dos seus actos aos representantes do povo ; são execu- tores da vontade augusta perante a qual somente são responsáveis. Essa vontade augusta queria que Pizarro fosse preso ; e prendeu-se Pizarro; ás camarás não compete inquerir por que portaria. Foi preso ; porque foi preso ; assim o ordenou o imperador. Que mais queriam ? É o que dá a entender claramente o arrogante ministro da jus- tiça, o valido de D. Pedro. Leonel Tavares replicou, dizendo que, como particulares, con- fiava nos homens públicos, mas não n'esta qualidade, e que era ur- gente saber se o prefeito exorbitou das ordens recebidas do minis- tro do reino, afim de se saber quem deu motivo ao procedimento contra o deputado eleito. Barjona notou que o auto de diligencia diz que a prisão se ef- fectuou por ordem superior, mas que o ministro do reino declarou que não ordenou a prisão. Opinou por que se investigasse se o pre- feito abusou, ou não, para ser punido no caso afíirmativo. Note-se que a prisão, eífectuou-se não por mandado do poder judicial, porque não se tinha ainda verificado a ratificação da pro- nuncia, mas por uma ordem administrativa ! Passos Manuel sustentou o direito que tinha a camará de cha- mar á barra o deputado arguido, e de tomar conhecimento do seu processo. Quando a camará investiga o caso do coronel Pizarro e exa- mina a legalidade do processo, ou quer verificar se as formalidades se guardaram, ou se os factos são verdadeiros ; usa dos seus direi- tos. Se se provar que Pizarro está legalmente eleito, são os depu- tados os juizes competentes para a ratificação da pronuncia. O orador refere-se á especulação com as qualidades do príncipe 671 D. Pedro, e diz que essas qualidades e a confiança em D. Pedro estão decidindo muitas vezes as votações das camarás. «Eu queria, pois, disse elle, que se tirasse d'aqui um meio tão perigoso de inlluencia e que é por extremo poderoso para muitos espiritos. Não digo isto por mim. porque a confiança que tenho no príncipe é menor do que o respeito que tenho pelos princípios. A minha opinião é que o chete do poder executivo obvia ser sempre máo, porque os bons príncipes deitam a perder a liberdade. As suas boas qualidades tornam os povos demasiadamente indolentes e con- fiados ; e é esse o peior de todos os symptomas. '> E cita para exemplo a revolução de 3o, que depositou demasiada confiança em Luiz Filippe, o rei cidadão, e por isso se enfraqueceu o espírito de discussão, de exame e de opposição. que sempre dis- tinguiu os francezes sob o regímen dos Bourbous. O orador está firme em votar a favor de Pizarro; mas quer sempre examinar os documentos e ouvir as discussões, para ver se ellas podem alterar a sua opinião. «Aqui, disse elle, não nos impor- tam os homens, mas os princípios; e eu desejo que o meu voto seja sempre a favor da lei e da liberdade.» A Rcrista do rábula Rodrigo da F^onseca Magalhães, exclue o discurso do deputado J. A. de Magalhães. Porque!' O auctor da Belfcstada^ e já por nossos leitores bem conhecido, começou seu discurso dizendo que lhe parecia que o que havia dado origem a esta conversa. ^^^Muitas vozes do lado da opposição. — Xão é conversa, não é conversa.) O orador continuou repetindo que o que dera origem a esta conversa, foi o colligir-se das porta- rias d<:> ministro do reino e do j^rcíeito que aqucllc mandara sahir do reino Pizarro e este o mandara prender. l-^ diz que o prefeito ordenou a prisão, para as>im executar me- lhor e mais ellicazmente a ordem recebida. Se a>sim !oi. não ap- prova o seu procedimento; mas não ptUe entrar a.;«)ra no conhe- cimento d'este negocio; porque quaesquer esclarecimentos pedidos nã(^ vêem para o caso, mas tão .somente para se f<)rmar culpa, ou a elle. ou ao ministro, sendo, porem. cert(^ que nã<> ha uma portaria d'este ordenando a prisão. .Mas. se a hou\'c>^e. di>,se o curador, não 572 era necessária para a discussão do parecer que está baseado em sufficientes informações, para se tomar d'elle conhecimento! Com- bate a proposta de Passos Manuel para Pizarro ser chamado á barra, e observa que a liberdade é um alimento de uma digestão mui difficultosa. Em 1820 não" pensava assim. O orador, referindo-se a um deputado que fallou do caso de es- tar um deputado entre ferros, exprimiu-se assim com ar de mofa «... um cidadão em ferros! . . . privado da sua liberdade! . . . Isto reclama a consideração de todo o mundo . . . » Um deputado*, cujo nome não vem na Ga^eíta Official^ disse que o que acabava de ouvir era perigosíssimo, porque offendia e cortava pela raiz a liberdade da eleição, e se se não apurasse a verdade, as eleições seriam feitas á vontade dos governos. «Em um ministro querendo, disse o orador, acompanhado de dois esbirros ahi vae fora um homem, em quanto a nação tinha toda a confiança n^elle; ahi fica sem occupar a cadeira, que aliás lhe estava destinada, pren- dendo-o e pronunciando-o : eis aqui o que se tem ponderado ; e quem não dirá que isto é que em demasia concorre para deixar impunes os factos criminosos?» N'este ponto foi interrompido com as palavras — ordem! ordem! O orador perdeu o fio das ideas, e d'ahi por deante não se com- prehende bem o que sustenta. Fallou Rodrigo da Fonseca a favor do parecer da commissão, e sustentando que esta não precisava de mais esclarecimentos dos que lhe foram apresentados, nem mesmo os ha, como declarou o ministro do reino. A camará nada tem com o prefeito; elle respon- derá pelo excesso, se o commetteu; mas responderá, quanto se proceder em forma, na accusação de que está ameaçado. Fallaram ainda muitos deputados em favor do parecer e outros contra, até que Passos Manual pediu novamente a palavra, para mostrar a inconveniência de se terem copiado no auto de diligen- cia as expressões proferidas pelo preso contra o imperador, se é que as proferiu; e disse que receiava que isso influísse de uma maneira odiosa contra a justiça do deputado eleito. 573 O barão de Rendutre e Rodrigo da Fonseca Magalhães susten- taram o parecer da commissão a este respeito, dizendo que o pro- cesso depois da pronuncia é publico com todas as suas peças, c citando exemplos análogos em as nações estrangeiras. O governo declarou que não tinha mais documentos a dar. nem mais esclarecimentos, e por esta maneira deu-se a matéria por dis- cutida e terminou o incidente da prisão. A discussão da validade da eleição principiou na sessão do dia IO. Durou quatro dias, e foi campanha renhida, fallando os prin- cipaes chefes dos partidos em que estava dividida a camará, e mui- tos deputados. Impossível seria fazer um extracto das quatro largas sessões e accompanhar a discussão em todas os seus variados inci- dentes. K ditficil, senão impossível, conhecer-se toda a verdade. Diário das cortes d'este anno não existe; a Ga^ctta Ofjicial do Go- }'crno de propósito fragmentou essas sessões, e dispersou-as depois em vários números intercalados, de modo que o leitor tem ditficul- dade em descobrir o logar onde foram publicadas. A Revista do rábula Rodrigo áa Fonseca Magalhães segue o mesmo processo; e se chegou a concluir os extractos d aquellas quatro sessões impor- tantes, não nos foi possível sabel-o; porque nos fatigámos com o ler muitos números d'aquelle jornal, sem encontrarmos as ultimas sessões. Se foram publicadas é no meio do grosso volume em que estão encadernados os números do jornal existentes na Bibliotlicca Xacio- }ial de Lisboa. Luctámos com muitas diíTiculdades, para precisar bem os factos e a discussão. Saldanha sustentou a proposta de Passos Manuel : e disse que os ministros mostrariam que não tinham coragem para encarar a \icii- ma das suas arbitrariadades, se se oppuzessem a que cila mcn^c a camará defender a sua eleição, e defender-se das accusaçõcs que lhe eram feitas. Rodrigo da b^onseca Magalhães ci^mbateu essa idca, JizcnJo .]ue era contra a carta e o regulamento. Hcsponderam-lhe Leonel Tavares. (>a>tiIho, .1. .A. Jc (laiiip^^ e 574 Barjona, mostrando que, nem a carta, nem o regulamento, se oppu- nham a que o deputado eleito viesse á barra, a exemplo do que se pratica em França e n'outros paizes. Rodrigo da Fonseca, replicou, dizendo que Pizarro não estava eleito, porque achava-se pronunciado, quando teve logar a sua elei- ção. N'este momento pediu a palavra Passos Manuel, que proferiu um dos seus melhores discursos. Disse o orador que a camará podia rasgar a procuração do ci- dadão que lhe era odioso; mas que o direito d'elle subsistia. A tyrannia pôde arrojal-o para fora da camará; porém o cidadão ex- pulso não deixa de ser deputado e representante da nação que o elegeu. AUndindo ao direito de dissolução das camarás que se oppõem ás arbitrariedades dos governos, disse o orador. «Os deputados liberaes podem então ser expulsos d'esta camará, e a maioria abafada, ou podem ser proscriptos por uma maioria immoral, insolente. «Eis ahi o legado que deixaes a vossos netos. Vós não quereis estabelecer um precedente a favor da liberdade; porque hoje tudo se sacriíica á mais baixa vingança e ao ódio que inspiram os talentos de um cidadão infeliz, tão vilmente perseguido. «Eu faço toda a justiça aos membros d'esta camará; nenhum d'elles é capaz de vender o seu voto, nem de trahir a sua con- sciência. "Mas lembrae-vos que ides errados, se avaliaes a honra dos outros por a vossa. Lembrae-vos que os facciosos não deram as- sento n'uma camará abjecta, servil e deshonrada, á illustração de Grcgoire, virtuoso convencional, e que d'ahi expulsaram aquelle valoroso, intrépido e terrivel Manuel. Se vossos constituintes nos vêem estabelecer tão funesto precedente, podem para sempre de- sesperar da salvação da pátria; nós vimos aqui assistir aos funeraes da liberdade.» A a Ilusão é bem frisante. 675 Sustenta o orador que o cidadão elegível, depois de proclamado no collegio eleitoral, é deputado; e que desde então começam a vi- gorar para elle as prerogaiivas consignadas na carta. «Deixae, disse o orador, que o nobre deputado venha aqui com toda a força irresislivel da sua eloquência sustentar a justiça da sua causa e da província que o elegeu.» Um dos discursos mais interessantes d'estas sessões foi o do de- putado Luiz Cypriano, que íoi presidente da mesa eleitoral, cm que se fez a eleição de Pizarro. Disse ellc. ('N'esta eleição, de que fui presidente, appareceu um partido ministerial inculcando as pessoas que queriam fossem votadas, e desviando as que lhe não faziam conta; n'estc numero estava com especialidade o senhor Pinto F^izarro. «Este partido, antecipadamente conhecido pelas suas relaç(jes ministeriaes, tinha despertado os amigos da rainha e da carta, para não succumbirem ás suuízeslões ministeriaes e diclou-lhes a con- ducta que deviam seguir nas eleições, afim de obterem deputados que pela sua independência e lirmeza de caracter obstassem aos abusos frequentes praticados contra a carta. A theoria do systcma representativo exige nas camarás uma opposição anti-mini^terial : e os factos cada vez mostram mais a sua necesí>idade. GuíjJos por estes princípios, os eleitores i^otarani fio senhor Pi{arro. An ourir ex- trahir Ja urna o seu nome, um empre^^ado do ijcoverno. que era elei- tor, lJuí- que se riscasse o seu nome, dizendo que o senhor Pi-arro se adiava preso, sou declarar o crime e suas circumstancias. ■> Diz que esse empregado não apresentou documento, nem pro- vas da sua atlirmativa, e que bem se vè a premeditaçáo que ha\ia da parte dos ministeriaes de evitar a eleição de um homem c\ipa/ pelos seus talentos e caracter de censurar os actos do i;o\ern'). \i como podiam falhar os seus esforços, forjaram em Lisboa a [pronun- cia, para o inhabililarem de entrar na canKn^a. O orador mostra que ate ao dia em que Pizarro foi elei'.'». :u'io se ^abia da sua pronuncia, ^]ue ie\e l(^i:ar depois da eleita'». S^ ã 3: de julho 'loi intimada a*.) deputado a pronuncia do jiii/. e ^a a esse tempo estava elle eleito. I-] di/ que e>sa pronuncia não está 576 completa, nem pôde ser effecliva; porque lhe falta a ratificação pelo JLiry competente. Esta é que c a pura verdade. Rodrigo da Fonseca Magalhães tornou a fallar, sustentando que a pronuncia estava dada e eífectiva, não reconhecendo valor algum á decisão dos jurados, os juizes eleitos pelo povo! Para elle basta- va a sentença, ou despacho, dos juizes de policia correccional de nomeação régia! Não lhe importava a audiência de jury; para elle não passava de uma formalidade da lei. O juiz nomeado pelo rei dera o seu despacho de pronuncia; estava por esse facto o réo pronunciado e entre ferros, ainda que o jury de pronuncia não tivesse dado o veredictum ! O que vale este diante do veredictiim do juiz da confiança dos ministros da coroa? O jury é uma instituição popular despresivel e sem impor- tância. Disse o orador que Pizarro nada vem fazer ás camarás; está pronunciado; e este caso pertence ao poder judicial, e não ás ca- marás. O presidente quiz encerrar a discussão, e terminar o incidente. Disse que a hora estava muito adiantada e que faltavam ainda muitos deputados para fallar; pedia á camará que resolvesse. Umas vozes. — Votos, votos — outras — Fique para amanhã. Leonel Tavares sustentou que a discussão, ou devia continuar, ou ficar para o dia seguinte; porque estavam inscriptos ainda mui- tos deputados, sendo elle um d'elles. Disse que a discussão lhe sus- citara idéas que talvez pudessem decidir a camará a votar pela sua opinião. Rodrigo da Fonseca Magalhães pediu ao presidente propuzesse á camará se a matéria estava sufíicientemente discutida. A camará a^sim resolveu. Saldanha propoz que a votação sobre o incidente, isto é, se Pizarro devia \-ir á camará, fosse nom.inal. Esta proposta perdeu a questão. Nmguem queria comprometter-se com a pessoa do impe- rador e a votação nominal vinha pôr a descoberto quem votasse a íavor do seu antagonista. A camará acceitou logo a proposta; e 677 por 53 votos contra 46, isto é uma maioria de 7 votos, foi resolvi- do que Pizarro não viesse á barra. Andaria Saldanha de boa fé? A discussão sobre a questão principal começou no dia seguin- te. Abriu o debate Saldanha. Disse que a questão que faz objecto da ordem do dia á talvez a de maior gravidade que tem appare- cido em nossas cortes modernas, e que pôde estabelecer um pre- cedente funesto, com o qual se perderá a esperança de liberdade para o futuro. A prisão por um acto arbitrário do governo e ba- seada na simples indicação do juiz, e um deputado eleito aferro- lhado nos calabouços da torre de S. Julião da Barra, representam a nação em ferros. Contra a aftirmativa de ^Magalhães sustenta que ha na camará opposição, e que não pôde deixar de havel-a, cm- quanto os ministros da coroa atropellarem as leis, para se conserva- rem no poder. Pertence a esta opposição, que não é uma opposi- ção de capricho, nem de questões pessoaes. Diz que approva algu- mas medidas do governo feitas em dictadura; mas acusa-o por conservar ainda suspensas as garantias constitucionaes, não haven- do invasão estrangeira, nem caso de rebellião dentro do reino. A prisão do deputado eleito foi arbitraria ; porque do processo conota que ella baseia-se unicamente na indicação do juiz. sem que tenha sido ratiíicada pelo jury. Diz que não é preciso ser-se jurisconsulto, para se saber que a simples indicação do juiz não basta para .se qualificar a pronuncia; a questão é bem singella e clara. Ii compa- ra a legislação anterior com a do decreto da Terceira, para mos- trar que para o despacho do juiz ter elíeito é precisa a ratificação do jurv. Não ha pronuncia e o deputado está legalmente eleito. Termina dizendo que elle e os deputados que votarem comsi^o po- derão ser vencidos por alguns \otos, mas que lhe restará a doce convicção que não só a parte illustrada da nação, não S() <)> ho- mens livros de todos os paizes. mas a mais remota po>ieriJaJe, bemdirão os princípios que deíenJerani com indcpendeiKÍa, e que dirão que n"cste dia combateram a prol Ja justiça e Ja liberdade. l-\illou, em seguida, o deputado Augusto lYedericí» de v^astilho, que n'um discursei eloquente respondeu a t^idas as aeciisações e 578 injurias dirigidas a Pizarro, apesar de ter declarado que o não co- nhecia, nem mesmo nenhum dos seus parentes. Fallava a favor de um cidadão perseguido, que incorreu no ódio do ministério e está autoado. Diz que Pizarro, na linguagem dos seus inimigos e dos satélites do poder, é um cidadão máo e criminoso, porque o governo en- tende que seus escriptos são sediciosos, e porque resistiu no acto da prisão. Pelo que diz respeito aos escriptos, diz o orador que D. Pedro não era então inviolaval, e continuou a não sel-o, até ao momento em que as cortes o confirmaram na regência, Pizarro não offendeu a carta, antes a defendeu, querendo que ella se cumprisse na questão da regência. E declara que a sua opinião e também a de Pizarro e que as próprias camarás acompanharam este, quan- do reconheceram que D. Pedro era excluído da regência pela carta. Pergunta qual é mais criminoso, se Pizarro defendendo as suas opiniões, ou os ministros da coroa despojando-o por isso do direito de emittir os seus pensamentos, suspendendo-o no exercício dos seus direitos políticos, prendendo-o sem culpa formada, e deten- do-o em ferros sem pronuncia, para fazerem triumphar mesquinhos caprichos. O orador passa a responder ao tom de mofa e de desprezo com que Joaquim António de Magalhães fallou da prisão de Pizarro. E mostra-lhe a enormidade do attentado que se commetteu com a victima. Accrescenta que, se tivesse dons oratórios, os empregaria n'este momento em lançar mãos cheias de flores sobre o tumulo de um vivo. Defende Pizarro pela resistência que offereceu á sua pri- são injusta e illegal, e duvida que elle proferisse as palavras do auto, que teem por testemunhos um esbirro da prefeitura, um es- crivão do tribunal inquisitorial, e um provedor, todos creaturas de- pendentes do governo, Além d'isso, insultos não são actos de resis- tência. E cita o facto de um deputado da maioria ter declarado que era voz publica que no dia da eleição o telegrapho passara para Lisboa a seguinte parte — Pizarro está deputado: culpem — Passa a mostrar que Pizarro, nem está pronunciado, nem foi preso com culpa formada. 679 O orador concluiu dizendo que esperava que n'esle dia se não renovasse a sentença iniqua da véspera. Foi interrompido com muitas vozes da direita e da extrema di- reita— A ordem, á ordem ! A esquerda respondeu — Iistá na ordem, está na ordem ! Os clamores da direita crescem, o orador continua, mas não é ouvido; os galerias agitam-se; o presidente toca a campainha; a or- dem renasce, e o orador prosegue. Diz que evidentemente não usou de expressões mui correctas, e emenda-as dizendo que, se a assembléa votar pela expulsão de Pizarro, os deputados da esquerda reunirão em si toda a torça que do deputado excluído lhes poderá accrescer. «Reiteremos, diz o orador, em zelo patriótico, c d'esse momento por diante não se verá d'este lado uma só transigência com os ministros. « Estas ultimas palavras íoram cobertas de applausos da esquerda e gritos da direita chamando o orador á ordem. Houve novo rumor nas galerias. Fallaram ainda alguns deputados, até que chegou a vez ao mi- nistro do reino. Fez o seu discurso em tom altivo e arrogante: Dis- se elle. >'Mas, senhor presidente, quando as opiniões e theorias são desmentidas pelos factos, insistir n'essas opiniões e n'essas theorias c, a meu juizo, cega obstinação, para lhe não dar o nome de mal- dade. » Diz que Pizarro é um homem perigoso, e que, se não fosse preso, tcr-se-lúa ainda cm Portugal o despotismo ! y^^^sXas condições o governo mandou-o sahir do reino, e o prefeito, em execução d*esla ordem, entendeu muitt:) bem que o devia prender primeiro, ("onía que no dia da prisão um deputado lhe pediu pel(~) preso, e que lhe respondeu que não tiuha duvida em o mandar soltar, se elle se compromettesse a não tfiais roliar a Portugal; mas o deputado não sahiu do paiz, o que justifica cabalmente a prisão! O ministro mandava-o soltar sob aquella condição; e sustentava ao mesmo tempo que elle estava pronunciado por ordem do poder judicial. \'áo lá entendel-os. O ministro ameaçou depois a esquerda, dizendo que não era 580 contrario a que houvesse um partido de opposição; mas que seria intratável com as facções que pretendessem destruir tudo. Os ministros em 1834 continuavam a servir-se da mesma lin- guagem que os ministros de 1826 a 1828I Galvão Palma foi quem desvendou com toda a ingenuidade os sentimentos que se abrigavam occultos nos validos de D. Pedro. Confiante na protecção do poderoso príncipe, o deputado não teve duvida de declarar os verdadeiros motivos porque a eleição de Pi- zarro era tão guerreada. Sem o maior escrúpulo disse elle : ((A vontade do augusto dador da carta foi não admittir na ca- mará cidadãos suspeitos de crime contra a sociedade.» Diz que o crime de Pizarro é peior que o de perjúrio e o de salteador, e que até em paizes estrangeiros é punido com a pena de morte. Dirige- Ihe os maiores insultos e injuria-o, para se tornar agradável a seu real amo e senhor. E accrescenta : «Paliemos com franqueza, senhor presidente, quem aborrece um príncipe mais que Titiis^ Autonimis^ delicias do seu povo^ quem compara a Tibério um heroe que^ a viver na Grécia ou %qma^ lhe levantariam altares^ como pôde amar o novo pacto social que elle fez com os portuguezes?» Pizarro não devia entrar na camará porque era essa a vontade do imperador e dador da carta; admittil-o seria uma offensa a quem o paiz tudo deve. Pizarro é um nefando criminoso; por- que atacou a augusta pessoa do imperador, e a camará não é abrigo de criminosos que n'outros paizes seriam levados á furca ! Xa sessão do dia 12, talvez esperando que n'ella houvesse vo- tação sobre a matéria em questão o governo mandou postar ás portas do palácio das cortes uma grande força de cavallaria ! Silva Sanches perguntou ao presidente se foi elle quem requi- shou essa força; respondeu-lhe que não; o deputado continuou o seu discurso. Disse elle: "Eu, forte com a minha intima convicção, hei de em todo o caso votar que o senhor Pizarro não está pronunciado, e que deve, por conseguinte, ser proclamado deputado. Nem temo, ou receio, 681 essa força que hoje se mandou vir. (Vivo rumor nos bancos da op- posição). «As espadas dos cidadãos militares que golpearam os inimigos da pátria de certo não cortam as cabeças dos defensores d'ella. (Sensação). Porem, senhor presidente, é preciso que o resultado de nossas deliberações jamais possa considerar-se o de uma coacção. (Apoiado, apoiado!) e não sei se o corpo legislativo se julgará livre de coacção, estando á porta do palácio das cortes tropas de caval- laria que nunca ahi estiveram. (Muitos apoiados e vivissimo signal de approvação). » O orador pediu que a camará resolvesse sobre o assumpto, c Macário de Castro propoz que se não entrasse na discussão, em- quanto as tropas estivessem presentes. O presidente disse que ia mandar perguntar ao commandante quem o mandou vir. Muitos deputados, incluindo Saldanha, no meio da agitação da camará e das galerias, protestaram contra essa violência e ameaça. A resposta do commandante é original. Declarou que recebeu ordem para se postar no largo Ja Estrella, mas que por engano viera para o largo das curtes ! Saldanha disse que era preciso indagar a verdade; porque, se o ofhcial se equivocou, realmente merecia ser castigado. A força de cavallaria retirou-se, e não nos consta que houvesse procedimento contra o commandante. Entrou-sc depois na discussão se Pizarro estava, ou não. eleito, e se devia ser proclamado deputado. A discussão prolong cm que foi outorgada a carta não existia o decreto da regeiuia da Terceira sobre a organisaçã(^ dos tribunaes e a ordem Jd processo criminal, e que, portanto, quando cila diz que não podem >er clei- t(^s os pronunciados, não se yndc referir a ratili^ação Ja pmiuin- 582 cia pelo jury, admittida posteriormente por aquelle decreto! Por aqui podem nossos leitores avaliar quanto os validos de D. Pedro torceram o sentido da carta, para levarem de vencida os seus ad- versários, e para fazezem a vontade a seu real amo e senhor. Passos Manuel proferiu um excellente discurso, refutando aquel- la extravagante doutrina, e mostrando com a lei e as doutrinas ju- rídicas que depois da reforma judiciaria da ilha Terceira era pre- ciso que se eífectuasse a audiência do jury, para que houvesse pro- nuncia. Leonel Tavares pronunciou um discurso que fez sensação na camará pela audácia com que fez certas revelações ácêrca dos ma- nejos empregados, durante a emigração, pelos validos de D. Pedro, os quaes justificam a nobre attitude do deputado, ora guerreado pelos mesmos validos. Declarou o orador que entre os discursos d'esses cortesãos ouvia-se a seguinte phrase — Façamol-o regente, e depois será elle rei — , á imitação do que disseram os partidários de D. Miguel. Refere-se ás reuniões e a conselhos que ahi se deram a D. Pedro ; e diz que nos projectos ahi planeados é que se deve procurar a ex- plicação de muitas coisas ainda então inexplicáveis para a maior parte dos portuguezes. Os projectos da regência foram medrando, e para ella promoveram -se entre os emigrados requerimentos, que tiveram poucas assignaturas; mas a qualidade d'ellas denunciaram a origem suspeita da regência planeada. Os emigrados de Paris fo- ram avisados dos projectos sinistros; reuniram-se em grande nu- mero ; e ahi resolveram publicar escriptos sobre a questão. Coube a Pizarro a desgraça de ser o primeiro encarregado de escrever sobre a matéria. D'aqui veiu a publicação da Xorma da Regência. E mostra o orador a differença que houve com os auctores das outras publicações, alguns dos quaes estão agora com posições honrosas e lucrativas. Na sessão do dia i3, depois de terem fallado muitos deputados, o presidente propoz se a matéria estava sutRcientemente discutida, a camará resolveu que sim. Sobre a votação Leonel Tavares foi de parecer que os minis- 583 tros não deviam votar. Saldanha disse que elles eram deputados ministros, que perseguiram, prenderam, e na camará fizeram o ofi- cio de accusadores do deputado eleito; no logar d'elles não votaria. O ministro da guerra declarou que elle e os seus collegas vota- riam, porque eram deputados e tinham o direito por seu ladol Barjona respondeu-lhe que isso seria pouco decoroso. António José d'Avila, o futuro duque d'Avila e de Bolama, propoz que se lesse todo o parecer da commissão, em que vêem narrados todos os crimes de Pizarro, afim de se desvanecerem io- das as impressões causadas pelo discurso de Leonel Tavares. .Ape- sar de a matéria estar já discutida, entrou na discussão d'ella, que- rendo sustentar que Pizarro estava pronunciado, e como tal não po- dia ser proclamado deputado ás cortes. O seu discurso provocou tumultos, sussurros nas galerias. muitos protestos da assemhlca, e vozes — ordem, ordem! F^oi ouvi- do no meio da maior confusão e tumulto da camará e das galerias. Acccita a proposta d'aquelle deputado, passou -se a ler todo o parecer, ou relatório da commissão, em que vêem deturpados todos os factos e até se encontram certidões forjadas, ou falsas, segundo se affirmou então. Conforme a proposta de Saldanha, a votação foi nominal. Ap- provaram o parecer 54 votos e regeitaram-n'o 49. isto c. teve uma maioria de ^ votos apenas! Se os ministros não votassem contra a sua própria victima. Pizarro teria sido proclamado deputado e teria entrado na ca- mará ! O governo venceu com o reforço dos seus próprios votos, aliaz teria sido derrotado. \ sua victoria pódc-se considerar, no emtanlo. uma derrota vergonhosa e um cheque dado cm D. Pedro, que .^clls validos comprometteram tão desastrosamente. E preciso que digamos que a (ui-cUi OfficiaL a Rcj-ista e nuir^s jornacs ministeriacs, occuliaram aquclla votação, dizendo simples- mente que o parecer da commissão í<')ra approvado pela camará I Por acaso encontrámos aquclla votação na Climnica C(>}i>':tu- ciojhil do Porto n." iqS. 584 Pizarro foi depois absolvido pelo jury, tendo declarado as tes- temunhas da accusação que não disseram o que consta dos autos, o que comprova o que, durante aquella discussão, disseram alguns deputados, duvidando de que Pizarro tivesse proferido as palavras constantes do auto da prisão, e afíirmando outros que a certidão do auto apresentada ás cortes era falsa ! Edificante. LIVRO V INICIO DO REINADO DE D. MARIA II CAPITULO I OS REALISTAS NO PODER A morte do imperador, que de Indo dispunlia, produz fjrandc abalo no paiz.— Anitiidc dos rcalisia^ coní^;!ti:c o- !iai'> c dcs democratas depois do tallecimento de D. I'edro. — A questão da regência — Maioridade da ra::il.a. — Kesoiução de Palmella.— Intrigas d'estc.— I'. nomeado presidente de ministros.- Politica seguida pe'(. r... vo ministério. - I). .Maria II. — O reinado d'esta sustentado pela (^uadnipla Alliança.— O muusterio cartista er.vcta ogo a guerra contra os democratas e miguelistas — Identidade de circumstancias de Portugal. Hcspaiií.a e 1'raava — A opposiçáo liberal recua ante a altitude da rainlia e da Quadrupla Alliança.— Questão no p.ir'.-- mento sobre o logar de presidente de ministros.— Lei de imprensa e sua discussão nas dua? camarás. — Ar- iitude de Palmella.— Casamento do principc D. .Vugusto.— Idcas com que este veiu para Portugal —O rninis- terio pretende annullar as propostas filhas da camará popular.— Propõe uma nova divisão judicial. — E\". nc- ção dos iuizes ordniarios.— Queixas contra as prefeituras. — Questões sobre a lista civil. — Os deputad-s e\igem que Palmella apresente as contas dos tundos que di>pendeu durante a emigraçio.— Palmella c'Kcr:i " parlamento.— Protesto da opposi>,'.io.— Kespo-.ta da ma:nria parlamentar. — Perseguição d.t imprensa. — Processo Cintra a AíHiia. D. Pedro impusera ao paiz uma politica accentuadamenle pes- soal, como vimos. Apesar da sua dictadura ter acabado com as eleições e a reunião das cortes de 34, ella persistiu. A vontade do imperador era tudo e d'ella deriva\'am todas as leis e todas as me- didas adoptadas, como a inspiração suprema do estado. O que o imperador queria era o que ^e tazia. A> eleições realisaram-se sei;un- do e^sa vontade soberana, e o i;overno. por meio de violências e arbitrariedades inauditas, conseguiu uma pequena maioria do^il .1 essa me.^ma vontade suprema. Como em iSjd, a opinião publica ea \ontade na^i^aial lo- ram completamente despresadas. e não li.iham inHuencia politica. 74 586 Todo o systema governativo baseava-se no immortal e dwino impe- rador^ como anteriormente no divino e celestial Miguel. N'estas condições, comprehende-se que a doença e a morte immediata de D. Pedro produzissem um abalo e trantorno geral na politita do paiz. Aquelle príncipe, tornado poderoso, atrahira a si os homens mais eminentes do partido realista constitucional puro, e os mais importantes chefes do partido vintista^ que renegaram do seu credo liberal e democrático, e tornaram-se validos e cortesãos. Em voha d'este alto personagem formou-se um partido forte e poderoso, não só em numero, como em intelligencia, o qual dictatorialmente diri- giu os destinos do paiz até á morte do grande senhor. Os homens da opposição tinham assente todas as suas esperan- ças na pessoa da joven rainha, que não cessaram de defender con- tra os tramas que urdiram contra ella os amigos do pae. EUes nunca poderiam obter as graças d'esse contra quem sem- pre combateram; emquanto O. Pedro existisse, debalde esperariam subir ao poder. A attitude por elles tomada na questão da regência de D. Pedro, na questão do casamento da rainha e na questão Pi- zarro, veiu aggravar ainda mais os seus escriptos na emigração, ou a indisposição e os resentimentos de D. Pedro, que os considerava seus inimigos pessoaes. Tornaram-se irreconciliáveis com elle. A doença grave do imperador regente veiu encher de esperan- ças os defensores da rainha, ou os homens da opposição. Estes jul- garam que a sua hora tinha chegado, e que o futuro lhes pertencia com a ascenção ao throno da joven princeza, que seria para com elles o que o pae foi com os seus admiradores e sequazes. Antevi- ram em o novo reinado os seus dias felizes e a desforra da perse- guição de que foram viciimas até ahi. Os amigos de D. Pedro já estavam divididos entre si. Palmella nunca perdoara aos rintistas renegados o terem-n'o feito perder no conceito d'aquelle príncipe; e cuntinuou a olhar com ciúme para os favores que este dispensava aos seus novos validos. Elle tinha ódio pessoal aos homens de 20, e desejava vingar-se de Mousinho da Silveira, de .loaquim António d'Aguiar e de outros, que por seu talento conquistaram as graças de D. Pedro. Jamais esqueceu que 587 este os tivesse preferido a elle, que se julgava o único homem ca- paz de governar o paiz, ou a sua primeira intelligencia. Tanto Palmella como os novos validos de D. Pedro estavam de accòrdo n'um ponto, isto é, evitar, por todos os modos, que al- cançassem vantagens com o reinado de D. Maria II as victimas da Bcl/cstada, do deposito de Plymouth, da regência da Terceira e da dictadura de D. Pedro, ou os homens da opposição das cortes de 34. D. Pedro adoeceu gravemente, estando a rainha ainda menor; Icvantou-se a questão da nova regência. Os amigos de D. Pedro quizeram entregar esta á imperatriz viuva, aíim de continuarem no poder e de seguirem as tradiç<3es deixadas pelo duque de Bragan- ça Os homens da opposição, assim que tiveram conhecimento d'a- quelle plano, rcuniram-se e deliberaram ir a P)emlica oílerecer a regência a Izabel Maria. Grandes intrigas se moveram de parte a parte. Os partidos agitaram-se vivamente n'esta occasião; e, para conjurar a crise que estava imminente, adoptou-se o expediente de se propor nas camarás a maioridade da rainha. Maioria e minoria votaram essa maioridade, apesar de mais uma vez se rasgar a carta constitucional. Mas foi o único m.eio de se evitar talvez a guerra civil ; a opposição, vendo todas as suas esperanças perdidas com a regência da imperatriz viuva, não se resignaria, e talvez se revo- lucionasse, como foi accusada por esta occasião. K para evitar essa catastrophe, procurou indispor o animo da rainha com a madrasta, que ella não amava com justos motivos. A regência da imperatriz viuva não seria, por outro lado, bem vista pela rainha D. Maria II; acarretaria as indisposições d'esta contra quem a promo\csse. A opposição ganharia o seu decidido apoio para a derribar. Por esses motivos, os amigos de D. Pedro desistiram do seu propósito. A morte do regente precipitoií-se: e Palmella. que se jiilgawi o único homem do paiz, tomou a resolução de se apresentar a rai- nha, para lhe pedir um ministério íorie e ce mos- traram. Era lormosa, p(')de-se dizer, tinha porte dislincto e uma presen- ça palaciana. A natureza dolou-a com intelligencia. Altiva c^mo uma austriaca e lilha de 1). Pedro, teimosa e persistente como uma Bragança; herdou do pae o génio imperativo, violento e bru.s- 1-34. 590 CO, as suas maneiras seccas e frias. Dominava-a uma força de von- tade extraordinária, ou fora do commum, o que a levava a resolu- ções audazes e imprevistas. Em pouco tempo emancipou-se dos que a desejavam dominar, e começou a deliberar por si mesma com admirável coragem e resolução firme. Ninguém mais senhor da sua vontade. Quando resolvia, queria ser promptamente obede- cida, e não admittia duvidas, ou resistências. Em muito pouco tem- po assenhoreou-se da sua vontade soberana ; e, cônscia da sua força e poder, impunha-se aos ministros. Batia o pé, quando a contraria- vam; e em dizendo — quero — todos deviam obedecer-lhe. Não voltava atraz com a sua palavra. Poucas princezas mais orgulhosas e soberbas; girava-lhe nas veias o sangue puro da velha nobreza e dos Bourbons. Era a in- carnação viva do direito divino; uma princeza de pura raça. Sob este ponto de vista era o retrato fiel da avó Carlota Joaquina. Muito ciosa do seu throno, da sua coroa e dos seus direitos inauferiveis e abso- lutos. Não consentia a mais leve offensa ao exercício augusto do seu poder magestatico. Identificou-se completamente com o alto logar em que a collo- cou o nascimento, e tinha excessiva paixão pela sua posição de rainha, em que se manteve sempre com firmeza e sem querer arre- dar um pé. A este respeito excedeu muito o pae, mais transigente e trata- vel do que ella. De íienio ardente e arrebatado D. Maria II estava bem talhada para as paixões politicas do seu tempo. Como todos os reis imprimiu ao seu reinado todas as qualidades pessoaes que a caracterisavam. Nenhum monarcha com mais disposições, para o regimen abso- luto. Se tivesse sido educada na corte de Vienna d'Austria, como a principio tentara D. Pedro, não teria vindo mais completa. D. Maria II era além d'isso vingativa e reservada; tinha cabello no coração, como vulgarmente se diz. Quem lh'as fizesse pagava- lh'as. O pae era muito mais generoso do que ella e de mais elevados sentimentos. A bondade de D. João VI acabou com este monarcha; o sangue de Carlota Joaquina continuou nos seus descendentes. 591 D. Maria II tora dotada de boas qualidades domestica^, es- posa íicl, boa filha e boa mãe, não sendo, porém, carinhosa com os filhos, pelo seu génio seeco e austero. Apesar de maltratada pelo pae, teve sempre por elle grande veneração, sobre tudo depois da sua morte. Seguir-lhe as tradicções foi o seu maior empenho, e bem assim conservar a carta, como uma Arca Santa e inviolável, o ponto culminante da sua politica. Ninguém lhe fallasse na reforma da carta; isso era uma profa- nação e um sacrilégio que ella jamais toleraria. As leis de I). Pedro eram para ella leis divinas e sagradas. Olhava para ellas com o mesmo fanatismo com que os judeus para as leis de Moysés. Os portuguczes tinham obrigação de guardar e de fazer guardar as leis que o divino imperador lhes legou á hora da morte. A carta era uma dadiva preciosa do throno, na qual não era licito tocar, sob pena de lesa magestade. O juramento ligou perpetuamente o> por- tuguezes a esse código politico emanado do throno e filho da alta sabedoria do seu dador. Tocar em qualquer dos scu> artigos era oíTender a memoria d'este e um acto de negra ingratidão, que se não devia tolerar. D. Pedro deu o regimen constitucional sob con- dição de se guardar perpetuamente o seu código perfeito, completo, immortal, e que ninguém, a não ser elle, podia reformar: porque elle só comprehendeu as razões porque o fez e outorgou. Aos súb- ditos era vedadc^ entrar n'essas altas razões d'estado. 'i ai era a ma- neira de ver da rainha com respeito a D. Pedro e as suas leis; e tal também o novo monarcha que entrou na scena da politica portu- gueza. como arbitro supremo d'ella e sua única inspiração. O realismo constitucional puro encontrou cm D. Maria II um interprete mais íiel do que o próprio D. Pedro: a soberana era um Luiz X\"11I encarnado em mulher. O novo reinado f(Vi sustentado pela ()uadrLipla Alliança. cm que se lirmou. .\ morte de Fernando \'1I acabou com o regimen abso- luto puro na Ilespanha; com a subida ao throno de I/abel II e>te paiz entrou no realismo consiiiueional. A Inglaterra, a l-^ran^a a Mespanha e Portugal enconu\iram-se nas mesmas cond'Ç''es piiHíi- cas. Luiz l-'ilippe. passador o> primeiros ardores da Revolução. 592 accentuou claramente o regimen de Luiz XVIII, ou da legitimidade. Com máximo arrojo proclamou o governo pessoal, e declarou-se partidário official da escola doutrinaria, a expressão mais pura do realismo constitucional. Filho da Revolução, Luiz Filippe, como Luiz XVIII, declarou-lhe guerra mortal. Por aquelle tratado as quatro nações obrigaram-se mutuamente a auxiliar a expulsão D. Miguel de Portugal a favor do throno de D Maria II e de D. Carlos de Hespanha a favor do throno de Iza- bel II. A Hespanha obrigou-se a mandar a Portugal um corpo de exercito, cujo numero se determinaria depois, para cooperar com as tropas portuguezas na expulsão de D. Carlos e D. Miguel. Estas tropas sahiriam, logo que se tivesse cumprido o objecto da sua missão. Portugal obrigou-se egualmente a auxiliar a Hespanha a debellar a guerra civil, ou a manter o throno de Izabel II. A Ingla- terra mandaria uma esquadra para auxiliar as operações dos dois exércitos colligados; e no caso de ser precisa a cooperação da França, esta obrigou-se a fazer a este respeito o que entre os três alliados se decidisse de commum accordo. Pelo artigo 5." D. Pedro prometteu amnistia geral para os migue- listas que se apresentassem dentro de um certo espaço de tempo, e uma pensão a D. Miguel, logo que elle se retirasse do reino. A rainha governadora de Hespanha obrigou-se egualmente a dar, nas mes- mas condições, uma pensão a D. Carlos. Este tratado foi assi- gnado em Londres em 22 d'abril de 1834 e em Lisboa em 10 de maio. Forte com o apoio do throno e a intervenção do estrangeiro, Palmella quiz entrar logo no caminho da reação. O seu programma politico foi debellar, quer os miguelistas, no caso de se levantarem novamente, e quer o partido liberal nas suas pretenções contra os direitos absolutos do throno consignados na carta. Mendizabal, amigo de D. Pedro e um dos seus auxiliares mais importantes, sobe ao poder na Hespanha, e inaugura n'este paiz o puro realismo constitucional de D. Pedro ò Palmella. Rainha e carta foi também a sua bandeira politica, que tanto era contra os carlis- tas, como contra as tradições de Cadix, ou o partido liberal. 603 A França, Hespanha e Portugal encontraram-se nas mesmas cirCLimstancias politicas. Luiz Filippc queria manter o seu throno contra os Bourbons e as tradições da Revolução; a rainha Christina queria manter o throno da filha contra D. Carlos e as tradições da Revolução de Cadix; e D. Maria II queria também manter o seu throno e os seus inauferíveis direitos contra D. Miguel e as tradic- ções da Revolução de 20. Rei e carta foi a bandeira do reinado de Luiz Filippe; rainha e carta as bandeiras dos reinados de Izabel II e D. Maria II. Estas três nações achavam-se, portanto, empenhadas em comba- ter, quer o regimen do puro absolutismo, e quer as pretenções dos liberaes, ou da democracia. O tratado da Quadrupla Alliança foi um importante reforço da legitimidade constitucional, ou do rea- lismo constitucional, triumphante na Europa ainda mais uma vez por influencia das coroas. Foi por assim dizer uma nova Santa Alliança^ mas feita entre reis constitucionaes. A Revolução de julho, atraiçoada por Luiz Filippe, a morte de Fernando VII em Hespanha e a queda de D. Miguel em Portugal, não mudaram profundamente as condições politicas d'estes três povos. Houve mudança de monarchas, mas não de princípios e de instituições a favor da liberdade; porque já vimos, mais de uma ve/, que o realismo constitucional diftere do realismo puro apenas na forma, ou na apparencia. O regimen absoluto permaneceu no fundo, já na França, já na Hespanha e já em Portugal, apesar da H evo- lução de julho, da morte de Fernando VII, e da victoria da causa de D. Maria II. A Quadrupla Alliança veiu fortalecer esta nova situação das três potencias da Europa, foi uma ameaça quer aos realistas puros e quer aos liberaes c democratas. Palmella aproveitou tendas estas circumstancias favoráveis, para obrigar D. Maria II a collocar Portu^^nl no mesmo nivcl da IVança e Hespanha, e a entrar no concerto politico d'estas duas alliadas. A joven rainha comprehendeu muito bem o alcance da politica de Palmella. que se coadunava tão bem com seu> sen:i:"nent(js e com o seu caracter. 594 D. Maria II revellou-se logo n'este primeiro passo do seu rei- nado. A opposição liberal ficou estupefacta com aquella attitude da joven rainha. Diante d'ella e da quadrupla AUiança, teve que aban- donar por momento as tradicções da Revolução de 20 e a reforma da carta, que se tornou impossível de então por diante. Qualquer movimento revolucionário em Portugal a favor de 20 traria inevitavelmente a intervenção da Grã-Bretanha, da França e da Hespanha. Os revolucionários da emigração tinham fixado todas as suas esperanças em o novo reinado; mas D. Maria II anniquilou-os e tornou-os impotentes, ao lançar-se nos braços de Palmella e na po- litica da Quadrupla Alliança. A opposição contava não somente com o apoio do throno da rainha que defendera, mas também com o apoio da opinião pu- blica e com o suffragio popular. O apoio da rainha faltou- lhe logo no primeiro passo que ella deu ; o suffragio popular estava cerceado e embaraçado por mil maneiras, e a opinião publica não se podia manifestar com o regimen da censura que permaneceu por muito tempo. Alem d'isso, a opposição não podia n'tíste momento persistir nas reformas politicas, sem estabelecer confiicto da opinião pu- blica com a coroa, que se opporia a ellas. Mas toda a força e pres- tigio da opposição estava n'esse programma revolucionário, que ella foi obrigada a abandonar em proveito da coroa e do partido contrario. Alem d'isso. Passos Manoel tinha escrúpulos em entrar logo em lucta com a joven rainha, que até ahi defendera com tanto ardor. D. Maria II, soberba e orgulhosa como era, jamais consenti- ria que tocassem, sequer de leve, nos direitos magestaticos da sua coroa, garantidos pela carta. y\ssim o deu a entender claramente com a nomeação de Palmella e com a primeira revelação dos seus característicos sentimentos. Os homens das tradições de 20 foram coUocados pela rainha no dilemma, ou de porem-se em conflicto com ella, perdendo as esperanças de subirem ao poder tão cedo; ou de abandonarem o 595 seu programma politico, inexcquivel nas circumstancias presentes da Europa. A Santa Alliança foi substituída pela Quadrupla Alliança; a Revolução continuou a ser o objecto da colligação das coroas, não obstante entrarem no constitucionalismo! Por este motivo o partido democrático perdeu todo o terreno em Portugal e Hespanha, emquanto o partido conservador, ou rea- lista constitucional puro, readquiriu toda a sua importância e vali- mento perante Luiz Filippe, a rainha Christina, regente de Izabel 11, e perante D. Maria IL Passos Manuel reconheceu a impossibilidade de realisar o seu proj,ramma politico; por isso pol-o de parte, até que as cir- cumstancias o favorecessem. Eis a razão porque todos os partidos monarchicos, no principio do reinado de D. Maria II, acceitaram a mesma bandeira — Rainha e Carta. Mas havemos de confessar que essa bandeira, emquanto era toda a força do partido conservador, triumphante com a intervenção de D. Pedro na questão portugueza, era, ao mesmo tempo, a inutilisação do partido avançado, que den- tro da carta nada podia fazer. A sua força estava toda na vontade do povo, ou no suffragio nacional; a força do partido contrario es- tava toda no throno e na vontade da rainha. Triumphou por con- seguinte este partido. O ministério Palmella não podia deixar de ser recebido hostil- mente pela opposição da camará, e deu origem á formação do cen- tro direito, formado por Mousinho da Silveira, Joaquim António d'Aguiar e pelos ministros grosseiramente demittidos, inimigos pes- soaes de Palmella. Xa sessão de 3 de setembro, a maioria da commissão das in- fracções da carta apresentou um parecer, para que fosse accusado o ministro que referendou o decreto da nomeação de Palmella para presidente do conselho, e para que se não reconhecesse esta au- ctoridade nova contraria ás leis e á carta, e creada sem consenti- mento das cnrics. A minoria da commissão opinou pela legalidade da nomea- ção. Palmella acudiu, apresentando astutamente um projecto de so- 596 lidariedade e responsabilidade ministerial e dos funccionarios pú- blicos, que elle muito bem sabia não se discutiria. A questão constitucional que se levantou na camará é dos mais carecteristicas do regimen cartista. Depois de vivo debate, a maioria arvorou-se em interpetre das intenções da maioria da commissão das infracções da carta, e re- solveu arbitrariamente que o que se tinha apresentado não era pa- recer, mas, sim, uma proposta dos membros da maioria d'ella, a qual devia ir para uma commissão especial, para a examinar e dar o seu parecer! Foi nomeada esta commissão na sessão de i8, a qual re- cahiu, já se entende, em membros da maioria da camará. Na sessão de 28 de outubro, José Alexandre de Campos, na qualidade de rela- tor, leu o parecer da commissão especial. Diz esta que o decreto não envolve responsabilidade ministerial; constitiie um exercido de uma attribuição do poder moderador a mais transcendente e ao mes- mo tempo a mais livre de todas. Esta attribuição do poder modera- dor é a mais suprema e privativa do rei e o ultimo anel do systema politico da carta; não exige., nem a concorrência dos ministros., nem a do conselho doestado. A auctoridade do presidente de ministros pro- veiu da nomeação livre do poder moderador., não depende senão d' elle. Entende a commissão que não ha na carta meio de se remedia- rem os excessos do poder moderador., quando por ventura se dessem no caso presente; e por isso julga j^oz/co parlamentares., inconstitu- cionaes e inteiramente inadmissíveis., as conclusões da proposta apre- sentada. O ministério organisado está conforme á carta e aos princípios do governo representativo. A commissão não considera corpo coUectivo um chefe, ou um presidente. E cita o exemplo do antigo governo absoluto, em que houve presidente de ministros, não sendo, portanto, caso novo em Portugal! Segundo a mesma commissão, o presidente sem pasta é solidário com todo o ministério. Foi marcado o dia 3 1 para a discussão d'aquelle parecer, a qual demoraram todo este tempo, para se desvanecerem as primei- ras impressões causadas, não só por aquella nomeação, como por as doutrinas expostas pela commissão especial. 697 Houve uma concorrência extraordinária nas galerias da camará, onde se apresentaram muitas pessoas de distincção, e senhoras da primeira sociedade; o povo era ahi immenso; tal o interesse que despertou na capital esta discussão. Bento Pereira do Carmo, o ministro arguido, contou como os factos se passaram, o que surprehendeu a todos. E expressara -se por maneira tal, que os próprios membros da maioria da commissão das infracções da carta retiraram espontaneamente a proposta para elle ser accusado. .íoaquim António d'Aguiar expoz também como o ministério de D. Pedro fora desconsiderado por Palmella, que em tudo andou por sua alta recreação, e sem consultar o ministério então existente, que não foi ouvido nem consultado. Disse que o decreto foi man- dado passar por Palmella. e que se não explicava a razão porque or- denaram que Bento Pereira do Carmo o referendasse. A nomeação já estava decretada pela rainha! E sustentou a doutrina da commis- são especial, dizendo que os actos do poder moderador são inde- pendentes da referenda, e só da responsabilidade do concelho d'es- tado, á excepção do caso presente, em que o chete d'estado não tem necessidade de o ouvir. Joaquim António d'Aguiar assumiu a responsabilidade toda de Bento Pereira do (^armo. Palmella disse que o parecer da commissão das infracções da caria foi apresentado somente para guerrear o ministério, o que não teria aconcido, se este pertencesse á opposição. Isto levantou mui- tos pnjtestos da esquerda e grande tumulto no meio da assemblca. Restabelecida a ordem, Palmella pretendeu justiticar o decreto com os exemplos do duque de Lafões, do marquez dWngcja e do mar- quez de Ponte de Lima. que foram presidentes de ministros no tem- po do regimen absoluto! Disse que se houve in-cí^-uUviJjJc loi cm se não ter pedido licença ás cortes! Mousinho da Silveira combateu também o decrel(X Houve vivo debate sobre se os ministros deviam votar; c. resol- vendo a camará affirmaiivamentc, o parecer da conimissão espe- cial loi approvado por 53 votos contra qj. 598 Ao levantar da sessão houve nas galerias gritos de — traidores ! traidores ! E assim começaram as camarás reconhecendo em o novo chefe d'estado direitos absolutos do velho regimen ! O logar de presidente de ministros foi creado, porque a rainha assim o quiz; e no regimen da monarchia constitucional não ha meios de se obstar aos excessos do poder moderador! O rei quer porque quer. Tal foi a doutrina sustentada e admittida pela maioria das camarás de 84, digna successora da maioria das camarás de 26 a 28. Principiou por uma arbitrariedade inaudita o reinado de D. Maria II, rainha orgulhosa, soberba e tão senhora da sua von- tade ! Os realistas constitucionaes puros, ou os conservadores, conti- nuavam a fazer das suas. A maioria da camará, vendo que o regimen da censura, tão querido dos realistas constitucionaes, não podia prolongar-se por mais tempo, tentou substituil-o por uma lei de imprensa essencial- mente repressiva e severa. A opposição liberal dispunha de grande força e prestigio, não somente na camará, como no paiz ; e muitas vezes conseguiu dar cheque nos governos. Diante d'ella estes recuaram nas suas fre- quentes sortidas contra a liberdade. Os abusos que desde 1826 até então se commetteram contra a imprensa provocaram em todo o paiz forte e enérgica reacção; e todos pediam uma lei liberal que puzesse cobro a elles. Por este motivo não se atreveram a estabelecer o systema odioso das cauções, tão predilecto dos con- servadores. N'este ponto o projecto de lei das camarás de 34 é bas- tante livre e tolerante, a verdade obriga dizel-o. É essencialmente repressivo e não preventivo. Em compensação, prohibe com penas severas e exorbitantes toda a discussão em matéria de religião, co- mo nos tempos dos jesuítas e inquisidores; prohibe toda a discus- são em questões de moral, sobre a forma de governo, sobre a or- dem de successão, e todo e qualquer ataque á pessoa do rei, do regente, da regência, e das altas dignidades e auctoridades do esta- 599 do, participando todas da irresponsabilidade, da inviolabilidade, e do sagrado da pessoa do Tei. Mas o mais escandaloso d'essc projecto foi o artigo 20.", que per- mittia a prisão do auctor e o sequestro do escripto com o simples depoimento de duas testemunhas e a indicação do juiz, apesar de se admittir o jury para todos os delictos da imprensa. Esse artigo passou, apesar da enérgica opposição e dos protestos da minoria. Instituiu-se o jury, o que foi uma grande garantia ; mas baniu- se o tribunal especial para a imprensa, instituido pelas cortes con- stituintes de 20, o qual não mais se resuscitou, por não convir aos governos. O projecto de lei passou para a camará dos pares ; foi relator o conde da Taipa, victima, como vimos, das cartas que escrevera a D. Pedro. Aquelle par iez opposição ao artigo 20; e proferiu um excellente discurso, narrando as propotencias que tiveram logar com elle e Rodrigo Pinto Pizarro, o qual produziu sensação na ca- mará. Palmella, presidente de ministros, pediu a palavra, e sustentou o artigo 20.", empregando todos os meios e argumentos para o fazer passar. O ministério todo empenhou-se por que a camará alta não modificasse a lei n'este ponto ; e toda a imprensa ministerial o defen- deu egualmente o artigo. Viam n'elle uma compensação da abolição da censura. A Revista^ de Rodrigo da Fonseca Magalhães, diz que, assim como deseja garantias contra os abusos dos poderes publico>. assim também deseja garantias contra os abusos dos escriptores, e que a reforma do artigo 20. " não deixa nenhuma a este respeito. Apesar d'isso, a maioria da camará dos pares fez importantes modificações, estabelecendo que para a pnonuncia do auctor eram l^recisas, não somente três testemunhas, mas também a ratilicação Ja pronuncia pelo jury. Aboliu egualmente a prisã(^ do auctor. O projecto de lei passou emquanto ao resto com leves moJilica- çõcs. A minoria, para evitar o> abusos que se deram com a j^risão Je Pizarro, propoz uma lei declarando que para haver pronuncia em todos os crimes era precisa a ratiíicação Je pronuncia pelo jurv. 600 conforme o decreto da Terceira. A camará approvou essa proposta de lei. • Na camará alta o mesmo ministério, realista constitucional puro, quiz obstar á approvação d'aquella lei! Palmella combateu-a, sustentando as doutrinas expendidas na camará baixa pelos amigos de D. Pedro, quando se ventilou a questão Pizarro. A camará dos pares procedeu com independência, e em harmonia com a lei, ap- provando o projecto vindo da camará dos deputados. Foi também durante o ministério Palmella que se realisou o casamento da rainha com o principe Augusto, amigo intimo de D. Pedro e por este escolhido, o qual vinha defender com a sua espada a carta e a rainha. São mui instructivas as negociações que então se entabola- ram com aquelle principe para a assignatura do contrato matri- monial. N'uma carta que elle dirigiu ao conde Mejan lemos o seguinte : Quando se objectava ao principe que as suas pretensões eram contrarias á carta constitucional e ás leis do paiz, respondia indi- gnado e em tom fresco, diz Ildefonso Leopoldo Bayard, que não GOl era homem que se prestasse a ser um simples propagador da es- pécie. Bayard combateu quanto poude aquellas pretensões do futuro marido da rainha D. Maria 11; mas nada conseguiu. O principe impoz isso como condição sine qua mm, o que deu origem a demorarem-se muito as negociações. Foi precisa a intervenção de lord Palmerston, que escreveu uma carta ao ministro inglez em Munich. recommen- dando-lhe que dissuadisse o principe Augusto das suas idéas in- acceitaveis e tão pouco rasoaveis, e que o convencesse de partir para Portugal, porque a sua presença tornava-se urgente. Em vista d'isso, o principe desistiu, (i). Esta desistência foi, porém, forçada. Eram aquellas as naturaes inclinações do principe identificado em idéas e sentimentos com o seu amigo D. Pedro, de quem pretendia ser o successor. No discurso que proferiu na camará dos pares, ao prestar o ju- ramento, declarou bem positivamente que o seu casamento veiu preencher a grande falta que a morte de D. Pedro fizera á causa da rainha e da carta. Elevou ás nuvens as qualidades e virtudes doesse a quem a nação tudo devia na opinião d'elle e dos seus va- lidos. Declarou que muitas vezes conversara com elle ácêrca da politica de Portugal, e com elle estava completamente identificado em idéas e sentimentos. Declarou mais que vinha para Portugal defender a obra e as instituições de D. Pedro. Isto mostra que persistia nas suas primeiras idéas. que abando- nou por mera condescendência. O casamento da rainha com o principe Augusto foi um grande retorço para a politica de Palmella, e dos realistas constitucionacs puros, ou da legitimidade. O primeiro ministério da rainha D. Maria II pensou logo em retirar todos os projectos de lei que estavam em discussão por ini- ciativa da opposição e da camará popular; mas faltou-lhe o tcm[^o para apresentar projectos da sua própria iniciativa. A opposição, escudada na opinião publica, con>jguiu qi;c a ^1 \'iJc Ccllecção Jc ir\7tjdos, to.iio vi. pelo visconJe de \'>or^j:~ Jc ('..^ povos e as camarás municipaes dirigiram ao governo e ás còrte^ contra as prefeituras. Na ^c.^são de i3 de novembro foi lida uma representação Ja camará municipal de Salvaterra do Ilxlremo, queixando-se de que o prefeito de Caslello Branco transferiu a cabeça do concelho d'aquella \illa para a da Azinheira: na mesma scssã(^ o deputado Luiz Tavares de (Carvalho queixou-se de que o me^^mo prefeito demittira um irmão d'elle de juiz de f(')ra de (^eia. por \iiu'ança. O proprit) Joaquim .António d'Aguiar, que f(")ra mini^iro da justiça, aítestou perante a camará a honra e [^robidaJc do juiz demiltido. 604 e outros deputados mostraram que fora victima das intrigas do pa- lácio da prefeitura. Na sessão de 17, provou-se que o prefeito de Cabo Verde lan- çara um imposto pesado sobre as vinhas da ilha de Santo Antão para favorecer a cultura do café. O deputado Reis disse que elle fazia de rei e de cortes ao mesmo tempo, e o deputado José de de Vasconcellos que tem praticado toda a casta de despotismo. Na sessão 41 disse Macário de Castro que recebera uma carta escripta por uma das principaes auctoridades administrativas das pro- víncias do norte, na qual se diz que se as camarás não abolirem as prefeituras, em pouco tempo rebentará uma revolução nas províncias. Accrescentou o orador que muitos prefeitos, sub-prefeitos e pro- vedores arremataram conventos por um terço do seu valor, e que as mobílias não foram incluídas no leilão! Muitos arrematantes re- tiraram-se, porque não quizeram concorrer com essas auctoridades poderosas. Estas e muitas outras revelações importantes obrigaram a camará a discutir o projecto de abolição das prefeituras. Na sessão de 17, Mousinho da Silveira disse muito bem que as prefeituras eram a carta levada até ás ultimas extremedidades de Portugal ; mas foi obrigado a confessar que detestava as prefei- turas como estavam, e que não era assim que as tinha entendido, quando as creou. Disse que os governos lhes deram depois attribuições de policia e perseguidoras. Isso não o salva da responsabilidade, porque essas attribuições são consequências legitimas d'essa instituição bonapartista. N^esta sessão a camará approvou na generalidade o projecto da abolição das prefeituras. O governo não gostou. Outro facto caracterisa os realistas constitucionaes puros, ou conservadores. O governo propoz a dotação de 40 contos para a imperatriz viuva; tinha fallado apenas um deputado, quando se levantou An- tónio José d'Avila, futuro duque d' Ávila e de Bolama, graças ás suas adorações ao throno, e propoz que se não progredisse na dis- cussão, e que se desse a matéria por discutida, porque toda a camará ♦)0õ era unanime em approvar a proposta do governo. Muitas vozes levantaram-se, dizendo — não ò exacto, não é exacto. Macário de Castro disse que não concordava com essa pro- posta; António José d'Avila insistiu no meio do tumulto e dos pro- testos da esquerda; e o presidente acudiu, propondo se a matéria estava, ou não, discutida. A maioria receiou tornar-se facciosa e de- cidiu pela negativa. Macário de Castro sustentou que se devia lazer reducção; por- que a imperatriz era ainda a administradora da casa de Bragança, porque recebeu uma grande herança do marido, e em Londres exis- tiam grandes sommas depositadas nos bancos. O que lhe ficou per- tencendo dava-lhe uma fortuna coUossal para o paiz. (consequên- cias da bajulação do deputado da maioria. Foram approvados os 40 contos, porque o imperador no seu testamento recommendou á protecção do paiz a esposa e íllhos. Na dotação da rainha aconteceu o mesmo; tentou-se e\'iiar a discussão, sustentando-se que essa dotação já estava decretada pe- las camarás de 1827. Barjona propoz então que, altentas as precárias circumstancias do paiz, se reduzisse a dotação a metade, isto é, a Soorooo réis diários. Esta proposta foi assignada por Leonel e o deputado Castilho. Outros deputados propuzeram 20 conto.s mensaes. Rodrigo da Fonseca Magalhães pediu a palavra, para sustentar a proposta do governo. Entre outras coisas, disse elle : «O governo da nação portugucza é uma monarchia ; esic go- verno é o que a nação jurou e o que a nação quer e o que á nav^ão convém. Se temos, se queremos ter uma monarchia. é preciso que esta seja acompanhada da grandeza e explendor que lhe ^onvem e que corresponde a tão alta dignidade e ao chefe da nação portu- gueza». E disse que os deputados da esquerda queriam reduzir á miséria a rainha, dotando-lhe apenas ?oo-()oo reis diários I A maioria reconheceu a dfiutrina do deputado da extrema di- reita, e approvou os Mó contos annuacs. para mantcr-se o explen- dor e grandeza de uma monarchia, embora a nação estivesse quasi a pedir e^molla. GOG Só á ultima hora é que o governo apresentou o orçamento do estado, que não mandou imprimir, para addiar a sua discussão. Debalde os deputados da esquerda requereram que fosse impresso e entrasse na ordem do dia. No dia 1 2 de dezembro foram pedidos ao governo esclareci- mentos sobre as sommas de dinheiro existentes nos depósitos pú- blicos da cidade do Porto em 2 de julho de 1828, quando Palmella e os seus companheiros da Bel/estada se retiraram para Inglaterra. Passos Manuel requereu que se pedissem ao governo informações sobre qual foi o processo que adoptou para verificar a importância das indemnisaçóes, sobre os nomes das pessoas a quem se teem passado titulos para essas indemnisaçóes, qualidade d'elias e qual o calculo aproximado das indemnisaçóes totaes. Vieira de Castro requereu uma tabeliã com os nomes dos emigrados, com as sommas que re- ceberam dentro e fora do reino, dos postos e empregos que tinham, e dos que foram agraciados. Foi o mesmo que fallar em corda na casa de enforcado. Taes esclarecimentos não se podiam dar, sem se desvendarem escândalos monumentaes, e resuscilarem-se questões que estavam já quasi esquecidas no publico. Palmella apressou- se a encerrar o parlamento que lhe pedia contas da administração dos im.mensos fundos que recebeu du- rante toda a emigração, e cuja minoria o estava incommodando se- riamente. Sem que ainda estivesse discutido, nem o projecto para a ex- tincção das prefeituras, nem o da divisão judicial e de outras refor- mas importantes; e sem mesmo que ainda estivesse imprimido o orçamento, o governo encerrou as cortes a 1 8 de dezembro ! \o discurso do encerrament(3 diz a rainha que é preciso que se entreguem ás solemnidades religiosas do Natal os deputados que já estão fatigados com as longas dí.-^cussões. que tiveram logar du- rante a sessão extraordinária. K adverte que dois foram os objectos especialmente recommendados a esta: a continuação da regência do pae e o casamento d'ella com um príncipe estrangeiro. Louva e agradece ás camarás o procedimento d'ellas a este respeito. »>j7 Agradece a unanimidade com que as côrles decretaram a sua maioridade. I-^mquanto ao seu casamento diz que elle veio dar es- tabilidade e perpetuidade ao throno, íirmar as instituições da mo- narchia poriugueza e da carta. Mostra-se reconhecida pela sua do- tação, pela da imperatriz viuva e da íilha. Censura as cortes por não terem empregado o tempo, o seu zelo e esforços, na discussão das leis refluía mentares da carta, que deviam dar unidade e regularidade ao systema administrativo, judicial e de fazenda, de modo a melhorar os recursos fiscaes e con- correr para a prosperidade publica. E diz que tem conliança em que as sess(5es seguintes tratarão d'estes objectos com a devida con- sideração e duplicado zelo. Os deputados da opposição assignaram um notável protesto con- tra o addiamento das cortes, contra as medidas do governo e o pro- ceder da maioria. N'esse documento a opposição protesta contra o modo como se fizeram ns eleições, empregando-se estratagemas, calumnias e bal- dões, para aíFastarem da representação nacional os cidadãos mais distinctos pela inteireza do seu caracter e desinteressado amor da pátria. Conservaram-se commissõcs municipaes nomeadas pelo go- verno; conservou-se agrilhoada a imprensa, que aliás se desen- freava nos jornaes do governo, para macular os caracteres mais respeitáveis dos homens da opposição: linalmente, atropellaram-sc as liberdades individuaes, removendo-se. ou prendendo-se. vários cidadãos, em flagrante abuso de suspensão das garantia^, jue devia cessar de facto e de direito pela convenção de í^vora Monto. N"c->e tempo achava-se em extrema confusão a administraçãM geral do reino; e os conflictos das camarás nuinicipaes com as prefeituras, com seus excessivos ordenados, com ci> suas exto^sõe^ e vexame-. vieram provocar a execração ::eral ^'ontra similhanle --tema aJ- ministralivo. A opposição oppoz-sc ;í crcaçã') Jj» logar de pre-i Je:rtc de :v.i- nistros. pnr ser contrario á carta: i::>iou pela exlin^ção J.as prefei- turas: mas as suas deli^encias íora:i: i:ite;ramente !ru-*.radas. ::ão 008 se acabando de discutir o projecto que foi supplantado pelo do mi- nistro da justiça sobre a organisação judicial. Diz que entre os documentos que provam o espirito que domi- nava a maioria, deve mencionar-se especialmente a approvação do artigo 20 da lei da liberdade de imprensa, modificado pela camará alta, e que alguns membros da commissão mixta ainda tentaram fazer passar debaixo de outra forma. A opposição gloria-se de o ter anniquilado com o auxilio poderoso dos illustres representantes da camará alta. Accusa a maioria pela maneira facciosa com que andou na ques- tão Pizarro. Refere-se á lei que auctorisou o governo a interessar-se com lo por cento em todos as emprezas formadas por companhias para a conclusão de estradas, canaes e quaesquer outras obras publicas. Diz a opposição que deseja também estradas, canaes e outras obras de interesse publico, mas abrindo-se concorrência na praça, preferindo-se os que apresentarem condicções mais favoráveis e vantajosas, reservando á sancção legislativa os meios de pagamento e a auctorisação especifica e os lo por cento da fazenda publica na empreza que merecer uma similhante excepção dos princípios correntes da administração e finanças. A maioria, sem desconfiar dos precedentes do governo tão pródigo, nem se mostrar instruída das operações mysteriosas a que o projecto d'elle alludia, entregou aquelle deposito sagrado as enygmaticas operações do ministério com a só garantia de imaginaria responsabilidade futura, se por acaso abusasse. Accusa a opposição o governo por não ter apresentado ás cor- tes os contractos de empréstimos contrahidos dentro e fora do reino, por não ter prestado contas da sua applicação, nem consentido que se discutisse o orçamento por elle apresentado. «A opposição, diz o protesto, vendo assim rasgada a carta e essencialmente illiidida o governo represeiitatipo^ ter-se-hia retirado da camará, se o seu dever a não obrigasse a manter os seus postos, para não deixar correr á revelia a causa publica, que seus consti- tuintes haviam confiado á sua lealdade.» Assim terminou o primeiro anno do rcf^imen constitucional da carta depois da queda do regimen absoluto de 1). Miguel, e assim começou o reinado de D. Maria II. A maioria da camará detendeu-se com uma representação ao pai/, mas sem responder a nenhum dos ariigos accusatorios da mi- noria. Cinge-se a accusar a minoria de ter querido excluir da regência o divino e immortal D. Pedro, a quem endereça os maiores louvo- res e incensos; de ter planeado uma revolução, quando este talle- ceu, aíim de collocar na regência gente sua, de ter querido reduzir a lista civil, com oífensa da honra e dignidade da coroa, e de ter querido indispor a nação com esta. Também accusa a opposição de ter embaraçado a discussão das propostas de lei e das medidas apresentadas quasi todas lilhas da sua iniciativa própria! O ministério Palmella encetou a sua administração com a per- seguição á imprensa, aproveitando-se do regimen da censura que ainda existia. Este novo facto caracterisa bem o amor que os realistas consti- lucionaes puros, ou conservadores, votam á liberdade de imprensa, o seu mais terrível fantasma. I'^ o órgão da opinião publica, que el- L's desprcsam e pretendem sempre comprimir. O único jornal da opposição que se atreveu a appar^cer du- rante o regimen da censura, que se prolongou ate ao lim do anno ác I N34, fui a Agiiiú. Ficaram-lhe com vontade por causa d'isso. ou de tamanho arrojo. Os amigos de D. Pedro e (js conservadores não queriam jornaes da opposição; os jornaes eram para elles e si) para elles. exactamente como no temjM) dos realistas puros, ou abso- lutistas. ()uanJo faileceu D. Pedro, aquellc jornal tc\'c a pouca vergo- nha de querer dar prudentes conselh(~>s á jo\en rainha. Disse elle que a sf)berana encetaria uma e[M)cha gloriosa, -e Jesse uma anis- lia geral; por |ue a de 1). Pedro foi illudida. cniiio ^(■s•^l)^ leitores sabem, por portarias di>s ministros e {^elas arl iirarieJjvles d('s pre- feit(\s. 610 «As cadeias, diz o jornal, estão cheias de gente pela maior parte sem crime; e pelas provincias do reino acham-se ainda mui- tas pessoas removidas pelo grande crime de não prostituirem os seus votos e os dos seus amigos aos caprichos de um governo cons- titucional nas palavras, e nas obras mais despótico que o rei de Tunis e o do sultão de Constantinopla.» O jornal mostra, em seguida, o que é o nobre exercício do per- dão concedido ao poder moderador. Pede á rainha que proteja as guardas nacionaes defensoras da liberdade, e que faça com que as garantias da carta não fiquem só no papel. Aponta o facto de em uma villa pouco populosa terem sido assassinados 4 homens com a maior barbaridade e de n'uma outra subirem já a 162 os proces- sos de indemnisações, muitos d'elles contra os milicianos, que fize- ram a campanha contra sua vontade. Os lavradores abandonam as terras e os homens de dinheiro retiram-se para onde encontram mais garantias. Diz o jornal que, se o governo não adoptar medidas enérgicas contra os assassinos que infestam o reino, este se converterá em um paiz de selvagens. «Emquanto ás acções, diz o jornal, n'uma praga egypcia que vae devorando o reino, ellas nasceram principalmente doesse cele- bre decreto, que, para ser em tudo extraordinário, está suspenso e na mais viva actividade ao mesmo tempo, estranho aborto da mais deplorável inconsideração de um ministério que revolveu Portugal até aos seus fundamentos, invadindo todos os poderes, abalando todas. as garantias e semeando todas as desgraças», (i) l^ste quadro fiel e verdadeiro do estado a que os amigos de D. Pedro levaram o paiz não agradou ao governo de Palmella, que desejava seguir no mesmo caminho. O numero do jornal foi apprehendido, o redactor foi expulsi do paiz, e mandou-se instaurar processo contra o auctor de tão grave delicto ! Não era permittido aos fieis vassallos darem conselhos á sua (ij Águia n." 78. 611 rainha, nem aos jornaes da opposição censurarem os actos dos go- vernos e dizerem verdades amargas. E tal este outro acto com que se encetou o reinado de D. Ma- ria II, ao lan(;ar-se logo nos braços dos realistas constitucionaes puros. Foi para continuar n'essas perseguições á imprensa que Pal- mella defendeu o artigo 20.' do projecto approvado pela camará dos deputados, e empregou todos os esforços para que passasse, quer na camará alta, e quer, sobre outra forma, na commissão mixta das duas camarás. O próprio processo da Águia concorreu muito para a modifica- ção d'aquelle artigo, que dava toda a latitude aos abusos do poder e das auctoridades. CAPITULO II MANOBRAS REACCIONÁRIAS Palmella intenta indispor a rainha contra a opposiçáo liberal.— Apparaio da força armada no dia da abertura das cortes ordinárias.— Discurso do throno. — Addiamento das cortes.— Na reabertura d'estas o governo apre- senta três projectos de lei tendentes a avigorar a situação cartista. -As cortes manteem os projectos filhos da sua iniciativa própria.— A reforma administrativa do governo combatida pela camará dos deputados. — Incidente tumultuoso. — O sr. Seabra apresenta um projecto de reforma judicial. — As minorias propõem a dissolução das camarás. — Representação da camará municipal do Porto contra as prefeituras.— Demissão dos deputados da opposição e dos empregados contrários á politica do governo.— Processo da Guarda Avançada. — Dia do julgamento. - Escândalo de S. Carlos. — Os deputados da opposiçáo pedem esclarecmientos sobre Cite facto e as demissões feitas.— Resposta dos deputados ministeriaes. - O ministério conservador ou car- tista busca o apoio do partido tory. — Carta da rainha ao papa.— Negociações para um novo tratado de com- mercio com a Inglaterra. — Wellington pretende conciliar D. Carlos com, a rainha Izabel II.— Recomposição ministerial.— Palmella intenta reconciliar-se com Saldanha, nomeando-o para a embaixada de Paris.— Im- pressão d'essa nomeação no partido liberal. — Saldanha addia a partida. — Debates ácêrca da resposta ao dis- curso do throno.— Proposta e discurso notável de Passos .Manuel.— A camará dá um voto de confiança ao governo. — O governo no.Tieia o esposo da rainha commandante em chefe do exercito e o duque da Terceira marechal general.— O conde de Villa Real entra na pasta da guerra —Protestos na camará contra o logar de commandante em chefe. -Debates a este respeito. — Estranha att;tude de Passos Manuel. — Resolução da ca- mará.—Morte do príncipe D. Augusto — Tumultos em Lisboa.— Discussão sobre a reforma administrativa. — Lista civil. — Encerramento das cortes. A opposição ao governo de Palmella recrudesceu com o addia- mento das cortes extraordinárias, sem que estas acabassem a sua obra, ou votassem as leis mais urgentes e importantes. O anno de i835 ia encetar o novo regimen da imprensa, o qual daria origem a muitos jornaes opposicionistas, que muito concorreriam para le- vantar a opinião publica contra o ministério reaccionário. Além d'isso, forçoso era abrirem-se no dia competente as cortes ordiná- rias; e, ou o governo mandasse proceder a novas eleições, ou qui- zesse preencher o grande numero de cadeiras que estavam vagas na camará baixa, o perigo era imminente, porque era certo o triumpho da opposição. 613 O anno de i835 começaria bem embaraçoso para os realistas constitLicionaes puros. I^almelia, para subjugar a opinião publica, e para conter a op- posição, resolveu fortalecer o poder e armar-se contra o partido liberal. \'endo que, segundo a carta, toda a força do systema estava na coroa e não no povo e na opinião publica, tentou indispor aquella contra esta. Elle moveu grandes intrigas no paço para con- vencer a rainha de que a opposição conspirava contra seus direitos augustos, e planeava uma revolução democrática. Os realistas constitucionaes puros imitam os Maniques, ou rea- listas puros no tempo de D. João VI, que elles conseguiram, por meio das suas manobras e patranhas, indispor contra os liberaes. Todos os esforços de Palmella, depois do addiamento das cor- tes e do protesto da minoria, foram empregadf)s em convencer a rainha e o paço que se conspirava contra ella c que eram precisas medidas de rigor e de energia, para se conterem os ânimos exalta- dos. Os liberaes planeavam revoluções e conspirações, para cercea- rem os direitos da rainha e estabelecerem no paiz o tão odiado regimen democrático. I-^ra preciso que a coroa mantivesse com energia a sua honra c dignidade ameaçadas pela opposição liberal. Nada mais fácil do que arrastar para esse caminho a rainha soberba, altiva, orgulhosa e tão propensa para o absolutismo. Pal- mella conheceu-o perfeitamente ; e foi n'esse sentido que elle dirigiu as suas vistas, para vencer a opposição, ou o partido liberal, e para o afastar do poder. Representando uma scena á Pina Manique, no dia 2 de janeiro de iN33, em que a rainha devia ir abrir as c<')rtes ordinárias, man- dou distribuir muitas patrulhas por as ruas de Lisboa: poz as tro- pas de j^revenção, e a cidade quasi em estado de sitio, pelo ap[^a- rato bellico com que se apresentou n*este dia. .A aucioriJadc admi- nistrativa mandou publicar um edital, cm que ordenava a [^risá" de todo aquelle que soltasse gritos sediciosos! A hora aprazada, sahiu a rainha do seu palácio, a^^í >nij\mhaJa do seu estadia maior e de uma grande escolta. I Jn redor ^ias ^riries pt^staram-se muitas f(a\"as c patrulhas. * 614 Diz O discurso do throno que o socego interno continua melho- rando, apesar das medidas preventivas do dia, mas accrescenta que o governo espera mantel-o, respeitando e fazendo respeitar a lei, para o que elle conta com a cooperação das cortes. Para isso, o governo apresentará leis fixas e uniformes acerca da administração da fazenda, da organisação administrativa e do poder judicial, todas dependentes umas das outras. A subsistência do clero fará objecto das providencias das cama- rás, e o governo tem tomado as medidas necessárias para a pôr em execução. Diz falsamente que o credito publico tem melhorado e o governo espera melhoral-o ainda mais; o exame do orçamento inspirará as resoluções necessárias para augmentar as rendas pu- blicas ; está intimamente ligado com este objecto a lei das hypothe- cas apresentada pelo governo. Torna a referir-se á lei de responsa- bilidade ministerial e dos funccionarios públicos, que o governo nunca teve intenção de pôr em discussão e de realisar. E termina por pedir ás cortes que habilitem o governo com o subsidio neces- sário para acudir ás despezas do estado. Xo dia immediato, são novamente addiadas as cortes para o dia 20, e prorogadas até 20 de abril. Perfeitas péllas nas mãos do governo estes parlamentos sem força nem valimento. Pouco tempo depois, teem logar as eleições municipaes de Lis- boa e Porto, vencendo a opposição, apesar do governo se empe- nhar por lá metter gente sua. Desde então por diante, a imprensa ministerial surge com uma campanha violenta contra os homens do partido liberal, dizendo que planeiam desordens e revoluções, que são inimigos de D. Pe- dro e das suas leis immortaes, e que são republicanos. A mesma imprensa entra na ingrata tarefa de injuriar, calumniar e infamar os homens mais distinctos da opposição, para os tornar odiosos. São mui notáveis e instructivas as cartas que Passos Manuel então pubhcou, em resposta aos ataques que a maioria dirigiu á minoria da camará e aos ataques dos ministeriaes. Na primeira carta Passos Manuel cita os discursos dos vintistas 615 *» contra D. Pedro, de quem agora se tornam sabujos e admiradores ; recorda o que se passou na emigração entre os aulicos e os homens independentes, e falia da exclusão de Saldanha e do incidente Pi- zarro. É uma bella e eloquente resposta. Em desforra das eleições municipaes de Lisboa e Porto o go- verno ordenou que se não procedesse a eleição de novas camarás municipaes nos concelhos onde havia pouco tinham sido eleitas, e nos concelhos que tivessem de soílrer alteração com a nova divisão territorial a que se ia proceder. E aqui teem nossos leitores o que são as autonomias locaes segundo o regimen da carta. Nas vésperas da nova abertura das cortes, o governo fez espa- lhar que para esse dia estava planeada uma revolução republicana, e pouco faltou para imitar o intendente l^astos em iI Consistia a reforma na substituição apenas dos prefeitos c sub- prefeitos e provedores por governadores ci\"is e administradores Je concelhos. De resto permanecia a mesma ccntralisação administra- ti\a, se é que não havia mais. I-^ preciso que digamos a historia d'c>ta reforma. A commÍNsã,) da administração da camará exlraorduKiria csta\'a elaborai^. Jo vau projecto de organisação administrati\a, dando autonomia a mi::ii- cipios. e abolindo as prefeituras, quaiid'^ o .sr. António Luiz Scal^ra. vendo o que se passou com a commi.ssão das infra^çnc> Ja ^aria a respeito do logar de presidente de ministros, apre.ss )U->e a apresen- tar um projecto seu para abolição das preleituras. das .secretarias, conselhos de prefeitura e das juntas -:erae^ de [Tosin^ia. 616 Este projecto foi approvado na generalidade, e não estava ainda discutido, quando o governo addiou as cortes, tendo imposto a ex- tincção dos juizes ordinários. O deputado Leonel observou que o governo tirara ás cortes a iniciativa, tanto sobre a reforma administrativa, como sobre a abo- lição das prefeituras; e propoz que se consultasse as camarás se os trabalhos das cortes extraordinárias cessaram, ou se continuavam. As camarás resolveram n'este sentido, mantendo assim os seus projectos, o que foi um cheque no governo. Leonel teve depois a palavra, e disse que o projecto do governo era peior do que o apresentado pela commissão da camará (Vozes: peor, muito peior). Disse que o governo pretendia acabar por uma vez com os restos da liberdade municipal. Saldanha sustentou que um governo representativo deve formar- se com a opinião publica, e que esta pedia a abolição das prefeituras ; querer conserval-as é querer ir contra a vontade do paiz ; é com- metter uma tyrannia. Macário de Castro disse que o que o governo desejava com o seu projecto era influir nas eleições. Sustentou que não via outro remé- dio, senão na dissolução das cambaras, e que, se tivesse a quem a pe- dir hoje mesmo, disse, o faria. (Vozes da esquerda — Todos, todos.) Rodrigo da Fonseca Magalhães disse que tinha que fazer algu- mas perguntas ao presidente; mas em termos taes que provocou o riso das galerias. Fora de si, respondeu que eram agentes da oppo- sição (ordem, ordem, da esquerda). O orador quiz explicar o termo agentes; as galerias gritaram viva a rainha! viva a carta! morram os ivrannos do povo ! Levantou-se tão grande tumulto pelas provocações dos chama- dos moderados, que o presidente viu-se obrigado a pôr o chapéo na cabeça, e a levantar a sessão. Aberta novamente a sessão, recomeçaram os trabalhos com a eleição das commissões. O senhor Seabra apresentou um projecto sobre a reforma judi- ciaria; e pediu se mandasse imprimir. Tal foi a primeira sessão das cortes ordinárias de i835, e os eífeitos da apresentação dos Ô17 tres projectos reaccionários do governo realista constitucional puro. Tres dias depois, 3 1 deputados da minoria propõem que se peça á rainha a dissolução das camarás eleitas em épocha anormal, sob a suspensão das garantias constitucionacs, por meios violentos, e por as cortes terem cessado a sua missão com o encerramento das cortes extraordinárias. Foi para uma commissão especial. Na sessão de 28, foi lida uma representação da camará muni- cipal do Porto contra as prefeituras. Leonel pediu que fosse lida perante os ministros, para que estes ouvissem a resposta ao proje- cto dos prefeitos disfarçados em governadores civis. O governo, desesperado com esta opposição, entrou no cami- nho das perseguições. O deputado Augusto Frederico Castilho foi demittido de arci- preste da sé de Lisboa, para se vingarem da defeza que fez de Pi- zarro; e João Mousinho d'Albuquerque, também da opposição, foi demittido do logar de provedor da casa da moeda. O conselheiro Luiz José Ribeiro, olficial da secretaria da fazen- da, ousou fazer uma interessante e instructiva analyse do orçamen- to, que o governo subtrahira á discussão das camarás. Ahi mos- tram-se muitas omissões de sommas que aggra\am o thesouro, e demonstra-se que, alem dos 14 milhões de cruzados necessários para as despezas até junho, são ainda preciso^ mais ():^on conti 5.I Muitas outras faltas, erros e lalsidatlcs, montra o auclor d"aqucl- la obra, que {od')S devem ler; porque e um documento iniportaniis- simo da épocha, e não s(') da prodigalidade das administrador con- servadoras, como do seu pouco respeito pela opinião publica e pe- \()> parlamentos (i\ O go\'emo, vendo se assim denunciado e ajxmhado em lla-;ran- te delicto. demitte do seu lojar na secretaria da ía/enJa c aiuiff da obra I Aos lieis wissalld.s não era perniittiJa a Ji>cu->>ão d- i.s actos di.>s go\ernos de sua mage^tade. (I. \'kÍl- I'.vj'):c d(i rc!,i!orin d) fiiiiu--tr,, .;'.: '.?-.;;.!',; -.^c.o cor.sclhcT.i I...:/. ,Io--v i\i- 618 Desde enião por diante o ministério Palmella começou a demit- tir os empregados da opposição, a pretexto de que eram inimigos da carta e da rainha, e estavam confundidos com os miguelistas! Mas o mais engraçado é que. em quanto estes eram admittidos e conservados nos empregos públicos, como se mostrou no parla- mento, só os da opposição é que mereciam as fúrias do governo! Um dos programmas immoraes d'este era recompensar com em- pregos do estado os que se conservavam fieis á rainha e á carta. Assim o declarou Palmella. E, a pretexto de que a opposição pla- neava uma revolução republicana, foi demittindo todos os que lhe pertenciam, para dar os logares aos seus amigos, afilhados e ade- ptos! O governo quiz intimidar também a imprensa. A Guarda Avançada no primeiro numero e n'um artigo intitulado — Sessão ordinária de i.sa fuzão de direitos; porque, na verdade, a ditferença entre o realismo puro e o realismo constitucional é apenas na apparencia. A 2 1 de tevereiro. sahiu do ministério Frei Francisco S. Luiz, por divergir da marcha seguida por elle. O ministério tentou addiar indefenidamentc a reforma adminis- trativa; porque lhe convinha muito o regimen das prefeituras, o mais próprio da politica conservadora, ou da escola doutrinaria, de que é filho legitimo. St') a 20 de março é que entrou em discussão na generalidade o projecto para a reforma judiciaria! Na recompvisição ministerial, Palmella tentou recnnciliar-se com Saldanha, otFerecendo-lhe uma pasta, que elle ainda recusou: mas para o aífastar da oj^posição, e faciiitar-lhe a passagem para o campo oppost(\ nomeou-o nosso ministr*') cm Pari^, e Jeulhe um grande adiantamento para as despesas da viageni. o que tudo elle acceitou ! Ivsta nomeação produziu immensa sensação nt • [\irtiJo liberal, que desde então por diante começou a dc>^on!Íar d"es>e seu chefe, j^ouco leal e tão \olii\el. Data d'es->a epocha a doerção de- 622 íinitiva de Saldanha para o partido conservador, ou realista cons- titucional puro. E muito possível que concorressem para isso as influencias do paço, ás quaes Saldanha era tão accessivel. Este general e estadista, ambicioso, cheio de vaidade e com o sangue aristocrata, fatal- mente devia propender mais para o throno e a corte, do que para o povo, a quem não pertencia e a quem era alheio por sua educa- ção, instinctos e sentimentos. O partido democrático não podia contar com esse general tão vaidoso da sua espada e da sua farda, tão cheio de ambições pes- soaes, de honra e distinções, e de caracter tão versátil. Era inevitá- vel que elie, tarde ou cedo, se bandeasse para a coroa, e se fosse juntar a Palmella sob a influencia d'esta. O duque de Palmella não era homem de reservas, quando se tratasse de ferir o partido liberal. Para conseguir isto, não duvidava esquecer todos os resentimentos pessoaes e alliar-se aos seus maio- res inimigos. O tempo já tinha sanado feridas passadas; e o apoio do seu rival Saldanha era um poderoso reforço da sua politica reac- cionária. Saldanha addiou, no emtanto, a sua partida para Paris, prova- velmente para desvanecer as primeiras impressões da sua nomea- ção. Elle escreveu uma carta, aflirmando falsamente aos seus ami- gos políticos que não os abandonaria, e que continuava a militar na opposição. Havemos de ver mais adiante a sinceridade d'estas declarações. O governo teve tanto receio da discussão dos seus actos, que só a 1 3 de março é que entrou em discussão o projecto da resposta ao discurso do throno I Os debates foram dos mais interessantes de toda a sessão legis- lativa. Foi então que se revelaram oradores disti netos, e que Por- tugal mostrou que estava a par das nações mais cultas e intelligen- tes. Proferlram-se brilhantíssimos discursos de parte a parte. Passos Manuel propoz uma emenda em que se pedia á rainha a demissão do ministério, que não tinha a confiança da opinião publica e contra o qual se estavam fazendo tantas representações. í»23 Proferiu um longo c brilhante discurso, a avaliar pelo extracto que d'elle temos conhecimento. Pena é que não pudéssemos obter a in- tegra d'esse importantíssimo discurso. As regiões olíiciaes empe- nharam-se por subtrahil-o ao publico. O Diário do Gorcnio limi- ta-se a dizer que o orador fez largas considerações em defesa da sua emenda, que apresenta ; e o Diário das Cortes nem ao menos faz menção do discurso! Conhecemol-o apenas pelo e.xtracto que d'elie fez o Nacional. Se foi publicado no Diário do Governo., foi n'algum numero dis- perso, que não é fácil descobrir-se. Não o encontrámos em todo o semestre de i835, emquanto a folha oíiicial teve o cuidado de pu- blicar na integra o discurso de Rodrigo da Fonseca Magalhães em resposta ao de Passos Manuel! Isto é inaudito! Disse Passos Manuel que não hostilisava o ministério por anti- pathia, mas pelos seus muitos erros. Accusou-o pela apresentação dos projectos para a reforma judiciaria e administrativa, pela de- fesa que fez do artigo 20." da lei da imprensa e dos ataques que se fizeram a esta; por ter chamado ao jury a Guarda Alcançada., acto que qualificou de ante-politico. Accusou-o por causa da escanda- losa accumulação dos empregos públicos e excessivos ordenados, de que trataremos mais adiante, por conservar nos empregos do e.^tado os miguelistas, emquanto demittia (Castilho e outros libL'rae> da opposição. Notou o acto escandaloso do governo combater na camará alta o projecto sobre a pronuncia, sustentando que bastava para ella a indicação do juiz, e não querendo a raíilicação pelo jurN', para sujeitar os presos á arbitrariedade das aucloridades poli- ciaes, e judiciaes, recebendo inspirações dos ministros. O orador passou á politica estrangeira. Ccnsun^u fortemente o governo, por ter concedido a pensão a lord Wellington, que. di>sc elle. tcchara as portas do seu paiz ao exercito portuguez na adversidade, [Perse- guira os emigrados, os mandara sahir da ( irã-r>reianha. e que me- tralhara os portugue/es nas aguas da Terceira em delega Jo mons- tro e t\rannico D. Miguel. l)i>^e que os mini-^U-o^ niUKa Je\eriam pro.>lrar-se diante do algoz dos portuguezes. o qual ensanguentara os mare> do> Açores com sangue portuguez. (Combateu as tentaliva> 624 feitas para a reconciliação com o papa, defensor de D. Miguel e o maior inimigo das liberdades da Itália, para opprimir as quaes não duvidou chamar as baionetas austríacas. A camará não deverá re- conhecer esse chefe dos padres, para acabar a preponderância que elle pretendia arrogar-se em Portugal. Disse que o poder temporal do papa era um anachronismo no século xix. E fez o elogio de D. Pedro, que teve a coragem de arrostar com os preconceitos e manteve os direitos da sua nação. O orador elogiou egualmente o ministro do reino, por ter demit- tidd provedores, cujos excessos deixaram esquecer os antigos capi- tães mores. Macário de Castro fez um quadro verdadeiro do estado em que o governo, com a sua politica reaccionária, deixara o paiz. Disse elle muito bem. «Não ha administração: não ha systema judiciário; não ha se- gurança publica, nem segurança individual; os povos estão descon- tentes e as estradas intransitáveis.» O mesmo que em 1826 a 1828. O governo estava todo attcnto em combater a hydra da democracia, que lhe apparecia por detraz da opposição. Com respeito á politica estrangeira disse ainda Macário de Cas- tro o seguinte : «E eu portuguez não poderei ver sem receio á testa dos negó- cios do meu paiz com a pasta dos negócios estrangeiros um homem, cujos precedentes não me deixam esperança alguma, para resistirá influencia de um gabinete tory. Quizera saber também esses addi- tamientos feitos ao ultimo tratado da Quadrupla Alliança^ de que o rei da Inglaterra fez menção em seu discurso, quando o senhor mi- nistro dos negócios estrangeiros não julgou esta camará merece- dora de similhante communicação. » E, com eífeito, era bem grave a situação da politica internacio- nal; porque n'este momento, tanto a Inglaterra, como a França e Hespanha, entravam ousadamente na politica conservadora, ou reaccionária, que Palmclla pretendia também seguir em Portugal. A opposição ainda nutriu esperanças de vencer n'esta lucta ; 625 mas a maioria deixou-se levar pelas influencias do ministério e do paço, e desejou sustentar o governo, para não romper o tratado da Quadrupla Alliauça e não atlastar Portugal do concerto da politica • Conservadora, dominante nos paizes alliados. A emenda de Passos Manuel foi regeitada, o que correspondeu a um voto de confiança no governo. A mesma maioria regeiíou a proposta para se pedir á rainha a dissolução das cortes, por ach^l-a anti-constitucional e otFensiva do poder moderador, que era livre no exercicio d'este direito! Em compensação, a minoria conseguiu que fosse enviada uma deputação á mesma rainha, para lhe pedir a demissão dos empregos do estado dos miguelistas, que o governo teimava em proteger, e conseguiu também que passasse na camará alta o projecto sobre a pronuncia, o que foram dois cheques no governo. N'estas condições tão graves, a rainha chamou, em reforço da politica reaccionária de Palmella, o esposo, que ardia em desejos de intervir cm os negócios públicos, para defender as leis de D. Pedro, como nossos leitores já sabem. Rm 20 de março, a rainha nomeiou o príncipe Augusto com- mandante em chefe do exercito, para dar, diz cila, uma prova de alta consideração ao exercito portuguez c ás distinctas qualidades do principe, que reúne a cie ser herdeiro JlI iuclita espada com que meu augusto pae^ de saudosa meuwria^ restaurou o meu l/irono e a carta amstitucumal da mouarciua ! Na mesma data, a rainha nomeiou o duque da Terceira marc- chal-gcncral do exercito, c restabeleceu o grande estado maior do reinado miguclino, abolido por decreto de 2 5 de setembro de 18 4! O conde de Villa Real foi nomeado ministro da guerra, em substituição do duque da l^TCcira. Rsses decretos correspondem a um verdadeiro golpe dV-stnJo á D. Mií2ucl c a uma verdadeira dictadura. l'oi uma ameaça auda- cissima ao partido liberal, hostilisado constantemente. dcsJe que se estabeleceu entre ncVs o regimen constitucional. Nem a rainha, nem o governo, tinham direito para creaiem o logar do commando em chete. e de Jerogar o decreto de 2 5 de 79 626 setembro de 1834, sem a intervenção das cortes, A rainha e o es- posw assim o quizeram; a sua vontade fazia lei, exactamente como no regimen absoluto. A rainha, creando o logar do comrhando cm chefe, recordava D. João VI ao investir Beresford d'esse poder, para esmagar o par- tido liberal; e fazia lembrar D. Miguel assumindo o mesmo com- mando em Villa Franca. Na sessão de 24, Barjona protestou contra essa ameaça. Disse que a nomeação do commandanie em chefe não se compadecia, nem com as conveniências politicas, nem com a economia, e que só em casos mui excepcionaes existiu entre nós esse cargo, que podia ser bem funesto para a causa da liberdade, rccahindo em pessoa contraria a ella. O commandante em chefe c responsável; e poder- se-ha pedir essa responsabilidade ao esposo da rainha? Entendia que não. Fez o elogio d'elle; mas disse que primeiro estava a lei; sustentou que não era necessário semilhante cargo; c, quando o fos- se, só no campo da guerra; mas nunca no espos.o da rainha. Disse que todas as pessoas com quem fallara desapprovaram similhante medida, e que até um ministerial lhe declarara que o governo tinha procedido muito mal. Leonel requereu que se declarasse na acta que, se o novo com- mandante em chefe não fica sujeito ao ministro da guerra, a cama- rá julga violada a carta constitucional, e se o fica, julga uma incon- veniência e contrario á dignidade da coroa e do esposo da rainha. Silva Sanches disse que, assim como a França não quiz, em i83i, um commandante em chefe da guarda nacional, que era o grande Z-í7/í3}'6V/6', assim os portuguezcs de i835 não haviam de querer um commandante em chefe do exercito de linha. Joaquim António d'Aguiar requereu que se lançasse na acta que a nomeação do principc era legal e não oíTerecia inconve- nientes. Rodrigo da Fonseca Magalhães, em defesa do governo, citou o exemplo de o duque de Yorck, succcssor da coroa da higlaterra, ter sido nomeado commandnntc em chefe; c estranhou que em Portugal SC quizesse ter cm menos conta um filho do Bcauharnais, 627 que ado«;ara as tcndcncias despóticas de seu pae adoptivo. Disse que, se isto passasse sem resposta da camará, recahiriam suspeitas sobre elle e seus amigos politicos. (Vozes, tiada de stisjpcilas; isso d iini insulto. Ordem, ordem.) Levantou-se tumulto no meio da assembléa, e o presidente le- vantou a sessão por meia hora, linda a qual o orador continuou, dizendo que não duvidava dos principios liberaes do principe, e que a carta não se oppunha á sua nomeação. Passos Manuel assumiu n'esta questão uma attitude estranha. Disse que a nomeação do marido da rainha era um acontecimento mui grave, e que era necessário que a camará o meditasse seria- mente. Não emittia a sua opinião; porque ainda a não formara a este respeito; mas não duvidava de que era um negocio importan- te, não pela pessoa nomeada, mas pelo principio que estabelecia, porque podia ameaçar a liberdade. \'a'í\ preciso que a camará notasse no pouco tempo que lhe restava para tratar de outros assumjnos egualmente imp(jrtantes. A sessão f()ra destinada á questão das indemnisações. por que a nação espe- rava anciosa, e por isso era do parecer que se tratasse da do com- mando em cheíe, ou em sessão nocturna, ou n'um dcjmingo. l^assou a mostrara importância da primeira. Disse que já na emigração susten- tara que os liberaes liniiani dircilíj a ser indeninisados dos prejui/os L|ue sollreram, mas á custa do ihesouro. Sustentava ainda a mesma o[^inião, embora ella tivesse levantado contra si as paixões das bor- des ignorantes. Disse que liavia um partido irracional que desejava dominar os espíritos pela lV'rça brula, o qual se compunha de escravos da multidão, homens abjectos, sem consciência, sem honra e [MÍnci- pios; porque desejavam dominar por meio das violências, listava de- cidido a combater, tanto o [\irlido ministerial, como o partido migue- lista e esse partido irracional, que de liberal nada tinha, como disse Mousinho da SiUeira. l.ra es^.ravo Jos erros e das paixões: e por isso tão despresi\el, como o dos aulicos de palácio. !•' refcriu-se ao assassinato do Uimigerado e cruel miguelista lie/erra, que o povo acaba\a de espcUilar na cidade do Porio. quando \inha escoltado por uma ti)i\a. 1^ acciescenlou que o;, auli^ns d< • j^ovo la/iam-lhe 628 mais mal, do que bem; persuadindo-se que tinham grande força queriam transtornar a ordem publica. N'este ponto levantaram-se muitas vozes, ordcm^ ordem; o ora- dor quiz explicar as suas expressões, mas fora tal a desordem e os protestos, que se não poude ouvir o que disse. Passos Manuel concluiu pedindo que se não tratasse do nego- cio do commando, sem primeiro se decidir do das indemnisações. Leonel, que divergia da opinião d'aquelle estadista na questão das indemnisações, suppoz que elle se referiu a si, e declarou que não era aulico, nem dos grandes, nem dos pequenos. O discurso de Passos Manuel foi mui commentado pela im- prensa ministerial, que viu n'elle um rompimento do orador com a esquerda, a que ella d'ahi por diante começou a denominar o par- tido dos irracionaes. Passos Manuel declarou nos jornaes que nunca lhe passou pela mente referir-se á esquerda, a que elle continuava a pertencer. A camará resolveu que os requerimentos de Leonel e Aguiar ficassem para o dia seguinte, e entrou na discussão do projecto das indemnisações. Na sessão de 26, Passos Manuel requereu que se nomeasse uma commissão especial, para dar seu parecer sobre as duas declarações de Leonel e Aguiar. E que se ella fosse de opinião que o comman- do em chefe do exercito não era necessário na conjectura presente e que não era conveniente nem ao decoro do ihrono, nem á liberda- de da nação, pela justa repugnância que deviam ter os portuguezes em exigir responsabilidade a um tãoalto personcigcm, que s(') queriam amar e respeitar, requeria que a mesma commissão propuzesse os meios mais próprios e ellicazes, j">ara obrigar o ministério a alterar n'este ponto a sua politica, e para impedir que ella se não renovas- se para o futuro. Este requerimento foi assignado também por António Luiz Sea- bra, por Passos José, Joaquim \'ellozo da Cruz, António Dias d'Oli- veira, e José Plácido (Campeão. Macário de (^astnj também apresentou uma declaração por escripto de que julgava a nomeação do principe contraria aos prin- G29 cipios do governo representativo, absolutamentu desnecessária em tempo de paz e incompalivel com o estado da fazenda. O senhor António Luiz Seabra disse estranhamente que, .segun- do a deliberarão anterior da camará, se não podia tratar n'este dia d'esta matéria, quando íoi isso o que a camará resolveu; e o presi- dente accudiu logo, dizendo que talvez losse melhor que todos os requerimentos relativos a este objecto ficassem para o dia seguinte, no que não loi apc^iado por ninguém. Barjona combateu a proposta de Passos Manuel ; quiz também addiar a questão para outro dia; e disse que faria egualmenle uma proposta, mas, disse elle, não hoje, nem amanhã; ha de ser ai íí nus dias mais tarde ! \í accrescentou que, em vista do que disse Kodrigo da lM)nseca Magalhães, desejava declarar os motivos porque deixava agora de fazer a sua proposta, para que se não suspeitasse que tivera algtmi motivo particular para isso. Declarou que esperava que o principe se demittisse, logo que reconhecesse ejue o juirlamenlíj e a naçãíj se oppunham ao cargo para que fora nomeado, e por isso não que- ria que houvesse discussão, sem se conhecer a allituJe que elle to- maria. Depois de viva e animada discussão, a camará resolveu que se exarassem na acta as duas declarações ()j^jx)slas Je Leonel e Aguiar. N'esia occasião, o princij^e adoeceu repenlinamenle de unia angina dipheterica, por n\ima caçada ter-se exposto ao sol dema- siadamente. A moléstia progrediu rapidamente; e no dia l-N expirou pelas 2 horas e 20 minutos Ja tiirle, teiiJo recebido uni tratamento medico, c]ue e Je bra^lar aos ceos. A noticia da morte súbita do priiici[^e causou \ i\a impressão na cidade de Lisboa; ex[Modiram enlfio os ódios contra o ministé- rio, e principalmente contra Palmella. Este homem, de sinistra memoria. Jeu pasto á maledicência, e razões para o povo o accusar n"esta occasião. |>a odia«.ln por seu passado tuncsto e por seus tramai con^tLinlcs contra a libcrJa Jc e defensores do poxo. A >iia poJitKa lorluo>a c Je iiuri^a> [^rodii/.iu nV\ste momento os naturae^ írikto^. l)cu->c o qiic era Jc esperar Ja (530 permanência no poder de um homem anlipathico e em quem o povo não tinha confiança. Sobre elle cahiram suspeitas injustas e insensatas, mas consequências falaes do seu procedimento desde T820 ate então. Era um inimigo do povo, e o povo portuguez acosiumou-se a ver n'esse homem a causa de todos os seus males e o auclor de to- das as intrigas e conspirações palacianas contra a liberdade. Em 1820, em i823, em 1826 a 1828, na emigração, na re- gência da Terceira, durante a dictadura de D. Pedro, por a morte d'este, e na nomeação do primeiro ministério da rainha D. Maria II, Palmella não fez senão excitar ódios, paixões, resenlimentos, irrita- ções, vinganças, indisposições e inimizades contra si. Tudo isto, accumulado por muitos annos, explodiu n'este momento com toda a violência das paixões exacerbadas. No dia 29, a cidade de Lisboa annunciava graves aconteci- mentos. l-,ra um domingo; por quasi todas as esquinas das ruas e nos largos appareceram aíixados pasquins incendiários, chamando o povo á revolta, pedindo vingança e accusando Palmella de traidor. Um pasquim no largo das Duas Egrcjas pedia ao povo punis- se o traidor l\ilmella ; o da Conceição Nova convidava a guarda nacional a deitar abaixo o ministério, e a punir a traição; e nos largos do Corpo Santo, c de S. Pí7z//oappareceu um — Aviso aos portu- gueses— . N'elle diz-se que o príncipe fora envenenado [-telo duque de Palmella, não só para não dar contas de dois milhões que lhe foram entregues para soccorrer os emigrados; mas também para ca- sar a rainha com um dos filhos e deitar abaixo a caria, como já tinha tratado em Londres com o duque de Wellington, i^cde que os porUiguezes estejam alerta e corram em defesa da sua liberdade, da palria, da carta e da rainha. 1{ termina « Porluguezes! morra o traidor e traidores; e não percamos a nossa liberdade!» Tod(js os corpos licaram de prevenção nos quartéis, e a guarda nacional leve ordem de não sahir arniada. Havia viva agitação em ioda a cidade, e era iieral a murmura- cãu L(^nlra Palmella e o niinislerio. Pelas 10 lioras da noite rehen- ft31 tou O tumulto no larf^o do Loreto, onJe se juntou muito povo no meio de gritos — Abaixo Pamellal ióni l\iimella! Mste recebeu muitas cartas anonymas c outras assignadas, ameaçando-o e admoestando-o. O povo e alguns guardas nacionaes armados invadiram as es- cadas do palácio do duque de Palmella no meio de morras e de gritos contra o ministério. N'esla occasião, chegaram ao largo do Loreto alguns olliciaes e soldados da guarda municipal; e dispersaram o povo amotinado. N'islo correram novos grupos de populares, vindos das ruas imme- diatas, para o palácio do duque, gritando —Viva a carta! \'iva a rai- nha! Morra i^almella! Um esquadrão de cavallaria cahiu a galope sobre elles, e foi pos- tar-se nas immediações do palácio, sendo n'esta occasião acutilados e feridos vários populares. '1 odas as boccas das ruas da IIoííj Sccca c das Clniíj^as foram occupadas por f(Vc;as de cavallaria e iiilanteria. Palmella tinha recolhido a casa ás 8 horas da noite com J(^sé da Silva (Carvalho, encontrando n ella o duque da Terceira, o conde de Villa keal e o visconde da Serra do Pilar. Os gritos e morras continuaram f(')ra e nas escadas do palácio. O duque da Terceira sahiu C(^m o visconde da Serra do Pilar; apreseiitou-se ao povo, dizendo-lhe. <«Iai sou o duque k\a Terceira; conhecem-mcl''> N'este momento, abriu as bandas da casaca eaccres- centou. "Aqui estou; matem-me; merece-o bem. por os ter resga- tado. ') Os pojMilares recuaram diante J'aquclle acto de valor; os guar- das nacionaes melteram as baionetas na bainha, e loJr)> de>ccram as escadas e retiraram-sc. I'\)ram collocadas sentinellas ás portas; e o j^ilacio foi rondado toda a noile por patrulhas dobra^^las. com or>.leni de aculilar os que se aproximassem. Ao mesmo tempo era assaltada a casa de Agosiinho .loso b^rei- re, a i.|ual o po\<) unaLliu no meio ^ic morras a elle c- ao ininistcrio. Não foi encontrado, porque feli/.menle e^ta\a lora. 632 Era tal a exaltação popular, que o brigadeiro Saraiva Refoios, deputado da direita, foi cruelmente maltratado, por ter defendido o ministério perante um grupo. Houve vários motins em toda a cidade de Lisboa; mas como foram um acto expontâneo do povo, naturalmente desconfiado dos que o governam contra sua vontade, não tiveram consequências mais graves. Os tumultos serenaram ; e no dia seguinte a cidade de Lisboa ofFerecia seu aspecto natural. No parlamento Passos Manuel defendeu energicamente Palmei- la da accusação de envenenamento, e condemnou os factos passa- dos; outros deputados da esquerda protestaram egualmente contra elles, que se não podiam attribuir á opposição. Foram acontecimen- tos análogos aos que se realisaram pela morte de D. Pedro V e dos irmãos ; um acto de loucura do povo irritado pela permanência no poder de um homem que o odiava e por elle odiado egualmente. A rainha ficou por tal modo contrariada na sua vontade com a morte inesperada do marido, que, no mesmo dia em que este falle- ceu, nomeou commandante em chefe interino o duque da Tercei- ra, não somente para que o logar se não extinguisse, mas também para o reservar para seu futuro esposo. O povo e a nação não queria esse cargo do velho absolutismo? mais um motivo para a teimosa e soberba rainha o conservar. Na sessão de i d'abril, Barjona pediu sessão secreta, na qual, parece, tratou-se da questão da successão ao throno e do casamen- to da rainha. E possivel que se ventilasse a questão da queda do ministério anti-popular. Só no dia 20 de março, é que entrou em discussão a reforma judiciaria! Como estava próximo o encerramento das cortes, Passos Manuel propoz que se dispensasse a discussão na generalidade do projecto, e se entrasse na discussão especial, o que foi approvado. Como o governo quizesse addiar a reforma administrativa, por- que lhe convinha o systema das prefeituras, I^assos José remetteu para a mesa o projecto da commissão especial acerca da organisa- ção administrativa e municipal, que ainda foi para se imprimir! 633 As camarás estiveram occupadas por muito tempo na discussão da reforma judicial, das indcmnisações e da venda dos bens nacio- naes. No dia 8 de abril, Dias d'Oliveira, notando o estado anarchico da administração do paiz, e que a sessão estava a findar, de modo que nada de definitivo se podia fazer, apresentou um projecto de organisação administrativa interina, e pediu que fosse logo a impri- mir e dado para ordem do dia. Segundo esse projecto, o reino é dividido em 17 districtos com governadores civis nomeados pelo governo central, mas fiscalisados por juntas de districto electivas. Os districtos são divididos em concelhos com administradores de concelho, escolhidos pelo governo sobre listas triplices de eleição directa; e o projecto estabelece juntas de parochia eleitas pelos ha- bitantes. O contencioso administrativo é devolvido ás justiças ordi- nárias. O auctor do projecto propoz que o governo fosse auctorisado a fazer a divisão territorial na conformidade d'estas bases. O ministro do reino apressou-se então a declarar que tinha promptos uns projectos de decretos que na prorogação leria á ca- mará. Alguns deputados pediram-lhc que os lesse. Eram para au- ctorisar o governo a mandar fazer o cadastro, para organisar o ensino publico, fazer a divisão territorial, montar a administração, emprehender estradas e canaes e consolidar o credito publico. Declarou que não se oppunha a que os chefes do concelho tos- sem de eleição popular. Foi tudo para imprimir. Na sessão de 12, entrou em discussão o projecto Dias Oliveira, o qual foi approvado com algumas modificações a resju-ito dos or- denados dos empregados administrativos. Dois dias depois, era auctorisado o governo a fazer as despezas para o cadastro ; a Jispr)r da quantia annual de 100:000.^000 reis para estradas, canaes. obras de interesse publico e para consolidar o credito. A respeito do orçamento nada ainda! .Mesmo nas vésperas do enccrranicnlo das c<^rlcs. o ministério apresentou as propostas para as doiaçnes de looiono.-ooí > reis dadas 634 ao duque da Terceira e a Saldanha por D. Pedro, e para egual do- tação a Palmella, que D. Pedro não determinara. Esta proposta foi recebida pela camará e as galerias com acclamações irónicas. Maioria e minoria approvaram as dotações aos dois primeiros, mas a do duque de Palmella encontrou muita opposição na camará. Quasi que foi approvada de assalto, por cujo motivo muitos depu- tados declararam no dia seguinte que teriam votado contra, se es- tivessem presentes á sessão. E o governo, vendo-se com tão importantes e imprudentes au- ctorisações concedidas pela maioria, e achando-se auctorisado para fazer as despezas do estado, e contrahir novos empréstimos, encer- rou o parlamento, sem se discutir o orçamento, tendo d'antes decla- rado que não podia dar esclarecimentos sobre as despezas e em- préstimos feitos durante a emigração, por falta de documentos! Em premio, a camará concedeu looiooo-r^ooo réis a Palmella! As mesmas camarás approvaram a pensão ao duque de Wel- lington, ao conde de S. Vicente, e a familia de José António Guer- reiro, que se tornou valido de D. Pedro. Em compensação, votaram uma pensão á viuva e filhos de Fernandes Thomaz, o que foi um acto de justiça. Como o ministério se não demittisse, foi assignada uma repre- sentação á rainha n'esse sentido; mas esta não era mulher que annuisse á opinião publica. No dia 8 de abril, cahiu o ministério tory, presidido pelo reac- cionário duque de Wellington. Deu origem a isto a proposta de lord Russell a respeito da applicação do excedente dos rendimentos da egreja irlandeza, que elle queria fosse destinado á instrucção de todas as classes d'aquelle povo. Apesar da opposição do governo, aquella proposta foi approvada pela camará, por cujo motivo foi chamado ao poder o partido irhigs. Wellington tinha enviado á Hespanha o lord Eliot, para obter uma conciliação de D. Carlos com a rainha Izabel, mediante o casa- mento dos dois. Se vingasse aquelle passo, era certa uma reacção em toda a península contra o partido liberal. Palmella preparava-sc para isso. A queda do seu amigo e alliado britannico trans- 635 tornou-lhc todos os planos c enfraqueceu niuilo a situação por cllc crcada. Vendo-sc sem o ajioio do partido conservador inj^lcz, e rompido n'este momento o i^acto de Quadrupla Alliauça, l*ahnella achou-se sem íòrt;as para resistir ao embate da opinião publica. A 2(S de abril pediu a sua demissão, e com elle sahiu da pasta da justiça António liarreto Ferraz e Vasconcellos, que era dos ministros mais bem vistos e respeitados pela opposição, e o que tinha mais sym- pathias. O conde de Villa Real foi para a pasta dos negócios estrangei- ros e interinamente encarregado da pasta da guerra; Manuel Duarte Leitão foi nomeado ministro da justiça e o conde de Linhares mi- nistro da marinha. S() a 4 de maio é que se resolveu a questão da presidência, sendo encarregado dV'lla o conde de Linhares. Segundo o Xacioual^ houve grande divergência entre Silva (Car- valho e Palmella; este tinha por si a aristocracia e a corte, aquelle um alto personagem. O primeiro queria que a presidência íosse da^la a Agostinho José l*>eire,mas o segundo entendia que esse lo- garnãíj era dado a jilebeos, e queria ser substituido por outro fidalgo. /Vccrescenta o Nacional que elle teria sido vencido j^or Silva Carva- lho, se o duque da Terceira não declarasse que se demiltiria do commando em chefe, se a presidência fosse dada a Agostinho .losé Freire ! Houve então tentativa de chamar Saldanha para o ministério; mas elle recusou-se ainda, resolvendo por lim a soberana nomear o conde de Linhares de alta eslirj^e. A recomposição ministerial durou jmjuco tempo, e a 'jy de maio o ministério pediu lodo a sua demissão. \] preciso que digamos que n'esta occéisião o mini-^lerio Marii- nez de la Rosa em 1 lespanha entabolava negociações com a l-Vança c a Inglaterra, para restabelecer o tratado da (Juadnipla Alliauça e pedir a intervenção d'aquellas duas potencias. Os I's/ai}icii(<»s foram encerrados a Jo de maio. j^or cansa da gran«.le oppo-^ição que o.^ lIcpuI.kImn li/ciam ao ^n\crn'' reaccioná- rio. No discurso do cnccri Limcnlo a raiiilia (Ihti^^lma dedaiiui que 636 tinha todas as esperanças nas nações alliadas, cujas promessas consignadas em tratados solemnes oíferéciam nova garantia ao triumpho da causa legitima. O Journal des Debats advogou a idéa de se pôr em pratica o tratado da Quadrupla Alliança, que estabelece, dii elle, entre os dois povos da península uni systenia completo ! E começaram logo as negociações n'esse sentido. N^estas circumstancias, Palmella não quiz ficar fora do novo ministério, e empregou todas as diligencias para entrar n'elle, fosse como fosse. Pensou então n'um ministério de conciliação, que entre nós só tem servido para lograr o partido liberal. Palmella não quiz que a opposição liberal subisse só ao poder; a rainha estava de accordo com isso. Saldanha já tinha mostrado tendências para se bandear para o lado da coroa e dos aristocratas. A corte e o paço trabalharam para o conciliar com Palmella; e conseguiram-n'o sem grande dificul- dade. Gombinou-se então um ministério de conservadores e progres- sistas, de reaccionários e liberaes de tempera pouco rija. O ministério, ainda sahido das combinações palacianas, foi as- sim composto: Saldanha, presidência e pasta da guerra ; Palmella com a dese- jada pasta dos negócios estrangeiros ; João de Sousa Pinto de Ma- galhães com a pasta do reino; marquez de Loulé com a da mari- nha; Francisco António de Campos com a da fazenda e Manuel António de Carvalho com a da justiça. Entrou mais tarde António Aluizio Jervis d'Atouguia. E assim se juntaram homens que até ahi sempre se hostilisaram e que pertenciam a escolas tão differentes e oppostas! Eis a primeira evolução dos partidos monarchicos constitucio- no principio do reinado de D. Maria 11! A noticia da queda do ministério dos chamados amigos de D. Pedro foi acolhida em todo o paiz com demonstrações de rego- sijo publico. 637 Os ânimos exultaram, por lhes parecer que se ia entrar cm novo caminho e em vida nova. Na cidade de Lisboa a queda do ministério toi recebida com muitas girandolas de foguetes; bandas de musica percorreram todas as ruas da cidade no meio de vivas a Saldanha, d carta e á hberdade. A noite houve illuminações em muitas casas particulares; e no theatro de S. Carlos lez-se enlhusiastica demonstração de regosijo- Concorrera ali grande numero de espectadores; cantava-se a opera Fausta^ de Donizetti. A scena da revolta de Mazaniello exaltou os ânimos ; o publico soltou enthusiasticos vivas á liberdade, e romjieram estrondosas sal- vas de palmas. No íim da dança, os espectadores exigiram que se cantasse o hymno de 20; não houve remédio senão transigir com elles, sendo executado por três cantores da companhia. Kra a pri- meira vez qui-*, depois de tantos annos de pressão e de reacção, se ouvia aquelle h\mno que outr'ora tanto enthusiasmara o |'»ovo por- tuguez. O que se passou então é indescriptivel ; chegou ás raias do delirio. O hymno foi saudado com estrondosas e repelidas salvas de palmas, bravos e muitos vivas á liberdade. Os paços reaes e a corte enlureceram-se com o que se passou na cidade Lisboa e em S. (]arlos. O canto do hvmno de 20 1(jí um escândalo; os ouvidos aristocratas ollenJcram-sc com essas noli^b democráticas soltadas pelo povo rebelde. 1-^sse h\mno maldito veiu despertar tradicções que se suppunham cxtinclas de todo; urgia accudir de prompto ao incêndio manifestado. 1'almella não se esqueceu de amedrontar a rainha c«»ni o pcri-;o d'aquellas manifestações populares, que eram uma ameaça a cor(Ki. .Ao primeiro annuncio da queda d(j partido conservador, o \m)\o tornou logo a deitar as mãos de fora. para fazer valer seus direitos contra os da legitimidade; lornava-se necessário ()bri-;al-o a rc^o- Iher-se de novo e a acceilar o {vipel passivo, que lhe dcstina\a a carta outorgada. -Atini de se serenar o animo eiiturecidn da rainha, dvi ^'irte e dos aristocratas, o go\eino presidido j^or Saldanha surgiu ^oní muitas 638 circulares ás auctoridades, iniciando-as no seu programma politico, e fazendo-lhes constar que não estava resolvido a fazer mudanças politicas, nem transigir com os exaltados. Na circular do ministro do reino aos prefeitos diz-se que o go- verno tem decidido sustentar com força e energia a carta, repellindo quaesquer ataques que possam dirigir-se contra ella, quer por parte do absolutismo, quer por parte da auarchia. N'esla ultima expres- são refere-se ao partido revolucionário, ou liberal puro, que se ma- nifestou em S. Carlos. Diz a mesma circular que o governo deseja restabelecer o socego em toda a monarchia, e extinguir os resentimentos da guerra civil, desempenhar religiosamente os contractos existentes^ fazer justiça e guardar toda a economia. «Taes são, diz o ministro do reino, as nor- mas, que revelando as benignas e illustradas intenções da rainha d'onde emanaram, deverão dirigir o seu ministério e regular o proce- dimento de todas as auctoridades e cujo principal desempenho não somente recommendo a V. Ex.'' pela sua parte, mas que o insinue e recommende elficazmente aos empregados da sua dependência.» A circular do ministro da justiça começa assim: «Podendo acontecer que os mal intencionados se prei'aleçam das alterações que ultimamente teem havido na composição do ministério, para d sombra d'ellas desvairarem a opinião publica, em prejuizo manifesto dos interesses nacionaes, manda sua magestade a rainha pela secretaria d'estado dos negócios ecclesiasticos e da justiça par- ticipar ao supremo magistrado presidente do tribunal commercial de segunda instancia, e para sua intelligenc'a e íacil execução, e para o fazer constar a quem convier, que o governo de sua mages- tade fidelíssima está na firme resolução de manter a carta constitu- cional, empregando para esse íim todos os meios que as leis e a constituição do estado lhes facultam e as circumstancias occorren- tcs exigirem. N^esta conformidade o governo de sua magestade será inflexível contra quaesquer inimigos que pretendam privar-nos doeste Palladio dos nossos direitos, quer seja atacando directamente a liber- dade, quer invocando falsamente o seu inime, para nos conduiir á auarchia. » fi39 \\ diz que debaixo doestes principios i\ orJeiíi pul^Iica será man- tida, os excessos criminosos punidíjs e reprimidos, quaesqiier que sejam seus lins, ou seus auctores; e acrescenta que na distribi-iição das graças c empregos serão preferidos os que tiverem prestado serviços á rainha e á carta. Taes toram as respostas que o governo presidido por Saldanha, o chefe dos democratas e causa dos tumultos de iios que pro- fessa o actual ministério e que servem de base á actual adminis- tra cção. » I"] declara terminantemente que essa exposição é essencialmente a mesma ciue já fizera por occasião do primeiro ministério da rainha ! i'^ Saldanha, o chefe do partido liberal e democrático, presidia a esta situação inteiramente similhante á que ellc tanto combatera I Palmella refere-se também ;i fácil obser\ancia dos ci )iiliactos c tratados com as [Potencias estrangeii\is: c diz egualmenle qiic na dis- tribuição das graças e empregos serão especialmente considerados os serviços prestados á rainha e á carta. \] por essa f(')rma Palmella e o paço, não s(') paralvsaram a ac- ção dos ministros j^ertiMicentes á esquerda: mas lançarcun sobre el- les o descrei^iito, obiigando-os a renegar do seu credo politico. ,hi vimos Como 1), IV-dro inniilisou para o partido ^l('niocrati..o us lio- 640 mens de 20, chamando-os ao poder. A rainha faz agora o mesmo, chamando aos conselhos da coroa os homens da opposição liberal, que roubou a esta, para a enfraquecer. A principio ainda o Nacional pretendeu defender facciosamente o novo ministério; mas, deante dos seus actos e da sua inacção com respeito ás reformas politicas, abandonou-o. Em o n.° 181 diz elle: «O ministério vae andando com uma confiança já morna da parte dos que tinham direito a esperar d'elle todas as medidas coherenies com seus anteriores princípios; nem a demissão dos miguelistas que entolham as repartições, nem as ac- cumulações, nem a dissolução da camará, nem o emprego dos vo- luntários que por ahi jazem em indigência, nem coisa alguma de importância se tem feito». Fm o numero seguinte publica um communicado, em que se pergunta qual a causa do estupor em que o ministério cahiu, mal nasceu, e da inacção assustadora para os amigos da ordem em que entrou. Diz o communicado que o ministério parece ante-ministe- rial; e cita o facto extravagante de elle se oppor a que sahissem no Diário do Governo as felicitações das cam.aras municipaes pela queda do anterior ministério! E termina: «Seja-nos permittido aconselhar aos srs. marquezes de Salda- nha e de Loulé e ao sr. Campos que, ou despertem os seus collegas e os desvaneçam de uma condescendência vergonhosa com a gente que passou, ou os mudem, ou então deixem o ministério, porque o descrédito não está longe, se isto continua.» E como Saldanha se desmascarasse inteiramente, a imprensa da opposição surgiu com uma vigorosa campanha contra elle, mos- trando-lhc as difFercntes caras que até ahi tinha apresentado, e a volubilidade do seu caracter. A união do ministério não durou muito tempo. Na Hespanha a politica reaccionária triumphou completamente com a formação do ministério Toreno-Mendizabal. A opinião pu- blica manifestou-se desfavorável a este governo anti popular. Ma- drid foi posta cm estado de sitio; foram presos dois deputados da opposição e uma deputação da milicia urbana que fora ao paço G41 pedir a demissão do ministério; este dcmittiu o duque de Abrantes do commando de um dos batalhões; estabeleceu em Madrid uma commissão militar, para julgar dos crimes poliiicos summariamenle e restaurou a censura previa, tornando-a responsável pelos escriptos que deixasse publicar. O Eco dcl (loniiiicixio U)\ suspenso e come- çou a perseguição á imprensa. (^omo as juntas provinciaes protestassem contra as arbitrarie- dades do governo, foram declaradas rebeldes! p] emquanto o ministério entrava em plena reacção, pedia aos governos da França e Grã-Bretanha que interviessem e o defen- dessem. Elle obteve que se desse o primeiro passo para u QuíUÍru- pla AllicinçLi. O Diário do Gorcnio de Lisboa applaudiu a nomeação de To- reno ! No dia 8 de julho, o ministro ingkv. não quiz comparecer ao beija-mão do paço. Kis o que a este respeito escreve o Periódico dos Pobres^ folha ministerial. «Parece, diz elle. que no dia 9 lord Moward teve uma entrevista com certos personagens, e perguntado sobre os motivos do seu [pro- cedimento, dizem que deu francamente a entender que a adminis- traçã<:) portugue/a. tal qual se acha\a organisada. não ollerecia garantias de solidez ta.es, que com ella pudesse marcliar a adminis- tração ingleza n"uma questão declarada, qual atda linha de con- ducia que teem a .-^egiiir as quatro potencias signatárias do tratado da Q//c7c//7//Vt7 Allidiíça. para terminai"eni a guerra ^i\il eni llespa- nha e constdidarem o sw^tema re[^resentaii\o em Portugal. 10 accre>centa o jornal que a necessidade de um a^V(;rdo entre os gabinetes de Portugal e ílespanha e agora mais do que nunca sensível. 1 i ) l)isse-se que Palmella escre\efa a Saldanha, [^edindo-jhe uma re^omposiçã(^ ministerial, e que t^uM c uísiih.vvio o duque d.i Ter- ceira. No dia 1? de julho. sah:r.;m ^io minisieru) l'ra!KÍs.o .Xr.tonio 642 de Campos e Manuel António de Carvalho, para entrarem Silva Carvalho e Rodrigo da Fonseca Magalhães, o leader da maioria da camará ; aquelle entrou na pasta da fazenda e este na do reino. Joaquim Pinto de Magalhães foi transferido para a pasta da justiça. E assim voltou-se para o primeiro ministério da rainha presi- dido agora por Saldanha! O novo governo continuou a querer tirar á opposição mui- tos dos seus chefes, concedendo-lhes empregos, graças e mer- cês. Rodrigo da Fonseca Magalhães fez barão da Ribeira de Sa- brosa a Rodrigo Pinto Pizarro que elle na camará accusou de ini- migo de D. Pedro e da rainha, e de crimes atrozes! Rodrigo Pinto Pizarro teve a veleidade de acceitar esse titulo! Era isso para o aproximar da coroa e da corte! Só a i8 de julho é que Rodrigo da Fonseca Magalhães publi- cou o novo código administrativo, segundo as bases approvadas pelas camarás; ainda em fins do anno se organisavam proviso- riamente as secretarias dos governos civis. Póde-se dizer que em todo o anno de i835 dominou o regimen das prefeituras. A nova reforma judicial foi publicada em 7 do mesmo mez, ficando toda a administração da justiça na dependência dos minis- tros da coroa e subordinada á hierarchia do poder. Um facto caracterisa a interferência do poder executivo no judicial ; um juiz mandou perguntar ao ministro da justiça, Pinto de xMagalhães, se podia prender um sujeito influente na localidade ! O facto tornou-se publico e notório, de modo que o ministro viu-se na necessidade de m.andar baixar uma portaria, censurando aquelle magistrado, mas confessando que o passo por elle dado era filho do costume inveterado no paiz havia muito tempo! E assim tem ■^tm- tinuado sempre. O poder judicial em todos os tempos tem servido de instrumento de perseguições politicas em que se teem empenhado os ministros. O novo ministério entrou logo em negociações com o gabinete hespanhol, para Portugal lhe enviar um corpo expedicionário em observância do tratado da Quadrupla Alliaiiça ! 643 O governo, vendo-se com auctorisação para esbanjar a riqueza publica, continuou a contrahir empréstimos onerosos na praça de Londres, entregando-nos nas mãos dos agiotas britannicos, que es- peravam especular com as nossas desgraças, por elles mesmos pro- movidas para esse íim. Havemos de tratar d'estes empréstimos n'ou- tro logur. Na questão das estradas e da venda dos bens nacionaes aucto- risada pelas camarás dcram-sc escândalos monumentaes. Foi um fartar os amigos do governo á custa da nação empobrecida. Rcpe- tiram-se as scenas dos fundos destinados a soccorrer os emigrados. Em IO de novembro, os pares do reino, marqucz da P>onteira, marquez de Loulé, conde da Taipa e Sá da Bandeira, protestaram contra a venda por junto das lesirias, afastando por esta forma os concorrentes, por não se poderem formar outras companhias n'um tão curto espaço de tempo em que aquellas propriedades foram á praça. «Considerando, dizem os signatários que esta venda seria a coiUhiuação do systema de desperdício que tem presidido d alienação dos h'us nacionaes^ já concedendo titulo para a sua compra a pes- soas que segundo a lei nenhum direito tinham a obicl-os. p(jr não terem permanecido fieis á rainha e á carta constitucional exigidos pelo art. 4.", ^ 4." da lei de i5 de abril, já mandando o governo conceder títulos por gratilicíições a pe^soas que as não podiam ven- cer, por não terem exercido as íuncçõcs de postos e outros empre- gos Cí^ncedidos pela junta do Porto, equivalente isto a uma nova di\'ida graciosamente conirahida pelo governo e a cargo da nação. <> Nu dia seguinte, protestaram S deputados da minoria e bem assim o par do reino conde da ( Ainha. Eniquanlo se esbanjavam os bens nacionaes e dos conventos, emquanto se contrahiam empréstimos sem tiscalisaçáo d) parla- mento, o governo, á porta fechada, vendia a uma compar.hia as lesirias d<^ l'ejo e Sado por dois mil contos, quando \"aliam o triplo I O ministério não teve outro renieJio senão mandar 'pr» i^L'dcr ás eleições, para com[Metar a re[^rcsL'ntação na^iunal. a que lalia\am 34 deputados desde iS^q ! Como ^^ande numero de ntrujacs du exercito. >obrctuJ'> na ca- 644 pitai, pertencesse á opposição, o governo resolveu envial-os na expedição á Hespanha ! Queria ganhar a eleição, fosse como fosse. Aquella medida palmellista provocou grande irritação no exer- cito, que protestou contra elln, por ser manejo politico odioso e uma violência. A rainha, receiosa das consequências d'essa medida antipathica, ordenou que as tropas ficassem, até se realisarem as eleições. O ministério, prevendo a derrota eleitoral, pediu a sua demissão no dia i3 de novembro. A rainha tentou formar ainda um ministério de conciliação com alguns membros da camará; mas foram baldados todos os esforços n'este sentido; foram chamados o marquez da Fronteira e o mar- quez de Loulé, para organisarem ministério; mas nada conseguiram, porque se exigia um ministério que não fosse francamente liberal composto de todos os partidos. Em presença das dificuldades apresentadas, a rainha escreveu a Saldanha, dizendo-lhe que, tendo sido infructuosas todas as ten- tativas para a formação de um novo ministério, insistia na recusa de aceitar a demissão d'elle e do duque da Terceira do commando em chefe. O ministério continuou, mas, para se vingar, desligou no dia seguinte dos seus regimentos, e passou-os para a terceira secção do exercito, o barão da Ribeira de Sabrosa, os coronéis João Pedro Soares de Luna e José Maria de Sousa, o tenente- coronel Manuel Bernardo Vida! e o major António Osório de Yasconcellos, todos candidatos da opposição por a cidade de Lisboa ! Xo dia 17. reuniram-se na praça de Alcântara 200 officiaes dos corpos da guarnição de Lisboa; d'ahi dirigiram-se ao palácio das Necessidades, afim de representarem contra a medida do go- verno, e de pedirem a reintegração dos seus collegas perseguidos. A rainha viu o caso sério e temeu as suas consequências. Respon- deu que ia resolver sobre matéria ião grave. Reuniu conselho e demittiu o ministério, para não perder as sympathias do exercito. O tenente do esquadrão do regimento de lanceiros da rainha, Augusto Sotero de Faria, requereu para ser também desligado do exercito da capital, visto partilhar dos sentimentos dos que o foram. 64Õ não por motivos de disciplina, mas por terem mostrado que não eram servidores humildes dos individuos, diz elle. que infelizmente compõem a presente administração. Para se conhecerem os sentimentos do exercito com respeito ao ministério, basta transcrever o seguinte período de agradeci- mento da ollicialidade á rainha, por ter attendido á sua represen- tação. Diz elle : "Os otliciaes da guarnição de Lisboa, vendf) que uni ministério intolerante lhes roubava o primeiro direito constitucional de todo o cidadão, qual é a livre escolha de seus representantes, e ainda mais atacar e punir como um crime a liberdade de pensar consagrada na carta, etc.» O ministério dos amigos de D. Pedro foi demitlido a iS. As->im se frustram todas as tentativas de Palmella. A justiça manda que se diga que Rodrigo da 1^'onseca Ma- galhães prestou importantes serviços á instrucção publica, l^lle creou duas escolas normaes. uma em Lisboa e outra no Pof.' » : creou um conselho supremo de instrucção j^ublica. e deu um re-;u- lamento para a instrucção primaria. Por decreto de 7 de dezembro reuniu n\im só estabelecimento as dillerentes escolas superir)res que existiam em Lisboa, quasi abandonadas; e deu-lhes noV(»> re- qulamentos, ampliando-lhes os estudos e creando-lhes nowis ca- deiras. () novo estabelecimento licou com o ni)nie de J>isfi/i!.'tLis e^."las toram >v.b- ordinadas a programmas e^seIK■ialme•L^te praticas. qi;e form,im singular contraste com os programmas actuae>. todos ab>:ra.:« •■. e metajMnsicos. \ão tez Rodrigo da l"on>eca Magalhães tuJo qr.anto era r:"e- ciso. .\ universidade de (Coimbra e->'ava exiginJo uma n «va re:" .rna com[Meta. e a in.strucção [limaria o aatgmento Je e->c'Jj) 646 O reino, sem o que de nada servia o novo regulamento que lhe deram. Mas não se pôde deixar de louvar esse pouco que fez Ro- drigo da Fonseca Magalhães. Depois da entrada d'este ministro, o ministério Palmella-Sal- danha mostrou mais intelligencia nos seus processos governati- vos. A reacção deixou de ser franca e brutal ; tornou-se mais branda e prudente. Os antigos homens de 20, Pinto de Magalhães e Rodrigo da Fonseca Magalhães, innegavelmente de talento, e bem assim Sal- danha, destruiram com sua influencia as tendências mais despó- ticas de Palmella e conseguiram uma situação reaccionária intel- ligente. Fsta é que é a verdade. O ministério dos fins do anno de i835 tem isto de caracteristico. O mesmo Palmella não era ne- nhum Martinez de la Rosa, e Toreno ; seu caracter não era duro, nem severo. Distinguiu-se mesmo pela aífabilidade de trato e delicadeza de maneiras. Os seus processos reaccionários consistiam em as- túcias, intrigas palacianas e manejos de diplomata insigne e ha- bilidoso. Da fusão d'este aristocrata e palaciano com Saldanha e Rodrigo da Fonseca Magalhães resultou a situação reaccionária dos fins do anno de i83õ, que se afasta muito das anteriores e distingue-se, como dissemos, pela sua intelligencia e brandura. Já então Rodrigo da Fonseca Magalhães revelou as suas ten- dências para dominar pela atracção e corrupção dos adversários em vez de se impor por meio da força. Foi depois da entrada d'elle que o ministério Palmella-Saldanha se mostrou mais transigente com a opinião publica, mais tolerante e publicou algumas medidas úteis e proveitosas. A própria reforma administrativa é uma prova d'essa transi- gência, embora não represente a verdadeira escola liberal. Foi um meio de conciliação do partido conservador com o partido demo- crata. Não conseguiu este muito; porque a verdade é que os gover- G47 nadorcs civis e administradores de concelho ficaram quasi com a mesma preponderância dos antigos prefeitos e sub-prefeitos ; e o novo código assenta ainda na centralisação administrativa. Mas faz uma grande differença do primeiro projecto apresentado peio go- verno. CAPITULO III A OPPOSICAO LIBERAL NO PODER Cáe o fninistcrio Palmi.lla.—Saidani;a.— Casamento da rainha.- -Minis.terio Can;po3.— .Mousinho d'Aibuquerqae.— Suspensão da reforma de instrucção publica. — Demissões.— Nomeia o governo D. Fernando marechal gene- ral do e.xercito.— Abertura das cortes.— Discurso do throno.— Relatório dos ministros. -O muiisterio aban- dona as reformas politicas.— Passos Manuel rompe hostilidades com o governo. — Discurso d'este deputado. — A maioria da camará apoia o governo. — Passes Manuel separa-se da velha opposiçSo liberal.- O governo propõe a prorogação do tratado de 1810. — Illude a rainha, o parlamento e o paiz, na questão do comman- da em chefe — Proposta Barjona. — Proposta Tavares de Carvalho. — O ministro do reino combate energi- camente a idéa da retbrma da carta. — Xa discussão do projecto Baijona o ministro faz a sessão secreta.— O ministério faz falsas promessas ás camaias.— Attitude de Mousinho d' Albuquerque diante da proposta de Leonel. — O ministério vae ao paço enganar a rainha, dizendo-Ihe qr.e obteve o addiamento indefinido da questão do commando. — Faz a mesma declaração ao conde de Lavradio. — A commissáo de guerra approva o prcjec.o Barjona. — A questão foiaddiada a pedido do governo. — Abusos d"este.— Questão dasaccumulações dcs empregos.— Negocio escandaloso do governo.— Demissão de Gomes de Castro. — Addiamer.to das ca- marás.— E abolido o commando em chefe. — Encerramento das cortes. — Os liberaes abandonam o governo. — Iniprcssão deixada no paiz pelo primeiro ministério liberal da niunarchia constitucional. Continuava a prevalecer a doutrina de que os ministérios eram da livre nomeação da coroa, e não da confiança da maioria parla- mentar e da opinião publica. Como vimos, os realistas constitucio- naes puros não puderam susíentar-se com a queda do ministério conservador em Inglaterra, d^inham contra si a opposição enérgica da camará dos deputados, a opinião do paiz, e, por fim, faltou-lhes o apoio do exercito que pretenderam perseguir. Falhou a ultima tentativa do paço para conciliar Saldanha com Paim.cHa. afim de afastar do poder os homens mais eminentes da opposição liberal. Lsta situação nova não poude manter-se muito tempo, como se não manteve a de 27 de maio. Ambos caíram por pretenderem sophismar os princípios liberaes. e se tornarem, por- tanto, incompatíveis com a opinião geral do paiz. b49 O ultimo ministério cahiu em circumstancias mui graves, tanto da politica interna, como da politica externa. Elle trabalhava para, de accordo com a vontade expressa da rainha, crear no paiz uma situação forte e enérgica que auxiliasse a politica da Quadrupla Alliança, que desejava estabelecer nos dois povos da península um systema politico uniforme. Em Hespanha campeava a reacção sus- tentada por governos violentos e oppressores. Palmella esforçava-se, de accordo com a Inglaterra, por collocar Portugal no mesmo nivel da Hespanha. Como a rainha precisasse de uma vontade macha que a auxi- liasse na lucta contra o paiz, mandou-se procurar por toda a í'^u- ropa um prindipe que estivesse n'essas condições. Estava o minis- tério Palmella-Saldanha em negociações para o casamento do príncipe D. Fernando, imposto peia Grã-Bretanha, quando cahiu. No capitulo seguinte trataremos d'este casamento. A queda do ministério contrariou bastante, quer a rainha e o paço, e quer a (^'fã-Bretanha, que novamente pretendia intervir em nossa politica interna e dar-no.s leis. A subida ao poder do partido liberal portuguez vinha transtor- nar todos os planos do paço da> Neces.^idades em negociações com os gabinetes de Londres, Paris e Madrid, para djlinir entre ruxs uma politica eminentemente conservadora, baseada no casamento que se estava preparando. Não havia, no emtanto, para onde appellar: o mi:"!Í>terio de fusão dos dois partidos extremos, formado em maio. veia mostrar a impossibilidade de se conservarem essas situações hvbridas e duvidosas. Os homens da camafllha c das anie-jamaras do }xiÇ(") lembraram-se então de um expediente, o J.- cansiir. e desa.creJiiar ao mesmo tempo, o partido liberal. Para o aJ.cançarem. acon.^elhararii um ministério extra-parlamentar. ci»irip()>í') de homens v|ue. ner.i fossem palmellistas. p.em pessoas l'os Passos, m;is home:^.N de cara- cter }V)uco delinido e laceis dj ^e Jjiv.avm doaiiaar pela^ i;:!iaen- cias do j\iço e d<) estrangeirei. (]a!n;^)S e Loi;le não J.'a\'i J ira"": e:v^aT ;y > 'a.1::ll-^t jri' > ^:.' maio; eis d'.):> hiimen^ apr(.)Ve!ta\'e;^. pjr::j:i.:a:ii a >_ii'po>i^ãó liberal; 650 ninguém poderia dizer que a rainha não queria transigir com ella. Asante-camaras do paço puzeram mãos á obra; e eis o resultado dos seus esforços. No dia i8 de novembro, a gazeta official publi- cava os decretos da nomeação do seguinte ministério : Luiz da Silva Mousinho d'Albuquerque, presidente e ministro do reino ; marquez de Loulé, estrangeiros ; F^rancisco António de Campos, fazenda ; o tenente-coronel José Jorge Loureiro, ministro da guerra ; Joaquim António Vellez Caldeira, justiça ; e Sá da Ban- deira, marinha ! Eis os homens representantes fieis da opinião liberal do paiz ! O novo ministério é presidido pelo antigo ministro da regência da Terceira, que mais saliente se tornou na guerra contra os libe- raes, e que foi um dos agentes mais importantes da politica de Pal- mella ! Loulé todo o mundo sabe que se distinguiu pela doblez do seu caracter falso, manhoso e desleal. Deu a primeira prova no ministério de maio. Francisco António de Campos entrou egualmente n'esta combinação vergonhosa. Era um espirito vulgar, medíocre e não se recommendava senão pela sua riqueza. Apenas se distinguiu na emigração por auxiliar a opposição aos actos arbitrários de D. Pedro. Nem era orador, nem escriptor, e nem tinha instrucção; uma perfeita nullidade, impon- do-se pelo seu dinheiro. Tinha idéas curtas e acanhadas, conforme o limitado horisonle da sua fraca intelligencia. Finalmente, não teve escrúpulo de entrar no ministério de maio e de se associar as circulares por este envia- das ás auctoridades do paiz e aos agentes consulares. Os outros ministros eram cartistas da gemma, e nada popu- lares! Este ministério foi organisado expressamente para se evitarem attrictos com as vontades da soberana, e para esta manejar a poli- tica segundo as indicações do estrangeiro e das ante-camaras do paço, aparentando transigir com o partido liberal. Mousinho d'Al- buquerque lá estava na proiJencia, afim de servir de intermediário 651 entre a rainha e os homens da opposição. Seria o pastor do reba- nho que se pretendia juntar. Parecia que, sendo este ministério da opposição liberal, devia entrar francamente no caminho das reformas politicas, administra- tivas e judiciarias que formavam o ideal d'este partido. O programma d'elle foi não apresentar programma pojitico, para não se definir perante o paiz e a camará. Um dos seu.s pri- meiros passos foi suspender as importantes reformas de instrucção publica feitas pelo Rodrigo da Fonseca Magalhães, deixando a instrucção no pé em que estava d'antes ! Funda-se Mousinho d'Albuquerque em que aquellas reformas se fizeram em dictadura, ou em virtude de um voto de confiança das camarás legislativas, e por isso era necessário esperar pela pró- xima reunião das cortes, para que ellas providenciassem a este res- peito ! O mesmo ministério, cm 27 de novembro, mandou suspender a arrematação d(^s bens das lezírias, abrindo nova praça, alim de acccitar quaesquer propostas até ao dia i5 de janeiro, tempo cm que podia propor ás camarás as medidas legislativas que julgasse necessárias para melhor aproveitamento d'aqucllas propriedades, N'cste ponto não ha senão a louval-o e o seu procedimento foi correcto e cm harmonia com a opinião publica. De resto, o governo não fez senão destruir tudo quanto fez o anterior, deixando o serviço publico em completa desordem, porque não substituiu as medidas suspensas c revogadas pf)r outras novas. Fm seguida, entrou no caminho Jas demissões, para satisfazer ás muitas ambições que ferviam no campo da opposição. cxcluida pelo anterior ministério dos empregos públicos. Muitos exigiam a desforra das demissões feitas acintosamente aos homens da mino- ria. O go\crno prestoLi-se da melhiM" \-oniade a is^o. F os que tanto gritaram contra e>se abu>o do anterior ministério agora applau- dem-n"« > I Desde então por dicUiíe. o ministério, mais uma \'e/ organizado nas ante-camaras do paço. começou a praticar os mesmos acto-^ do Gõ2 anterior mais condemnados pela opinião publica e pela opposição liberal ! Era para cansar esta. A rainha queria que o esposo futuro fosse nomeado comman- dante em chefe, para com o auxilio do exercito angariado, realisar no paiz a politica da Quadrupla Alliança contra as tendências de- mocráticas. Expoz a sua vontade ao ministério e que não con- sentia que se modificassem em coisa alguma as negociações en- taboladas com o príncipe D. Fernando. O ministério ouviu-a, e curvou-se submisso á sua vontade soberana. No dia i de janeiro de i836, nomeou D. Fernando marechal general do exercito portu- guez, para preparar terreno para o logar do commando em chefe que o duque da Terceira conservava interinamente para aquelle príncipe. Continuou depois as negociações para o casamento, não se afastando, uma linha sequer, da conducta do anterior ministério, e transigindo com todas as condições impostas, como veremos no capitulo seguinte. No dia 2 de janeiro tem logar a abertura das cortes. O discurso do throno é chato e banal; não diz coisa alguma acerca da politica do ministério! Aííirma que a primeira legislatura de 1834 foi enlu- tada com a morte do imperador, que abalou a coragem dos legisla- dores e paralysou as mais sisudas combinações dos homens I Uma verdadeira catastrophe nacional o desapparecimento d"es.sa intelligencia predestinada por Deus, para dirigir os destinos do paiz ! A nação ficou como paralysada, e aos legisladores falleccram as forças para continuarem a obra do immorlal e divino reformador. "Esta catastrophe^ diz o discurso da coroa, desviou forçosamente a attenção do corpo legislativo para uma serie de questões eventuaes que era forçoso resolver, e retardou o tão necessário desenvolvi- mento da carta constitucional por meio de todas as leis orgânicas e regulamentares que a nação reclamava e esperava da vossa sa- bedoria.» Diz que a segunda legislatura, e primeira ordinária, foi ainda interrompida por outra catastrophe não menos sensivel, por cujo motivo não foi sufficiente para acabar a sua obra ! Rctcrc-se á morlc do príncipe D. Augusto 1 r>5ri Era necessário fazer sentir por esta forma á opposição liberal que ella era insutficiente e incapaz de fazer cousa aliíuma sem a intervenção dos príncipes de origem divina, ou sem essas intelli- gencias predestinadas. O povo não tem capacidade para se gover- nar por si mesmo ! Continua o discurso da coroa, dizendo que os ministros apre- sentarão ás camarás o que teem preparado, mas sem determinar o que. Os relatórios d'elles farão conhecer o que se tem feito no inter- vallo das duas sessões; mas não o que tencionam apresentar ú» cama- rás como base da sua politica. Annuncia que as tropas portuguezas acabam de entrar na Hespanha, para sustentar a coroa da rainha Izabel II, Conta que d'csse concurso elíicaz, e das relações que nos ligam com a Inglaterra e França, resultará a paz e a tranquillidade da península. Dá parte do casamento da rainha com o príncipe D. Fernando, cujo contracto foi assignado em 6 de dezembro passado. Os ministros do reino, da fazenda e da justiça, apresentaram os seus relatórios, que se cingem apenas a historiar o que se fez até elles, a descrever o quadro triste c desgraçado em que se acha o paiz, a desordem e anarchia que iam n'elle e o estado desastroso das nossas finanças. Nenhuma palavra dizem a respeito das medi- das que tencionam apresentar, para remediarem todos esses males ! No relatório do ministro da fazenda lemos o seguinte: ('A presente administração, senhores, no momento de tomar conta dos negócios, não só não achou fundos aUuns di>'poni\ eis com que pudesse fazer frente ás regulares despezas do servido, nu^. pelo contrario, achando por satisfazer muitas que de\iani e>iar p.i- gas; encontrou absorvida por antecipaçi')es uma pane do> rec'jrM>s destinados para o serviço dos annos futuros. As n"ie>aJa> Ji) con- tracto do tabaco acham-se hvpothecadas por ()3o:om( -o- ,o rei>: a^ alfandegas, recur>os permaPiente^. e os mais seuunjs do estaido. gravadas com saques anlecipado^s por mais de 400:001 - lo. > rei^. dos quaes iou:ooo-'~ooo rei> >ão ex;gi\'eis ale ao fim de ;i:n'rr) pró- ximo, alem de rocxooo-oi jo re;> de escripto^ do ilie- '!::■< Je :"e:^ 2oo:ooo.-'(K>o, dos do Cl t:i::-a.:' > d.- l.íaJc^u'."'::' e J^ > ,-a,.;'!e ja í:i-:la- 654 terra por libras 87:000 que foi preciso acceitar, como tudo vos será presente.» Propõe a venda das lesirias sob outras condições, para cobrir o grande deficit. Esta venda poderá ser em lotes, ou por junto a quem offerecer maior lanço até á quantia de 6.000:0005^000 réis. Sobre tudo este relatório do ministro da fazenda e o orçamento por elle apresentado com um deficit enorme, causaram grande in- dignação entre os realistas constitucionaes puros, ou amigos de D. Pedro. Foram objecto de calorosas e violentas discussões, tanto na imprensa, como no parlamento, durante todo o tempo do minis- tério Campos-Mousinho. José da Silva Carvalho viu-se na necessi- dade de publicar um protesto, em que, sem negar as antecipações enunciadas, pretende mostrar que o paiz está prospero e quasi não tem deficit ! Habilidades dos nossos financeiros. Trataremos em capitulo especial d'este assumpto. O ministério já então pretendeu embalar a opinião publica e o partido avançado com a necessidade de se abandonarem as refor- mas politicas e administrativas, para se tratar exclusivamente da fazenda publica, como se esta não dependesse do systema politico e administrativo de cada escola! Logo no primeiro anno em que o partido chamado progressista tomou conta do poder, veiu desculpar-se com as questões financei- ras, para abandonar as reformas politicas, contra as quaes se oppu- nha a coroa! E desde então até nossos dias esse partido não tem cessado de clamar que é preciso prmieiro tratar d'aquellas primeiras questões, para se tratarem depois das reformas politicas, que acabou por abandonar de todo! O primeiro que rompeu com o ministério progressista arranja- do no paço foi Passos Manuel. Quando se tratou das irregularidades commettidas nas ultimas eleições, e em resposta ao parecer da commissão da verificação dos poderes, aquellc honrado e independente tribuno entendeu dever declarar á camará e ao paiz que não tomou parte na vergo- nhosa combinação de 27 de maio. Disse que. assim como comba- teu a administração transacta e o ministério da fusão, assim nenhum 055 empenho, nem obrigação contrahira com a administração presente. Aguardava os seus actos, para o combater, ou defender. Na resposta ao discurso da coroa, declarou-^e em opposição ao ministério, que já estava bem desmascarado. E notabilissimo o seu discurso. Approva o ministério na parte em que se otferece para reduzir as despezas e encargos do estado; mas diz que é este o único ponto da politica interna. Recorda á camará que em todas as situações transactas disse- que, se os governos estavam dispostos a seguir um regimen de economia, harmonisanJo a receita com a despeza. dava-lhes o seu apoio. A mesma declaração íaz ao actual governo. «Nós esperamos, disse o orador, os actos do governo, para o julgarmos; não se trata d'um ou d'outro principio; c ncccssariu rcr o systcina geral de aduiiiústraçâo. Se a politica do governo tòr pró- pria para assegurar a telicidade do paiz, e para augmentar a sua liberdade constitucional e conservar princípios que temos ganhado á custa de muitos sacrilicios. os ministros terão o meu tranco apoio, e certamente não lhes taltará o dos senhores deputados de iodos o> lados da camará; porem a politica iniiústcrial em grande parte e de nós ignorada. Deve-se esta politica conhecer-se talvez pelos relat*»- rios dos senhores mlni^tro^. e melhor pelo^ projectos de lei que suas excellencias apresentarem ás camarás.- Accrescenta que a religião do seu de\er e a santidade da ;.',ia missão o obrigam a íallar com franqueza. ('Tenho lido. diz e!!e. a desventura de não p(KÍer approvar a polilica geral de nenhum dos ministérios que go\'ernaran~i <> paiz durante a auzencia d< • coiy» legislativo. l-Ài queria que a nação fosse regida por um governo que p^ofe.-,sa.^se juntamente e^ononiia na fazenda e liberdade de pr:n^:- l^i(),>. Porem desgraçadamente e>ta^ duas co!idiç''e'- leniio \i>;(~>. com muito des[^razer meu. que ainda nenlnim minis!cr:i> entre //;> as preencheu. Poi' lii)in\i d^is niinist)''>s actuaes. e }\ira heni J..i 'ki- ^C\n. desejava eu muito que elles nunca perde-^>en"! de \:.->la e-:e> d' »is princípios. - Diz. que nCio p<')de C"!iCi-rd;ir cuni a politica -;era! An ç »\■erl^>. Accu^a-o por ter abu>adi» d' > prir.cií^io denii>>(»rio. quanJ > na i'p- 656 posição gritou tanto contra elle. Recorda o que se passou com as demissões de Castilho e do conselheiro Luiz José Ribeiro. O hon- rado tribuno, coherente com os seus actos e princípios, revolta-se com o ver que o ministério actual segue as pisadas do anterior, de- mittindo homens aífectos ao regimen constitucional e cobertos de serviços a elle, e conservando também os miguelistas nos empregos do estado, em manifesta contradicção com as mensagens que os próprios ministros dirigiram á rainha. «Este contraste, diz elle, é terrível; elle faz saltar aos olhos o horror e a injustiça da politica ministerial. Como deputado inde- pendente e patriota, não posso deixar de desejar que não paremos, ou retrocedamos na brilhante carreira que até aqui temos seguido; sobre tudo desejo que não insistamos em precedentes que nos sejam fataes á liberdade do pai{. » Diz que é bom não ter confiança cega no governo, nem sob pretexto de economias deixar desbaratar a liberdade e destruir prin- cípios conquistados. E accrescenta muito bem : «Deploro sincera- mente as circumstancias de um paiz, onde os ministérios se organi- sam, recompõem, ou demittem, sem attenção á politica traçada pelo parlamento. D'ahi vem que muitas vezes não ha a quem pe- dir responsabilidades, como agora acontece entre nós com a politica traçada pelas camarás nos últimos dias da sessão ordinária de i835.» O orador protesta contra a demissão dada ao deputado Serpa Pinto, por nas eleições ter auxiliado o ministério cahido. «Senhor presidente, disse elle, não ha governo constitucional sem partidos, ou sem reacção de opiniões. Ai das nações onde não apparece este symptoma de vida. A minha liberalidade me obrigou a dizer n'esta assemblca que me pesava muito de não ver aqui al- guns representantes do partido que ha pouco vencemos no campo das batalhas. Desejo muito que se adocem e purifiquem os nossos costumes, e que cheguemos a tal estado de tolerância e ci\ilisação, que todas as opiniões moraes, politicas e religiosas, se possam pro- clamar e defender com armas eguaes, que são as de uma legitima e franca discussão. Desejo que a argumeiítos se responda com ar- fi57 gumentos e não com o punhal e com injurias. Ora se eu quero esta liberdade até para os inimigos do sysiema representativo, como a não quereria eu para os seus amigos e defensores.» O orador combate em phrases ardentes a intolerância politica que vc nos seus dias; e cita o exemplo de não poder passear ao lado dos ministros da situação transacta, sem que os jornaes o ac- cusem por isso. E dirige depois ásperas e rectas censuras á impren- sa fanática. Diz que desgraçadamente esta imprensa, nem representa opiniões, nem principios, mas ódios e paixões. São nobres e levantadas as palavras do illustrc tribuno, quando se refere á intollerancia que vê entre ministcriaes e opposionistas, e com a qual o governo começou a sua administração. Foi a opinião publica que fallou pela bõcca d'aquelle homem de bem, honesto e independente. Ali !ica perfeitamente definida a nova situação politica creada no paço, e a melhor critica que nós podíamos fazer do primeiro ministério que na monarchia constitu- cional subiu ao poder com o nome de liberal e progressista, tor- nando-se logo subserviente ás vontades da C(jròa e conservador! O discurso de Passos Manuel é como a consubstanciação de toda a historia politica do paiz, desde que n'elle se implantou o re- çimen constitucional até á subida do partido progressista, tornado immovel e impotente ante a vontade lirnie do throno. Msse discurso é como já o principio da descrença no regimen cartista, incapaz de conciliar o principio da economia e dã ordem com o da liber- dade. A opinião publica começava a rotar no paço das Necessida- des uma vontade íirme de desviar a politica do paiz dos verdadei- ros principios da liberdade e do bem publico, para mantcrem-se os caprichos e vaidades. l^arecia que a maioria da camr.ra devia ac<*mpanhar Passos Manuel; não aconteceu assim. O dcjuitaJo Leonel, ate ahi um d^is mais exaltados opposicionistas dos actos do ministério transacto, defendeu o governo e sustentou com todo o desplante que se elle v >- metteu erro foi em não ter feito mai^ demissões I Os deputado^ da opposição estavam sequiosos dos emj^regos públicos. \i assim Ir^go no começo da monarchia constitucional os deputadi>s }M'ogrjssi;tas 6ÕS começam a contradizer-se nos seus actos, defendendo na opposição uma coisa e combatendo-a assim que chegam ao poder, e condem- nando na opposição actos que justificam quando ministeriaes ! O ministério achou apoio na maioria da camará; a opposição liberal absolveu- o das faltas que havia bem pouco condemnara ao ministério transacto ! Data doesta épocha o rompimento de Passos Manuel e dos seus amigos com a antiga opposição liberal. Começa o partido da Revo- lução, que já fermenta ante os erros de todos os governos até ahi existentes, e ante a apostasia de muitos dos velhos progressistas, que o ministério arranjado no paço arrastou comsigo. A opposição não se cançou de clamar contra os tratados com a Inglaterra e sobre tudo contra o de 1810. A camará dos com- muns d'aquelle paiz representou ao rei a necessidade de se fazer uma revisão de tratados com Portugal, visto aquelle ter expirado. Pal- mella foi accusado pela opposição de querer entrar em negociações para isso. No dia 26 de janeiro, o governo propõe ás camarás a prorogação do ominoso tratado de 18 10! Muitos deputados da nova maioria apoiaram esta medida ! Nós vimos como foi recebida a nomeação do principe D. Au- gusto para comm.andante em chefe; o marquez de Loulé, em as negociações para o casamento do príncipe D. Fernando, accei- tou essa condição imposta pelo paço, como veremos n'outro ca- pitulo ! A rainha assim o exigia e o ministério chamado progressista e democrata dobrou-se submisso diante d'esta vontade inabalável ! E n'este acto que o marquez de Loulé revellou a doblez e falsidade do seu caracter. O deputado Barjona, tendo conhecimento d'isso. na sessão de 26 apresentou uma proposta de lei assignada por muitos deputa- dos para que fosse extincto o commando em chefe em tempo de paz, e para que em tempo de guerra nunca fosse exercido pelo es- poso da rainha, nem por pessoa a quem se não pudesse exigir res- ponsabilidade eUéctiva. O deputado 7'avares de Carvalho, por seu lado, propoz que os Cõ9 tratados de commcrcio e de alliança não fossem ratificados sem prévio conhecimento das cortes geraes Discutiu-se muito se esla proposta envolvia a reforma da car- ta; o auctor aítirmou que fora essa a sua intenção; porque já ti- nham passado os annos por ella exigidos para essa reforma, que julgava urgente. Outros deputados lallaram no mesmo sentido. O ministro do reino pediu a palavra, e declarou que julgava do seu dever como ministro sustentar n'este momento, e perante a ca- mará, as sagradas prcrogativas da coroa. Disse que pertencia a esta e ao poder executivo a celebração dos tratados com as nações es- trangeiras. Oppoz-se energicamente á reforma da carta, cuja esta- bilidade urgia manter para felicidade da nação. «A carta, disse o ministro chamado progressista, essa é firme; todas as outras convulsões vecm a morrer em torno d'ella, como as ondas agitadas pela tempestade vecm a morrer ao pé dos roche- dos!» Silva Sanches sustentou a necessidade da reforma proposta, para evitarem-se tratados nocivos ao paiz. E disse que se o tratado de 1810 e a convenção de Fvora Monte tivessem sido subordina- dos á approvação do parlamento nunca teriam passado. O incon- veniente de se reformar a carta não é comparável com o de se dei- xar aos ministros uma boa parte dos destinos do paiz. O presidente da camará, assombraJ(> com esta discussão, fez todos os esforços para embaraçar o seguimento, até que, a pedido do deputado Sousa Azevedo, conseguiu addial-a para tempo mais conveniente 1 Na sessão de 10 de fevereiro, entrou em discussão o projecto Barjona; o ministro Ja guerra pediu sessão secreta, para que o paiz não fosse sabedor Jo que se passara com as negociações para o casamento do príncipe O. Fernando. Na sessão secreta, jusiiiicou o >ei! pedido cc^m o perigo que ha- via de alguns deputados mais exaltados servirem-se de expressões que melindrassem, por qualquer t''irma. <> tuturo esposo J.a rainha. Oepois combateu ener-:ican":e!]íe a prop» >ia. e o;q^oz->e a que ella í()>sc votada! 660 Barjona sustentou que, depois do príncipe D. Fernando che- gar a Portugal, custaria muito eliminar-se o commando em chefe. Será então difficil, disse eile, vencer as intrigas de palácio. Elimi- ne-se o logar a tempo, e antes que chegue o futuro esposo da rainha. Disse-se que o ministério, diante d'esta opposição da maioria, prometteu não nomear o príncipe. A camará resolveu então addiar a discussão, para quando se tratasse da organisação do exercito. Leonel propoz que todos os deputados assignassem a acta, para que ficassem obrigados a não assignar o decreto da creação do com- mando em chefe, se um dia viessem a ser ministros ; Mousinho d' Albuquerque foi dos que se recusaram a isso ! O ministério correu ao paço a annunciar á rainha que tudo es- tava arranjado, e que obtivera da camará popular o addiamento indefenido da questão do commando ! Assim também o participou ao conde de Lavradio, o negociador do tratado para o casamento. No seu oííicio diz-lhe o marquez de Loulé que o governo oppoz todos os seus exforços á passagem da proposta e combateu-a com muitos argumentos, conseguindo que a questão ficasse addiada sem tempo determinado por uma grande maioria! «O que tudo, diz elle, tenho a honra de levar ao conhecimento de v. ex.^, anm de que possa desfazer quaesquer sinistras illações que os mal intenciona- dos queiram tirar do facto da indicação apresentada, que os perió- dicos não teem deixado de referir.» E por esta maneira o marquez de Loulé faltava á verdade ao parlamento, á rainha e ás potencias! Elle tinha, é verdade, projecto de addiar indefinidamente a questão; mas a camará é que não es- teve por isso. Na sessão de 17 o ministro da guerra apresentou o projecto para a organisação do exercito ; mas sem tocar na questão do com- mando em chefe ! A commissão de guerra da camará apresentou logo em seguida o seu parecer sobre a proprosta de Barjona. Diz ella: «A commissão de guerra, tendo maduramente examinado o projecto de lei apresentado pelo sr. Barjona, julga a sua doutrina digna de ser adoptada, e leni a honra de submclter a deliberação da camará o seguinte projecto de lei : Artigo I." Não haverá commandanlc em chefe do exercito. Em tempo de guerra poderá numear-se um cummandanie geral para os corpos de operações. Artigo 2.° Este commaiido nunca poderá rccahir no rei, ou no esposo da rainha.» É assignado por Jo.''0 Pedro Soares de Luna e José Pedro Ce- lestino Soares ultimamente eleitos deputados, Dor Macário de Cas- tro, António C^esar \'asconcellos e Josc Joaquim da Silva Pereira. O ministério íicou logrado nos seus projectos de addiamento indefinido. A camará não e; a tão dócil á sua vontade, como elle era á vontade do paço das Necessidades. O ministro da guerra propoz qi^e a discussão fosse addiada para quando se tratassi' do seu projecto sohrc a organisação do exercito, com que tmha intima connexão. Barjona oppoz-se, dizen- do qi"e o procedimento do governo transacto a est<:: respeito obri- gava a camará a tratar já da questão. (Guando elle chegou a Lisboa^ constou-lhe que o principe D. Fernando já estava nomeado, e pop isso apressou-se a apresentar o seu projecto de lei. aíim de empe- cer um passo tão funesto, que íòra motivo principal da sua opposi- ção á administração passada. Macário de Castro declarou que. pela sua pnrte, empregaria todos os seus esforços perante a commissão de guerra, para que no projecto da organisação do exercito se inserisse' um artigo espe- cial, declarando expressamente que não lias^L-rJ cominando em cheíe. A camará decidiu que a questão fosse addiada para quand. > se discutisse a organisação do exercito. O ministério empenhou-se i'")v demorar a a'presentacão do pa- recer da commissão de guerra ;';cèrja daqjelia. or-,\i:i;-jção ate á chegada do principe D. í'eriiandol \í C(ínseguiu-o '. O mird^terio Palmella foi acusado de -^rriíecer .-.s p.-ii-iueli-tas e de accuniular muiti)> em:M"e-:os nos a[ii:ia.dii> c Je;c::>''res dd sua 662 politica. Na sessão de 26 de janeiro, o barão da Ribeira de Sabrosa requereu que se pedissem esclarecimentos ao governo Mousinho- Campos sobre o facto de se terem passado titulos admissiveis na compra dos bens nacionaes a um individuo que tinha servido o governo de D. Miguel. Joaquim António d'Aguiar pediu que se tor- nasse extensivo aquelle requerimento a muitos outros indivíduos, que estavam nas mesmas circumstancias ! Na sessão de 18 de fevereiro, os deputados Ferreira de Castro e Silva Sanches accusaram o mesmo ministério de manter nos empregos os miguelistas, exactamente como o anterior! Um dos maiores aggravos da opposição foram as accumulações dos empregos; o ministério Mousinho-Campos nenhum projecto de lei apresentou a esse respeito. Foi preciso que o fizessem os de- putados visconde da Fonte de Arcada e Luiz Ribeiro de Sousa Sa- raiva. Os seus dois projectos foram para a commissão da legislação, composta de Joaquim António d'Aguiar e de Joaquim António de Magalhães, já bem conhecidos de nossos leitores, e de outros defen- sores das situações transactas. Esta commissão rejeitou os dois projectos apresentados, a pretexto de que se contradiziam. A com- missão é de parecer que não é precisa lei especial, e que bastam as existentes, recommendando-se ao governo a sua observância! Muitos deputados mostraram a falsidade da asserção da commis- são, e que as leis existentes não punham cobro a esse abuso, ha- vendo necessidade de uma lei especial. Ferreira de Castro mandou para a mesa uma nova proposta de lei em substituição das duas apresentadas, tirando por esta forma o pretexto em que se fundou o parecer da commissão. O presidente da camará consultou esta sobre se havia necessi- dade de uma nova lei, e foi approvado que sim. Na sessão de 19 entrou em discussão a substituição de Ferreira de Castro. Todos os defensores das situações passadas combateram-n''a energica- mente ! Lá se iam os empregos que tanto custaram a alcançar, e que os defensores da rainha e da carta julgavam que eram um direito d'elles pelos muitos serviços prestados á causa. É digno de se notar o discurso de Mousinho da Silveira, um dos cartistas mais honrados. Ksie mesmo estadista não poude exi- mir-se a combater o projecto de lei apresentado! Em defesa d'esses a quem a opposição liberal muito bem clas- sificou de deroristas, disse Mousinho da Silveira que três objectos graves e importantes occupavam a attenção de todos os legisladores e estadistas da Europa, a saber, lei da responsabilidade ministe- rial, lei repressiva dos abusos da liberdade de imprensa e a accu- mulação dos empregos. Em nenhuma d'estas três questões se che- gou ainda a uma solução clara e definitiva; porque na opinião d'el!e dependiam só do correctivo de espirito publico; m^^s accres- centou, em seguida, que este ainda não existia em Portugal! Susten- tou que havia muitos casos em que a accumulação dos empregos, em vez de ser prejudicial, era proveitosa e ate económica ! Fundados n'esta auctoridade, os que tinham mais empregos accumulados começaram a lazer grande alarido contra a injustiça e violência do projecto de lei em discussão! N'outro capitulo mostra- remos a nossos leitores as sommas fabulosas que por esie meio re- cebiam annualmeníe os chamados amigos de D. l-edro. Nt m o pró- prio Mousinho da Silveira escapou a essa febre ue hons ordenavjo>. Na sessão de i(S de fevereiro disse o barão da Kibcira de Sabrosa que um administrador da alfandega, além do seu giiinde ordenado, recebia i4:ooo.rooo de reis de emolumentos! Imagine-se por aqui quanto recebia o direcior geral. \'iram nossos leitores como a opposição combaicii o contracto para a venda das lezírias feito pelo ministério l-'aliriLlla, e (j jii.sio alarido que fez por causa de outros con;racios js.andah-.sos pcira favorecer amigos. Agora e o ministério .Mousir.h.o-C^ampos que en- tra em eguaes negociações. Na sessão de i i de março, o deputado L',pc^ Lima pcrgunior. quae.s os meios que o g(n-crmo JesiiiKi\-a ;i c.\;Mru:ção da nr/e!i.i de Cabo Verde; porque lhe consta\a gi:e W'Va proh.ibi..! a oní navií - que não fossem do catado: r l's'cs não tinluin: .'apa. idade >H!Í':- ciente para ella. (> iranisirí^ ^ia !a/L'nda rc^ponvirii vjU'.- dera c'-- . ordem, porque a iirzclla era objcciu de ^.^raii.ie^ deia;;\davr'e>. f3G4 e á sombra d'ella se tinham feito fortunas collossaes á custa da nação. Na sessão de 28, o mesmo deputado annunciou á camará que o ministro da fazenda, debaixo de segredo, vendera 2:5oo quintaes de urzella a um chefe de uma casa italiana residente em Lisboa, mui conhecido de Cláudio Adriano da Costa Somneira, um dos re- dactores do Diário do Povo^ que estava sempre prompto a defen- der o governo e que então se dizia subsidiado pelo próprio minis- tro da fazenda! Este contracto deu muito que fallar ; e até o Nacional pediu ao governo que se justiíicasse das graves accusaçôes que lhe eram fei- tas. O contracto assignou-se, permittindo-se o commercio de cabo- tagem em navios estrangeiros, e augmentando-se as taras, abonando- se em urzella o que faltasse no peso das saccas. Era também para beneficiar amigosi O negocio do salitre foi outro escândalo, de que se aproveita- ram muito bem os defensores do anterior governo, para lançarem o descrédito sobre a opposição liberal. O mesmo m.inist.ro da fazenda fez uma demissão exactamente nas mesmas condições da do conselheiro Luiz José Ribeiro. Era secretario do thesouro o deputado Gomes de Castro, que auxiliara José da Silva Carvalho em todas as suas operações financeiras. E como estivesse bem ao facto do estado do thesouro, e pudesse por esta forma denunciar as falsidades, não só do relatório, como do orçamento que se estava preparando para ser apresentado ás cor- tes, o ministro Campos demiítiu este amigo e defensor do ministro da lazcnda anterior! A commissão de fazenda da camará, composta de deputados da opposição, vingou-se, mostrando que o deficit de 8.5oo:ooocooo reis apresentado no relatório do ministro estava exaggerado, havendo uma dilfercnça para menos de i.ooo:ooocooo réis, e aílirmando que o estado da fazenda não era tão mão como o pintara o mesmo ministro. .Ainda para imitar o governo anterior, só no ultimo dia de fcve- GTõ reiro é que o ministro da fazenda apresentou o orçamento do es- tado, aíim de não dar tempo ao seu exame e discussão! Passou-se todo o mez de fevereiro, e estava-se já nos fins de março e da sessão, sem que a commissão de guerra até ahi apre- sentasse o seu parecer acerca da organisação do exercito e da pro- posta Barjona! O principe D. Fernando já vinha em viagem para Portugal. Na sessão de 22 de março, o deputado Sousa Pinto Bastos apresentou uma representação da Sociedade Patriótica Lisbonense, pedindo ás camarás que, antes de serem encerradas, discutissem o projecto acerca do commando do exercito. O deputado accrescentou que esperava que a camará attendesse a essa representação de tan- tos homens importantes da cidade de Lisboa. António César de Vasconcellos declarou então que o parecer estava prompto, para ser apresentado n'esse mesmo dia, e que, logo que chegasse o relator, que o levou para o copiar, seria apresen- tado o que teve logar na sessão do dia seguinte; mas foi ainda para se imprimir! O governo pediu ás camarás para ser auctorisado a fazer face ás despezas; no dia 24 de marco foi apresentado o parecer da Cf^m- missão da marinha, que reduzia quasi a um terço a verba exigida pelo respectivo ministro. No dia 280 governo addiou as camarás para o dia 6 de abril, e fundamentou o decreto nas próximas solemnidades da sanaua santa, e na próxima chegada do principe D. P\Tnando. Começaram então a circular boatos acerca da queda do minis- tério. Os iornaes cartistas allirniavam que se esperavam succc:5Sos importantes á chegada do futuro esposo da rainha ! No dia competente abriu-se o parlamento. O deputado Barjona requereu que entrasse em discussão o seu projecto; a camará annuiu. 1-^ntrou em primeiro logar o projecto de lei para a reducção dos empregos. Os dcr<>ristds tornaram a ('p- por-se, sustentando que o orçamento não era iogar próprio para >e reduzirem os empregos do estado, e ^lue eram precisas leis e-i^e- ciaes. Levantou-se renhida que-tão, «.jue so terminou H" J/a se- 666 guinte, por causa da grande opposição que fizeram os amigos de D. Pedro. A camará resolveu que o orçamento era logar próprio para a reducção das despezas. Só no dia 8, em que o principe D. Fernando era esperado em Lisboa, é que foi dado para ordem do dia o parecer da commissão de guerra! A maioria estava resolvida a eliminar o logar do commando em chefe; a discussão não foi demorada. E mesmo á hora em que desembarcava no Arsenal da Marinha o esposo da rainha, armado com o commando, a camará por grande maioria appro- vava o primeiro artigo do projecto de lei que dizia assim: «Não haverá commandante em chefe do exercito, e ao mesmo exercito serão transmittidas todas as ordens directamente pelo mi- nistério da guerra.)) A este passo independente da camará respondeu o governo cha- mado progressista com o decreto encerrando as cortes, sem que ainda o orçamento fosse discutido n'este anno! Xão faltava senão este passo, para em tudo imitar o partido conservador 1 Nem ao menos a questão da fazenda resolveu este ministério contradictorio, inhabil e sem prestigio! Diz o decreto do encerramento. «Assumptos de transcendente importância penderam da delibe- ração das cortes no começo da sessão ordinária do corrente anno, com o fim de se fazerem aquellas leis que devem dar á carta cons- titucional e aos dilTerentes ramos do serviço publico o andamento regular e rápido de que sobremaneira carecem. A duração da ses- são foi insujficiente para concluir esta obra importante ; e o orçamento^ sem o qual os negócios da fazenda não podem entrar por imia ve^ na ordem regidar e legal, que tanto se precisa, não poude ser examinado, discutido e appropado.» Declara a rainha que a sua solicitude pelo bem da nação lhe faz claramente ver a necessidade de umia sessão extraordinária! E não tinham pejo todos esses ministros da coroa de em todos os encerramentos das cortes, invariavelmente, desde 1826 até ao 667 presente anno, declararem pela bôcca do chefe d'eslado que as cor- tes se fechavam, sem se discutirem os orçamentos doestado! Faltava só o partido chamado progressista e democrata para entrar n'esse coro também! Ainda nos fins de fevereiro de i83ô se discutia nas cortes o projecto para a inviolabilidade da casa do cidadão! O descrédito do governo progressista e democrata, arranjado nas ante-camaras do paço, chegou a ponto de os deputados da maioria o abandonarem. No dia I I d'abril o Xacional mostra-se indignado com um mi- nistério em quem o paiz no principio tudo confiou. Diz que elle en- trou no poder sob os auspicios de uma popularidade que não conhe- ceu, nem soube avaliar. Prendeu-se com os mais inslí^nificantes estor- vos, quando podia arredal-os todos. -Todo o resto, diz o jornal, do seu procedimento tem desgraçadamente correspondido a esse frouxo e timido começo. E eil-os finalmente chegados a ponto de não po- derem contar com o apoio de ninguém, porque seus inimigos não são capazes de lhes dar garantia senão a troco de concessões igno- miniosas, alem de que a sua liga vergonhosa com elles seria o si- gnal da guerra declarada aos seus antigos amigos, ou antes da pá- tria, que saberiam castigal-os de similhantc perfidia, sem que lhes pudesse valer, inda querendo, quem. para susíentar-se a si mesmo^ já não p()de encontrar fíjrça c apoio sulliciente. . . e seus amigos, que os tem visto aberrar da senda que haviam indicado, não pode- rão, para tornar-se cúmplices, dar-lhes por muito tempo mais o seu soccorro. » N'um communicado contra o encerramento das ciules. íaz-se um quadro verdadeiro do paiz. em que dc>.Je i SSq nada se tem teito em proveito d'elle. Kxamina t(xias as situações transactas, e diz que o ministério presente tinha obrigação de cumprir isso a que os antL>riores faltaram. '■I'^)rte. diz o comniunicado. ci im ' > dpoio da maioria que se tinha lançado cm >cu> braços, devia apressar-se em organisar o paiz, dotal-o da.s insiituiçõo de que c!ie ^arejia, desempenhar d'esta sorte a .siia missão tão i^-ecoiiisada e lundar no desempenho d'ella a sua í(')rça e a sua estabilidade. NaJa d'is>o lez. 668 Contentou- se de apresentar vários projectos destacados, que se des- denhou de sustentar. Apesar do brado universal, interrompe os tra- balhos legislativos úteis, apesar de incompletos. Fecha a sessão de i836 e deixa o paiz a clamar por leis e instituições. A continuação do estado deplorável em que o paiz se acha é o desalento geral apoderando-se da nação inteira^ a arbitrariedade, a anarchia e a miséria servindo em logar do direito, da ordem e da prosperidade, que esperávamos do governo constitucional. Os mi- nistros cedo conhecerão que este caso capital também cavou a sua desgraça. » No dia i6 d'abril ainda o mesmo jornal escreve o seguinte: «Emquanto a intriga desenfreadamente trabalha nas ante-ca- maras do paço; emquanto as paixões e ambições de certos homens os fazem esquecer de tudo o mais, fitando unicamente suas vistas cubiçosas no mando e direcção dos negócios; emquanto os libe- raes, enfastiados e aborrecidos de tantas indignidades, illusões, fin- gimentos de refinado egoismo, se entregam ao desgosto e quasi á desesperação; emquanto, emfim, tudo é desordem, confusão, incer- teza e desconfiança, os inimigos da pátria e da liberdade se aprovei- tam dos crimes de alguns e dos erros de todos, para nos fazerem uma guerra siirda^ e tanto mais perigosa, quanto é menos sentida e apre- ciada, e que por isso mesmo nenhuma defesa se lhe oppõem.» Transcrevemos todos esses periodos, porque elies por si só ex- primem os eífeitos que produziu no paiz a passagem pelo poder do partido chamado progressista, atraiçoando, logo no principio, todas as aspirações do partido liberal, para se tornar subserviente das vontades do throno. Ao lerem-se todos os actos d'este ministério parecerá que estamos em plenos nossos dias, em que o mesmo par- tido chamado progressista não tem cessado de rasgar o seu pro- gramma democrático, de abandonar as reformas politicas, para não se indispor com a coroa, e de se contradizer com os seus actos e escriptos quando opposição. Traz este vicio da sua origem. Os actos do ultimo ministério concorreram mais para a Revolu- ção, do que os acios dos anteriores minisieriíjs conservadores e francamente reaccionários. Deixaram os liberaes enfastiados, como diz o XacKJial, e aborrecidos de tantas indignidades, desiliusões c fíngimenios, e cntregaram-n'os ao desgosto e desesperação, appel- lando para a Revolução, como único meio de se remediarem os males accumulados desde 1826 até então. Todas as diíferentes si- tuações, reaccionárias e liberaes, foram impotentes, dentro dos es- treitos limites da carta, para resolverem os importantes problemas do futuro, e tornaram-se estéreis, como temos visio. A ultima experiência do ministério da esquerda não podia ser mais desastrosa. Que restava? É para nós ponto de fé que Mousinho d'Albuquerque sahiu do paço combinado com a camarilha e a rainha, para fazer cahir no descrédito a opposição liberal, para a cançar e abater, para justi- ficar plenamente os realistas constitucionaes puros e preparar-lhes o breve advento ao poder. A historia do novo constitucionalismo está cheia d'estes proces- sos tortuosos e patricianos. O ministério Mousinho-Campos cahiu por fim em immensa im- po^xilaridade e perdeu inteiramente o credito nas praças nacionacs e estrangeiras, pela completa desorganisação em que deixou o serviço publico. Deitou abaixo tudo quanto tinha feito o anterior, e não quiz reorganisar coisa alguma. Tal foi o resultado da sua politica con- servadora. Basta dizer que o Banco de Lisboa se recusou a comprar o papel-moeda, por cujo motivo houve pânico em todo o paiz. ou nos que eram possuidores d'esse papel. O governo não poude obs- tar a essa suspensão, porque não tinha dinheiro ! Por decreto de 29 de março, o ministro da fazenda declarou que o governo não estava habilitado para realisar o pagamento dos distractes das apólices de cinco por cento que, na conformidade do decreto de 28 de setembro do anno anterior, devia realisar-se desde o dia 2 de janeiro, e, segundo o decreto de 29 de dezembro, desde abril. Por esse motivo declarou arbitrariamente sem eífeitr^ a con- versão de todas essas apólices, devendo a commissão interina da Junta do Credito Publico entregar as apólices que tivesse recebido. 670 OU para converter em inscripções de quatro por cento, ou para o distracte correspondente ! Este decreto foi denominado o decreto da bancarrota^ e com muita razão. Imagine-se o prejuizo que elle causou aos possuidores das apólices confiados nos dois decretos que ordenaram a sua con- versão, ou distracte. Em todos os seus actos o governo chamado progressista não fez senão mostrar a sua inferioridade e incapacidade diante do partido conservador, que, na verdade, era constituido pelos homens mais intelligentes e instruídos do paiz. CAPITULO IV REGRKSSO AO PODER DOS REALISTAS CONSTITUCIONAES Em presença do dcscrcdiio do partido liberal, a rainha cliama ao poder os a:-.ii;;os de L). Pedro —Estes a-s-i.:j;:i sua politica na (Quadrupla Alliança c iio comniando em chefe do exercito. - Negociações para o casamer.^o da rainha. — I). Fernando é o prel'erids cartistas, ou amigfs de D. Pedro.— 1). Fernando é nomeado c(mmandaiiíc em chefe. — Nomeação de um grande estado maior.— A imprensa liberal contra a (.Juadrupla Alliança e o logar de commaiido cm chefe. —Importância politica d'esta questão. — Agitação dos clubs. — A imprens.i liberal dcsfri.lJa a bandeira d.i líevolução. — A imprensa cartista exige a dissolução dos clubs libcraes ea repressão dos seus jornacs—F dissolvida a SncicJadc Taíriolica Lisíone)isc. — E perseguida a imprensa —(Convocação das cõr!e> extra- ordinárias.—Lucta da maioria com o governo— O ministro do reir.u ataca as prerogativas do parlame;i:o — Resposta de Passos .Manuel. — A questão do commando em chefe. — .\s cam.Tras são dissolvidas. — Comc.im as demissões e perseguições politicas. — .\taqiie a guarda n.icií.nal.- -O governo allia-se aos miguelistas. Conseiíuiu o paço que o regimen con.stiiucional niío entra.-^se no caminho do progre.s.so e da democracia com a .subida do.s homens da esquerda. O ministério que elle organisou mo.strou-se dócil e sub- serviente, mas por causa d'isso descontentou a maioria, que estava manifestando pronunciadas tendências para a reaiisaçãodo seu ideal. A questão do commando em chefe, das accumulaç-les dos empre- gos, da reducção da despeza publica e, por ultimo, a e.xigencia para a reforma da carta, tudo isto irritou a rainha, o paço. os ari.^tocra- tas e a camarilha. Era !nevita\'el o rompimento definitivo da maioria com o go- verno; e a rainha constitucionalmente não tinha (Uiiro remédio >e- não lançíU'-se n(^s braços d'aquella. Para o e\"itar, resolveu-se chamar ao poder, ainda mais uma ve/, os amigos de 1). IVvlro, que o mi- 672 nisterio progressista justificou plenamente, praticando todos os actos que condemnara na opposição. Nós já vimos que os amigos de D. Pedro, ou realistas consti- tucionaes puros, ultimamente assentaram a sua politica na Quadru-' pia AUiança, e no commando em chefe dado ao esposo da rainha, para a realisaçáo do plano das quatro potencias signatárias d'aquelle tratado. Era a politica conservadora, ou doutrinaria, que este pre- tendia manter n'aquellas quatro potencias. D'aqui o grande numero de ministérios a que a Quadrupla Al- liança deu origem em todos os paizes signatários. Foi um conflicto permanente com o partido liberal, com quem não quiz transigir por maneira alguma. Na península é que se fizeram sentir mais os effei- tos d'aquella alliança nova contra os povos, A vinda de D. Fernando estava intimamente ligada com o re- ízresso ao poder dos amiuos de D. Pedro. o r o No tempo do ministério Palmella foi enviado a Londres e Paris o conde de Lavradio, para negociar o casamento da rainha com o duque de Nemours. A Inglaterra, receiando a preponderância da França sobre Portugal ficou altamente contrariada, quando teve conhecimento d'aquelia missão do diplomata portuguez. No officio de 2g de maio, Palmella participa ao conde de Lavra- dio que recebeu um. officio de lord Paímerston, considerando aquelle consorcio prejudicial aos interesses poríugue\es e tendente a alterar as relações politicas entre a Grã-Bretanha e Portugal. Até nem os reis doeste paiz podiam casar com quem bem lhes parecesse; deviam primeiro consultar osjleis alliados ! Diz Palmella que Luiz Filippe declarou ao ministro britannico em Paris que não annuiria a esse casamento, se lhe íosse proposto. Fundado n'e.^ta resposta. Palmella ordenou ao conde do Lavradio que abandonasse essa idea, para evitar o desaire de uma recusa! Temos razões para acreditar que a opposição de Luiz P^ilippe nr>o era tão grande, que se não pudesse \'encer. Se é verdade que d;-u aquell':! resposta, foi. sem duvida, diante da attitude estranha do representante britannico. e para o tranquillisar. .Mas se Portugal 673 insistisse, aquclle não deixaria de annuir, porque a verdade é que elle desejava o casamento projectado. Palmella mandou desistir d'este, diante da espécie de ultimatiim da Grã-Bretanha, que, a troco do diniieiro, que tinha emprestado a Portugal, queria novamente governar cm nossa casa. No mesmo officio Palmella manda ao conde de Lavradio procu- rar por toda a Fiuropa principes jovens, esbeltos, e que possam fazer a felicidade da rainha. Diz-lhe que sonde a este respeito os gabinetes de Londres e de Paris. N'oulro officio, Palmella pede- lhe que lhe envie uma lista de principes, para sobre ella a rainha escolher o que fôr mais do seu agrado. Lord Palmerston indicou o príncipe de Cariguan; Palmella mandou pedir informações d'ellc. O conde de Lavradio lemL^rou o filho do archiduque Carlos Augusto; Palmella respondeu que pri- meiro convinha examinar se a familia imperial austríaca annuia. Lord Parmerston declarou que a Inglaterra veria com prazer o casamento com o príncipe de Cariguan, e que até o gabinete fran- cez o approvava. O conde de Lavradio respondeu-lhe que nada sabia a respeito do tal príncipe, cujo nome nem estava no Almanach de Gotha. E lord Palmerston, que tinha insistido n'este casamento, teve o cynismo de responder ao conde de Lavradio que elle tam- bém não sabia, senão que lhe haviam sido reconhecidos os seus direitos á coroa de Sardenha, no caso Ja exiincção da linha rei- nante, e que nem mesmo sabia da edade d'ellc 1 Britannico puro. O conde de Lavradio dirigiu-se ao conde de Sebastiani, para elle o informar acerca do principe em quem insistia lord Palmers- ton, apesar de declarar que nada sabia a respeito d'elle, nem se era velho, nem novo! Aquelle diplomata italiano respondeu que o prin- cipe tinha entre 24 e 2 5 annos. que era um rapaz bello. dotado de talento e de boas qualidades. Recebeu exccllcatc educação. Diz o conde de Lavradio que essas iniurmaçócs lhe pareceram improvisadas! O mesmo conde de Scbastiaiii apontou d<^is principes no caso do príncipe de Carignau, o duque de Lciiciítciubcrg, e o lilho do 8õ 674 archiduque Carlos, mas accrescentou que este não podia convir a Portugal. O conde de Lavradio informou Palmella de que os gabinetes de Paris e Londres oppunham-se ao casamento com príncipes das grandes potencias da Europa ! A rainha D. Maria II ficou agradada das informações que o conde de Sebastiani dera do príncipe de Carignan ; e por isso orde- nou que se entrasse em negociações com elle. Ao mesmo tempo, Palmella pediu ao conde de Lavradio que indagasse se entre os parentes allemães da familia real ingleza existia algam príncipe que tivesse as qualidades precisas. Aquelle diplomata indicou o príncipe Fernando Augusto de Saxe Goboargo, filho do duque Fernando George de Saxe Cobourgo, e sobrinho do rei dos belgas e da duqueza de Kent. Completava 19 annos em 29 de outubro. O conde de La- vradio achava esta alliança preferível á do príncipe de Carignan. E ficou tão enthusiasmado com ella, que tomou sobre si a delibera- ção de entrar em negociações sob os auspícios da daqueza de Kent^i e com a approvação do gabinete britannico. Lord Palmerston enviou um correio para Vienna com uma carta do conde de Lavra- dio para D. Fernando, acompanhada de outra da duqueza de Kent. O rei da Grã-Bretanha recommendou este negocio a lord Palmers- ton, a quem pediu auxiliasse as negociações do conde de Lavradio. Em oííicio de 2 d'agosto, Palmella mandou suspender as nego- ciações com o príncipe de Carignan e contratar com o principe D. Fernando, que foi, afinal, o feliz. Este respondeu, dizendo que obrigações de familia e tratados inalienáveis o coUocavam no dever de consultar primeiro os membros da sua familia. A principio o principe impoz só duas condições: i.'^ pedir ao governo inglez declaração de se obrigar a sustentar em todos os casos o governo da rainha e a successáo proveniente do matrimo- nio; 2.^ que, sendo obrigado a renunciar a unia grande fortuna^ o duque seu pae exigia que a dotação d'elle fosse tal, que o pudesse indemnisar da fortuna a que era obrigado a renunciar, visto não poder ser ao mesmo tempo Magnate da Hungria e esposo da rai- nha de Portugal. 675 Dias depois, foi o conde de Lavradio convidado para uma con- ferencia, a que assistiram os plenipotenciários dos duques reinantes e de D. Fernando. Foi apresentado um conira projecto composto de 6 artigos. No primeiro pediam-se looioco-rooo de réis de dota- ção; e nos outros ap pareceu já a questão do commando em chefe do exercito ; exigiu-se um projecto de lei claro sobre a tutclla da re- gência para os casos de menoridade, ou impedimento do rei, ou da rainha, o titulo de rei, logo que nascesse o primeiro filho, ser D. Fernando a primeira pessoa depois da rainha, e conservar o titulo de duque de Saxe Coburgo Gotha. Seguem-se, diz o conde de Lavradio, outros artigos ridículos a que elle não prestou attenção, mesmo porque já estava indignado com tantas exigências ! Em nota de 2 de dezembro, os barões de Carlotpiti e de Stockmar exigem que se observe com rigor o que se observou com o primeiro casamento, e que se conceda ao esposo da rainha o commando em chefe do exercito! O conde de Lavradio, que a prin- cipio se tinha opposto, respondeu mui terminantemente que lhe se- ria dado o commando pedido, e bem assim o gráo de marechal, o mais elevado em Portugal. O conde não faria uma tal affirmação, se não estivesse auctori- sado para a fazer. Essa exigência á ultima hora está a indicar claramente que foi insinuação do paço das Necessidades, e uma combinação com o negociador portuguez. hiformaram-n'0 do estado de coisas de Por- tugal; iniciaram-n'o na politica que a rainha pretendia seguir, e ex- poseram-lhe que esta assentava na Quadrupla Alliança e no com- mando em chefe do exercito, que o príncipe D. Augusto entendeu necessário para se manterem as divinas iusíitiiiçúcs de D. Pedro. Essa politica callou facilmente no animo do príncipe de raça. Elle adoptou as idéas do primeiro marido da rainha, e quiz tornar- se também paladino da obra do iir.iuortal e divino D. Pedro. A exi- gência do príncipe D. Fernando toi de combinação com a rainha e com o marquez de Loulé, dócil instrumento das vontades d'esta. A promptidão com que o conde de Lavradio promeiteu essa 676 nomeação, e a opposição que o governo Mousinho-Campos fez á extincção do logar do commando em chefe, estão a indicar o que afíirmamos. A rainha exigiu a nomeação de marechal general, para pre- parar terreno para a de commandante em chefe ; o governo ac- cedeu. D. Fernando partiu para Portugal na certeza de que eslava commandante em chefe do exercito, com a sua nomeação de ma- rechal general. O que se passou desde a assignatura do contracto matrimo- nial, em que estava a condição do commando em chefe, até a che- gada do príncipe já os nossos leitores sabem. D. Fernando entrava barra dentro todo ufano com o seu pos- to, quando o parlamento o baniu ! Esta viagem foi ainda transtornada com correspondências nos jornaes de Londres e cartas dirigidas anonymamenie ao príncipe, tendentes a indispol-o com a futura esposa. Foi um ferver de intrigas. Não se sabe d'onde partiram. Os realistas constitucionaes puros attribuiram-n'as aos liberaes e pro- gressistas ; estes attribuiram-n'as áquelles. Cada qual procurou tirar partido, para indispor o adversário no animo da soberana. E possi- vel que nem fossem uns nem outros, e que as cartas fossem manda- das escrever por alguns dos pretendentes preteridos. Essas correspondências c cartas produziram escândalo em toda a Europa. Foi mesmo nas vésperas da chegada do príncipe a Por- tugal que ellas se publicaram. Chegava D. Fernando a Lisboa como uma ameaça ao povo. Não era dos melhores meios de lhe conquistar as sympathias. A população não o recebeu bem, como era natural. Entrava de es- pada desembainhada, para com ella submetter a nação ás leis im- postas por D. Pedro; vinha com a protecção da Grã- Bretanha, sempre adversaria dos portuguezes, e além d'isso com um encargo que repugnava ao paiz inteiro. As imprudências e altivez da políti- ca palaciana não duvidaram indispor o povo portuguez com o es- poso da rainha, e tornal-o anti-popular. 077 No dia seguinte ao seu desembarque, D. Fernando casou na sé cathedral. Eis como o conde de Goblet se exprime a este respeito: «Des- graçadamente, diz elle, uma primeira nuvem perturbava já a sere- nidade d'este real enlace. Em logar do acolhimento fervoroso que o novo príncipe parecia ter direito a esperar, a população só lhe testemunhou uma friesa mui visinha da desconfiança e hostilida- de. Quando depois da ceremonia elle appareceu com a joven espo- sa á varanda do palácio, para assistir ao desfilar das tropas, nem um só viva veio interromper este silencio de mao agoiro, que a sa- bedoria das nações diz ser a licção dos reis. E que o paiz começa- va, não sem razão, a desconfiar que o contracto matrimonial ga- rantisse ao segundo marido da rainha todas as dignidades e pruro- gaiivas concedidas ao duque de Leuchteiibcr^.» (i). Depois de dizer que as camarás aboliram o commando em chefe do exercito, accrescenta aquelle escriptor e diplomata o se- guinte : «A coroa respondeu a este voto com o encerramento da sessão, antes mesmo da discussão do orçamento, e com a escolha de um ministério prestes a provocar a vontade da representação nacional, elevando o príncipe Fernando ao gráo tão contestado de marechal general.» Provocavam d'esta forma o povo; e não queriam que elle se defendesse, nem tão pouco resp(jndesse aos que o desafiavam tão audazmente ! Depois da chegada do príncipe D. Fernando, a campanha de descrédito contra o ministério e os homens do partido liberal redo- brou de actividade. Os inimigos da imprensa e de todas as liberdades, os -palacia- nos, aristocratas e validos, fundaram um jornal baixo no pen>amcnto e no estylo, para desconceituar na opinião publica e perante o paço todos os defensores do povo. e exaltar os do parlid(~) con>crv^idor. hititula-se O Raio. Foi um dos jornacs mais l-dos da epocha. por (i) F.tabiísscnient dcs (^.DbiKi'-::. dl P>ríuí^j!, pa.: ;)a 5o •G78 isso que o publico protege o escândalo e o calumniador. Todos os dias íazem-se accusações graves aos homens da esquerda, no meio dos termos mais ordinários; o publico devorava com avidez esses artigos repugnantes. Foi dos jornaes da épocha com mais populari- dade e por isso dos que mais influiram na opinião publica. Depois da chegada de D. Fernando esse jornal começa a fazer a D. Pedro panegyricos, como os da Trombeta final a D. Miguel. Ghama-Ihe um Deus tutellai% génio benéfico^ o divino e immortal Pedro, a cujo nome, diz elle, se não pôde annexar nenhum adje- ctivo, por mais sublime que seja, que se não envergonhe da sua insufificiencia ! E faz depois o elogio dos que o ajudaram e acom- panharam, emquanto injuria todos os homens da esquerda, a que chama rebanho immundo, presidido pelo marquez de Loulé, que emprega contra a sua soberana o poder real que sacrilegamente lhe roubou, como Titan empregava os raios contra Júpiter. Accusa-o de ter manchado com seu bafo impuro o sangue illustre dos Bra- ganças, violando uma donzella de sangue real, incorrendo por isso na pena de morte, que lhe perdoou o immortal e divino D. Pedro. Este, em vez de o castigar, cobriu-o de favores e pagou-lhe as divi- das. Em recompensa o beneficiado oppoz barreiras e estorvos ás suas reformas e medidas salutares, só porque era inimigo rancoroso dos que o auxiliavam (i). Em o numero seguinte o mesmo órgão dos conservadores e pa- lacianos diz que só desgraças e calamidades teem cahido sobre o paiz, depois do dia i8 de novembro, em que a força bruta das baionetas commetteu o arrojado sacrilégio de lançar mãos ensan- guentadas sobre a nossa Arca Santa, e de arrancar o poder das mãos da augusta personagem a quem a carta o confiou. O ministé- rio que se seguiu foi composto, diz o jornal, do quanto o partido irracional tinha de mais abjecto e de mais estupendo, começando no vândalo Mousinho e acabando no ignorante Loureiro ! O Campos, este só teve, diz ainda o jornal, saber para se engor- dar a si e aos da sua raça com o sangue do paiz. E preciso, conti- (ij Raio n.° 5. C.7« núa o jornal, que a coroa reassuma os direitos que lhe pertencem e lhe foram roubados á viva torça, e que cxpilla o yOíc Vellez Cal- deira, signatário do rei inata cães, o marquez de Loulé traidor á soberana e á pátria, um monstro, diz elle, manchado dos crimes os mais abomináveis: a seducção ea ingratidão; é preciso expellir do ministério o botocudo Mousinho d'Albuquerque, um vil calumnia- dor, que, devorado da mais torpe inveja, só sabe destruir, e que mentiu ao soberano e ao paiz nos relatórios de seus decretos de ruínas. E continua n'esta atínação contra os mais ministros, tirando assim hábil partido dos erros que de propósito estes commetteram. O mesmo numero promette fallar de outros salteadores, a quem cumpre dar o castigo merecido pelos seus crimes. E.xceptua um só. que, por visionário, se achou com elles, sem saber como. Reíere-se a Sá da Bandeira. O jornal cumpriu o que prometieu. lim os nú- meros seguintes vêem grossas descomposturas a todos os chefes da esquerda, que pretende desconceituar na opinião publica pelos meios mais infamantes. A Revista, e o hidependente, atinam pela mesma linguagem. Não cessam de pedir á rainha a demissão dos homens da esquerda, que, segundo elles, conspiram contra ella, contra a carta e a obra immortal do immortal e divino imperador. Parece que a rainha pensou em chamar o conde de Lavradio para formar um niinisteri(~) de transição. O Diário do Povo. loiiia do ministro da fazenda, não tem pejo de fazer elogios áquelle íidalgo, que foi um dos maiores reaccioná- rios de 1S27! Diz que elle e>tá predestinado para ser um impor- tante reforço do ministério, e que o interesse próprio o chama ás lileiras da maioria! Isto parecia inacreditável, se não estivesse escriptol Os jornaes dos amigos de !). Pedro e que wdo estiveram por um ministério de transição. C^om a lógica dos factos por si. e\ÍL;irani uma situação franca e clara dixs antigos anuros de 1). Pedro, 011 rea!i>ias conslitucionae.^ puros. O primeiro mini>tr'> que [vJia a s.ia Jcmissão foi o Ja fazenda. Mousinho e Loureiro, ministro Ja .^iicrra, .liiuia esperaram com:- 680 nuar na administração, atteníos os seus importantes serviços á co- roa, e a que se esforçaram por manter o commando em chefe. O conde de Lavradio desistiu do ministério de transição, que era um provisório, que nenhum dos partidos acceitava A crise ministerial durou muitos dias, até que, no dia 19 d'abril, a rainha deu a demissão de presidente de ministros a Mousinho d'Al- buquerque, e nomeiou o duque da Terceira. No dia seguinte, este organisou o ministério da seguinte forma : Duque da Terceira, pre- sidente e ministro da guerra; Agostinho José Freire, ministro do reino; conde de Villa Real, estrangeiros; Manuel Gonçalves de Miranda, marinha; Joaquim António d'Aguiar, justiça; e José da Silva Carvalho, fazenda. Estavam novamente no poder os amigos de D. Pedro denomi- nados os dei^oristas^ ou chamorros, substitutos dos antigos cor- cundas. Ia pôr-se em pratica a 'politica da Quadrupla e da Santa Al- liança escudada com a protecção da Grã-Bretanha e com o com- mando em chefe do exercito, que encerrava este nas mãos do es- poso da rainha. Voltava, mais uma vez, a politica inspirada no estrangeiro e nos paços reaes, e confiada agora a mãos firmes e leaes. Passados alguns dias, o ministério palaciano nomeiou o príncipe commandante em chefe. Diz o decreto. ^^ Havendo eu nomeado, por decreto de i de janeiro do presente awio, marechal general dos meus exércitos o príncipe D. Fernando Augusto, meu muito amado e pre- sado esposo, hei por bem determinar que, estando no exercicio d'a- quella patente, assuma desde já o commando do exercito portu- guer, por isso convir ao bem do serviço.» Na carta régia diz a rainha que espera que o esposo empregará seus talentos e excelsas virtudes em prol da causa publica, dando assim mais um forte sustentáculo da carta constitucional da monar- chia. Na ordem do dia 4 de maio, o príncipe annunciou ao exercito que assumiu o commando em chefe. Diz-lhe que está certo que en- contrará n'elle a mais decidida cooperação para sustentar com ina- 681 balavel firme\a o throno, a carta, a ordem publica e a defesa nacio- nal, e para fazer manter a rigorosa observância das leis. Para isso recommenda a maior obediência a elle como a base da disciplina e das virtudes, quer civis, e quer militares. Saldanha foi nomeado ajudante general do exercito, afim de a coroa o manter por seu lado. Seguiu-se depois a nomeação de um grande estado maior, á imitação do que se praticou com o principe D. Augusto. Compoz-se só de officiaes de confiança, os puros. Estabeleceu-se o conflicto da coroa e do seu ministério com a nação e a maioria do parlamento, que aboliu aquelle logar odioso. Os jornaes da opposição e da esquerda começam então a ata- car a Quadrupla Alliança, como attcntatoria das liberdades con- quistadas. O Diário do Popo diz que a Santa Alliança sustenta-se somente nas baionetas, que organisadas debaixo de severa disciplina são ou- tros tantos autómatos irreflectidos, mas perigosos. A única mola que fructuosamente emprega para reprimir, já que não pode fazer re- trogradar o systema moderno, é a intriga e a seducção, por cujas mãos espalha a anarchia no meio dos povos. E preciso que se diga que este jornal declarou-se em opposição ao ministério anterior, a quem accusou depois por todos os seus erros politicos! N'esta occasião, fundou-se um jornal com o fim de proclamar a Revolução ; intitula-se O Industrial Civilisador. Depois de apresentar o celebre tratado de \'erona, pelo qual as potencias da Santa Alliança resolveram intervir na pcninsula, para darem cabo da Revolução de 20, escreve aquelle jornal o seguinte: «Sem commando em chefe não fechara Oomwcll a sala dos comrauns de Londres, mettendo a chave na algibeira; sem com- mando em chefe não despejara Bonaparte a sala dos roo á coro- nhada dos seus granadeiros; sem commando em chefe não fizera D. Miguel a Abrilada. O commanJ(; cm chefe de l^ourmont. em 1829, acompanha na França uma conjuração contra a liberdade- l^ara que se fazia no mesmo anno couimandante cm chcte em In- glaterra lord Wellington ■' A Ari:ciddj o descobre, l^mlim ao com- 682 mando em chefe de Marmont em i83o segue-se em Paris a pu- blicação das famosas Ordenanças. -^^ (i) Não se podia denunciar melhor o pensamento audaz e reaccio- nário que se abrigava em a nomeação do commandanie em chefe. Aquelle artigo fez sensação. O logar do commando em chefe era aggravado ainda com a pessoa nomeada. D. Fernando era um príncipe allemáo empertigado, cheio de pequenas vaidades e de princípios absolutos, que lhe en- sinou o mentor Dieí{^ que o acompanhou a Portugal. A respeito d'este personagem sinistro diz o conde de Goblet na obra citada o seguinte: «Habituado ao despotismo patriarchal de Habsburgo, não ad- mittia outro governo, que não fosse a omnipotência do soberano, e não dissimulava a sua aversão a todo o embaraço constitucional, quer fosse a carta de D. Pedro, quer fosse a constituição de 22.» E como esse, eram todos os da comitiva de D. Fernando, edu- cado no despotismo patriarchal da corte de Habsburgo. Não ficava atraz do príncipe D. Augusto, se é que o não excedia nos princípios reaccionários. Não tinha tido, como este, uma educação constitu- cional. Nasceu e viveu n'uma corte por onde ainda não tinham passado as doutrinas modernas. Para elle os povos eram ainda vassallos dos reis, que nasceram predestinados para os governa- rem, segundo as suas vontades omnipotentes. Tal o príncipe que veiu juntar-se á rainha, não menos déspota do que ella, e tal o príncipe a quem se confiou o commando em chefe do exercito, que repugnava a toda a nação, aíTeita aos prin- cípios liberaes. Não bastava a comitiva de gente reaccionária da corte de Habsbourg que o acompanhou a Portugal ; D. Fernando viu-se collocado n'um logar tão eminente e ameaçador para a liberdade, e viu-se alem d'isso rodeado também de um grande estado maicr composto de officiaes aduladores e validos. .Mas ainda não é tudo : Atraz do commando em chefe estava 9^ influencia estrangeira. (1) Industrial Civilisador, png. 147. 683 D. Fernando veiu sob a protecção da Grá-Bretanha ; e na Bél- gica ficava o rei Leopoldo, seu tio, manejando as cortes europeas a favor do sobrinho, por cuja causa chegou mesmo a apaixonar-se, como teremos occasiáo de ver n'outro logar. Agora, sim, é que os amigos de D. Pedro vão dar uma licção mestra á canalha^ ou aos defensores do povo. O partido liberal, vendo-se por essa forma ameaçado, cerrou fi- leiras e preparou-se para a resistência. Os clubs dos Camillos e do Arsenal agitaram- se, havendo n'elles sessões violentas e moções audazes contra o ministério palaciano. Foi então que António Ber- nardo da Gosta Gabral. ultimamente eleito nas eleiç')es supple- meniares, se revelou n'aquelles clubs, proferindo discursos incen- diários. Foi elle dos primeiros demagogos e exaltados que produziu a nova situação creada pela rainha, de accordo com as nações da Santa Alliança. Elle apresentou-se em campo a defender a Revolu ção, como o ultimo recurso, para se acabar de vez com as constan- tes conspirações de palácio contra as liberdades conquistadas á custa de tantos sacrifícios de vidas e de fortunas. O partido popular, perseguido desde 1826, como nossos leito- res teem visto, mostrou o seu natural desespero; e não tendo den- tro das leis e das instituições meios de resistência, lançou-se fatal- mente no caminho da Revolução. Gosta Gabral foi dos primeiros que nos clubs impelliu o paiz para ella. Os seus discursos exalta- dos eram na verdade a expressão dos sentimentos públicos irrita- dos com tantas conspirações contra a liberdade. A nomeação do príncipe seguiu- se. etfectivamente, um período de agitação e de exaltação em todo o paiz. O ensaio da carta e das instituições de D. Pedro não deu senão os fructos que nossos leito- res acabam de ver. O periodo de i833 a i836 não ditfere em nada do periodo estéril de 1826 a 182S, que deu origem ao governo ab- soluto de D. Miguel. O commando em chefe de Fernando ia parar ao regimen abso- luto do realismo constitucional puro. como o commandu em chc;e de D. Miguel veiu parar no puro regimen absnlutí^. O partido liberal, cançado e fatigado de tantas perseguições, 684 vexames e pressões, appellou para a Revolução. Impelliram-n'o a isso. O Industrial Civilisador em o n.° 6 investe contra a dictadura de D. Pedro, funesta á liberdade, contra que conspirou, por isso que se não tratava d'esta, mas da causa de um throno simplesmente. «Não foi ella, diz muito bem o jornal, que veiu ver-nos; não foi ella que veiu visitar-nos; foi a dictadura que, tomando da liberdade o bello manto, a voz encantadora, de longe nos acena ; pressurosa a nação lhe corre ao encontro ; nos braços a recebe ; ao peito anciosa a aperta, mas o áspide infecto, desenrolando o turtuoso collo, nas entranhas da pátria imprime, crava, os enraivecidos dentes com ve- neno. Eis a nação desfeita em sangue, em lagrimas. Eis vituperada a liberdade, perdido em Portugal seu bello nome a ponto de ne- nhum milagre poder já facilmente restaural-o. Dictadura, enganosa dictadura.» Narrando o que se seguiu a essa dictadura, e mostrando a des- ordem, a anarchia e o estado em que se encontra o paiz, attribue isso ao imaginar-se possível governar bem a nação por uma carta, obra de um principe auzente d'ella desde a infância e que para ella legislou sem conhecimento das coisas. «Se, continua o jornal, uma tal situação fosse obra de um sys- tema de governo, nenhum crime egualaria o de querer impol-o a uma nação. Asseverar que taes desordens são sempre companhei- ras do estabelecimento do governo liberal denota, ou muita inépcia, ou a mais subida maldade. A revolução do anuo vinte guardou por mais de 18 meies a pai. E sem os crimes da mesma ambição que agora nos arruina talvez ainda hoje conservássemos o então ado- ptado.» O mesmo jornal sustenta que é necessário reformar todo o sys- tema politico. Pede a reforma do conselho d'estado, da camará al- ta, do systema eleitoral, estabelecendo-se as eleições directas; e pe- de a revogação do artigo que permitte aos ministros celebrarem tratados sem a approvação das cortes, etc. Em presença d'esta attitude do partido liberal, os jornaes go- vernamentaes começam a denunciar ás auctoridades o que se passa nos chibs. e pedem a sua inimed'ata dissolução, bem como a repres- são -ia imprensa opposionisla, que propaga doutrinas subversivas. O Raio^ o or-,á() mais importante dos realistas constitucionacs puros e tão desbragado na linguagem, cm o n." i6 ataca o direito de reunião. Imitando os jornaes miguelistas de outr'ora, diz que nin- guém ignora a existência de uma sociedade politica, a que dá o nome dos Camcllos, cujos estatutos nem o propio ministério anterior se atreveu a approvar. EIssa sociedade continua as suas reuniões, onde tem levado a sua audácia a ponto de discutir medidas que pertencem exclusivamente ao poder legislativo e ao conselho d'estado, como o commando em chefe do exercito, a questão se o povo deve, ou não, piígar impostos, a exclusão das fazendas estrangeiras e a proroga- ção das cortes. Diz que teem havido sessões secretas, onde se teem tratado questões vitaes, e onde se tem prestado juramento com es- padas desembainhadas, mandando-se emissários para as provin- cias, para fomentarem a desordem. Esta criminosa audácia, diz o jornal, dos anarchistas, tem causado receios, porque é para temer que as scenas da revolução franceza se reproduzam entre nós. Está ainda fresca a memoria dos clubs jacobinos, que inundaram as ruas de Paris. «É por isso, accrescenta o jornal, que nós chamamos a attenção do senhor governador civil, ou da auctoridadc, a quem pertence, sobre este ajuntamento illegal de facciosos, que é preciso fazer en- trar nos seus deveres, ou dispersal-os.» E em linguagem descomposta e soltatc começa aquelle jor- nal a fazer propaganda, sobre tudo contra aquelle líii/-> que se atre- veu a representar ás cortes contra o commando em chefe. Para panno de amostra ahi vão os períodos seguintes: Referindo-se á sessão extraordinária, em que aquelle clut'. com justo motivo, condemnou Mousinho d"Albuquerque, pelo seu procedimento traiçoeiro no anterior ministério, diz o jornal : «A hora em que os ladrões sahcm a dar começo ás suas cara- vanas nocturnas, sahiram os sócios de casa e se reuniram no lo^a] das suas sessões ao pé da praça dos burros, vulgo da Figueira : era meia noite.» 686 Diz que o barão de Cocaras propoz que dessem em Mousinho d' Albuquerque uma facada pelas costas com a mesma ligeireza com que elle deu uma n'um medico francez á sahida de um theatro. De- pois de resolverem que lhe fossem applicadas tantas bordoadas, quantas as que levou em a noite antecedente, passaram a discutir uma proposta para o vinho descer de preço. O secretario leu a pro- posta que principia assim : «Muito bêbeda e muito despresivel canalha!» E n'essa afinação este órgão dos palacianos abre uma secção especial, para expor ao publico o que se passa no club. Dirige-lhe hymnos, que intitula Marcha dos Camellos. Eis um d'elles: Camellos avante Marchemos a trote, Se não a chicote Vos hei de levar. CORO O vinho não falta, O mais é historia; Será uma gloria Beber e zurrar. Este mesmo jornal, o Independente^ a Revista e outros mais, levantaram grande clamor contra as doutrinas revolucionarias ex- pendidas nos jornaes da opposição. Todo o seu furor cahiu sobre o o Industrial Civilisador ; e pedem que seja demittido de administra- dor da Imprensa Nacional José Liberato Freire de Carvalho, por ter consentido na impressão d'essa folha perigosa. O governo accode a tranquilisar os seus amigos; e dissolve a Sociedade Patriótica Lisbonense^ que foi uma das causas de se vo- tar no parlamento a extincção do commando em chefe do exercito ! Em seguida investe contra a imprensa, mandando processar o PJia- rol Lusitano. Encontramos a sessão da audiência em o Nacional. Eis o que, segundo este, expoz o delegado do ministério publico. Disse elle que o jornal accusado era seguidor da Agida e do Povo Soberano^ 687 propagadores de idéas ultra-liberaes. Estes jornaes não consegui- ram seus fins; as paixões serenaram; veiu o período da lei; e eis de novo conspirando-se abertamente. O Interessante foi o primeiro que levantou o estandarte; seguiu-se-lhe o Ecco e depois o P/iarol, A impunidade animou-os, até que chegaram a escrever com impu- dência o que 82 lê no jornal, ora incriminado. Perguntou se não ha- via abuso da liberdade de imprensa, quando se escrevia que a seguran- ça do estado se encontrava peior, que no tempo da usurpação, e quan- do se dizia que os soldados de D. Miguel depuzcram as armas, por- que lhes garantiram os seus soldos, quando todo o mundo sabia que foram vencidos. Perguntou mais se não havia abuso da liber- dade de imprensa, quando se aííirmava que a revolução nada fez, se- não destruir. N'esia comparação do governo do usurpador com o governo da rainha não havia um crime manitesloi* (i). Eis os artigos do libello! O jornal foi condemnado. E assim os realistas constitucionaes puros começam a sua novo administração por attentarem, m.ais uma vez, contra o direito da associação e contra a liberdade da imprensa. O pcvo é uma enti- dade passiva; não tem capacidade, nem direito, para se intromeiter em os negócios do estado, que dependem só da omnipotência do soberano. Mais uma vez travou-se um duello entre a coroa e o paiz. Foi bem curto o período de paz do novo reinado. O mesmo, que no tempo da regência de Izabel Maria e no tempo da regência de D. Pedro. A rainha afifimara, ao encerrar as cortes, que a sua sabedoria lhe fazia antever a necessidade de uma convocação extraordinária das cortes. Os ministros não quizeram que a soberana de origem divina desmentisse essa prova de sabedoria. E o governo que ati- rava imprudentemente a luva ao paiz, e que acabava de aífrontar a maioria das cortes, não fazendo caso da sua importante delibera- ção, teve ainda a audácia de convocal-as para uma sessão extranr- (i) N.TCtothil ns 440. 688 dinaria, afim de tratarem dos seguintes objectes: medidas de fazen- da, registo de hypothecas e matérias urgentes de diíterentes minis- térios. Quiz-se por esta forma cercear a acção do parlamento, tirar- Ihe a iniciativa das leis, de que elle tanto usara até ahi, ante a es- terilidade das propostas governamentaes, e, finalmente, quiz-se obstar a que elle continuasse na discussão do com mando em chefe. As cortes foram convocadas para o dia 29 de maio. Na sessão de 3 i, o ministro da fazenda apresentou uns poucos de projectos de lei, um sobre o lançamento de decima e maneio para o futuro anno económico, outro sobre as execuções fiscaes, outro de uma nova pauta das alfandegas, outro sobre o minimo das prestações na venda dos bens nacionaes, outro sobre a receita, em que se comprehende a reducção dos ordenados e vencimentos dos empregados públicos, e outro relativo ao orçamento das des- pezas. O governo pede auctorisação para dispor dos bens nacionaes, a fim de se pagar aos credores do estado com os mesmos bens, de reassumir a compra do papel moeda e de supprir qualquer defi- ciência que possa haver nas consolidações das dividas. Egualmente pede para ser auctorisado para negociar com o banco de Lisboa, ou por qualquer outro modo, os adiantamentos necessários para o serviço do thesouro. No relatório o ministro da fazenda diz que era possível faze- rem-se mais reducções nos empregos públicos; mas para isso era necessário um exame minucioso de todas as repartições do estado. E todas as reducções sem conhecimento de causa produzem males que não podem compensar a econom.ia feita. As reducções propostas eram apenas de io3:825c7oo réis. O governo por esta forma quiz obstar á continuação da discus- são do orçamento começada na sessão anterior, e do projecto de lei sobre as accumulações e a reducção dos empregos, que a mesma camará resolvera fazer na discussão do orçamento. O ministro da fazenda pediu que se dessem para ordem do dia, e com a maior urgência, as propostas que acabava de apre- sentar. 689 Leonel foi de opinião que se tratasse primeiro do orçamento, que ficou por discutir na sessão anterior. O presidente da camará respondeu-lhe que era melhor que se esperasse por que viessem os projectos do governo impressos, afim da camará com melhor co- nhecimento de causa entrar n'essa discussão. O ministro do reino insistiu na necessidade de se entrar primeiro na discussão dos projectos do governo, que tinham preferencia. Júlio Gomes da Silva Sanches replicou-lhe que o negocio mais ur- gente era o orçamento. Disse que o ministério apresentou o proje- cto das reducções, para inhabilitar a camará de fazer as que enten- desse. E disse a verdade. Passos Manuel sustentou que a carta dispunha que os projectos só podiam ser convertidos em lei, depois de irem a umacommissão. Não só por decoro da camará, cuja resolução se devia manter, como também porque nada se adiantava com o addiamento da questão por 24 horas, porque os projectos tinha que ir á commissão respectiva, foi do parecer que se passasse á discussão do orçamento ; e assim se resolveu. O ministério conseguiu que a commissão da fazenda apressasse os seus trabalhos. Com etfeito de prompto deu o seu parecer tava- ravel ás pretençóes do governo. Foi na sessão do dia 3, sendo rela- tor Mousinho da Silveira. Travou-se o conflicto inevitável entre a camará e o governo, que a provocara e desconsiderara. É dillicil expor com verdade tudo quanto se passou n'esta ses- são importante. Na Bibliotlieca Nacional não encontramos o Diário das Cortes relativo a esta sessão extraordinária; os extractos da folha otficial são deficientes, e mesmo não nos merecem coníiança; os extractos dos jornaes da épocha não concordam entre si. O extracto mais desenvolvido que encontramos é o do A j- cioual ; mas será elle verdadeiro? N'ali;uns discursos c elle bastante conciso. O Diário do Govcnio evidentemente mutilou o principio da sessão e com elle a 'R^evista. o Lidcfcudcníc e outros jornaes ^o- vernamentaes, que se limitam a copiar o extracto da gazeta olficial. ■■R7 690 E no Nacional que encontramos o que se passou antes de fallar o ministro do reino. Por isto guiar-nos-hemos por elle. Depois de Mousinho da Silveira ter apresentado o parecer da commissão, o barão da Ribeira de Sabrosa pediu que o parecer fosse impresso, e que se desse tempo a ser examinado com o vagar que a matéria exigia, porque nem todos estavam tão habilitados como os membros da commissão, que em 24 horas formaram o seu juizo. Elle não poderá fazer outro tanto. Além d'isso, observou que dois membros da commissão que se sentavam junto d^elle não as- signaram o parecer. Pinto Bastos Sénior declarou que não assignou o parecer, por- que foi surprehendido para o assignar. Tinha que dizer algumas coisas, e em 24 horas não lhe foi possível fazel-o. Um outro mem- bro, o deputado Florindo, dizem todos os extractos, respondeu a Pinto Bastos, dizendo que este lhe declarara que não assignara, porque não se queria comprometter com a camará ; mas que elle se não compromettia, quando cumpria com o seu dever. O que o parecer apresentou não foi inspirado, nem elle recebia inspirações de ninguém. E se entendiam que elle na commissão não cumpriu com o seu dever, mandassem-n'o embora, porque estimava muito isso. Não está aqui uma consciência sob o peso da sua própria ac- cusação, querendo disfarçal-o ? Os factos evidenceiam bem que o parecer da commissão foi inspirado pelo governo, e taWez por mais alguém. O parecer foi para imprimir. la-se passar á primeira parte da ordem do dia, que era a eleição dos quatro membros que faltavam para a commissão que havia de redigir a resposta ao discurso do throno, quando o barão da Ribeira de Sabrosa pediu que se passasse á segunda parte, e que ficasse aquella primeira para o fim da sessão. Depois de algumas reflexões, a camará assim resolveu ; e passou-se á segunda parte, que era o parecer da commissão de marinha sobre o orçamento da respectiva repartição. O presidente quiz embaraçar a discussão, dizendo que havia 691 uma grande diíTerença entre a despeza apresentada pelo governo e a apresentada pela commissão, fazendo esta uma economia de réis 6:643.:50oo. Leonel respondeu-lhe que não era precisa a leitura do orçamento» porque todos os deputados o possuiam. Entre-se na discussão da primeira verba, que c o quanto ha de ter o ministro da marinha; e depois ir-se-ha ao resto. N'isto levanta-se Rodrigo da Fonseca Magalhães, e insiste em que ha uma diíTerença entre a proposta do governo, a somma por elle apresentada e a somma dada pela commissão. E se a ca- mará dá preferencia á proposta do governo, renuncia ás reformas apresentadas pela commissão ; e se approva estas, não examina aquella. É de opinião que se discuta verba por verba, e que não ha a escolher entre a somma assignada pela commissão, e a apresen- tada pelo governo. O barão da Ribeira de Sabrosa foi de opinião que se exami- nasse uma e outra verba, que se comparasse a do governo com a da commissão e se votasse depois no total. Isto não era votar á carga cerrada e sem exame. Disse que os que negaram á camará o direito de fazer as reducções ainda persistiam na sua opinião. Ha 3 mezes que o parecer da commissão andava nos annaes da fama. Ou se adopte, ou se regeite, a despeza apresentada pela commissão. Era a repetição dos coníiictos de 1827 entre o poder executivo, forte com o apoio da coroa, e o poder legislativo, que se pretende amesquinhar e aviltar perante aquelle. Depois de fallar o barão da Ribeira de Sabrosa, levantou-se altivo o ministro do reino e pedia a palavra para explicações, visto a camará ir contra a opinião do governo. O barão da Ribeira de Sabrosa disse que se temia atacar per- sonalidades, mais isto não era otlendel-as. O ministro do reino disse que quando entrou na sala já se ven- lilava a questão ; não sabia o resultado d'ella ; pediu a palavra sobre a ordem, não lh'a deram ; pedil-a-ha agora sobre o que o presidente e a camará lhe quizerem dar. Era obrigado a declarar á camará o modo de ver do governo sobre a questão, mas não lhe tem sido 692 possível. Não lhe deviam negar essa explicação, porque o governo sobre o negocio do orçamento tomou uma iniciativa directa. Isto provocou agitação na camará; muitas vozes, ordem, ordem do dia; outras falle, falle. O presidente retirou a palavra ao ministro, que deu o exemplo de sahir da ordem do dia, e de querer desviar a questão. Rebello da Silva disse que se entrasse na ordem do dia, que era o parecer da commissão da marinha, e que se entrasse n'ella com sangue frio. Rodrigo da Fonseca pediu a palavra, para pedir que deixassem ouvir os ministros. Mousinho da Silveira defendeu o governo, dizendo que era" preciso economia, e que para ser feita devia seguir-se o caminho mais curto, que adoptou o governo. A seguir o caminho que desejava a camará, nem em dois annos se acabaria a discussão do orça- mento. (xMuitas vozes ordem, ordem — o presidente adverte — o que está fora da ordem). E notável o procedimento de Mousinho da Silveira n'esta ques- tão. O deputado Leonel quiz responder a Mousinho da Silveira, mas o presidente observou-lhe que não fizesse questão, porque toda a camará reconhecia que o deputado sahira fora da discussão, — Queria fazer-nos retrogradar, disse Leonel. Tornou-se a pedir que se entrasse na ordem do dia, de que o governo e os seus amigos queriam fugir. O presidente disse que era preciso que a camará decidisse se devia dar a palavra aos deputados que a tinham sobre a ordem. Alguns reclamaram-n'a. O presidente deu-a a Silva Sanches, que disse ia ter a palavra sobre a desordem, porque isto não era ordem ; o que estava para ordem do dia era o parecer da commissão da marinha. Como se vem agora, quando ha pouco se decidiu que o pare- cer da commissão de fazenda fosse impresso, pedir que se pro- rogue esta"* discussão, revogando as decisões tantas vezes tomadas sobre esta matéria? 693 Votava por que se entrasse na ordem do dia, que era o orça- mento da marinha. Apesar d'isso, o presidente da camará concedeu a palavra ao ministro do reino, a quem a tinha retirado por estar fora da or- dem ! Foi então que o ministro do reino com o rei na barriga, e escu- dado no commando em chefe do exercito, atirou a luva ao parla- mento e provocou-o audazmente. Não entrava na questão se se devia, ou não, discutir o orça- mento da marinha; é um objecto do regimen interno da camará, a que não pertencia, ou era alheio. Entendia no emtanto que devia dar explicações á camará, para a livrar das dificuldades e embaraços em que se ia metter, querendo seguir o caminho que adoptou, para fazer reducções nas despezas do estado, e indo contra as pro- postas apresentadas pelo governo. Passou depois a sustentar que as camarás só tinham poder le- gislativo, mas não capacidade para reformar as repartições do estado. Como poderiam ellas obter os dados necessários para bem calcula- rem as quantias precisas para cada um dos objectos comprehendi- dos nas diíTerentes verbas? Como havia da camará entender, por exemplo, de obras publicas e de administração geral ? Que dados tinha para formar a sua opinião sobre o quantitativo necessário para cada um d'esies ramos".' Podia a camará conhecer as necessidades de uma ou outra repartição, mas havia ouiras de que não percebia nada! Ameaçou a camará com o poder moderador, dizendo que indo por caminho ditíerente do do governo, podia perder tempo; porque o projecto de lei tinha que subir á camará alta, que o podia rejciíar, e assim se licava na dependência da commissão mixta, o que vinha demorar mais a discussão. E se subisse no noder moderador Lom a appn)vação da camará alta, a coroa podia não estar por isso. e re- cusar com o seu veio. Era novo tempo perdido! Taes foram em termos ckiros as celebres doutrinas expendidas pelo ministro da coroa, na occasião em que se travava conllicto en- tre esta, o seu governo e a representação nacional. 694 O governo queria que os seus projectos de lei tivessem prefe- rencia aos da iniciativa do parlamento, não somente porque se julgava superior a elle, que addia, proroga e dissolve á sua vontade mas porque entendia que o mesmo parlamento, e a nação que elie representava, não tinham capacidade para conhecerem as ver- dadeiras necessidades do estado. A camará não quer sujeitar-se á vontade do governo? Lá está a coroa, de que este é o intermediário, ou para oppôr o seu peto ás medidas próprias da camará, ou para dissolver esta. É a repetição da linguagem dos ministros da coroa em 1827. O primeiro que protestou contra as doutrinas expostas foi o deputado Leonel, Este censurou o ministro, por ter ameaçado a camará com o poder moderador. Disse que as doutrinas do ministro do reino já foram apresentadas nas camarás francezas pelo minis- tério Villele, quando tinha os seus 3oo disciplinados. Queria-se ater- rar com o poder moderador ; mas deixaria por isso a camará de cumprir com os seus deveres? Esse poder podia fazer o que lhe parecesse, bem como a camará alta ; a camará popular, porém, o podia egualmente. Paliou Passos Manuel com a intelligencia, eloquência e elevação de linguagem que lhe eram próprias. E mui extenso o discurso d'elle, para fazermos todo o seu extracto. Declarou que não tinha apoiado nenhum dos ministérios pas- sados, porque não lhe parecia que a sua politica fosse esclarecida, nem o que mais convinha ao bem do paiz. Xão apoia o actual porque segue o mesmo caminho. Xão censura o ministro por ter fallado no poder moderador; mas sente não poder concordar com as doutrinas que expendeu. E para cumprir com os seus deveres de deputado íiel, vê-se obrigado a combater com todas as suas torças opini(5es que julga incompa- tíveis com o systema representativo. Sente muito, porque no seu entender nada ha mais prejudicial ao paiz do que estas continuas mudanças ministeriaes. «Não quero, disse elle, coUocar o poder moderador n'essa ter- rivel necessidade. E é por isso que, apesar de escandalisado com as extraordinárias iheorias expostas pelo sr. ministro dos negócios do reino, não tomo já a iniciativa para propor á camará que as consigne na acta e contra ellas lavre solemne protesto. Em circum- stancias ordinárias não só deviamos fazer isso, mas enviar desde logo uma respeitosa mensagem á coroa, pedindo a Sua Magestade que retirasse a sua confiança a ministros que assim desconhecem as indeclináveis condições do systema representativo, e se arrogam a disputar á camará dos deputados a sua primeira e mais importante prerogativa constitucional.» Diz que as theorias expostas pelo ministro do reino são contra- rias á cana, ás prerogativas da camará e á politica d'ella. E accros- centa. «Deploro sinceramente que em Portugal os ministérios subam e desçam sem nenhuma attenção á politica do parlamento, e se or- ganisem unicamente por forças estranhas á ordem regular do sys- tema representativo, ou por intrigas de palácio, ou por amotinações da rua. Este symptoma é terrivel.» O orador quer que os ministérios se formem das maiorias par- lamentares. E que, se a não teem. ou se demittam, ou dissolvam as camarás, appellando para a urna. Diz o orador que o ministro do reino não fez senão repetir o que se encontra também no parecer da commissão de fazenda. Diz este que o orçamento abrange muitos e variados objectos e que o rei pode querer approvar uns e reprovar outros, e que, se fosse obri- gado a approvar, ou reprovar em globo, ticava illudida e prejudi- cada a prerogativa da coroa, o direito do ;r/o e da sancçãol O orador não sabe como isto lizesse peso na consciência de tão dis- tinctos legistas. No projecto da lei de mLT)> o ministro da fazenda expende lambem a mesma doutrina. E o parecer da commissão não toi inspirajão do governo I O orador ataca energicamente o niini>ieri'). por ter nomeado o esposo da rainha commandante em ^hete. quando o parlamen.to eliminou esse logar. seguindo assim uma «tpinião deplorável. Diz que. se o ministério quer governar constitucionalmente e com o apoio da camará, c ncce--^ario su^jeiíar-se á politica d*ella. 696 E fazendo recordar hoje a celebre phrase de Gambetta, accres- centou: «Quando uma vigorosa maioria da camará electiva persiste na sua politica, ao ministério não fica outro recurso, senão a disso- lução, ou demissão. O rei pode nomear os seus ministros; mas a camará pode de- clarar que não trata com elles e que não vota subsidios. O rei dis- solve; os collegios eleitoraes pronunciam-se. Se a maioria dos 221 é reeleita o rei cede^ ou toma o caminho de Cherbourgo. Trouxe este exemplo da França^ para avisar o governo de que sobre elle pesa a responsabilidade do futuro. » Assim respondeu o partido liberal ás provocações da coroa e do ministério por ella organisado. Pela bôcca do honrado Passos Manuel, e ás ameaças com o poder moderador, respondeu com o exemplo de Carlos- X. A Revolução estava resolvida. A camará deliberou que se passasse de novo á ordem do dia, interrompida tumultuariamente pelo presidente, para dar logar a que o ministério provocasse o conflicto com ella, afim de motivar a sua dissolução. Silva Sanches fallou no sentido de se diminuírem os ordenados dos ministros. O barão da Ribeira de Sabrosa e João Bernardo da Rocha foram do voto que o ordenado do ministro da marinha fosse de dez mil crusados, O ministro respectivo tornou a insistir em que se discutisse primeiro o projecto do governo. Julgando a matéria discutida, a camará approvou a proposta do barão da Ri- beira de Sabrosa, ou o ordenado de dez mil cruzados. A discussão da ordem do dia foi addiada para o dia seguinte. Então o presi- dente do conselho pediu a palavra para uma explicação. Declarou, cm termos breves e em tom altivo, que fez a nomeação do esposo da rainha; porque estava no seu direito, e não havia lei que se oppuzesse a isso. A votação da camará não era para elle coisa que merecesse im- portância ! São mui notáveis e instructivas as respostas de Barjona e Leonel. 607 Barjona disse que, embora não houvesse lei expressa em con- trario á nomeação, não deixará de ser severamente condemnada em qualquer systema representativo, (apoiado^ apoiado.) «Invoco, diz o orador, o testemunho de meus collegas ; digam elles se acaso se compadece com os princípios constitucionaes, com aquelles que especialmente nos regem, um acio contrario á determinação da ca- mará electiva, a uma decisão quasi unanime da mesma, a uma de- cisão que tinha a seu favor a opinião de toda a nação. Dissolvam esta camará, antes de que a nação veja continuar o escândalo de se apresentar um ministério perante um congresso nacional, que elle ludibriou. Emquanto a mim, de todo o coração o digo: jamais comparecerei em logar publico tanto a meu pesar e com tamanha violência, como hoje n'esta cadeira. Perdoa-se-me, se acaso me apaixono um pouco mais, talvez do que devia ; mas qual será a pessoa que veja a sant^ue frio despresar d'esta sorte uma decisão da camará e a opinião de toda a nação, a opinião dos por- tuguezes todos, com firmeza o digo. Emquanto o príncipe não en- trou em Portugal, ninguém disse, nenhum periódico avançou, que o meu projecto não era útil; pelo contrario, todos o consideravam eminentemente patriótico, e foi só nos últimos dias que alguns, por motivos bem óbvios, comaçaram a fazer illusúes um pouco diíferen- tes. como eu em verdade sempre receiei. Lembrados estarão meus collegas que na sessão secreta avancei que, se era diíticil deixar de nomear o príncipe commandante em chefe antes de elle chegar, muito mais o seria, depois de se achar entre nós. Em elle aqui es- tando, foram as minhas palavras, o amor dos empregos do palácio, as intrigas d'este hão de ter uma mflucnjia. que ha de custar a ven- cer. Acautelemo-nos desde já, emquantcj não e tão ditlicil, vozes: c verdade c verdade: Eis aqui verificado o que então receiei ; eis aqui também a declaração que julguei me cumpria fazer á nação, aiim de que ella saiba que não mudei de sentimentos, e que hei Jc sempre votar no mesmo sentido, iodas as vezes que se me propur- cionar occasião. •> Leonel declarou que na mesma sessão secreta propoz que toJus 698 OS deputados ficassem obrigados a não assignar o decreto da no- meação, se viessem a ser ministros. «Toda a camará, disse elle, se lembra qual foi o deputado que a isso se recusou.» N'isto levanta-se Mousinho d'Albuquerque, e pede que a ca- mará suspenda o seu juizo, até segunda feira próxima, em que res- ponderá. O ministro da justiça pediu a palavra, e leu diversos documen- tos relativos ao consorcio da rainha, dos quaes se coUigia que pelo ministério transacto fora garantida ao príncipe a nomeação de com- mandante em chefe. Diz o Nacional: «Grande sensação fez na camará este relatório ; o sr. ex-ministro do reino prometteu brevemente dar explicações ; mas pelo que ouvimos ler n'esta sessão, difficil e mui diííicil será a sahida que lhe querem dar.» Ao terminar o discurso e relatório do ministro da justiça, houve grande sussurro e agitação na camará e nas galerias indignadas com o desleal procedimento do ex-ministro da regência da Ter- ceira, nomeado pela coroa, para presidir ao ministério da opposi- ção liberal, que elle tanto guerreara. Na sessão do dia 4, Mousinho d' Albuquerque limitou-se a pe- dir, conjunctamente com os mais membros do anterior ministério, copias authenticas de toda a correspondência a respeito do casa- m.ento. Nem uma palavra disse em sua defesa! O ministério não compareceu á sessão. Barjona requereu que se interrompesse a discussão do orça- m.ento, um ou dois dias por semana, ou uma sessão diariamente, para se tratar de alguns projectos importantes da sessão ordinária, e que o primeiro fosse o da ordenança militar, que trata do com- mando em chefe. Entrou-se na primeira parte da ordem do dia, que era a eleição dos quatro membros que faltavam para a commissão que devia redigir a resposta ao discurso do throno. Feita a eleição, entrou-se na segunda parte, que era a continuação da discussão do orçamento da marinha. Acabava a camará de eliminar um logar de ofíicial maior da 699 secretaria da marinha, quando o presidente chamou a attenção d'ella e o secretario leu o decreto da sua dissolução! Assim terminou o conflicto parlamentar. Abriu-se o período da Revolução, mais uma vez provocada pelo partido conservador. Passos Manuel ousou dizer aos ministros da coroa que, ou se submettessem á vontade da camará, ou se demittissem; a rainha respondeu á camará na mesma linguagem, ou submetter-se, ou ser dissolvida. Não quiz submetter-se á vontade d'ella ; e dissolveu-a, usando das prerogativas que lhe concede a carta. Restava saber se o paiz se submetteria, ou se a rainha iria em caminho de Cherbourgo, segundo a allusão de Passos xManuel. Dissolvida a camará, o ministro da guerra enviou uma circu- lar ao exercito, para o indispor com a maioria e tirar-lhe assim o apoio d'elle. N'essa circular accusa-se a camará de não ter querido prover nos importantes objectos de fazenda, nem de remover os embaraços ao andamento da administração da justiça. «O governo ainda apellou para ella, e se lisonjeou na puresa das suas intenções que acharia o mais decidido apoio e de que a irritação das paixões, e o espirito de partido se callasseni uni momento ao irrito unisono da nação^ fatigada de projectos sem êxito, de discussões ociosas, ou in- tempestivas^ de mesquinhas rivalidades e de ameaças da pa-{, da or- dem e da tranquilidade. y^ As cortes foram convocadas, para especialmente tratarem de certos e determinados objectos apresentados peh^ governo, que tem o direito da iniciativa das leis. e a rainha o de convocar extraordi- nariamente o parlamento. A camará condcMiinou em globo as pro- postas govcrnamentaes, entrando na discussão do orçamento da administração passada, em menoscabo das modificações feitas pela actual. "Este procedimento da camará dos deputados, prosegue a circu- lar, importava alguma coisa mais, que um simples dissentimento cm matéria de pura opinião: as prcr(ii:atiras da coma, o decoro do cxecuí!]'o, a independência dos poderes pul^/ico.-: i:\irantida pela carta, foram eg'ualmente feridos pcíj mesmo iro!pc. ■> 700 N^esta coUisão, accrescenta a circular, os ministros entenderam que tinha chegado o momento de recorrer ao poder moderador, afim de deliberar! Em desforra das demissões feitas pelo anterior ministério, o actual começou a demittir a torto e a direito todos os empregados pertencentes á opposição, e a metter para dentro de todas as repar- tições publicas gente sua e só sua. Era não somente para os recom- pensar de serviços prestados á causa da carta; mas também para as próximas eleições. Encontrando opposição enérgica no paiz, en- tão muito mais aíFeiçoado aos princípios liberaes do que hoje, de- sejou fazer a eleição com empregados do estado, afim de com o seu voto cerrado esmagar o das classes laboriosas e activas. Com as eleições indirectas era isso muito mais fácil Em pouco tempo, o partido conservador, composto de validos do paço, teve a habilidade de encher todas as secretarias publicas de funccionarios só d'elle. O poder judicial, que os nossos leitores viram passar para inteira dependência da coroa, ou dos ministros, os empregados administrativos, os empregados de fazenda e do fisco, o exercito, agora nas mãos do esposo da rainha, a camará alta sujeita a successivas fornadas, e até o conselho d'estado, tudo se recompoz só com amigos do governo, ou com gente conservadora. Se d'antes este partido de validos abusou dos grandes ordena- dos, das accumulações dos empregos e do direito de indemnisação, como veremos no capitulo seguinte, d'aqui por diante não teve mãos a medir. Foi encher e fartar amigos e afilhados. Manuel Gonçalves de Miranda abandonara também os seus princípios de 20, e foi chamado, em recompensa, aos conselhos da coroa. Um alvará do governador civil habilita este novo ministro da coroa para receber a bagatella de 5o:ooo cruzados, a titulo de indemnisações, pela sua pensão de ministro d'estado honorário de 1823 até i835, em títulos admissíveis na compra dos bens nacio- naesl Fora apenas uns mezes ministro da Revolução de 20, e vem agora receber essa enorme quantia baseado na escandalosa portaria de Palmella, quando ministro da reacção da Villafrancada I 701 O governo passa a atacar a guarda nacional, essa grande ga- rantia dos direitos populares A primeira victima foi o batalhão da guarda nacional do Porto, que foi dissolvido arbitrariamente. No dia 7 de julho teve logar a eleição dos commandantes das guardqs nacionaes de Lisboa. O governo empregou todas as vio- lências, para fazer recahir esses logares em pessoas só da sua con- fiança, o que deu origem a desordens. \'enceu a opposição ; o governo, despeitado, mandou abrir devassa sobre os acontecimen- tos, que elle próprio provocou, para com este pretexto dissolver também as guardas nacionaes de Lisboa, de quem desejava desfa- zer-se. A pretexto dos muitos bandidos e malfeitores que infestavam o paiz, o ministro do reino enviou uma circular ás auctoridades administrativas, ordenando-lhes o processo contra elles, c a repres- são dos inimigos da pátria, que, promovendo a anarchia, torna- vam-se os mais perigosos inimigos da rainha e da carta. Diz o Diário do Governo: «A evidencia dos factos tem manifestado que ha um partido agitador entre nós, que parece haver fundado na desordem suas esperanças, e que por isso não tem cessado até hoje de empregar todos os seus esforços para promovel-a.» (i) E quem era o culpado? Quem provocou o conflicto tão audaz c imprudentemente? As camarás municipaes dirigiram á camará dos deputados dis- solvida representações, condemnando o decreto da dissoluçãc» e aprovando o procedimento d'clla. O partido absolutista puro reanimou-^e mais uma \cz. ao \òr os seus princípios surgirem do throno constituci )nal. dandu-lhe as- sim rasão e direito a insurgir-se. Começaram então a espalhar-se proclamações, chamando o pov(^ ás armas, e dizend«>-lhe que D. Miguel iá \'inha em caminho de Hespanha. Nas Beiras e no Algarve levanioLi-sc de novo o es- tandaric do absolutismr. puro, e formaram-se .;uernihas miguclis- Di.v 702 tas. Na villa de Ourique arrombaram a porta da cadeia; mataram o carcereiro ; e soltaram os criminosos com que os miguelistas for- maram uma guerrilha, que se refugiou nas montanhas. Felizmente os carlistas foram expulsos da Galliza e Astúrias, onde penetraram, e as guardas nacionaes em Portugal dispersaram as pequenas guerrilhas miguelistas, que não lograram os seus in- tentos. O ministro Gonçalves de Miranda, para attrahir os realistas puros e com o seu reforço esmagar o partido revolucionário, ou liberal, reintegra os miguelistas que em i835 foram demittidos ás instancias da mesma opposição, como vimos! Entrava-se em pleno periodo de 1826 a 1828. E para affrontar a opinião publica, o ministro da fazenda man- dou entregar a uma nova companhia as lezírias do Tejo e Sado por dois mil contos de réis, em contrario da deliberação da camará e do decreto de 16 de março, que as mandou pôr em praça pu- blica! E emquanto o ministério concentrava toda a sua attenção e todos os seus esforços em manter caprichos reaes, em comprimir o espirito publico e em debellar a Revolução, abandonava com inteira indifferença todos os negócios públicos. Até 9 de setembro não apparece uma só medida útil, nem uma reforma importante, para levantar o paiz da sua decadência e aba- timento ! Poz-se de parte esse assumpto, que era secundário, para se cuidar nas instituições, que eram o principal. CAPITULO V CONSEQUEiNCIAS o poder executivo foi um constauto estorvo ao progresso do systema representativo.— Accumulaçóes de empregos c grandes ordenados dos chefes cartistas.— O producto da venda dos bens nacionaes é devorado pelos amigos da rainha e da carta. — Roubos nos conventos.— As riquezas d'estes vão parar ás mãos dos particu- lares e das próprias auctoridades.— Venda escandalosa das lezírias do Tejo e Sado.— Desordem na adminis- tração da fazenda publica.— Os governos recusam-se a darc^Mitasdas suas administrações. —Os empréstimos. — Rendimentos do estado —A maior parte d'estes acha-se absorvida por antecipações feitas.— Desnrdem e anarchia na administração da justiça e falta de segurança da vida e da casa do cidadão.— .Vbandono da irs- trucção publica.— Avidez pelos empregos públicos. — Decadência e desmoralisação dos partidos const:tucio- naes.- A imprensa politica.— Incoliereiícias do partido liberal cartista.— O partido da Revolução. Teem visto nossos leitores que desde 1826 o poder executivo só serviu de estorvo a todas as medidas e reformas importantes que os parlamentos tentaram fazer a bem do paiz. Ainda em i836 a coroa confessava, como vimos, que até ahi não tinha sido possível porem-se em prática todas as leis re:íula- mentares da carta, nem discutir-se o orçamento do estado ! Com eífeito. todos os annos os parlamentos foram encerrados, sem con- cluírem a sua obra reformadora, e ficando suspensas as suas me- didas mais importantes, por causa do eterno conMicto d'elles com o poder executivo. Todos os annos se andou em successivos addia- mentos das cortes e em encerramentos intempestivos. I^Zm 1834 a i83í^ o mesmo que em 1826 a 182S ; o poder executivo não cessou de pretender dominar e supplantar o poder lei^islativo, e todos os mais poderes do estado. O svstema representativo não passou de uma perfeita burla ; os parlamentos foram impotentes contra as vontades da coroa e as prepotências dos seus ministros, que foram 704 OS únicos que deram e impuzeram leis ao paiz, exactamente como no puro regimen absoluto. A opinião publica não deixou, um só momento, de ser compri- mida ; e governou-se sempre sem ella e contra ella, como temos visto. Tanto no periodo de 1826, como no de 1884, o partido liberal não logrou subir ao poder; este tornou-se exclusivo dos conserva- dores, ou realistas constitucionaes puros; porque só com elles era compatível o regimen da carta. Aquelles dois períodos constitucio- naes foram uma conspiração permanente contra o partido liberal e democrático. O ministério Campos-Mousinho foi a ultima prova do empenho que havia de se estorvarem os passos do partido popular, e de se obstar ás suas reformas politicas. A historia do constitucionalismo não passou de um completo sophisma dos principies liberaes e democráticos. Agora vejamos o que produziu o regimen da carta filha do direito divino, e imposta pela vontade do soberano; vejamos o que fora esse regimen da corte, de duques, condes, marquezes e de validos do paço, os únicos que, segundo a mesma carta, deram leis até aqui. É chegada a occasião de conhecermos e^ses que mais se oppu- zeram ás reformas liberaes e democráticas, e que mais hostilisaram as propostas áejei para a reducção dos empregos e ordenados do estado e contra o abuso das accumulações. Já vimos como esses homens se comportaram na emigração e na regência da Terceira, recebendo grossos ordenados, emquanío os emigrados morriam de fome e passavam por todas as prova- ções. Durante a dictadura de D. Pedro, encheram-se e fartaram-sc. l^or meio de adulações ao príncipe poderoso, e por meio de vergo- nhosas apostasias, elevaram-se e engrandeceram-se em honras e fortunas. Morreu o 'poderoso senhor; fcou a sna successora. de quem logo se acercaram. 706 Começaremos pelo chefe dos realistas constitucionaes pu- ros, ou do partido conservador, Palmella. Já vimos que este chamado devorista nunca deu contas da sua administração de Tly- mouth. Elle fez-se elevar a duque, conselheiro doestado, e á presidência da camará dos pares, e deu a si mesmo a grã-cruz da Torre Rs- pada, ao íilho mais velho o titulo de marquez do fayal, ao filho segundo as honras de marquez e elevou o irmão D. Filippe de Sousa Holstein, companheiro da Bclfestada^ ao pariato. Além dos looioooc^ooo réis de dotação, recebeu do thesouro, a titulo de in- demnisações e de outros, 65:796.:7)6i2 réis. Saldanha, o apóstata, afora os looiooo.r^.ooo réis de dotação e os soldos desde 1827 até i832, recebeu a titulo de indemnisações 10:346-5(^66 réis; o duque da Terceira, também a mesmo titulo, e fora os ioo:ooo.:rooo réis de dotação, 43:536.r^552 réis; Silva Car- valho, a titulo de ministro d'estado honorário de 1823 até i832, 10:346.^666 réis. Nomeou-se a si próprio presidente do supremo tribunal de justiça com 10:000 cruzados, conselheiro doestado com 6:000 cruzados e recebia, além d'isso, f 2:000 cruzados como mi- nistro. Já vimos que Gonçalves de Miranda recebeu a titulo de m.i- nistro doestado honorário, desde 1823 até i832, a quantia de 48:000 crusados. Agostinho José Freire despachou-sc a si próprio director do coUegio militar, com o ordenado de 8:000 cruzados; recebia 6:000 cruzados como conselheiro d'estado, e deu a si mesmo a grã- cruz da Conceição e a commenda da Torre l^spada. Rodrigo da Fonseca iMagalhães accumulava o logar de oíficial maior da secretaria da justiça com a direcção da imprensa régia, com o louar de correio mór de (iuimarães e o de thcsoureiro da bulia em Ikaga, todos logarcs rendosos! O duque da Terceira recebia como presidente do conselho, e ministro da guerra, como conselheiro d'estado, como marechal ge- neral do exercito, como membro do supremo conselho militar, como governador da torre de Belém e como estribeiro m(')r da rainha; Silva (.arvalho como ministro, conselheiro doestado e presidente do supremo tribunal de justiça; Agostinho .losc l"rc'irc accumulava o 706 logar de ministro com os de par do reino, de conselheiro d'estado, inspector do collegio militar e brigadeiro dos reaes exércitos ! Só a venda dos bens nacionaes era para dar ao thesouro uma somma avultada. A escandalosa lei das indemnisações fez cahir es- ses bens nas mãos dos suppostos credores do estado, dos afilhados, e dos que se apresentaram como tendo prestado serviços á rainha e á carta. Foi um exercito enorme de servidores d'essa causa que se levantou a pedir alvarás de admissão para a compra dos bens. Até miguelistas se apresentaram a pedir titulos, em recompensa dos benefícios que prestaram á causa constitucional ! E foram attendidos, entregando-se-Ihes os bens pretendidos! Muitos d'estes actos foram denunciados ao parlamento. Um facto dá a amostra de como esses bens foram devorados pelos amigos da rainha e da carta. O deputado Gomes de Castro, valido e protegido por Silva Carvalho, foi nomeado, em 1828, pela junta do Porto escrivão da junta fiscal, e depois secretario da commissão do Erário. Quando voltou o regimen constitucional, foi nomeado, em 4 de dezembro de i832, secretario do thesouro. Este novo devorista, a titulo de indemnisações dos prejuizos causados pelo governo de D. Miguel, e dos serviços prestados á rainha e á carta, pediu os ordenados de todos aquelles empregos avaliados em i:8ooíí)000 réis annuaes, o que desde 1828 até 1882 prefez a boa somma de 7:425ítí)00o réis, que recebeu em titulos admissiveis na compra dos bens nacionaes ! Serviu a junta do Porto por um mez somente! E assim lhe fo- ram parar ás mãos 7:425vfooo réis em bens nacionaes! E como esse ha milhares. Se o duque de Palmella, o duque da Terceira, Saldanha, José da Silva Carvalho e outros graúdos davam o exemplo! O paiz era do rei e dos seus leaes servidores. Para se conhecer bem os abusos que se commetteram com essa immoral lei das indemnisações, basta apontar a portaria de i d'a- gosto de i835. Por portaria de 21 de maio ordenou-se aos prefeitos passassem 707 alvarás para receberem os tilulos admissíveis na compra dos bens a lodos os que prestaram eítectivos serviços á rainha e á carta durante o governo de D. Miguel, ou por lerem sido presos, por te- rem emigrado, ou por lerem sido demiltidos pela sua fidelidade áquella causa. A portaria acima declara ser notório que nas prefeituras se teem passado alvarás de habilitação com uma latitude sobre maneira abusiva á portaria de 2 i de maio, e que se torna urgente evitar se- mi Ihante escândalo, para o qual tem concorrido^ por uma parte ^ o desaccordo de pessoas que^ chamando-se constitucionaes, alienam sup- postos^ ou insignificantes serviços^ e^ por outra parte ^ a facilidade com que teem sido passados e admittidos attestados de pessoas aliás respei- tareis, mas que por affeições pessoaes não duvidam comprometter seus nomes, ou faltando a verdade, ou prestando-se a coadjuvar preten- sões que bem pode cliamar-se desairosas (i). Essa portaria foi, porem, poeira lançada aos olhos do publico ; os abusos continuaram, e não podiam deixar de continuar; porque o regimen da carta é de fidalgos, titulares, validos e apanigua- dos. Os ministérios sustcntavam-se, como vimos, com patronatos e fa- vores concedidos aos que os deiendiam e aos que se passavam para elles com mira nos interesses e grossas recompensas. O exem- plo deixado pelo duque de Bragança foi contagioso. Mãos largas para os amigos e afilhados foi a táctica de todos os ministérios constitucionaes até aqui existentes. D. Pedro, com as suas doíações de I oo;ooO':fooo réis e com a distribuição larga de titulos, honras-, mercês e de empregos rendosos, conseguiu até roubar ao partido de 20 os seus homens mais importantes e intelligentcs, que forma- ram depois o núcleo do partido conservador! Kste partido toi muito bem alcunhado o dos devoristas. Todos os que entravam para elle era com a idea de se engran- decerem. F^m volta dos chefes moviam-se immensas ambições, a que era preciso satisfazer. Alem d'isso, o regimen de aristocratas, (1^ Diário do Governo n." iSo. -708 titulares, homens da corte e de validos, era incompativel com um governo económico e modesto. A nobreza obriga. Os ministros, conselheiros d'estado, os grandes potentados po- liticos e os que dispunham de grandes protecções, quizeram apro- veitar-se da lei das indemnisações; e todos foram largamente re- compensados das suas demissões e perseguições pelo governo mi- guelista, emquanto muitos voluntários da rainha morriam de fome e pediam esmola^ e emquanto ás viuvas e orphãos dos que morre- ram nas chamadas campanhas da liberdade não se pagavam as suas pensões, a titulo de que não havia dinheiro ! Os amigos de D. Pedro continuaram a administrar o paiz á ma- neira da administração de Plymoutli^ que os caraclerisa perfeita- mente. O producto da venda dos bens nacionaes foi absorvido pelos amigos da rainha e da carta, que se apresentaram com os seus tí- tulos a receber esses bens a troco dos seus serviços e das persegui- ções de que foram victimas durante o reinado miguelino. Foi uma voracidade completa. Além d'isso, a lei permittia o pagamento em prestações. As primeiras foram pagas e as outras cahiram no esquecimento ! Fizeram-se por esse modo fortunas importantes, emquanto o thesouro empobrecia de anno para anno e exhauria-se! Os conventos foram saqueados por particulares e auctoridades conniventes, levando d'clles objectos de arte de extraordinário va- lor. Todos os dias sabiam carros cheios de livros, manuscriptos, quadros preciosos, vasos c custodias riquíssimas. Foi um encher. Muita gente ficou rica com esses roubos, a que as auctoridades fe- charam os olhos; porque também fizeram o que puderam. O senhor António Luiz de Seabra foi accusado no parlamento de ler, como corregedor de Alcobaça, commettido irregularidades. Defendeu-se com uma obra curiosa, que dá bem uma amostra do que se passou em todo o paiz com as grandíssimas riquezas e pre- ciosidades existentes nos conventos. Diz elle que, apenas tomou posse do logar de corregedor, passou ao mosteiro com os seus oífi- ciaes, e encontrou-o completamente saqueado e devastado. A maior 709 parte dos moveis que restavam ainda estava destroçada e despeda- *;ada. Nem os santos, diz elle, e nem os túmulos loram poujnidos! I^ncontrou a livraria, que era uma riqueza, consideravelmente desfalcada, as porias arrombadas e abertas, e em completo aban- dono! Depois da sua chegada, cessou, continua o auctor, a t/cson/cv» t' o roubo^ a não ser alguns objectos que os tVades tinham deixado escondidos, e que os soldados e alguns particulares descobriram e licaram com elles, I*or duas vezes obstou a que a livraria fosse no- vamente saqueada; mandou aíixar editaes para que todos os que estivessem indevidamente de posse dos objectos pertencentes ao mosteiro os reslituissem, sob pena de serem processados. Diz que se íizeram muitas restituições, particularmente de uma grande co- pia de volumes dos mais preciosos e mil e cento e tantas medidas de cereaes ! \i escandaloso o que elle conta acerca do que se passou em casa do fallecido bispo de Leiria. «Todos os padres do paço, diz o auctor, sabem o que lá havia em Alcobaça, e em casa do bispo de Leiria fallecido, também uma rica escrevaninha de prata, e que, em logar de ir para o inventario, foi para o bahu do servo de Deus (padre José de Deus), todos sabem que havia foros e dizimo.^ cm di- vida de 32 e 33 e que cahiram cgualnicnle no mesmo sorvedouro. Diz que do mesmo es["»olio desappareceram dois sacos com di- nheiro! Passa em seguida a atacar a Junta de melhoraincnlos de igreja, de que era presidente o padre Marcos, confessor da rainha. Dej^ois de e\[n)r os muilcjs objectos de arte que a junta rece- beu, como quadros de muito valor, laminas engastadas em oiro e praia, custodias, cruzes de prata, cálices, iviramenlos ele. accre.s- centa o senhor Seabra: -^ Pelo que liça p(Miderado, se conhece evi- dentemente que a junta administrava os bens lanio do cullo como temporaes pertencentes ás mencionai.las casas; que o seu e\-lhesou- reiro os recebia, excepto os Jaquellas que. por ticareni dislanle dV\sla capital, os jui/.es sU[^pres,->oies lhe Ja\ain Jepositarif »^. ou mandavam vender por ordem ^\a mesma junla: [^orein seUs proJn- 710 ctos eram remettidos ao ex-thesoureiro, como tudo ha de constar dos autos de inventario a que se procedeu, tanto dos bens do cul- to, como dos temporaes; segue-se d'aqui que a junta é responsável pela sua administração, e que devia prestar nas respectivas esta- ções contas exactas e especificadas do que recebeu e despendeu durante todo o tempo que administrou, porém não consta que ella tenha apresentado contas geraes até ao presente, com grave prejuí- zo da fazenda nacional, nem mesmo que houvesse apresentado aquelles inventários ordenados pelo decreto de 1 3 de dezembro de i833 respectivos á extincta commissaria da Terra Santa, já exigi- dos pelo thesouro publico» (i). Quando se faziam accusações tão graves a pessoas tão alta- mente collocadas e á própria junta encarregada de arrecadar e administrar os bens dos conventos, imagine-se o que não acontece- ria nas províncias e com subalternos d'essa junta. Nunca se deram contas, nem inventários, d'esses bens ! Uma administração á maneira de Plymouth. Em quadros, alfaias, livros, objectos do culto e em mobílias, havia nos conventos riquezas na importância de muitos milhares de contos de réis, que ficaram nas mãos dos particulares e dos de- voristas, chamados defensores da carta e da rainha. Da Inglaterra vieram para Portugal muitos agentes que com- praram aos illegitimos possuidores immensas preciosidades artísti- cas, que foram ornar os museus d'aquella nação e os palácios dos lords. Fizeram-se boas fortunas. E os governos fecharam os olhos a toda essa rapacidade! Toda a attenção era pouca, para se manter a carta e as divinas instituições de D. Pedro. Que importava isso, se estas, que era o principal, se mantinham firmes? Da voracidade restavam ainda os bens das lezirias do Tejo e Sado; para satisfazer os amigos e defensores da rainha e carta, o go- verno devorista mandou-as entregar a uma nova companhia pela (i) Observações do ex-corregedor de Alcobaça A. S. Seabra, sobre o papel envia- do á camará dos senhores deputados acerca da arrecadação dos bens do mosteiro d' aquel- la villa. — Bibliotheca Nacional. 711 insignificante quantia de 2.ooo:oooc2)ooo réis, quando valiam o tri- plo ! O thesouro ficava sem dinheiro*.* Lá estava a Inglaterra fiel al- liada para o emprestar com bons juros e a troco das cubicadas pos- sessões ultramarinas. Fim i833 foi contrahido em Londres um em- préstimo de 2.000:000 de libras com M. A^ustiu Ardoin; em 1834 de 4.000:000 libras com /. Q S. Ricardo & CJ" e M. Af^ostin Ar- doin; em i835 de 2.000:000 libras com a casa Rothschild; e em abril de i836 de 4.000:000 libras com esta mesma casa. Tudo isto com juros e commissões exorbitantes! Os dinheiros da nação eram desbaratados pródiga e escandalo- samente, como viram nossos leitores, em quanto os governos re- corriam aos capitalistas estrangeiros, ou britannicos, que poucos an- nos depois fizeram pagar caro e bem caro a Portugal os dinheiros que lhe adiantaram, como veremos no ultimo livro d'esta nossa obra, e quando tratarmos dos conflictos com a Grã-Bretanha No thesouro publico uma verdadeira lastima. Ainda em i836 não havia leis regulares e definitivas sobre impostos e a sua co- brança, e não estavam organisadas as repartições da fazenda. As alfandegas eram um verdadeiro cahos, e outros tantos sorvedouros dos dinheiros públicos. Todos os annos se encerravam c addiavam os parlamentos com leis de meios, e sem que se discutissem os orçamentos, ou os go- vernos dessem contas das suas administrações, exactamente como no regimen absoluto. Ainda em íins do anno de i836 não se tinham dado contas dos muitos empréstimos feitos durante a emigração e a dictadura de D. Pedro ! Os governos, ou o poder executivo, não queriam dcsdenhar-se a dar satisfações aos representantes do pai/., que, segundo a carta, não passam de agentes passivos do systema politico, ou não tcem importância alguma. Mas a carta diz que aos parlamcntí^s incum- be discutir os orçamentos do estado".' Ingénuos! Isso c uma burla; não é para se tomar a serio. Subtrahindo-se á fjscalisação c vigilância dos parlamentos, exa- ctamente como no regimc-n absoluto, os governos lançaram mão 712 dos empréstimos á Inglaterra ; e todos os annos os agiotas de Lon- dres e Mancliester nos enviavam dinheiro para as despezas do es- tado, mediante juros fabulosos e arruinadores. E assombroso o que se lê no relatório da commissão do the- souro apresentado no tempo do ministério Mousinho-Campos. Uma grande parte dos empréstimos contrahidos em Londres fora absorvida em juros e em enormes commissões ao agente por- tuguez, o celebre Mendizabal, que foi então o que são os syndica- teiros dos nossos dias. Foram negócios de encher para os nego- ciadores e agentes portuguezes. Basta citar o facto seguinte. Em maio de i835 baixaram os fundos em toda a Europa; o agente portuguez conveio em que o preço das 800:000 libras que Rotschild havia tomado a 72 e meio fosse reduzido a 67 e meio por cento, ficando a elle a opção de as pagar, ou em dinheiro, ou em apólices de 5 por cento, a razão de 100 de 5 por cento por 140 de 3 por cento! E fizeram-se ainda muitas outras modificações a favor do credor e contra o thesouro de Portugal 1 O relatório é extensíssimo; não podemos apresentar tudo quan- to n'elle se lê. «O resultado, diz elle, de todas as transacções effectuadas em Londres parece ser que se contrahiu um empréstimo de 6.000:000 de libras a juro de 6 porcento; que se amortisaram 91 1:000 libras com o juro de 6 por cento e 700:000 com o juro de 5 por cen- to. O producto do resto d'aquellas 6.000:000 libras, pagas as com- missões e despezas, passou para a conta corrente do thesouro e a divida em Inglaterra cresceu no capital de 4.388:200 libras e 90:272 nos juros. «De todas as transacções de que a commissão teve conhecimen- to mostra-se um augmento á divida nacional de I7.355:994íí)75 i réis e 3 i2:89T'::'899 réis de juro annual. » O rendimento do estado, segundo o orçamento do ministro Campos, é apenas de 8.42o:653c?65 i réis! O defficit, segundo a a commissão da fazenda da camará, era em i836, para cima de 6:000 contos! 713 As decimas em i835 renderam só i:ioo contos! Nós j H mais adiante diz-se. «P^m breve o território foi corrido por partidas armadas que levavam de assalto as mais seguras casas; roubavam ; dizimavam e dispersavam as lamilias. Na Beira houve um exemplo d'estas entrepresas, onde o commandante dos bandi- dos deixava a vida ao chefe de familia por testamento que no acto mesmo lhe fazia, declarando-o seu herdeiro. D'ahi a tempo era o testador assassinado e a successão passava ao cabo da partida. "(^asos tão horríveis corriam quasi ás portas dos prefeitos, que da sua parte, prendendo e exilando quem lhes agradava, davam azos a todos os malfeitores, para se atirarem aos maiores crimes» (x). Muitos e muitos factos }H)Jiamos apontar cm abono do que se diz n'aquella obra contra o regimen cartista, que se tornou quasi tão odioso, como o de IX Miguel, de que faz pouca dilferença. A este respeito lambem o periodo de ^4 a 3^) em nada diífere do de 1826 a 1828. Os governos empregavam s()mente a sua fcVça para prenderem os adversários políticos, perseguirem a im}>ren>.a, prohibircm e dis- solverem as associações liberaes, e conii^trimirem a opinião juiblica. 1-^, concentrando só n'esles pontos as suas attençõcs, despresavam e abandonavam o resto, deixa nd(; o paiz em completa desordem e anarchia, em que não linha segurança alguma a vida e as fortunas dos cidadãos, intimas crealuras, para quem se não lizcram as divi- nas iiistituiçncs de D. Pedro. 716 O regimen absoluto constitucional não devia, sob este ponto de vista ainda, differir do regimen absoluto puro. Os governos continuaram a despresar o bem estar dos cida- dãos. A sua única missão era cuidar no throno e nas instituições sagradas que o manteem. Não se tratava de um regimen democrá- tico; que este é que é o das classes sociaes activas e laboriosas, ou da massa geral da nação. A caria é o regimen do throno, da corte e das classes altas que os rodeiam, um regimen de oligarchias. Não se trata do negociante, do industrial, do lavrador, do artista e operário; que d'estes só á democracia compete cuidar. O termo de- mocracia era para os cartistas synonimo dos termos mais abjectos, injuriosos e odiosos! O cidadão pacifico, mas livre e independente, era privado do direito de associação, do direito de expender livremente as suas opiniões; era sujeito ás perseguições das auctoridades administra- tivas, judiciaes, policiaes e militares, todas ás ordens do prepotente poder executivo, e alem d'isso exposto aos saques, roubos e mortan- dades dos bandidos e salteadores, que infestavam todo o paiz. Mas o throno estava cercado de todas as garantias. Mesmo ás portas de Lisboa, isto é na villa do Barreiro, deram-se factos que provam muito bem o que aííirmamos. Tratava-se das eleições municipaes, que deviam substituir a camará nomeada pelo prefeito de Setúbal por ordem do governo. O preíeito rodeou-se dos miguelistas que outr'ora mais se distin- guiram nas violências contra os liberaes. O sub-prefcito empregava todos os esforços para fazer vingar uma lista toda composta de mi- guelistas façanhudos, que eram homens influentes na localidade. Os habitantes da villa pretendiam eleger a camará dissolvida arbitrariamente pelo prefeito. O secretario do sub-prefeito fez que viessem para a villa do Bar- reiro todas as companhas de pescadores que se achavam fora. Os donos d'essas companhas eram quasi todos miguelistas. No dia das eleições, puzeram-sc á frente da sua gente e em motim assaltaram e arrombaram as portas das casas dos ex-vereadores, aos gritos de matai mata! 717 Partiram vidraças, mobilias e roubaram tudo quanto encontra- ram. O ex-presidente escapou da morte; porque se defendeu com duas espingardas que achou á mão; os amotinados tentaram incen- diar-lhe a residência! Ia sendo também viciima o ex-vereador Francisco Pinheiro Bor- ges, homem probo e honrado que sotíVeu muito no reinado de D. Miguel. A casa do parocho foi egualmcnte assaltada e saqueada, tendo elle que defender-se com uma arma de fogo, com que manteve em respeitosa distancia os seus adversários. Kmquanto isto se passava, outro grupo de pescadores cercava e assaltava diversas casas de outros liberaes, para os assassinar, se lá os encontrasse. O cirurgião escapou milagrosamente, por- que montou a cavallo e fugiu a galope para a villa do Lavradio, até onde foi perseguido, tocando os moradores a rebate, para se juntarem e defenderem-n'o. Segunda vez foi assaltada a casa de Pinheiro Borges, arrom- bando os amotinadores uma janella, por onde penetraram, para o as- sassinarem ; mas ainda doesta vez o não encontraram. Na villa estava um destacamento commandado por um oíficial, o qual crusou as armas dcantc dos tumultuosos; e deixou-os com- meter todos aquelles desatinos c attentados! Isto deu-se em junho de i835. (i) Entrou no programma dos governos o darem-se empregos em recompensa dos serviços prestados á causa da rainha e da carta; o resultado foi que os funcionários do estado, exactamente também como no regimen absoluto, consideravam os seus logares como um direito e não como uma obrigação. O serviço publico era mal feito em todas as repartições, em que havia í) maior desleixo e abandono, como no regimen anterior. Os funccionarios eram do eslado, não pertenciam ao paiz. mas á coroa. a quem scmienle serviam. A in>trucção (uiblica continuou a ser completamente de^pre- (ll Vide A'.7c /'?)!. 7/ n. ■' lU'-^ e 204. 718 sada. Mousinho d'Albuquerque suspendeu as reformas de Rodrigo da Fonseca Magalhães ; as camarás íoram addiadas, e por fim dis- solvidas, sem que entrassem em ordem do dia os projectos que a este respeito apresentou a respectiva commissão da camará. O novo ministério cartista julgou conveniente deixar a instrucção no pé em que estava durante o reinado miguelino; e não quiz restaurar os decretos de Rodrigo da Fonseca Magalhães ! A instrucção primaria e secundaria permaneceram no estado quasi degradante a que as reduzira o reinado do throno e do altar! Os realistas constitucionaes puros não queriam também o povo instruido. E emquanto a revolução democrática de 1820 viu na instrucção e desenvolvimento das sciencias a grande alavanca que devia levantar o paiz, o regimen constitucional da carta viu ahi um grande perigo, exactamente como o regimen do absolutismo ! A instrucção e educação do povo foram completamente aban- donadas pelos constitucionaes, e pode-se dizer até nossos dias. No emtanto, como pensou o marquez de Pombal, não ha regeneração possível de um povo e de uma nação sem o desenvolvimento das sciencias e das escolas. Mas os constitucionaes nunca pensaram na regeneração do povo portugucz. Ao contrario, para o submetterem á carta e ás instiiuições de D. Pedro, e para destruírem as tendên- cias liberaes e democráticas, contra que não cessavam de conspirar, convinha-lhes muito manterem o povo bestificado e ignorante. Foi para isto que o ultimo ministério não quiz mandar pôr em vigor os decretos de Rodrigo da Fonseca Magalhães, e julgou mais acertado deixar a instrucção c as escolas no estado em que as deixou o rei- nado de D. Miguel! Quanto menos instrucção, tanto menos idéas liberaes e menos democracia; e nós temos visto que eram estes os dois constantes phantasmas dos cartistas. E para destruírem a liberdade e a democracia, os constitucio- naes não duvidaram despresar e pôr de parte a primeira e princi- pal condição de se levantar o reino da sua decadência e abati- mento! A pobreza intellectual do paiz equivalia á sua pobreza econo- 719 mica e financeira. Campeou a ignorância e a vil superstição, que sustentaram o reinado miguelino, ao lado da miséria e da pobreza geral ! Em um paiz em que se não respeitava, nem a representação nacional, nem a opinião publica, que moralidade podia haver? Para se subir e elevar-se aos primeiros cargos do estado, não bastava senão o apoio da coroa e dos seus ministros. Que impor- tava que um individuo fosse impopular e estivesse desconceituado na opinião publica? Tinha intelligencia e podia prestar serviços á rainha e á carta? Isto bastava para os ministros da coroa lançarem mão d'el,le e aju- darem-n'o a subir, fazendo-o deputado e dando-lhc os primeiros cargos do estado. Km pouco tempo estava um dos homens mais influentes do paiz. Todas as attcnções voltaram-sc para o throno, que dispensava as graças e mercês e distribuía com mão larga os empregos do es- tado. O paiz era como um numeroso bando de pretendentes de bra- ços erguidos para a coroa, pedindo-lhe empregos, graças e mercês. Quem era ambicioso ia juntar-se a esse bando, que engrosi^ava sempre. Foi d'elle que sahiram os partidos políticos que mais se distinguiram na dcfeza da rainha e da carta. Sobre tudo depois da fusão de Saldanha com Palmella, e do ministério Mousinho de Campos, os partidos politicos desceram ao ultimo nivel de moral; nós já vimos os actos irregulares e desho- nesios do ultimo d'aquelle ministério chamado liberal, e que rivali- sou em seu proceder com o partido retrogrado, ou palmellista. O que temos exposto é o bastante, para se avaliar da morali- dade de todos os partidos realistas constitucionaes ate agora exis- tentes. Uns e outros lançavam sobre o adversário as accusações mais torpes, a que este respondia com outras ainda peiorcs. A fusão de Saldanha com Palmella e o ministério liberal arran- jado no paço vieram lançar a perturbação e desordem no partido da esquerda. No meio d'esta viam-se muitos homens a quem o po- 720 ^ der cegara completamente. Desorientaram-se e ficaram sem idéas politicas fixas. Ora tendiam para o throno, ora para o povo; uns perfeitos catavcntos. Queriam estar com um pé na democracia e com outro na aristocracia e no throno. E não tinham coragem para se indisporem com um e com outro partido; desejavam estar bem com ambos, porque isso era mais confortável, A esquerda estava cheia d'estes homens fracos e sempre promptos a irem para onde os impellissem os acontecimentos. Foram estes os que tiveram o cynismo de defender todos os actos do ministério Mousinho- Campos. A sua moralidade e escrúpulos de consciência não eram infe- riores aos dos realistas constitucionaes puros. De modo que ambos os partidos tinham de que accusar o adversário. Na imprensa e na tribuna lançavam em rosto um do outro as coisas mais sujas e repugnantes. Um exemplo, João Bernardo da Rocha, accusou o deputado Gomes de Castro de ter mettido na algibeira, a titulo de indemnisações, dinheiros que lhe não perten- ciam. Fallou de deputados sem independência, e sempre promptos a defender abusos. Disse que o seu voto não chocalhava na algibeira em meio de cruzados novos, isto referindo-se aos deputados ministeriaes. Res- ponde a 'B^epista: «E verdade que o sr. João Bernardo lá disse que era deputado independente e que o voto lhe não chocalhava entre os cruzados novos, chiste mui agudo e donoso, que o fez cahir, como lá dizem, de pernas para o ar. Mas olhe, sr. deputado, que pode haver muito que notar n'esse dinheiro que se lhe deu para a sua vinda. «Se o sr. Campos lhe fez presente d'elle, tirando-o da sua algibeira, bem o haja ; mas se lh'o deu á conta de ordenados, re- pare como isto foi feito; porque nos consta que na carta de chro- nista antiga, se esta ainda vale, ha certas clausulas a que nos pa- rece que o chronista não satisfez.» E diz que foi Campos quem o mandou vir de Londres, de pro- pósito para levantar a accusação contra aquelle empregado do the- , 721 soiiro e protegido de Silva Carvalho, pagando-lhc a viagem e todas as despezas ! Tanto a respeito d'esta accusação, como da publicação dos re- latórios e do orçamento do ministério Mousinho-Campos, os dois partidos disseram as ultimas um ao outro. Os realistas constitucionaes puros accusaram o ministro Cam- pos de não ter apresentado no orçamento o rendimento da urzella ; a isto responderam os defensores d'aquelle ministro que elle o não fizera, porque Silva Carvalho tinha já consummido aquelle ren- dimento, passando lettras sobre elle! Não teria fim, se quizessemos ennumerar as accusações verda- deiras que os dois partidos assacavam um ao outro. Os cartistas liberaes lançavam em rosto dos cartistas puros os seus esbanjamentos, os empréstimos escandalosos com excellentes commissões para os agentes e negociadores, o contracto do tabaco, a venda das lezirias e outras syndicatices; os cartistas puros lança- vam em rosto dos cartistas liberaes a venda da urzella, do salitre e de outras negociatas para amigos e afilhados. Uma verdadeira exploração da vida politica, que bem aprovei- tada rende muito. Os dois partidos constitucionaes fizeram o que puderam, para darem a ganhar aos amigos e rccompcnsal-os com boas negociatas para clles, mas ruinosas para o estado. A imprensa é que melhor accusa o estado de degradação mo- ral a que desceu o paiz e os partidos políticos que o dirigiam, se- gundo o regimen da carta. Serve de prototypo o Raio^ órgão dos aristocratas, dos palacianos, dos amigos da ordem c inimigos faça- nhudus dos abusos da liberdade de imprensa. O fim d'estc jornal foi lançar a deshonra e o descrédito sobre todos os homens da esquerda, como dissemos. Fallandcí do conde da Taipa, escreve aquelle jornal, que pedia castigo para a imprensa opposicionista, o seguinte : "Quem lia ahi que, conhecendo este despresivel saltimbanco, sem honra e sem virtudes, cuja immoralidade e malvadez são de lodos patentes, não se admire, não pasme, não core. ao ler as no- jentas producçõcs com que pretende p«"!'r seu nivel. em immoralida- 722 de, todos os portuguezes; quem ha ahi que não tenha esquecido o homem que respondeu a conselho de guerra pelo crime de ladrão da fazenda publica e dos pobres soldados, e que escapou de rece- ber o castigo de seus roubos por causa do sangue azul que lhe gira nas veias? etc.» Outra vez é o Leonel que vae para o banco dos réos. Em um numero qualquer, com o maior sangue frio e paz de espirito, este jornal infamador diz que ouviu n'um circulo em que esteve que aquelle ficara a dever em Paris uma pequena quantia. E accrescenta : «Custou-nos a crer que o tribuno da canalha deixasse de pagar tão pequena quantia, o que não podia ser por falta de dinheiro, mas por ser caloteiro; o sujeito insistiu e nós calámo-nos.» Todo o mundo sabe que Celestino Soares foi sempre um libe- ral honrado e probo. A respeito d'elle escreve o jornal: «o denun- ciante do escrivão de Buarcos, além de bêbedo é asno, fanfarrão, impostor.» Todos os candidatos da opposição foram tratados de egual mo- do, e sobre elles se lançaram as mesmas accusações calumniosas, sem se provar o que se affirmava. Ainda mesmo os mais amigos da ordem não escaparam. Eis o que o jornal diz de João Maria Alves de Sá, futuro visconde Alves de Sá : «Demais para que quereria a montanha o sr. Alves de Sá, que não é ladrão? quereria acaso que elle fizesse em S. Ben- to o que fez na rua das Olarias? quereria que elle limpasse os tin- teiros de prata da camará, como limpou os anneis e outras precio- sidades de uma bem educada e decente senhora, a quem, sob pre- texto de casamento, queria tirar o trabalho de guardar uns 40:000 cruzados, ou perto d'isso?)) Isto escrevia-se a respeito áo presidente do tribunal do com- mercio I Paliando de Garrett, redactor do Portiigue{ Constitucional^ es- creve o jornal o seguinte: «E este um leitão, que parece porco^ ou seja pelo costume de fossar e enlamear-se nos lodaçaes, ou seja pelo seu desalinlio e falta 723 dtí limpeza; a verdade c que foi alugado aqui por uma sociedade em que muito figura o barão dos cacos, a qual tem em vista derri- bar o governo, para elevar a pandilha e acabar com o Nacional.» E accusa-o também de ladrão e venal ! Nem os próprios Passos escaparam. «Será possível, escreve o mesmo jornal, que este sr. Passos (Manuel), esse senhor que a fama publica aponta como corretor do contracto do tabaco, aquelle que comprou e vendeu votos a favor do seu correspondente, não core de pejo, não se envergonhe!*») Es- tranha que se tivesse unido á opposição, que, diz, alcunhou de irra- cional^ e de quem se queixou de o ter vendido, como os irmãos a José. Eaccrescenta. «Nós dizemos com o. 4r//7/;í'/ro que esta mudan- ça é talvez devida a terem repartido com elle o preço da venda.» A linguagem da Revista., do Independente., e de outros jornaes governamentaes e cartistas é egualmente desbragada, licenciosa e solta. Devemos confessar que os jornaes da opposição, como o Na- cional e o Porliií;ue~ Constitucional., mantiveram-se mais á altura da sua missão. Mas em geral a imprensa constitucional desceu ao ul- timo grau de degradação, sobrcsahindo, coisa notável, os maiores inimigos da liberdade de imprensa, os mais ferrenhos defensores da rainha e da carta, e os miguelistas I Essa falta de pudor c essa pobreza de sentimentos eram conse- quência immediata do regimen politico, todo pessoal e de oligar- chias, e não inspirado no amor da pátria, no bem geral e na opi- nião publica. Os partidos políticos, logo em seu principio, tende- ram a converter-se em facções. Não os movia um sentimento nobre c uma elevada idéa, l^ra o seu único centro de gravidade o throno. perante quem se mostravam sabujos, e aduladores, alim de obte- rem o poder e os empregos rendosos do estado. 0> partidos politi- cos degeneraram em facções; e as' facções gladiam-se sempre por aquella fíkma. A podridão que ia pela imprensa era producto do meio social e politico em cjue se vivia nVssa épocha. Passos .Manuel dirigiu ao Independente uma carta bem notável 724 ácêrca d'este estado da imprensa, sobre tudo cartista pura. Esta, que era a que mais abusava e se excedia na linguagem, ousou pe- dir que o governo reprimisse essa liberdade, já se entende só contra a imprensa da opposição. A imprensa governamental tem sempre liberdade para tudo. Passos acudiu, lamentando que os jor- naes descessem tão baixo; mas defendendo mais uma vez a liber- dade de imprensa, por que toda a sua vida pugnou. Diz elle, muito bem, porque uma vela não dá boa luz, segue-se que se deva apagar, em vez de se cortar o pavio ? E note-se que elle era uma das victimas. Referindo-se, como vimos, aos que provocavam tumultos nas ruas, chamou-lhes zV- raccionaes; a imprensa cartista, apesar dos desmentidos d'elle, continuou a affirmar que elle se referira á opposição liberal, para o indispor com ella. Mas não é ainda tudo. Condemnando o governo Palmella, por ter dado passos para se pôr de bem com o papa, estra- nhou que elle procedesse d'esta forma com o chefe dos padres, que eram os maiores inimigos do regimen constitucional. A imprensa cartista, com a maior perfídia e sem pudor, alterou-lhes as palavras e espalhou por todo o paiz que elle chamara ao papa o chefe dos la- drões ! Sobre elle lançou as mesmas calumnias e torpes accusações, quando o mesmo deputado apresentou uma proposta de lei contra o celibato dos padres. A calumnia, a infamação e a injuria, eram as armas de combate da imprensa e dos partidos constitucionaes da épocha. Foi isto o que mais concorreu para o descrédito dos partidos militantes, que assacavam uns aos outros accusações tão graves. E preciso dizer que o partido conservador, alem de possuir as primeiras intelligencias e capacidades do paiz, era coherente com as suas idéas e princípios, e marchava unido para o ponto das suas aspirações. O throno era o único centro em volta do qual gravitava ; era toda a sua força e prestigio, não querendo nada com o povo, que despresava. Por este motivo encontrou sempre apoio no throno, que no systema cartista era o único poder cora força e valimento. O partido liberal ora gravitava em volta do throno, ora em 725 volta do povo, ou do principio da democracia Deslocava-sc a cada momento; e seguia n'uma marcha desordenada, ou sem orientação, não se sabendo para onde caminhava. Não teem conta as contradições d'este partido, composto de muitas mediocridades e de homens sem rigidez de principios. Alem d'isso, militavam n'elle muitos despeitados. Tinha por chefe o con- de da Taipa, que fora um dos mais salientes contra os revolucio- nários de 1820, e que acutilou as cadeiras dos deputados, ao voltar de Vi Ha franca, no seu furor contra esses democratas ! Foi um dos condecorados pela campanha da poeira, ou da Villafrancada; e mais tarde apparece como um dos agentes de Palmella na Bclfestada, como nossos leitores viram. Era este um dos que militavam em i836 no campo da demo- cracia ! O barão da Ribeira da Sabrosa foi também dos que primeiro desertaram da Revolução de 1820, e fugiram -com o exercito para Villa Franca. Em 1827, e por occasião dos tumultos de julhí;- apresentou-se á frente da tropa de linha, pedindo que esta aculilas- se os caualhocratas. Em i836 era chefe dos democratas! Macário de Castro era um íidalgo da Beira ; combatia os go- vernos, mais pelos seus abusos do que por principios políticos. Nem por sangue, nem por educação, nem por suas tradicções, era democrata, ou homem do povo. Foram esses chefes do partido liberal que propuseram a aboli- ção do jury, excepto nas grandes cidades, e até a abolição dos tri- bunaes commerciaes ! A gente do Diário do Povo^ que defendeu o ministério Mou^i- nho-Campos em todos os seus abusos, arbitrariedades e escân- dalos, também não acreditava a opposição. .Aquelle ministério, arranjado no paço, veiu desmascarar muitos homens que militavam na opposição liberal, uns por despeito, outros por especulação e outros por svstema de combater todos os governos. Militavam na opposição, como podiam militar nas lileiras governamcntaes. Não tinham convicções politicas. Defendiam hoje o povo. como amanhã estavam promptos a defender o ihrono. se isso lhes convicNse. 726 A subida da opposição liberal ao poder não concorreu pouco para o descrédito de todos os partidos constitucionaes, ou cartistas. Os realistas constitucionaes puros aproveitaram-se muito bem dos erros ^contradições de muitos chefes d'aquelle partido, para os desconceituarem na opinião publica. Conservadores e cartistas progressistas, de quem fora chefe Saldanha, estavam completamente desacreditados. Não restava senão o partido revolucionário, composto dos ho- mens de bem e honestos, de quem. era chefe Passos Manuel, que se affastou, quer dos conservadores, e quer dos cartistas progres- sistas, que Saldanha personifica perfeitamente. Esse partido, acossado constantemente pelo throno, teve que romper com os cartistas de todas as cores politicas, e desfraldou a bandeira da Revolução, ou da democracia, como o único meio de se entrar em vida nova. FIM DO TOMO I índice Duas pahivnis v Introdiicçno vii LIVRO I O REALISMO CONSTITICIONAL I Outorga da carta constitucional i II O juramento da carta I14 IH O papão do 1820 3(i l\ O realismo con>titucional e o realismo puro 70 V Retorçamento do realismo constitucional >i7 \'I Persoi;uição dos vintistas iu5 \il Questão da regência 1^1 \'lll Anniquilação das liberdades . i*'.» IX O rei chegou 170 I.INRO 11 REINADO DO TIIRONO E DO AETAR I rroclamação do absoluti>mo i')0 h O terror ÍM-anco 221 111 A revolução do Porto 2«'.^ l\ A li Jlest.ida 2. .7 \' A revolução na Madeira e Açores .1'' LIVRO III NA EMIGRAÇÃO I O deposito de Plymouth Sfy II A expedição de Saldanha 378 III A regência da Terceira 897 IV D. Pedro e a questão portugueza 4'i8' V A questão da regência de D. Pedro 445 VI A expedição de Saldanha 464 LIVRO IV A REGÊNCIA DE D. PEDRO I A dictadura da Terceira 475 II Queda do absolutismo puro 493 III O governo do libertador 5 10 IV Eleições de 1884 .' 542 V O imperador e o parlamento 56o LIVRO V INICIO DO REINADO DE D. MARIA II I Os realistas no poder 585 li Manobras reaccionárias bi2 III A opposição liberal no poder 648 IV Regresso ao poder dos realistas constitucionaes • 67 1 V Consequências '. 708 ERRATAS ERRATAS EMENDAS Introducção X, lin. 6, creancas crenças Idem, linha 20, Elle Ella Pag. 5, lin. 16, conde marquez Pag. 16, linha 12, 26 de abril 2 de maio Pag. 91, lin. 18, pelos condes pelo conde I^g. 96, lin. 9 e 10, a encerrar as cortes mais uma vez a encerrar as cortes Pag. 126, lin. 3, conversação conser\'ação Pag. 186 e 187, lin. 35 e i petistos petiscos Pag. 192, lin. 21, Deos Aflbnso Deos de AfTonso Pag. 284, lin. 22, 27 de maio 28 de maio Pag. ?8o, lin. 6, chegarem > chegaram Pag. 412, lin. 20, Petters Prats ['ag. 416, lin. 17, n'esta occasiáo n'este anno Pag. 491, lin. 12, otferece offerecem Pag. 517, lin. 16, n'elle n'ella Pag. 536, lin. 14, salcos suevos Pag. 6.S5, lin. 25, soltate solta Pag. 689, lin. iG, linha tinham Outras ha de fácil emenda. Wilill II II II litlllllll A 000 108 967 1